Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
20580/11.4T2SNT.L1-6
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: REGIME DE COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
BENS PRÓPRIOS
COMPRA E VENDA
EFICÁCIA REAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. - Se, na constância do casamento, sob o regime da comunhão de adquiridos, um só dos cônjuges adquire um bem imóvel por via de um seu direito próprio anterior, tal bem é considerado bem próprio desse cônjuge (art.º 1722.º, n.º 1, al.ª c), do CCiv.).
2. - Porém, se, em vez disso, esse bem é adquirido conjuntamente por ambos os cônjuges, mediante contrato de compra e venda por ambos outorgado, então a aquisição por ambos impede que o bem seja considerado próprio de qualquer deles.
3. - É que no nosso ordenamento jurídico, vigorando o chamado sistema do título, o efeito translativo da propriedade decorre do acto pelo qual se expressa a vontade de transmitir o direito, pelo que a aquisição derivada de direitos reais se dá por mero efeito do contrato (art. 408.º, n.º 1, do CCiv.), nos termos do mesmo constantes, tendo, por isso, a compra e venda eficácia real imediata.(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I – Relatório

H…, residente na Avenida …, intentou a presente acção declarativa, com forma ordinária, contra P…, residente na Travessa …, pedindo se declare por sentença que a fracção autónoma designada pela letra “D”, a que corresponde o 1.º andar esquerdo do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida …, na freguesia de …, descrito na Conservatória do Registo Predial da … sob o n.º … da referida freguesia e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ….º, é um bem próprio seu, e não um bem comum do ex-casal composto por si e pelo R..

Alegou, em síntese, que, embora a referida fracção autónoma tenha sido adquirida por A. e R., conjuntamente, na constância do matrimónio entre ambos, a mesma deve ser considerada como bem próprio da A., uma vez que a sua contribuição para a aquisição da mesma com um direito próprio lhe confere essa faculdade.

Acrescentou que a referida fracção lhes foi vendida na sequência de um direito ao arrendamento habitacional de que a A. era a única titular, bem como ter sido a A. a pagar grande parte das prestações bancárias inerentes ao empréstimo contraído por si e pelo R. para aquisição do imóvel, tendo o sinal do respectivo contrato promessa de aquisição – celebrado tão-só pela A. como promitente adquirente – sido pago apenas com dinheiro dos seus pais, dado que a contribuição dos pais do R. lhes foi posteriormente devolvida.

Donde que tal contribuição da A. para a aquisição do imóvel confira ao bem a condição de bem próprio seu.

O R. contestou, pugnando pela improcedência da acção, para o que alegou que, para além de ter residido ininterruptamente entre 1982 e 1999 no referido imóvel, sempre assegurou o pagamento, quer da renda, quer, posteriormente, do valor da prestação inerente ao empréstimo que contraíram para a sua aquisição, assim concluindo que se trata de um bem comum do casal, tanto mais que a decisão de aquisição foi tomada atento o rendimento por si auferido, uma vez que o salário da A. ao tempo jamais permitiria tal aquisição.

A A. replicou, impugnando diversa factualidade alegada na contestação.

Realizada audiência preliminar – com discussão de facto e de direito, comunicando o Tribunal que considerava possível conhecer no despacho saneador do mérito da causa –, foi depois proferido despacho saneador-sentença, concluindo-se por nada obstar à apreciação de meritis e julgando-se a acção procedente, assim se declarando que a aludida fracção autónoma é um bem próprio da A..

Desta decisão veio o R. interpor o presente recurso (fls. 278 e segs.), apresentando as seguintes

Conclusões

«I. A autora intentou a presente acção peticionando que a fracção autónoma designada pela letra “D”, a que corresponde o 1º andar esquerdo do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida …, na freguesia de …, descrito na Conservatória do Registo Predial da … sob o nº … da referida freguesia e inscrito na respectiva matriz sob o artigo …, fosse declarado como um bem próprio seu e não um bem comum do ex-casal composto por si e pelo réu, ora recorrente.

II. Alegou para tanto que, pese embora a referida fracção tenha sido adquirida por autora e réu na constância do matrimónio, a mesma deve ser considerada como bem próprio seu uma vez que a referida fracção lhes foi vendida a ambos na sequência de um direito ao arrendamento habitacional da qual a autora era a única titular.

III. Com base na matéria de facto provada, decidiu o Tribunal recorrido que o bem em causa era bem próprio da autora, alicerçando a sua convicção/fundamentação em que, atenta tal factualidade, teria aplicabilidade o regime estabelecido nas alíneas c) do nº 1 e d) do nº 2, ambos do artigo 1722º do Código Civil.

IV. É no artigo 1722º que a lei faz a enumeração dos bens próprios de cada um dos cônjuges, no regime da comunhão de adquiridos. O nº 1 refere, nas suas várias alíneas, as três categorias de bens próprios; o nº 2 aponta, por seu turno, a título exemplificativo, as várias espécies em que concretamente se desdobra uma das categorias discriminadas no número anterior.

V. A lei prevê, três categorias de bens próprios: (i) os que cada um dos cônjuges tiver ao tempo da celebração do casamento - al. a); (ii) os que lhe advierem depois do casamento por sucessão ou doação – al b); (iii) os adquiridos na constância do matrimónio em virtude de direito próprio anterior.

VI. Para efeitos de preenchimento dos requisitos previstos na alínea c) do nº 1 do artigo 1722º do CC exige-se que (i) o bem tenha sido adquirido na constância do matrimónio, e, (ii) que tal aquisição decorra em virtude de um direito próprio anterior.

VII. O segundo dos mencionados requisitos não se verifica, pois que previamente ao casamento a autora era arrendatária do imóvel (cfr. artigo 22º dos factos provados na sentença) e nessa qualidade tinha o direito de usar e fruir do imóvel mediante o pagamento da respectiva renda e, bem assim, o direito de preferência que lhe era atribuído por lei.

VIII. Tal direito legal de preferência na aquisição do imóvel, como se refere, nunca se materializou, quer previamente, quer durante a vigência, quer posteriormente à dissolução do casamento entre autora e réu, como aliás consta da própria sentença recorrida, que faz a menção de que “… a autora não tenha tido de exercer o seu direito de preferência para comprar a referida fracção…”.

IX. Ao invés, consta dos factos provados (cfr. artigo 19º) que foi celebrado em 27.04.1991, posteriormente a autora e ré terem contraído matrimónio e na vigência deste, um contrato promessa de compra e venda entre a autora e a Companhia de Seguros …, S.A., com vista à aquisição de tal fracção.

X. É com a celebração de tal contrato, não com a assunção da posição de arrendatária por parte da ré em 1984 (cfr. artigo 24º dos factos provados), que se dá a aquisição do direito à compra do imóvel, o qual não advêm de um direito do arrendatário, mas sim do promitente adquirente no âmbito do contrato-promessa de compra e venda celebrado em 27.04.1991.

XI. A aquisição do imóvel ocorre, por escritura de compra e venda outorgada em 28 de Agosto de 1991, pela companhia de seguros …, por um lado, e autora e réu por outro, no exercício do direito potestativo de aquisição conferido ao promitente-comprador e não no exercício do direito legal de preferência do arrendatário prévio ao casamento.

XII. A situação descrita não se enquadra no disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 1722º do C.Civil, que erroneamente foi aplicada pelo Tribunal a quo.

XIII. Por maioria de razão não poderá, obviamente, integrar-se no quadro normativo previsto na alínea d) do nº 2 da citada disposição legal, pois que as várias alíneas do nº 2 consagram a título exemplificativo, as várias espécies em que concretamente se desdobra uma das categorias discriminadas no número anterior, isto é, a alínea c) do nº 1 do artigo 1722º.

XIV. O artigo 1722º do C.C. é uma norma de carácter excepcional, como aliás, se alude na sentença objecto do presente recurso. Ora, tratando-se de norma excepcional, não admite integração analógica (artigo 11º do C.C).

XV. Por tal razão, o Tribunal a quo, ao lançar mão da integração analógica para integrar a presente situação de facto no âmbito de aplicação da alínea d) do nº 2 do artigo 1722º do C.C., violou a regra interpretativa plasmada no artigo 11º do C.C.

XVI. Com efeito, reconhece-se na sentença que “ainda que o não tenha chegado a exercer formalmente, a verdade é que a autora era titular do direito de preferência na venda do arrendado”, para em seguida se concluir “não poderá, sob pena de manifesta incoerência do sistema, deixar a situação em apreço de ser equiparada à prevista na alínea d) do nº 2 do artigo 1722º do CC”, o que mais não é do que o recurso à analogia, para aplicação de uma norma excepcional.

XVII. Ao aplicar tais disposições legais, o tribunal a quo violou o disposto no artigo 11º e alíneas c) do nº 1 e d) do nº 2 do artigo 1722º, todas do C.C.

XVIII. No caso em apreço deveria ter sido aplicada a norma da alínea b) do artigo 1724º do C.C. determinando-se que o imóvel constitui parte da comunhão, por se tratar de um bem adquirido pelos cônjuges na constância do matrimónio, não exceptuado por lei».

Pugna pela procedência do recurso e consequente revogação do saneador-sentença impugnado.

A Apelada contra-alegou, concluindo pela manutenção, por bem fundada, da decisão recorrida, improcedendo totalmente a apelação.


***

O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime e efeito fixados.

Colhidos os vistos, e nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.


***

II – Âmbito do Recurso

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais (exceptuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 660.º, n.º 2, 661.º, 672.º, 684.º, n.º 3, 685.º-A, n.º 1, todos do Código de Processo Civil aplicável (doravante CPCiv.), o decorrente da Reforma de 2007 ([1]) –, constata-se que o thema decidendum, incidindo exclusivamente sobre a decisão da matéria de direito, consiste em saber, no essencial, se o aludido bem imóvel, adquirido na constância do matrimónio de A. e R., casados sob o regime da comunhão de adquiridos, mas entretanto divorciados, deve ser considerado bem próprio da A./Apelada, como julgado na 1.ª instância, ou, como pretende o R./Apelante, bem comum.


***

III – Fundamentação

         A) Matéria de facto

Na 1.ª instância foi considerada – de forma incontroversa – a seguinte factualidade como provada:

«1. Autora e réu contraíram casamento em 3/09/1985, sem convenção antenupcial.

2. Fruto da relação entre autora e réu, nasceu em 17/02/1985 J…, filho de ambos.

3. A relação conjugal entre autora e réu foi-se deteriorando, tendo o réu saído da casa de morada de família em 30/04/1999.

4. S… é mãe da autora H….

5. A fracção autónoma correspondente ao 1º andar esquerdo (fracção D), do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida …, descrito na Conservatória do Registo Predial da …, sob o nº …, esteve inscrita pela cota G1, a favor de P… e mulher H… por compra à Companhia de Seguros …, S. A..

6. Pela [a]presentação 03 de …/…/… – Cota G2, o imóvel referido em 5 ficou inscrito a favor de S…, por compra.

7. O registo referido em 6, foi convertido em definitivo pela AP ….

8. Por escritura pública celebrada em …/…/2001, no Cartório Notarial de …, a autora e S…, declararam respectivamente vender e comprar pelo preço de 7.000.000$00, que aquela declarou já ter recebido, a fracção autónoma referida em 5.

9. A autora desde que se encontra separada do réu encontra-se a usar o imóvel referido em 5, pernoitando no mesmo e aí recebendo os familiares e amigos, correspondência e aí tomando as refeições.

10. S…, tal como sucedia antes de 21/02/2001, continua a residir na Avenida …, aí pernoitando, recebendo os familiares e amigos, a sua correspondência e tomando diariamente as suas refeições.

11. Desde 30/04/1999 até ao presente, o réu, a autora e S… encontraram-se por diversas vezes, sendo que nem anteriormente nem posteriormente a 21/02/2001, comunicaram ao réu respectivamente que iriam vender/comprar a casa, nem que haviam realizado o negócio.

12. O réu vive dos rendimentos que lhe são proporcionados pela sua actividade de prestação de serviços no montante de 1.089 € mensais.

13. No âmbito da sua actividade o réu suporta o pagamento de prestações à Segurança Social no montante de 116,99 € mensais.

14. O réu contribui mensalmente para as despesas do filho do casal com o montante de 100 €.

15. Por escritura celebrada em 28/08/1991 a Companhia de Seguros …, S.A. declarou vender e P… e mulher H… declararam comprar a fracção referida em 5, pelo valor de 4.350.000$00, tendo nessa mesma escritura os segundos outorgantes se confessado devedores à C… da quantia de 3.920.000$00.

16. Por contrato celebrado em 10/01/1975, a Companhia de Seguros …, deu de arrendamento a JB…, o 1º andar esquerdo do prédio sito na Avenida …., pela renda de 3.000$00 mensais, tendo o pai da autora sido fiador no referido contrato.

17. Aquele contrato de arrendamento teve início em 1/01/1975.

18. Por carta datada de 27/05/1986, a Companhia de Seguros …, S. A., comunicou à autora que a renda devida passaria a ser de 4.350$00 a partir de Julho de 1986.

19. Anteriormente ao contrato de compra e venda celebrado entre a Companhia de Seguros …, S. A. e a autora, foi celebrado entre ambas, em 27/04/1991, contrato promessa de compra e venda, tendo naquele acto sido entregue como princípio de pagamento e carácter de sinal a quantia de 870.000$00.

20. O empréstimo contratado pela autora e réu na C… para aquisição da fracção referida em E), ficou acordado que seria amortizado em 300 prestações mensais.

21. Dos 3.920.000$00 que a C… mutuou à autora e ao réu, estes utilizaram 3.480.000$00 para pagar à Companhia de Seguros …, S. A., a título de parte do preço.

22. Na sequência do processo de divórcio por mútuo consentimento entre a autora e JB…, a autora passou a inquilina da fracção referida em 5, em 1984.

23. À data da aquisição do imóvel referido em 5, o réu desconhecia qual o valor de mercado do mesmo.

24. A fracção autónoma referida em 5 foi adquirida pela autora e pelo réu em 25/07/1991.

25. A compra e venda referida em 8 foi feita sem o conhecimento ou concordância do réu.

26. Não existiu por parte da autora qualquer vontade de proceder à venda do referido imóvel.

27. Bem como não existiu por parte de S… intenção de o comprar.

28. Bem como não houve intenção de vender ou comprar pelo preço de 7.000.000$00, ou por qualquer outro preço.

29. Sendo convicção generalizada de familiares, vizinhos e amigos de que a autora juntamente com o réu são os proprietários do imóvel.

30. S… não pagou à autora qualquer preço pela compra e venda referida em 8.

31. Ao outorgarem a escritura de compra e venda referida em 8, a intenção de S… e da autora foi apenas e exclusivamente a de transferirem do património comum do casal para o património de S… o imóvel por forma a que após a dissolução do casamento o mesmo não fosse partilhado.

32. No decurso dos autos de divórcio litigioso a autora sempre se referiu ao imóvel como sendo a casa de morada de família.

33. S… e a autora ao procederem ao registo da aquisição do imóvel em 1/03/2004, pretenderam dar publicidade à venda após terem decorrido os três anos sobre a prática do acto.

34. Ao procederem ao registo de aquisição do imóvel em 1/03/2004, foi intenção das mesmas impedir o réu de solicitar a anulação da compra e venda a que alude em 8.

35. A actuação de S… e da autora descritas em 26 a 28, 30, 31, 33 e 34 deixou o réu revoltado.

36. O réu sentiu-se revoltado com as referidas atitudes.

37. A dívida da autora e do réu à C… em 14/01/2001 era de 3.475.278$00.

38. Desde Junho de 1999 e até ao presente momento tem sido a autora a pagar as prestações do empréstimo a que se alude em 5.

39. A Companhia de Seguros …, S.A., vendeu a fracção referida em 5 por 4.350.000$00, mercê de a mesma estar arrendada à autora.

40. À data da celebração da escritura de compra e venda a que se alude em 15 a fracção dos autos valia cerca de 17 mil e oitocentos contos.

41. Em 20/05/1991 foi depositada na conta da autora no B… e quantia de 435.000$00.

42. Em 23/05/1991 foi sacado um cheque visado sobre essa mesma conta no valor de 435.000$00 à ordem da Companhia de Seguros …, S. A.

43. Em 30/04/1999, estavam em dívida para com a C… 3.618.065$00.

44. A diferença de 11.844.708$00 entre o preço pelo qual a Companhia de Seguros … vendeu a fracção dos autos (4.350.000$00) e o valor de mercado da mesma (17.000.000), resultou do facto da fracção se encontrar arrendada para habitação.

45. Do sinal entregue à Companhia de Seguros …., S.A. no valor de 870.000$00, metade foi realizado pelos pais da autora e a outra metade pelos pais do réu.

46. Tendo a metade dos pais do réu sido restituída e a metade dos pais da autora não.

47. Das 300 prestações mensais acordadas com a C…, 93 foram pagas com rendimentos comuns da autora e do réu.

48. Desde que o réu saiu de casa, durante o decurso da acção que correu termos sob o nº …/04.0PCAMD e até ao presente momento foi unicamente a autora que pagou à C… as prestações mensais do empréstimo.

49. Por sentença, já transitada em julgado, proferida no âmbito do Processo nº …/04.0PCAMD, que correu termos no Juízo de Grande Instância Cível…, foi declarada nula a escritura de compra e venda referida em 8, tendo sido ordenada o cancelamento do registo de aquisição da mesma fracção a favor de S….

50. Autora e réu encontram-se divorciados por sentença, já transitada em julgado em 2/02/2006, proferida no âmbito do Processo nº …/2002 do 2º Juízo - 3ª Secção, do Tribunal de Família e Menores de …».


***

B) O Direito

Pretende, como dito, a A./Apelada que o imóvel em causa, não obstante adquirido por ambos os cônjuges na constância do matrimónio entre si, sob o regime da comunhão de adquiridos, é bem próprio seu e não, por isso, bem comum.

Neste regime de bens – o supletivo legal (art.º 1717.º do CCiv.) –, diversamente do que ocorre no regime da comunhão geral, em que, por regra, são comuns todos os bens dos cônjuges, presentes e futuros, “… nem os bens levados para o casal nem os adquiridos a título gratuito se comunicam”, apenas se comunicando “… os bens adquiridos depois do casamento a título oneroso”, já que o regime consagrado corresponde “… à ideia de só tornar comum aquilo que exprime a colaboração de ambos os cônjuges no esforço patrimonial do casamento” ([2]).

Daí a regra consagrada no preceito do art.º 1724.º do CCiv. (alªs a) e b) respectivas), segundo a qual fazem parte da comunhão, não só o produto do trabalho dos cônjuges, mas ainda os bens adquiridos por eles na constância do casamento.

Regra essa que, todavia, comporta excepções, entre elas as previstas no art.º 1722.º do CCiv., dentre as quais se salienta, pela sua pertinência in casu, a da al.ª c) do respectivo n.º 1, que estabelece serem considerados bens próprios dos cônjuges os “adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior”.

E, para além do mais, concretiza o n.º 2 do mesmo preceito legal (al.ª d) respectiva) serem considerados, entre outros, adquiridos por virtude de direito próprio anterior “os bens adquiridos no exercício de direito de preferência fundado em situação já existente à data do casamento”.

Quanto à natureza jurídica da comunhão conjugal, esclarece a doutrina que se trata de uma massa patrimonial (os bens comuns), com certo grau de autonomia, que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco”, sendo tais cônjuges, ambos eles, “titulares de um único direito sobre ela” ([3]).

Nesta matéria, estabeleceu o legislador, quanto à participação dos cônjuges no património comum, a regra da metade, segundo a qual os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, tendo, por isso, cada um deles, em condições de igualdade, a sua meação nos bens comuns (cfr. art.º 1730.º, n.ºs 1 e 2, do CCiv.).

No que concerne à excepção prevista no citado art.º 1722.º, n.º 1, al.ª c) – bens adquiridos na constância do casamento por via de direito próprio, de um dos cônjuges, anterior ao matrimónio –, trata-se de “… bens que não resultam do esforço conjunto do casal, e portanto devem escapar à massa comum, para pertencerem apenas ao cônjuge que os fez entrar para o casamento” ([4]).

Quer dizer, o princípio é o de que bens que resultam do esforço conjunto dos cônjuges são comuns, pertencendo a ambos eles, não o sendo os que resultam do esforço apenas de um desses cônjuges.

Dito de outro modo, se um dos cônjuges – o “cônjuge adquirente” a que aludem os Autores que se vem citando ([5]) – adquire, sozinho, um bem que resulta exclusivamente do seu esforço em virtude de um direito próprio, direito esse que já lhe cabia anteriormente ao casamento, dúvidas não restam de se tratar de um bem próprio desse cônjuge, não tendo o outro (o cônjuge do adquirente, que, como tal, não outorga no contrato de aquisição, se de aquisição derivada se tratar, como ocorre na comum compra e venda, e a que, por isso, se poderia chamar “cônjuge não adquirente”) contribuído com qualquer esforço seu para a aquisição, limitando-se a ser o cônjuge de quem adquire.

Referem ainda os Autores citados ([6]) quanto à aquisição no exercício de um direito de preferência baseado em situação pré-existente ao casamento: “O legislador terá entendido que o exercício do direito de preferência resultou de uma vantagem que foi conferida ao cônjuge adquirente sem que o outro tenha colaborado, porque o direito nasceu no património do adquirente antes do casamento; assim, o legislador terá querido que o cônjuge do adquirente não participasse no valor do bem”.

E, se dúvidas houvesse, acrescentam que a razão de ser do preceito “… parece sugerir que ele se deve aplicar mesmo que a aquisição não mostre um exercício formal de um direito de preferência: P. ex., o cônjuge inquilino compra o andar ao senhorio, ainda que não tenha havido notificação para preferir com todos ao requisitos formais. Afinal, a aquisição não deixa de se basear na situação de privilégio em que se encontra o inquilino, que podia exercer a preferência se tivesse precisado de o fazer” ([7]).

Já assim não será, porém, quando se trate, em vez de direito de preferência, de aquisição por força de contrato promessa, sem eficácia real, celebrado por um dos cônjuges anteriormente ao casamento, situação que fica afastada da integração no âmbito do aludido art.º 1722.º, n.º 1, al. c), do CCiv., faltando um direito próprio anterior ([8]).

Também no que tange aos bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios e noutra parte com dinheiro ou bens comuns (art.º 1726.º do CCiv.), hipótese em que se segue o critério da mais valiosa das duas prestações – serão bens próprios ou, diversamente, bens comuns, consoante, respectivamente, a mais valiosa das prestações para a aquisição seja o dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges, em detrimento do património comum, ou sejam os bens comuns –, haverá que verificar, desde logo, se estamos perante aquisição por um só dos cônjuges ou, ao contrário, aquisição conjunta, por ambos.

Assim é que, mesmo que adquirido um imóvel isoladamente por um dos cônjuges (“cônjuge adquirente”), se a parte mais valiosa for proporcionada por bens comuns, “… o bem adquirido acaba por ter a qualificação natural de bem comum, que corresponde às aquisições a título oneroso”. Já se, diversamente, “… a parte mais valiosa for de dinheiro ou bens próprios, o bem adquirido toma a natureza de bem próprio”, não dispensando “… o cônjuge adquirente de respeitar as normas sobre sub-rogação real” ([9]).

Também o art.º 1727.º do mesmo Cód. se reporta à aquisição de bens indivisos que sejam adquiridos, em parte, por um dos cônjuges (só por um), que já lhe fossem pertencentes noutra parte (por via de compropriedade fora da comunhão conjugal) ([10]).

Tudo, pois, na hipótese de apenas um dos cônjuges figurar como adquirente, como será o caso, na compra e venda, de um só deles contratar essa venda, ficando o outro à margem do negócio translativo da propriedade.

E se, como in casu, ambos os cônjuges figurarem como compradores/adquirentes, conjuntos, do bem?

Importa, nesta hipótese, verificar os legais efeitos do contrato de compra e venda.

Ora, no sistema jurídico português vigora, em matéria de efeito real do contrato de compra e venda, o chamado sistema do título, segundo o qual o efeito translativo da propriedade decorre do próprio acto pelo qual se expressa a vontade de transmitir o direito ([11]), tendo como corolários os princípios da causalidade e da consensualidade, este último a estabelecer que «… a constituição ou modificação de direitos reais se dá “por mero efeito do contrato” (art. 408.º, n.º 1, do Cód. Civ.)», tendo como regra a “eficácia real imediata da compra e venda” ([12]).

Podem, porém, ocorrer excepções àqueles princípios da causalidade e da consensualidade, admitindo a lei em certos casos “a dissociação entre o momento da conclusão do contrato e o momento da constituição ou transmissão do direito real”, como ocorre com a compra e venda com reserva de propriedade ([13]) ou com a venda condicional.

No caso dos autos não se verifica qualquer excepção àquelas regras de direito substantivo do regime do contrato de compra e venda, pelo que a venda dos autos é uma pura e imediata venda, com a consequência da imediata transmissão, por efeito do negócio, do direito de propriedade sobre o imóvel para os adquirentes.

Ocorreu, pois, eficácia real imediata da compra e venda, transferindo-se, por isso, o direito de propriedade sobre a aludida fracção autónoma para ambos os cônjuges, pois que ambos adquirentes.

Das razões pelas quais o cônjuge mulher, aqui Apelada, consentiu – e não tinha que o fazer, como é obvio – em que o então cônjuge também figurasse como comprador no título de compra e venda, por forma a tornar-se, logo por isso, automaticamente, também titular do bem, e permitiu que, ademais, também o R./Apelante contribuísse, com o seu esforço, para o pagamento do preço contratado, inclusive subscrevendo ambos, ainda conjuntamente, mútuo para financiamento da aquisição, só esse cônjuge pode saber.

O certo é que, na altura, porventura não perspectivando como possível a ulterior ruptura da vida em comum, a A./Apelada, muito embora conhecesse a posição de vantagem que trazia de tempos anteriores ao negócio (estatuto, só dela, de arrendatária e de promitente compradora), optou pela celebração da compra e venda do imóvel em termos de ambos os cônjuges figurarem como compradores/adquirentes, com o que, inelutavelmente, a respectiva propriedade se transmitiu para ambos esses cônjuges/adquirentes.

Quer dizer, antes da ponderação do regime de bens do casamento, logo se salienta a aquisição, por força do contrato de compra e venda, por ambos os cônjuges, aqui A. e R., que se tornaram, em conjunto, titulares do dito direito de propriedade.

Acresce que, como visto, também o cônjuge então marido, não ficando à margem da compra e venda, contribuiu com o seu esforço para o pagamento do preço da celebrada venda, tudo como consentido pela A./Apelada.

Donde que não possa agora, se bem vemos, ignorar-se a venda nos moldes em que celebrada, o que constitui obstáculo originário e inultrapassável à pretendida consideração do imóvel como bem próprio de um dos dois adquirentes, a aqui A./Apelada.

Por isso, haverá de proceder a Apelação, com revogação da sentença recorrida e absolvição do R./Apelante do pedido.

                                               *

IV – Sumário (nos termos do disposto no art.º 713.º, n.º 7, do dito CPCiv.):

1. - Se, na constância do casamento, sob o regime da comunhão de adquiridos, um só dos cônjuges adquire um bem imóvel por via de um seu direito próprio anterior, tal bem é considerado bem próprio desse cônjuge (art.º 1722.º, n.º 1, al.ª c), do CCiv.).

2. - Porém, se, em vez disso, esse bem é adquirido conjuntamente por ambos os cônjuges, mediante contrato de compra e venda por ambos outorgado, então a aquisição por ambos impede que o bem seja considerado próprio de qualquer deles.

3. - É que no nosso ordenamento jurídico, vigorando o chamado sistema do título, o efeito translativo da propriedade decorre do acto pelo qual se expressa a vontade de transmitir o direito, pelo que a aquisição derivada de direitos reais se dá por mero efeito do contrato (art. 408.º, n.º 1, do CCiv.), nos termos do mesmo constantes, tendo, por isso, a compra e venda eficácia real imediata.
***
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida, julgando improcedente a acção e absolvendo o R./Apelante do pedido contra si formulado.

Custas da apelação e na 1.ª instância a cargo da A./Apelada.

Escrito e revisto pelo relator.

Elaborado em computador.

Versos em branco.


Lisboa, 19/12/2013

José Vítor dos Santos Amaral (Relator)

Fernanda Isabel Pereira (1.ª Adjunta)

Maria Manuela Gomes (2.ª Adjunta)


([1]) Processo instaurado após 01/01/2008 e decisão recorrida anterior a 01/09/2013 (cfr. saneador-sentença de fls. 260 a 273 dos autos, DLei n.º 303/2007, de 24-08, e respectivo art.º 12.º, n.º 1, A. Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, ps. 35 e segs., bem como art.ºs 5.º, n.º 1, 7.º, n.º 1, e 8.º, todos da Lei n.º 41/2013, de 26-06, e Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, ps. 14-16).
([2]) Assim, F. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2008, p. 506.
([3]) Cfr. F. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, op. cit., p. 507.
([4]) Vide ainda F. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, op. cit., p. 513, com itálico aditado. 
([5]) Cfr. a terminologia reiteradamente adoptada na obra citada, a fls. 514, onde se alude ao “cônjuge adquirente” e ao “cônjuge do adquirente”. 
([6]) Cuja linha de raciocínio se continua a seguir, tal como exposta a ps. 514 e seg., por pertinente para o caso e por invocada em sede de contra-alegação recursória.
([7]) Op. cit., p. 515, com itálico e sublinhado aditados.
([8]) Cfr. op. e loc. cits., bem como jurisprudência ali mencionada. 
([9]) Op. cit., p. 527, com negrito aditado, esclarecendo tais Autores que “… se não se tratar de uma troca directa e se o cônjuge adquirente não mencionar a proveniência do dinheiro, com intervenção de ambos os cônjuges, todo o bem adquirido será comum”.
([10]) Op. cit., p. 528.
([11]) Cfr. Orlando de Carvalho, Direito das Coisas (Do direito das coisas em geral), Centelha, Coimbra, 1977, pág. 274, e Nuno Manuel Pinto Oliveira, Contrato de Compra e Venda, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 36.
([12]) Assim Nuno Manuel Pinto Oliveira, op. cit., pág. 37.
([13]) Vide Nuno Manuel Pinto Oliveira, op. cit., pág. 39.