Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5412/08.9TDLSB-A.L1-5
Relator: RICARDO CARDOSO
Descritores: CORREIO ELECTRÓNICO
APREENSÃO DE CORRESPONDÊNCIA
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/11/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Iº A Lei do Cibercrime (Lei nº109/09, de 15Set.), ao remeter no seu art.17, quanto à apreensão de mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, para o regime geral previsto no Código de Processo Penal, determina a aplicação deste regime na sua totalidade, sem redução do seu âmbito;
IIº As mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, que se afigurem de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, podem ser apreendidas, aplicando-se correspondentemente o regime de apreensão de correspondência previsto no CPP;
IIIº Tais apreensões têm de ser autorizadas ou determinadas por despacho judicial, devendo ser o juiz a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida, sob pena de nulidade;
IVº Em caso de urgência, isto é, de perda de informações úteis à investigação de um crime em caso de demora, o juiz pode autorizar a abertura imediata de correspondência (assim como de correio electrónico) pelo órgão de polícia criminal e o órgão de polícia criminal pode mesmo ordenar a suspensão da remessa de qualquer correspondência nas estações de correios e de telecomunicações, nos termos dos nºs2 e 3, do art.252, do Código de Processo Penal, devendo a ordem policial ser convalidada no prazo de 48 horas, sob pena de devolução ao destinatário caso não seja convalidada, ou caso seja rejeitada a convalidação;
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

1. No Processo Sumário nº do 3º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de … no qual são arguidos A… e Outros tendo sido proferido a 9 de Abril de 2010 o seguinte despacho:

A matéria relativa ao correio electrónico mostra-se actualmente regulada pelo Art.º 17° da Lei n°. 109/2009, de 15/09.
Dispõe o Art.º 17° da Lei n°. 109/2009, de 15/09 que "Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal".
Resulta, assim, deste artigo, por um lado, que apenas se aplica o regime da apreensão de correspondência previsto no C.P.P. na parte que for correspondente ao regime específico previsto neste artigo, ou seja, que não seja contrariada pelo regime específico previsto; e, por outro lado, que neste regime específico, diferentemente do que acontece no Art.º 179° n°.3 do C.P.P., não se determina que o juiz seja a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo das mensagens de correio electrónico encontradas na pesquisa informática, antes sim, determina-se que compete ao juiz, e apenas ao juiz, autorizar ou ordenar a apreensão das mensagens de correio electrónico que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade e da prova.
Assim, competirá à entidade encarregue da pesquisa informática proceder à leitura dessas mensagens de correio electrónico encontradas nos CD's e DVD's apreendidos, indicando, em relatório, quais dessas mensagens são de grande interesse para a descoberta da verdade e da prova, competido, posteriormente, ao juiz de instrução criminal ordenar, ou não, a apreensão das mesmas, e, consequentemente a devolução das restantes.
Devolva.

2. Não se conformando com esta decisão o Digno Magistrado do MºPº dela interpôs recurso apresentando motivação da qual extrai, em síntese, as seguintes conclusões:
1. No âmbito dos presentes autos de inquérito foi ordenada e autorizada a realização de buscas, para apreensão de elementos de prova relacionados com a prática de crimes de corrupção para acto ilícito e de participação económica em negócio.
2. Sob promoção do MºPº foi autorizada a realização de pesquisa informática nos sistemas encontrados nos locais a buscar, e outros acessíveis a partir deles, para detecção de correio electrónico, por se antever o seu interesse para a descoberta da verdade no quadro da investigação daqueles crimes, autorização enquadrada no art.º 17º da Lei do Cibercrime.
3. Em cumprimento desse despacho judicial, foi realizada pesquisa informática e copiados dados que contêm correio electrónico, cópia acondicionada em ficheiros não legíveis, gravados em DVD e CD, nos termos do disposto no art.º 16º nº 7 daquela Lei.
4. O perito nomeado pelo JIC procedeu à conversão daqueles ficheiros em ficheiros legíveis.
5. Promoveu o MºPº em obediência ao art.º 179º nº 3 do CPP, aplicável ex vi o art.º 17º da Lei do Cibercrime, que o JIC tomasse conhecimento em 1º lugar do correio electrónico.
6. O JIC proferiu despacho, de que recorre, nos termos do qual sustenta que a intervenção judicial para a apreensão do correio electrónico não passa pela tomada de conhecimento em 1º lugar do correio electrónico.
7. Mas antes da prolação de um juízo sobre a necessidade e proporcionalidade da efectiva apreensão das mensagens, a produzir em face dos relatórios que sobre o conteúdo daquelas mensagens lhe venham a ser apresentados pelo MºPº, pelo OPC, ou pelo perito por si nomeado.
8. Pressupondo, assim, que o conteúdo do correio electrónico venha a ser conhecido, em 1º lugar pelo MºPº, pelo OPC ou pelo perito.
9. O JIC entendeu pois que, quando o legislador fixou o regime de apreensão do correio electrónico na lei do Cibercrime (art.º 17º) e determinou a aplicação correspondente do regime da apreensão de correspondência (previsto no art.º 179º do CPP), não quis com tal remissão importar a reserva de conhecimento judicial inicial, imposta no art.º 179º nº 3 deste diploma.
10. E que o art.º 17º da Lei do Cibercrime encerra uma especificidade procedimental que prescreve a suficiência da intervenção judicial na autorização de pesquisa e detecção de correio electrónico, num primeiro momento, e na autorização da efectiva apreensão das mensagens de correio electrónico relevantes, no momento derradeiro, em que tais elementos são efectivamente juntos aos autos.
11. Cabendo ao MºPº ou a outra entidade com competência delegada, tomar conhecimento do conteúdo do correio detectado e indicar os conteúdos que dentro dele devam ser objecto de efectiva apreensão, por determinação judicial.
12. Este entendimento viola as prescrições legais do art.º 17º da Lei do Cibercrime, e do art.º 179º nº 3 do CPP, aplicáveis por remissão do primeiro.
13. Viola em 1º lugar o sentido literal do art.º 17º da Lei do Cibercrime, que expressamente refere a aplicação correspectiva do regime prescrito no CPP, para a apreensão de correspondência.
14. O legislador processual penal ao definir os regimes de obtenção de prova consagra regras relativas às condições da sua admissibilidade e aos procedimentos a serem levados a cabo para garantir a sua legalidade.
15. A remissão operada pelo art.º 17º não poderá significar outra coisa que não a aplicação dos procedimentos para a apreensão de correspondência à válida obtenção de prova com recurso a exame de correio electrónico.
16. A aplicação correspondente do regime da apreensão de correspondência feita pelo art.º 17º da Lei do Cibercrime, demanda a reserva judicial para que legitimamente se pesquise correio electrónico em sistemas informáticos.
17. E exige, nos termos do disposto no art.º 179º nº 3 do CPP, que o juiz seja o 1º a tomar conhecimento do correio electrónico copiado, a fim de expurgar dos autos todos os elementos cujo conhecimento esteja vedado aos demais sujeitos processuais, designadamente, correspondência a que se refere o art.º 179º nº 2 do CPP.
18. Esta trata-se, aliás, de competência materialmente jurisdicional, de acordo com o disposto nos art.ºs 268º nº 1 al. d) e 17º do CPP, que por esse efeito integra o regime da apreensão de correspondência, a que o legislador se reporta no art.º 17º da lei do Cibercrime.
19. Assim, compete ao JIC tomar conhecimento em 1º lugar do correio electrónico detectado e vedar o acesso por parte dos demais sujeitos processuais àquele que revele conteúdo proibido nos termos da lei.
20. Admitindo-se que, quanto ao restante, em momento posterior, se defira à entidade responsável pela investigação a análise e selecção para sugestão de apreensão a ser ordenada pelo JIC, daquele que se revele, em concreto e face ao objecto da investigação, de grande interesse para a descoberta da verdade ou a prova, em obediência ao disposto no art.º 17º da Lei do Cibercrime.
Termos em que o despacho recorrido deverá ser substituído por outro, por via do qual o JIC reconheça a competência judicial para tomar conhecimento em 1º lugar do correio electrónico que se mostra copiado, já em ficheiros legíveis por acção do perito judicialmente nomeado.

3. Admitido o recurso com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo, o arguido não respondeu.
4. Neste Tribunal da Relação a Ex.ma Senhora Procuradora-Geral-Adjunta proferiu Parecer sustentando a procedência do recurso nos termos sustentados nas conclusões do recorrente.
5. Foram colhidos os vistos e realizada a competente conferência.
6. O objecto do recurso, tal como ressalta das conclusões da motivação, versa a apreciação da questão de saber se a pesquisa de correio electrónico em sistemas informáticos é demanda da reserva judicial, a praticar, por isso, em primeiro lugar, pelo Juiz de Instrução Criminal.

7. Apreciando.
Para melhor compreensão cumpre fazer um breve enquadramento processual (historial do processo).
Os presentes autos foram instaurados a 3 de Outubro de 2008, encontrando-se em segredo de justiça, prorrogado, por 10 meses, o prazo em que se encontra vedado o acesso ao teor do inquérito, pelos sujeitos processuais, e reconhecido que o processo tem por objecto de investigação factos que admitem o juízo de responsabilidade criminal pela prática de corrupção activa e passiva para acto ilícito, bem como participação económica em negócio, nos termos do que dispõem os artºs 372º, 374º e 377º nº 1 do Código Penal.
Por despacho proferido a 18 de Fevereiro de 2010, o Ministério Público ordenou a realização de buscas, promoveu decisão judicial de busca, e requereu autorização judicial para pesquisa, em suportes informáticos, de ficheiros contendo dados relativos a correio electrónico (expedido, recebido, lido) guardado em sistema informático, e, com vista à apreensão dos relevantes para o objecto dos autos, de acordo com o disposto no art.º 17º da Lei n.º 109/09, de 15 de Setembro;
Por despacho judicial de 23 de Fevereiro de 2010, foi autorizada a apreensão de mensagens de correio electrónico ou registos de natureza semelhante, que se encontrassem armazenados em suporte digital e que se revelassem fundamentais para a produção de prova, nas buscas a concretizar;
No dia 22 de Março de 2010 foram realizadas as buscas ordenadas;
Nessa mesma data, em cumprimento da autorização judicial, foram copiadas mensagens de correio electrónico, através de ficheiros encapsulados, para DVD e CD, de acordo com o que dispõe o art.º 16º nº 7 al. b), da Lei 109/09, de 15.09.
O Ministério Público requereu, a 24 de Março de 2010, a designação de especialista para a revelação dos dados encapsulados, que exige o recurso a operações técnicas e conhecimentos especiais, e com vista a posterior análise pelas autoridades judiciárias;
No dia 26 de Março de 2010 foi proferido despacho judicial que nomeou perito para visionamento dos ficheiros electrónicos constantes dos suportes gravados na sequência das buscas. Na mesma data foi tomado compromisso de honra à pessoa como tal designada;
Por despacho do Ministério Público, de 30 de Março de 2010, determinou-se a entrega ao perito nomeado, dos suportes em causa, contendo ficheiros informáticos, para que o respectivo conteúdo se tornasse legível e examinável. Tal despacho determinou que o perito não visionasse o correio electrónico que fosse revelado com tal operação, para que do seu teor fosse dado conhecimento, em primeiro lugar, à MM5 Juiz do Tribunal a quo;
No dia 5 de Abril de 2010, foi produzido relatório de exame, pelo perito nomeado, dando conta da existência de três DVDs e dois CDs contento ficheiros de correio electrónico;
Por despacho do Ministério Público, de 6 de Abril de 2010, determinou-se a apresentação de todos os elementos revelados pelo exame, para que a Mma Juiz do Tribunal a quo deles tomasse conhecimento em primeiro lugar;
Foi proferido o despacho que é objecto do presente recurso sendo a questão em apreciação de manifesta simplicidade.
A Lei do Cibercrime, lei nº 109/2009, de 15 de Setembro, a qual transpõe para a ordem jurídica interna a Decisão Quadro nº 2005/222/JAI, do Conselho da Europa, de 24 de Fevereiro, relativa a ataques contra sistemas de informação e adapta o direito interno à Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa, determina no seu art.º 17º, sob a epígrafe da “apreensão de correio electrónico e registo de comunicações de natureza semelhante”, que, quando no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados armazenados nesse sistema informático ou noutro que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime de apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal.
Aplicando-se assim o regime de apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal, este encontra-se disciplinado no art.º 179º, o qual estabelece desde logo no nº 1 que tais apreensões sejam determinadas por despacho judicial, “sob pena de nulidade” expressa (nº 1), e que “o juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida”, o que se aplica ao correio electrónico já convertido em ficheiro legível, o que constitui acto da competência exclusiva do Juiz de Instrução Criminal, nos termos do art.º 268º nº 1 alínea d) do CPP, o qual estabelece que “compete exclusivamente ao juiz de instrução, tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida”, o que se estendeu ao conteúdo do correio electrónico, por força da subsequente Lei nº 109/2009, de 15 de Setembro, constituindo a sua violação nulidade expressa absoluta e que se reconduz, a final, ao regime de proibição de prova.
A tudo isto acresce que a falta de exame da correspondência pelo juiz constitui uma nulidade prevista no art.º 120º nº 2 alínea d) do CPP, porque se trata de um acto processual legalmente obrigatório (neste sentido vide Paulo Pinto de Albuquerque, in comentário do Código de Processo Penal, 2ª Edição, anotação 12ª ao art.º 179º, página 495).
Contudo, em caso de urgência, isto é de perda de informações úteis à investigação de um crime em caso de demora, o juiz pode sempre autorizar a abertura imediata de correspondência (assim como de correio electrónico) pelo órgão de política criminal e o órgão de polícia criminal pode mesmo ordenar a suspensão da remessa de qualquer correspondência nas estações de correios e de telecomunicações, nos termos dos nºs 2 e 3 do art.º 252º do Código de Processo Penal, devendo a ordem policial ser convalidada no prazo de 48 horas, sob pena de devolução ao destinatário caso não seja atempadamente convalidada, ou caso seja rejeitada a convalidação.
Ora, no caso dos autos, o despacho recorrido não invocou qualquer exigência ditada pela urgência nos procedimentos, a qual se não vislumbra.

Não se vê igualmente, que face às exigências constantes do regime legal, que exige despacho do JIC e que este seja a pessoa a tomar conhecimento “em primeiro lugar” do conteúdo da correspondência e do correio electrónico apreendidos, “sob pena de nulidade”, que se pudesse entender, como no despacho recorrido, que se criara um regime legal dito “específico”, diverso, menos exigente, e que pudesse dispensar o cumprimento do disposto no art.º 179º nº 3 do CPP, quando os termos da lei especial, Lei do Cibercrime, (Lei nº 109/2009, de 15 de Setembro,) remetem expressamente para o regime geral previsto no Código de Processo Penal, sem redução do seu âmbito, antes se impondo a sua aplicação na sua totalidade, termos em que se concederá provimento ao recurso.

Decisão:

Por todo o exposto acordam os juízes desta 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida, ordenando-se a sua substituição por outra que determine o cumprimento do art.º 179º nº 3 do CPP, aplicável por força do art.º 17º da Lei nº 109/2009, de 15 de Setembro (Lei do Cibercrime), que impõe que o JIC seja a pessoa a tomar conhecimento “em primeiro lugar” do correio electrónico apreendido, disponível, copiado pelo perito, em ficheiros legíveis.

Sem tributação.

Lisboa, 11 de Janeiro de 2011

Ricardo Manuel Chrystello e Oliveira de Figueiredo Cardoso
Filipa Maria de Frias Macedo Branco