Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3403/2007-6
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: FIDEICOMISSO
AUTORIZAÇÃO JUDICIAL
ALIENAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/10/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1 – A acção de autorização judicial para alienação ou oneração de bens sujeitos a fideicomisso, que é especial, não tem carácter cominatório.
2 – Logo, o juiz pode negar a autorização para a alienação ou oneração, embora o pedido não tenha sido impugnado.
3 – Mas deverá tomar a resolução que lhe parecer razoável, em face do que tiver sido alegado e provado, conforme entender que está ou não justificado o pedido.
4 – O fideicomisso é a disposição através da qual o testador impõe a um sucessor o encargo de conservar a herança ou o legado, para reverterem, por morte do onerado, a favor de outra pessoa.
5 – Deste modo, o fideicomisso implica um regime limitativo dos direitos do fiduciário sobre os bens que lhe são atribuídos, por efeito do encargo na sua conservação, que lhe é imposto.
6 – O direito do fiduciário atribui-lhe o gozo e a administração dos bens, segundo um regime moldado sobre o direito de usufruto, cujas disposições se aplicam ao fiduciário em tudo que não seja incompatível com a natureza do fideicomisso.
7 – Em contrapartida, a limitação que sobre ele recai quanto à disposição dos bens impede-o, em princípio, de poder alienar os bens que são objectos de fideicomisso.
8 – Há, porém, casos especiais em que esta proibição é afastada, admitindo-se, então, a alienação ou oneração, mas, ainda assim, é necessário obter autorização judicial, que deve ser rodeada de devidas cautelas, ou seja, as necessárias para que os valores obtidos em troca se não percam ou diminuam em consequência da alienação.
9 – Esses casos especiais são dois. Num deles, a lei admite a alienação ou oneração se os actos correspondentes se impuserem por «evidente necessidade ou utilidade para os bens» sujeitos ao fideicomisso. No outro, os interesses a considerar são a situação subjectiva, individual, do fiduciário, contanto que a alienação ou oneração autorizadas não afectem os interesses do fideicomissário.
10 – Assim, uma vez que a utilidade decorrente da alienação, na presente acção, visa prosseguir interesses da fideicomissária e não da fiduciária, não pode proceder a pretensão da autora.
(G.F.)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1.
[I. M.] intentou a presente acção especial de autorização judicial, para alienar ou onerar bens sujeitos a fideicomisso, contra [D. A.], peticionando que o tribunal conceda autorização para a alienação de seis prédios sitos na ilha das Flores.

Alegou, em síntese, que, por testamento, [M. A.] deixou seis prédios à autora, com o encargo de os conservar para, por morte desta, reverterem para sua filha, ora Ré. Sucede que esta se encontra desempregada, grávida e a viver ainda em casa dos pais, necessitando de dinheiro para adquirir uma moradia, pois tenciona casar em breve, pelo que a alienação dos aludidos prédios permitir-lhe-á obter recursos financeiros, acrescentando que a autora e a ré estão de acordo quanto à alienação pedida.

A ré não contestou.

Foi, então, proferido saneador – sentença, julgando a acção improcedente e, nessa consonância, não foi concedida autorização para a alienação ou oneração dos imóveis sujeitos a fideicomisso.

Inconformada, recorreu a Autora, formulando as seguintes conclusões:
1ª – A sentença , ora recorrida, limitou-se a tentar encontrar artifícios legais para justificar o injustificável, nem enquadrou nem ajuizou legalmente a situação dos autos, não teve em consideração os princípios basilares do Direito, nomeadamente, o princípio da segurança e certeza jurídica.
2ª – A sentença do Tribunal a quo errou, na fundamentação legal aplicável aos presentes autos, na livre apreciação da prova, na prudente convicção acerca de cada facto, nos termos e disposto no artigo 508º, n.º 1, alínea b) e n.º 3 do Código de Processo Civil (aplicável ex vi do disposto nos artigos 787º e 463º, n.º 1, do mesmo diploma), bem como n. os 4 e 5 do artigo 1438º do CPC. Senão vejamos:
3ª – A 27/09/2006, a Autora, ora recorrente, instaurou contra [D. A.] uma acção especial de autorização judicial.
4ª – A acção não foi contestada.
5ª – No seu articulado, a Autora invoca os requisitos de utilidade e necessidade da fiduciária, na alienação dos bens imóveis sujeitos a fideicomisso, dado que os mesmos encontram-se abandonados na ilha das Flores, perdendo, por conseguinte, o seu valor comercial, e consequente necessidade de alienar os bens, uma vez que, por impossibilidade geográfica, a Autora não consegue evitar de forma cabal que os mesmos se deteriorem, pelo que compromete de igual modo os legítimos interesses da fideicomissária.
6ª – O Tribunal a quo limitou-se a indeferir a autorização judicial, invocando para o efeito que a Autora “não [alegou] que a venda dos bens fideicomitidos visa assegurar que os mesmos não percam valor, isto é, que da sua alienação vai resultar uma vantagem para os próprios bens”.
7ª – Todavia, o Tribunal a quo, podendo não requerer novos elementos /dados à Autora, nem sequer fixou cautelas legais com vista a salvaguardar o interesse da fiduciária e da fideicomissária.
8ª – Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e, em consequência, conceder autorização legal para alienação dos imóveis sujeitos a fideicomisso, com as devidas cautelas que a lei impõe.

Não houve contra – alegações.
2.
A 1ª instância, tendo em conta os documentos autênticos juntos aos autos, considerou provados os seguintes factos:
1º - Por testamento lavrado em 7 de Outubro de 1993, [M. A.] deixou a [I. M.], com o encargo de os conservar para, por morte desta, reverterem para sua filha, [D. A.], os seguintes prédios todos situados na freguesia da Lomba, Lajes das Flores:
a) - Prédio urbano, sito na Rua da Igreja, inscrito na matriz sob o artigo 199º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 451;
b) – Prédio urbano, sito no Quarteiro, inscrito na matriz sob o artigo 200º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 452º;
c) – Prédio rústico, sito no Cerrado do padre, inscrito na matriz sob o artigo 233º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 453;
d) - Prédio rústico, sito no Pau Pique, inscrito na matriz sob o artigo 252º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 454º;
e) – Prédio rústico, sito no Meio Moio, inscrito na matriz sob o artigo 1950º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 455;
f) – Prédio rústico, sito no Cerrado do Padre, inscrito na matriz sob o artigo 1951º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 456.
3.
Nas alegações, começa a Recorrente por discordar da apreciação da matéria de facto, tendo em conta os factos articulados na petição inicial e a circunstância de a acção não ter sido contestada, razão por que, em seu entender, não poderia a sentença limitar-se a considerar provados apenas os factos extraídos do testamento junto aos autos, devendo antes considerar-se como confessados todos os factos alinhados na petição inicial.

É certo que, como principal corolário dos princípios dispositivos da auto – responsabilidade das partes e do contraditório, o réu fica constituído no ónus de contestar ou de responder, ou seja, no de comparecer em juízo e contestar e cada uma das partes de responder aos articulados apresentados pela outra.
A consequência do incumprimento do ónus de contestar é, de acordo com o princípio da auto – responsabilidade das partes e como regra entre nós, no processo ordinário, o da admissão como confessados dos factos alinhados na petição inicial – cominação semi – plena (artigo 484º) e, nos processos sumário e sumaríssimo, o da admissão do próprio pedido como válido – cominação plena – (artigos 784º e 795º), ficando apenas ressalvadas, além das excepções consignadas dos citados artigos, as referidas no artigo 485º CPC.
Só que, ao contrário do pretendido pela Recorrente, a acção de autorização judicial para alienação ou oneração de bens sujeitos a fideicomisso, que é especial, não tem carácter cominatório.
Na verdade, tal acção pode ser pedida tanto pelo fideicomissário como pelo fiduciário, justificando o requerente a necessidade ou utilidade da alienação ou oneração (artigo 1438º, n. os 1 e 2 CPC.
Será citado para contestar, (...), o fiduciário, se o pedido for formulado pelo fideicomissário, ou este, se o pedido for deduzido pelo fiduciário (artigo 1438º, n.º 3), acrescentando o n.º 4 que, com a contestação ou sem ela, o juiz decidirá, colhidas as provas e as informações necessárias.

Assim, além das diligência requeridas, pode o juiz mandar proceder às que entender necessárias, assim como pode colher as informações e esclarecimentos de que necessitar.
Ora, em face do que tiver sido alegado e provado, o juiz tomará a resolução que lhe parecer razoável: autorizará ou não a alienação, conforme entender que está ou não justificado o pedido.
Tanto basta para se concluir que a acção não tem carácter cominatório Alberto dos Reis, Processos Especiais, II volume, 480..
Reportando-nos aos autos, verifica-se que, nem a autora apresentou provas ou requereu diligências nem o Sr Juiz mandou proceder oficiosamente às que entendesse necessárias, nem colheu as informações e esclarecimentos que, em seu entender, fossem julgados necessários.

Logo, como é evidente, o juiz pode negar a autorização, embora o pedido não tenha sido impugnado, se não for feita prova, donde se possa concluir que é manifesta a necessidade ou utilidade para os bens da substituição.

Assim, não pode ser alterada a matéria de facto considerada provada na 1ª instância.
*
Alega seguidamente a recorrente ter invocado os requisitos de utilidade e necessidade da fiduciária, na alienação dos bens imóveis sujeitos a fideicomisso, dado que os mesmos se encontram abandonados na ilha das Flores, perdendo, por conseguinte, o seu valor comercial, uma vez que por impossibilidade geográfica, a Autora não consegue evitar de forma cabal que os mesmos se deteriorem, pelo que compromete, de igual modo, os interesses da fideicomissária, concluindo que, desse modo, não havia fundamento para a improcedência da acção.

Ora bem:
A substituição fideicomissária – ou fideicomisso – é a disposição através da qual o testador impõe a um sucessor o encargo de conservar a herança ou o legado, para reverterem, por morte do onerado, a favor de outra pessoa.

Ao contrário do que sucede na substituição vulgar, em que há um só sucessor, no fideicomisso há dois sucessores efectivos e sucessivos.
Por morte do testador, é chamado imediatamente à herança o fiduciário, sendo a vocação do fideicomissário diferida para o momento da morte do fiduciário. Daí que o fideicomissário não possa exercer o direito de suceder imediatamente, mas apenas quando ocorrer a morte do fiduciário.
Deste modo, a substituição fideicomissária implica um regime limitativo dos direitos do fiduciário sobre os bens que lhe são atribuídos, por efeito do encargo da sua conservação, que lhe é imposto.
O sentido da substituição fideicomissária apura-se, quanto aos seus efeitos, mediante a qualificação da situação jurídica do fiduciário e do fideicomissário.
O direito do fiduciário atribui-lhe, sem dúvida, como se estatui no n.º 1 do artigo 2290º, o gozo e a administração dos bens, segundo um regime moldado sobre o direito de usufruto, cujas disposições se aplicam ao fiduciário em tudo que não seja incompatível com a natureza do fideicomisso.

A limitação quanto à disposição dos bens decorre do artigo 2291º e vem a ser confirmada, a contrario, pelo n.º 3 do artigo 2295º, quando nele se estatui sobre o poder de disposição em relação a certos fideicomissos irregulares.
A situação jurídica do fiduciário, quanto a esta matéria, apresenta-se nos seguintes moldes:
Em princípio, o fiduciário não pode alienar ou onerar os bens que são objecto de fideicomisso. Há, porém, casos especiais em que esta proibição é afastada: admite-se então a alienação ou a oneração, mas, ainda assim, é necessário obter autorização judicial. Para além disso, a concessão de autorização pelo tribunal, como a lei dispõe expressamente, deve ser rodeada de «devidas cautelas». As cautelas a observar serão, obviamente, as necessárias para que os valores obtidos em troca se não percam ou diminuam em consequência da alienação. Estamos, como é manifesto, perante matéria deixada ao prudente arbítrio do juiz, que só pode ser avaliada casuisticamente, como, de resto, o deixa perceber claramente o artigo 1438º do CPC, que, como atrás referimos, rege sobre o correspondente meio judicial. Segundo o seu n.º 5, quando decida pela autorização para alienar ou onerar bens, o juiz tem também de determinar as cautelas que devem ser observadas.

São dois os casos especiais em que a alienação e a oneração, precedendo autorização judicial, são admitidas. Num deles, estão em causa interesses ligados aos próprios bens a que os actos a autorizar se referem: no outro, os interesses a considerar são do próprio fiduciário.
No n.º 1 do artigo 2291º, a lei admite a alienação ou oneração se os actos correspondentes se impuserem por «evidente necessidade ou utilidade para os bens» sujeitos ao fideicomisso.
A segunda hipótese de afastamento da produção de alienar ou onerar bens do fideicomisso – contemplada no n.º 2 do artigo 2291º - está ligada a casos de «evidente necessidade ou utilidade para o fiduciário», ou seja, a necessidade evidente ou a manifesta utilidade da alienação referem-se não propriamente aos bens ou ao seu valor objectivo, mas à situação subjectiva, individual, do fiduciário.
Neste caso, a concessão da autorização do tribunal fica subordinada a um requisito ainda mais apertado que o estabelecido no n.º 1 do artigo 2291º. É preciso que a alienação ou oneração autorizadas não afectem os interesses do fideicomissário. Resulta daqui que, não se verificando este requisito, a alienação ou a oneração não podem ser autorizadas.
Reportando-nos ao caso em apreço, constata-se que a acção foi proposta pela fiduciária contra a fideicomissária, peticionando autorização judicial para a venda dos bens sujeitos ao fideicomisso, por alegadamente se encontrarem abandonados na ilha das Flores, em virtude da autora e ré residirem, há mais de sete anos, na ilha de São Miguel, com o propósito de obtenção de recursos financeiros para aquisição de uma moradia para a fideicomissária.
Torna-se, assim, evidente que, a provarem-se os factos articulados nos artigos 2º e 3º da petição inicial, que não provaram, a utilidade decorrente da alienação visaria prosseguir interesses subjectivos da fideicomissária e não da fiduciária.
Ainda que tais factos se tivessem provado, que não provaram, a pretensão da autora não poderia proceder. Na verdade, a lei não prevê a alienação no interesse do fideicomissário, mas sim, tão só, quando resulte uma vantagem para o fiduciário, desde que fiquem salvaguardados os interesses do beneficiário.
Por outro lado, também se não alegaram nem, muito menos, se provaram factos através dos quais se pudesse concluir haver manifesta necessidade ou utilidade na alienação para os bens sujeitos ao fideicomisso.
Deste modo, torna-se evidente que a pretensão da autora não pode proceder, pois a autorização que veio pedir ao tribunal não encontra fundamento legal, não estando reunidos os necessários pressupostos.
4.
Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirma-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Lisboa, 10 de Maio de 2007.
Granja da Fonseca
Pereira Rodrigues
Fernanda Isabel Pereira