Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10271/2005-6
Relator: PEREIRA RODRIGUES
Descritores: DÍVIDA COMERCIAL
DÍVIDA DE CÔNJUGES
COMERCIANTE
PROVEITO COMUM
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/17/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Sumário: I - Nos termos conjugados dos artigos 15º do Código Comercial e 1691º/1/d) do Código Civil, estabelece-se “uma dupla e articulada presunção: as dívidas comerciais de qualquer dos cônjuges, desde que comerciante, presumem-se realizadas no exercício da sua actividade comercial; e, desde que presuntivamente realizadas no exercício do comércio do devedor, presumem-se contraídas em proveito comum do casal”.
II - Deste modo, o credor de comerciante, por dívidas comerciais, goza daquela dupla presunção, embora elidível por prova em contrário, de tais dívidas terem sido contraídas no exercício da actividade comercial e em proveito comum do casal, pelo que lhe basta fazer a prova de que a dívida é comercial para a mesma ser da responsabilidade de ambos os cônjuges, que não sejam casados em regime de separação de bens.

III - O objectivo das normas em apreço é o da tutela do comércio, na medida em que, alargando-se o âmbito da garantia patrimonial concedida aos credores daqueles que exercem o comércio, se lhes facilita a obtenção de crédito e se favorecem as actividades mercantis, e o sacrifício imposto ao cônjuge e família do comerciante não é arbitrário, por se entender que, em princípio, a dívida terá sido contraída no interesse do casal, com vista a granjear proveitos a aplicar em benefício da família ou em benefício comum.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A SOLUCIONAR.

No Tribunal Cível da Comarca do Montijo, a Sociedade A, instaurou esta acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra B e mulher, pedindo a condenação destes no pagamento da quantia de Esc. 7.011.183$00, acrescida de juros vincendos calculados à taxa legal de 12% sobre o capital de Esc. 6.401.987$00.

Para tanto, alegou ser uma empresa que se dedica ao fabrico e distribuição de betão pronto, tendo fornecido e entregue ao réu, no período de Janeiro a Junho de 2000 e a solicitação deste, as espécies e quantidades de betão pronto nos preços unitários constantes das facturas juntas aos autos de fls 6 a 23. Mais alegou dever o preço de cada fornecimento ser pago trinta dias após a data de emissão da factura correspondente, na sede da autora, sendo que, com excepção de Esc. 2.000.000$00 titulados por um cheque, os réus não procederam ao pagamento do montante devido pelo fornecimento das mercadorias referidas.

Ainda para fundamentar a sua pretensão, afirma o autor na sua petição inicial ser o réu comerciante, dedicando-se à actividade de construção de imóveis, para revenda ou por conta de terceiros, e de execução de obras e trabalhos de reparação de edifícios. Por seu turno, a ré Prazeres, casada com o réu, é doméstica, vivendo na mesma casa e em economia comum com este, não exercendo qualquer actividade remunerada, razão pela qual a dívida peticionada lhe é comunicável.

Citados os réus, o réu absteve-se de qualquer conduta processual, constituindo-se assim numa situação de revelia absoluta, sendo que a ré ofereceu contestação na qual, para além da qualidade de comerciante e da actividade prosseguida pelo réu, impugna toda a factualidade invocada pela autora como causa de pedir. No que concerne especificamente à alegação de proveito comum do casal como fundamento da sua responsabilização pela dívida peticionada, defendeu-se a ré afirmando não só encontrar-se divorciada desde 30 de Novembro de 2000, mas também que já nos cinco anos que precederam a apresentação do seu articulado, não tinha o casal uma economia comum em virtude de se encontrarem separados de facto, apenas partilhando a mesma habitação.

Em resposta à defesa empreendida pela ré, apresentou a autora articulado que designou por réplica, na qual admitiu encontrar-se o casamento dos réus dissolvido por divórcio decretado na data referida pela ré, mas reiterou que o casal viveu em economia comum até à data do divórcio, situação que se mantém inalterada.

Prosseguiram os autos os seus trâmites, sendo proferido despacho saneador e elaborada a especificação e a base instrutória e, por fim, procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, sendo depois proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente e condenando os réus a pagar à autora a quantia de Esc. 4.400.485$00 (€ 21.943,53), acrescida de juros legais vencidos sobre os montantes constantes das facturas referidas nas alíneas b) e e) a r) do ponto 5 dos factos provados, bem como sobre o valor de Esc. 199.015500 (€ 992,68), correspondente a parte do montante da factura identificada na alínea c) de 5 dos factos provados, contabilizados a partir da data de vencimento aposta em cada uma das facturas, e no pagamento de juros legais vincendos, até efectivo e integral cumprimento.

Inconformada com a decisão, veio a R. interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando doutas alegações, com as seguintes CONCLUSÕES:

(…)

Nestes termos e pelo mais que for doutamente suprido deve ser dado provimento ao presente recurso, com o que se fará a vossa costumada e prudentíssima JUSTIÇA!

Não houve contra-alegação.

Admitido o recurso na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a este Tribunal da Relação, sendo que nada obstando ao conhecimento da apelação, cumpre decidir.

A questão a resolver é a de saber se a recorrente também deve responder pelo pagamento da quantia em que foi condenado o réu.

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II. FUNDAMENTOS DE FACTO.

Consideram-se provados os seguintes factos, que são os factos dados como provados pela 1.ª instância com as alterações introduzidas nos pontos 11 e 13 em face da reapreciação da prova testemunhal:

(…)

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO.

Nos termos do art. 15º do Código Comercial “as dívidas comerciais do cônjuge comerciante presumem-se contraídas no exercício do seu comércio”. Por seu lado, nos termos do art. 1691º, n.º 1, al. d) do Código Civil, são da responsabilidade de ambos os cônjuges “as dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal ou se vigorar entre os cônjuges o regime de separação de bens”.

Como assinala A. Varela, estabelece-se nos preceitos em análise “uma dupla e articulada presunção: as dívidas comerciais de qualquer dos cônjuges, desde que comerciante, presumem-se realizadas no exercício da sua actividade comercial; e, desde que presuntivamente realizadas no exercício do comércio do devedor, presumem-se contraídas em proveito comum do casal” In Direito da família, 5.ª ed., pg. 403..

Deste modo, o credor de comerciante, por dívidas comerciais, goza assim daquela dupla presunção, embora elidível por prova em contrário, de tais dívidas terem sido contraídas no exercício da actividade comercial e em proveito comum do casal, pelo que lhe basta fazer a prova de que a dívida é comercial para a mesma ser da responsabilidade de ambos os cônjuges, que não sejam casados em regime de separação de bens.

O objectivo das normas em apreço é o da tutela do comércio, na medida em que, como diz Lobo Xavier, alargando-se o âmbito da garantia patrimonial concedida aos credores daqueles que exercem o comércio, se lhes facilita a obtenção de crédito e se favorecem as actividades mercantis, e o sacrifício imposto ao cônjuge e família do comerciante não é arbitrário, por se entender que, em princípio, a dívida terá sido contraída no interesse do casal, com vista a granjear proveitos a aplicar em benefício da família ou em benefício comum Citado por A. Neto, in Código Civil Anotado, 11.ª ed. pg. 1113..

No caso vertente, como bem se considerou na sentença recorrida, provado ficou dedicar-se o réu com carácter de habitualidade à actividade de construção de imóveis para revenda, pelo que nos termos do n.º 6 do artigo 230° do Cód. Comercial, terá de concluir-se que o mesmo possui a qualidade de comerciante.

Além disso, ficou provado que o mesmo réu adquiriu betão pronto à autora no exercício da sua actividade profissional.

Destes factos decorre que não podem deixar de considerar-se como sendo efectivamente comerciais as dívidas peticionadas na acção, independentemente da presunção, de comercialidade das dívidas contraídas pelo cônjuge comerciante no exercício do seu comércio, que o artigo 15° do C Comercial estabelece.

O carácter de comercialidade dos actos determinantes das dívidas, seria o bastante para a A., ora Apelada, ter também demandado a ré, ora Apelante, por força da presunção aludida na alínea d), do n° 1 do artigo 1691° CC, já que o regime de casamento dos cônjuges não era o de separação de bens.

Por isso, cabia a ré, ora Apelante, alegar e provar factos com vista a elidir a presunção legal referida, visto tratar-se de presunção juris tantum, o que, em nosso entender, veio efectivamente a fazer, resultando provados factos dos quais é de concluir que as dívidas cujo pagamento é peticionado não foram contraídas no proveito comum do casal.

Isto porque, ao contrário do decidido na 1.ª instância quanto à matéria de facto, se considerou provado que desde há mais de um ano à data (Junho de 2000) em que o réu abandonou a casa já este não contribuía para as despesas da mesma, sendo que antes disso já era a ré quem suportava exclusivamente as despesas próprias, trabalhando para o efeito como empregada de mesa num restaurante, há cerca de nove anos, onde auferia ultimamente a quantia mensal ilíquida de Esc. 80.000$00.

Aliás, as testemunhas da Apelante, designadamente a filha do casal, testemunha privilegiada para o efeito, fizeram um depoimento, dentro do que é exigível, esclarecedor no sentido de se poder concluir que as dívidas contraídas pelo réu entre Janeiro e Junho de 2000 e que são objecto dos presentes autos não comportaram qualquer proveito para a Apelante ou até para a filha do casal que, quando necessitava de dinheiro era à mãe que o pedia e não ao pai.

De resto, o que se deduz do depoimento das testemunhas é que este era uma pessoa afogada em dívidas e em problemas e que o dinheiro não chegava para os resolver. “O meu pai não tinha capacidades, o meu pai não tinha dinheiro”, diz a filha no seu depoimento, que parece sincero.

Neste contexto é lógico que o réu, ao contrair novas dívidas com isso não contribuísse para qualquer proveito da mulher, que sempre iria subsistindo do seu trabalho, ainda que o salário não fosse muito avantajado.

Parece, assim, de subscrever, a conclusão principal das alegações do recurso da Apelante de que esta e o réu apenas partilhavam a mesma habitação e cada um se auto sustentava por si. Pelo menos à data em que as dívidas foram contraídas.

Do que se conclui que a Apelante efectuou prova de que as dívidas objecto da presente acção não foram contraídas em proveito comum do casal, pelo que pelas mesmas não deve a Apelante ser responsabilizada.

Procedem, por isso, as conclusões do recurso, sendo de alterar a decisão recorrida.

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IV. DECISÃO:

Em conformidade com os fundamentos expostos, concede-se provimento à apelação e altera-se a decisão recorrida, no sentido de absolver a Apelante do pedido.

Sem custas por a Apelada não ter contra-alegado.

Lisboa, 17 de Novembro de 2005.

FERNANDO PEREIRA RODRIGUES

FERNANDA ISABEL PEREIRA

MARIA MANUELA GOMES