Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10045/2007-4
Relator: NATALINO BOLAS
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
DIREITO DE DEFESA
ANULAÇÃO DE JULGAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/02/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ANULADO O JULGAMENTO
Sumário: I - O julgamento do recurso interposto da decisão administrativa é julgamento efectuado em 1.ª instância – conforme o qualifica o art.º 65.º-A – e onde se terá de produzir toda a prova admitida tendo em conta todos os factos constantes quer da acusação, quer da defesa, em igualdade de circunstâncias;
II - O facto de o acoimado não usar o direito de se defender perante a autoridade administrativa, pronunciando-se sobre a contra-ordenação e a sanção aplicada, não preclude o direito de o fazer no recurso que interpuser da decisão daquela autoridade, invocando, aí, factos em sua defesa.
(sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa



I - RELATÓRIO
A…., Lda impugnou a decisão da autoridade administrativa — INSPECÇÃO GERAL DO TRABALHO (Delegação de Lisboa) - que lhe aplicou uma coima no montante de € 623, por violação do disposto no n.° 1 do art.° 179.° do Código do Trabalho, a conjugar com o art.° 659.° n.°1, e punível nos termos do art.° 620.°, também do mesmo diploma invocando, essencialmente, que a pessoa que estava no estabelecimento a atender clientes não era sua trabalhadora.
O Tribunal do Trabalho de Loures, sustentando que a recorrente não se defendera perante a autoridade administrativa e, por isso, não pode, agora, “em sede de recurso”, defender-se com factos que não levou ao conhecimento daquela entidade – a inexistência da relação laboral – uma vez que o tribunal de 1.ª instância funciona como uma verdadeira instância de recurso, julgou improcedente a impugnação e manteve a decisão impugnada.

Desta decisão recorreu a arguida para esta Relação apresentando as seguintes conclusões:
(…)


Nestes termos e nos mais de direito deve conceder-se integral provimento ao presente recurso, considerando-se a sentença recorrida nula por violação de normas legais e por via disso ser ordenada a realização de nova audiência de discussão e julgamento para apreciação da matéria de facto alegada pela ora recorrente no recurso de impugnação apresentado, bem como da matéria de direito.

Contra-alegou o Ministério Público junto daquele tribunal pugnando pela manutenção do decidido.

Correram os competentes Vistos legais.

II – Fundamentação de facto
É a seguinte a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida:
- No dia 13 de Março de 2006, pelas 11h10m, no âmbito de uma acção de fiscalização, o Senhor Inspector autuante verificou que a recorrente, no estabelecimento sito no Centro Comercial …, mantinha ao seu serviço, sob as sua ordens e direcção, L…, caixeira, a qual lhe declarou ter sido admitida ao serviço daquela em Maio de 2005.
- A recorrente não tinha afixado qualquer documento, designado como mapa de horário de trabalho, onde constasse a denominação social da recorrente, a actividade exercida, sede e local de trabalho, começo e termo do período de trabalho e funcionamento, bem como as horas de início e termo e períodos de descanso do horário de trabalho praticado pela referida Lúcia, e dias de descanso.
- O Senhor Inspector autuante notificou a Recorrente, através da L…, para no dia 23 de Março de 2006, pelas 16h00, proceder à apresentação de vários documentos, entre eles o Mapa de Horário de Trabalho, nos serviços do IDICT, deixando em mão daquela o original da nota de notificação, que assinou, cujo duplicado se encontra a fls. 6, o qual aqui se dá por reproduzido.
- A arguida não procedeu à apresentação de qualquer cópia de mapa de horário de trabalho.
- Decorrido o prazo, o Senhor Inspector procedeu então ao levantamento do auto de notícia, em 4 de Abril de 2006, tendo a arguida sido notificada com cópia do mesmo, bem assim com a menção expressa de que dispunha do prazo de 15 dias para apresentar resposta escrita, juntar documentos probatórios e rol de testemunhas, ou comparecer, para ser ouvido, nos serviços da IGT.
- A recorrente não apresentou defesa escrita nem efectuou qualquer diligência junto da IGT.

III - Fundamentação de Direito
Uma vez que esta Instância, em regra e no âmbito dos recursos de contra-ordenação, apenas conhece de direito e, também, é limitada pelas conclusões da motivação de recurso, as questão fundamental que se coloca é a de saber se a decisão administrativa é nula por não ter atendido aos factos alegados pela recorrente na impugnação da decisão administrativa.

Apreciando.
Conforme resulta do relatório, a ora recorrente, quando foi notificada pela autoridade administrativa, do conteúdo do auto de notícia, não apresentou qualquer defesa.
Notificada da decisão administrativa que lhe impôs uma coima por não ter elaborado e afixado o mapa de horário de trabalho em relação a uma sua trabalhadora que estava no estabelecimento a atender clientes, veio impugnar judicialmente essa decisão invocando que a pessoa em causa não era sua trabalhadora.
A decisão ora em crise não tomou conhecimento dessa questão por entender que se estava perante um recurso onde não é admissível conhecer de questões novas, ou seja, questões não colocadas perante a autoridade administrativa.
Contudo, como tentaremos demonstrar, a decisão sob recurso não fez correcta aplicação do direito.
O regime geral das contra-ordenações estabelece, na parte relativa ao recurso e processos judiciais, que a decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima é susceptível de impugnação judicial (art.º 59.º n.º 1 do DL 433/82 de 27.10, diploma a que se referirão todos os normativos que adiante se indiquem sem menção da origem).
Impugnada a decisão da autoridade administrativa, os autos são enviados “ao Ministério Público, que os tornará presentes ao juiz, valendo esse acto como acusação” (art.º 62.º n.º 1) – sublinhado nosso - deixando a decisão administrativa de subsistir
Estamos, pois, perante uma acusação cujos termos posteriores estão, na referida lei, estruturados de forma paralela ao processo comum criminal (a possibilidade de decisão imediata se do processo já constarem todos os elementos (art.º 64.º), a audiência de julgamento que segue as normas relativas ao processamento das transgressões (art.º 66.º) com admissibilidade de alegação de factos novos em benefício da defesa, a participação dos sujeitos processuais na audiência, a ausência do arguido, a produção de prova, o regime de recurso).
O julgamento do recurso interposto da decisão administrativa é julgamento efectuado em 1.ª instância – conforme o qualifica o art.º 65.º-A – e onde se terá de produzir toda a prova admitida tendo em conta todos os factos constantes quer da acusação, quer da defesa, em igualdade de circunstâncias.
Conforme se escreveu no Ac. da RL de 15.02.2007 in www.dgsi.pt “…não se vê como o arguido pode opor-se à acusação em igualdade de posição se apenas puder confirmar ou negar o facto invocado pelo agente administrativo”.
No sentido ora defendido de que “o facto de o acoimado não usar o direito de se defender perante a autoridade administrativa, pronunciando-se sobre a contra-ordenação e a sanção aplicada, não preclude o direito de o fazer no recurso que interpuser da decisão daquela autoridade, invocando, aí, factos em sua defesa” se pronunciaram, os Acs. da Relação do Porto, de 4-02-04, Proc. nº 0345479, de 28.05.2003 e 26.11.2003 in www.dgsi.pt, bem como, ainda e para além do acima mencionado, o Ac. desta Relação de 14.02.2001 in www.dgsi.pt.

Entendemos, pois, que cumpria ao julgador apreciar todos os factos e as questões levantadas pela recorrente na impugnação da decisão administrativa.
Ora na decisão, o senhor juiz diz expressamente que “este tribunal não pode em via de recurso tomar conhecimento daqueles factos, uma vez que só agora foram alegados pela recorrente”.
Ao fazê-lo, restringiu ilegalmente o direito de defesa da arguida em violação das apontadas normas do DL 433/82, maxime os art.ºs 59.º n.º 1, e 62.º n.º 1 em conjugação com o art.º 66.º, bem como do estabelecido no art.º 20.º da CRP.
A violação do direito de defesa, em julgamento, torna este inválido, bem como os actos que dele dependerem (art.º 122.º n.º 1 do CPP).
Face à declarada nulidade do julgamento por violação do direito de defesa da arguida, - e, por consequência, a nulidade da sentença - determina-se que seja repetido o julgamento de modo a serem levados em conta os factos alegados pela recorrente na impugnação da decisão administrativa.

IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso apresentado e, em consequência, declarar nulo o julgamento - bem como a sentença recorrida - e determinar a repetição do julgamento de modo a terem-se em conta os factos alegados pela recorrente na impugnação da decisão administrativa, e ser proferida nova sentença que ao caso couber.
Sem custas nesta instância.
Notifique.

Lisboa, 2 de Abril de 2008



Natalino Bolas
Leopoldo Soares