Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | ALEXANDRA VEIGA | ||
| Descritores: | APREENSÃO CONTA BANCÁRIA BURLA | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 12/02/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
| Sumário: | Sumário: 1.Um dos pressupostos para a apreensão de saldo conta bancária é que o saldo a apreender esteja relacionado com a prática de um indiciado crime. 2. O denunciante até ao dia em que se deslocou para fazer o registo do veículo automóvel e encontrar-se com o verdadeiro dono do veículo, nunca tinha contatado com este – ou por interposta pessoa em representação deste. Contactou, antes, com outrem que publicou um anúncio em uma plataforma diferente daquela em que o real proprietário anunciou e se fez passar por representante do dono do veículo- este acordou a venda do mesmo pelo valor de € 7.500,00, vindo o denunciante, conforme lhe foi pedido e sendo invocada muita urgência por motivos de saúde, a proceder à transferência da quantia de € 7.5000,00 para uma bancária titulada por J, com um determinado IBAN. Por sua vez, ao proprietário do veículo também foi dito por alguém, assumindo-se como comprador, que se deveria dirigir ao mesmo local, na data e hora aprazadas com o denunciante, a fim de se concretizar a venda do veículo, pelo valor de € 14.000,00. 3. Nesta conformidade, os factos preenchem indiciariamente os elementos típicos do crime de burla e não apenas a responsabilidade contratual, muitas vezes designada por «fraude Civil», mediante reserva mental, ou simulação, devendo ser determinada a requerida apreensão. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: 1. RELATÓRIO: No Processo: 926/25.9PLSNT, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste Juízo de Instrução Criminal de Sintra - Juiz 2 -foi proferido despacho, com o seguinte teor: «- Da apreensão de saldo(s) bancário(s). (…) Cumpre decidir. Nos termos do disposto no artigo 181.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, respeitante à apreensão em estabelecimento bancário, “O juiz procede à apreensão em bancos ou outras instituições de crédito de documentos, valores, quantias e quaisquer outros objectos, mesmo que em cofres individuais, quando tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, mesmo que não pertençam ao arguido ou não estejam depositados em seu nome”. A pretendida apreensão de saldo bancário terá que se fundar na sua pertinência para a prova de putativo crime de burla qualificada. De acordo com o disposto no artigo 217º, nº1, do Código Penal, comete o crime de burla “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial (…)”. O bem jurídico tutelado é o património. A burla consuma-se com o empobrecimento, isto é, com a saída ou renúncia à entrada de coisas ou valores da disponibilidade do burlado ou da vítima, não estando dependente da verificação de um enriquecimento do agente, o qual é relevante apenas para efeitos da intencionalidade de conduta deste. Há quem defenda a existência de um: - duplo nexo de imputação objectiva: 1º - entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio) e 2º - entre estes últimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial (A.M. ALMEIDA COSTA); - triplo nexo de causalidade: 1º - entre a conduta astuciosa e o erro ou engano do sujeito passivo, 2º - entre este erro ou engano e o cometimento de atos de diminuição patrimonial e 3º - entre tais atos e o prejuízo patrimonial (FERNANDA PALMA /RUI PEREIRA); - quádruplo nexo de causalidade: 1.º - entre a conduta astuciosa e o erro ou engano, 2.º- o estado mental de erro ou engano do burlado e alteração da sua capacidade volitiva, 3.º- entre este “querer adulterado” do sujeito passivo e a prática de atos de diminuição patrimonial e 4.º - entre tais atos e a ocorrência do próprio prejuízo patrimonial (J.A. BARREIROS) – vd. A.M. ALMEIDA COSTA, Comentário Conimbricense, tomo II, p. 293, 294, 1999, Coimbra Editora. Ainda que perfilhe o entendimento de A.M. ALMEIDA COSTA de que as perspetivas em confronto não importam “ quaisquer consequências ao nível das soluções dos casos concretos e, assim, longe de assentar em considerações materiais, assume a natureza de um preciosismo analítico, desnecessário do prisma das específicas valorações do direito penal” (ob. cit., p. 293-294), entendo que, precisamente do ponto de vista analítico aludido, a existência dum triplo nexo de causalidade retrata de forma mais completa e fiel o espírito e a letra da lei. São elementos objetivos deste tipo de crime: (i) o emprego de meio astucioso pelo agente; (ii) a verificação de erro ou engano da vítima devido ao emprego da astúcia; (iii) a comprovação da prática de atos pela vítima em consequência do erro ou engano em que foi induzida; (iv) a existência de prejuízo patrimonial próprios ou de terceiros, resultante da prática dos referidos atos. Em anotação ao artigo 217.º do Cód. Penal, ALMEIDA COSTA mais refere (Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, tomo II, Coimbra Editora, 1999, págs. 274 e ss) que: «Quanto à conduta, a burla constitui, conforme se assinalou, um crime material ou de resultado, cuja consumação depende da verificação de um evento que se traduz na saída dos bens ou valores da esfera de “disponibilidade fáctica” do legítimo detentor ao tempo da infracção” (…) por outro lado, a burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem que ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento. Traduz-se ela na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais (…) longe de envolver, de forma inevitável a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, aquela sagacidade comporta uma regra de “economia de esforço”, limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação ou da vítima. Numa tal adequação de meios – adequação essa que, atentas as particularidades do caso, pode encontrar o “ponto óptimo” no menos sofisticado dos procedimentos – radica, em suma, a inteligência ou a astúcia que preside ao estereótipo social da burla (…).». Assim, para que exista burla, é necessário, desde logo, um propósito de enganar, que precede ou concorre com a prática de atos pela vítima, determinando a vontade da outra parte. Mais, o engano da vítima terá que ser consequência da astúcia empregue pelo agente por sua iniciativa. Assim, o agente terá que manipular psiquicamente a vítima, através de astúcia enganadora ou indutora de um erro, determinando a mesma a praticar actos lesivos que não praticaria se a sua liberdade de entender e querer estivessem intactas. Contudo, convém não olvidar que é indispensável que os actos além de astuciosos, sejam aptos a enganar. No seguimento do disposto no Acórdão do S.T.J., de 8/11/2007, proferido no processo nº 07P3296, disponível in www.dgsi.pt, “ Longe de envolver, de forma inevitável, a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, a sagacidade do agente comporta uma regra de «economia de esforço», limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima. E a idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente afere-se tomando em consideração as características do concreto burlado”. Como bem decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão proferido em 24/04/2008 (processo n.º 06P3057): «XIV - É sabido como no crime de burla intervém um duplo nexo de causalidade. Entre a astúcia e o aparecimento na vítima de um estado de erro ou engano e entre este estado e a prática de actos lesivos do património. XV – Começando pela abordagem da astúcia, causa do erro ou engano, importa ver em que é que ela se analisa: - já se defendeu, sobretudo no tempo do CP de 1886, e tendo em conta a redacção do art. 405.º do CP francês, a necessidade de uma determinada mise en scène, como procedimento do agente (na linha da doutrina e jurisprudência francesas, ao tempo mais relevantes para nós, dadas as afinidades entre os dois códigos penais); ou seja, a necessidade da prática de actos materiais, considerando-se insuficiente a simples mentira; mas, já então, para outra corrente, a exigência se circunscrevia a uma “mentira qualificada” denunciadora de particular engenho ou habilidade (Beleza dos Santos e Luís Osório); - com o Código de 1982, passou a ser maioritariamente entendido que, face à nova redacção do crime de burla (na versão de 1982, do art. 313.º, hoje, do art. 217.º), a problemática em foco perdera actualidade; no sentido de que a falsa representação da realidade, em que o erro ou engano se traduz, pode derivar da mentira simplesmente verbalizada (assim, na jurisprudência, por exemplo, o Ac. deste STJ de 12-03-1992, Proc. n.º 42155, e, na doutrina, Almeida Costa, em Comentário Conimbricense ao Código Penal, tomo II, pág. 296, Simas Santos e Leal- Henriques em Código Penal Anotado, 2.º vol.. pág. 837, Marques Borges em Crimes Contra o Património em Geral, pág. 22); além fronteiras, também a não exigibilidade de actos materiais configuradores de uma mise en scène, vem sendo defendida (assim, por exemplo, Cobo del Rosal et alteri em Derecho Penal – Parte Especial, vol. II, pág. 207, Munõz Conde em Derecho Penal – Parte Especial, pág. 411 e nota 16 ou F. Mantovani em Diritto Penale – Delitti Contra Il Patrimonio, pág. 192) XVI - Tudo para se concluir que, não seria por, no caso dos autos, o eventual erro ou engano ter sido provocado por mentiras, que deixaria de poder verificar-se o crime de burla.»[sublinhados nossos]. Importa, ainda, convocar o disposto no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1/7/98 - disponível em C.J. do S.T.J., tomo II, página 226, citando um estudo da autoria do Professor Costa Andrade, publicado na Separata do B.M.J. nº 13 de 1983 intitulado “Sobre o Estatuto e Função da Criminologia Contemporânea”, página 25 e seguintes - de acordo com o qual: “(...) impõe-se ponderar a existência (ou não) de um critério geral de interpretação da factualidade típica susceptível de em certos domínios (um deles, a burla) permitir valorar a conduta da vítima do ponto de vista da carência da tutela jurídica e, por essa via, excluir determinadas expressões da vida dos âmbitos da factualidade típica. E citando Hassemer, que parte do princípio da subsidiariedade do direito penal (...) segundo o qual a intervenção do direito criminal só é legítima quando a tutela de bens jurídicos em causa não poder ser garantida por outras vias que implicam custos menos drásticos para os direitos do homem, tal princípio vale sem limites, isto é, tanto em relação a outras alternativas estaduais como a alternativas privadas, nomeadamente a auto – tutela que se permite e se reclama aos portadores concretos dos bens jurídicos-penais. O Direito não pode exigir que os indivíduos se fechem à participação social e evitem todo o contacto historico-socialmente adequado mesmo que susceptível de criar risco para os respectivos bens jurídico-penais. Mas já pode reclamar que não sejam eles a elevar as cotas de risco em termos que ultrapassem o limiar de que a lei, de forma abstracta e típica, faz depender a sua intervenção. Pois se aquele limiar só foi atingido e excedido por razões imputáveis à vítima – que não aproveitou as oportunidades de autotutela que lhe era oferecidas e cujo aproveitamento lhe era exigível, então terá de concluir-se, à luz dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade que ela se colocou fora do âmbito de tutela da norma penal incriminatória (...). Aplicando esta construção à interpretação da factualidade típica do crime de burla interroga-se Hassemer sobre se deverá considerar-se o elemento erro da vítima em todos os casos em que a sua situação cognitiva se caracteriza pela dúvida concreta: nos casos em que, não sendo de convicção subjectiva quanto à verdade do estado de coisas apresentado fraudulentamente pelo autor, ultrapassa todavia o grau da mera dúvida difusa adequada ao tráfego normal comercial. (...) « Se o portador do bem jurídico não assume nenhuma destas atitudes alternativas ( alargar o seu campo de informação ou, em alternativa, renunciar à transacção) embora tal lhe fosse possível e exigível, então falha a sua carência de tutela e, por isso, a aplicabilidade do elemento da factualidade típica erro com a consequência de ter de se excluir, pelo menos a condenação por burla consumada » (...) O direito criminal presta apoio, com as suas técnicas específicas, a outros ramos do direito, mas resta saber se tal apoio não deverá, em certas situações particulares (...) sofrer algumas restrições, sobretudo quando os lesados omitem as precauções exigíveis e normais em contratantes prudentes e avisados.” O enganado, em consequência do erro em que foi astuciosamente induzido, terá que realizar uma disposição patrimonial, que tanto pode consistir num fazer (entrega de coisa ou prestação de serviço) como num omitir (renunciar a um crédito). Tratando esta matéria, o Supremo Tribunal de Justiça, em 04/10/2007 (processo n.º 07P2599), decidiu que: «7 –A linha divisória entre a fraude, constitutiva da burla, e o simples ilícito civil, uma vez que dolo in contrahendo cível determinante da nulidade do contrato se configura em termos muito idênticos ao engano constitutivo da burla, inclusive quanto à eficácia causal para produzir e provocar o acto dispositivo, deve ser encontrada em diversos índices indicados pela Doutrina e pela Jurisprudência, tendo-se presente que o dolo in contrahendo é facilmente criminalizável desde que concorram os demais elementos estruturais do crime de burla. 8 – Há, assim, fraude penal: – quando há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico; – quando se verifica dano social e não puramente individual, com violação do mínimo ético e um perigo social, mediato ou indirecto; – quando se verifica um violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena; – quando há fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má fé, mise-en-scène para iludir; – quando há uma impossibilidade de se reparar o dano; – quando há intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio». No que toca ao elemento subjetivo do tipo, trata-se de um crime doloso, punível somente a título de dolo, em qualquer uma das suas modalidades previstas no artigo 14º, do Código Penal. Neste âmbito, o tipo subjetivo cumpre-se quando o agente aja com consciência e intenção de, por um lado, causar um prejuízo patrimonial ao burlado ou terceiro e, por outro, de obter por intermédio da sua conduta um enriquecimento ilegítimo para si ou para terceiro Visto o tipo de crime, vejamos se a versão do denunciante o preenche. Salvo melhor entendimento, de momento avulta apenas nos autos a versão escrita do denunciante na participação criminal, cuja narrativa s.m.o descreve um incumprimento contratual em negócio de compra e venda de automóvel por parte do vendedor, que, pelo mais, terá atuado com reserva mental, emitindo uma declaração negocial de venda que não pretendia cumprir. Tal narrativa não compreende a descrição de qualquer facto indiciador de falsidade informática ou de um erro ou engano que o vendedor do automóvel tenha inculcado astuciosa ou ardilosamente no denunciante para o levar acordar na compra de um veículo pelo preço de € 8.500 e para adiantar o pagamento de € 7.500 antes de conhecer pessoalmente o vendedor e de inspecionar a viatura. A atuação que o denunciante atribui ao vendedor – anunciando por interposta pessoa a venda em rede social e propondo encontro para mostrar a viatura e transferir a propriedade junto a registo automóvel, no qual veio a marcar presença juntamente com o veículo – corresponde à atuação típica de um vendedor particular de automóvel. A boa fé que tal atuação tenha suscitado no denunciante a ponto de o levar a realizar a prestação contratual típica do comprador, pagando significativa porção do preço, corresponde à boa fé que obedece à negociação e celebração de todo e qualquer negócio, pois que ninguém celebraria um negócio se soubesse de antemão que o outro contraente atuava de má fé. A burla funda-se em erro ou engano astuciosa ou ardilosamente inculcado no burlado através de uma conduta do burlão que não poderá resumir-se, mas antes ter algo a mais, do que a mera típica atuação do contraente que personificou. Ora, não existem indícios suficientemente fortes de que o presuntivo pedido de que o denunciante lhe transferisse € 7.500 antes de o conhecer, de inspecionar o estado do veículo e transferir a propriedade junto do registo automóvel, a pretexto de ter urgência e de questões de saúde, tenha sido enganador. Caso contrário, qual a razão ou o interesse para o vendedor se dar a conhecer, encontrando-se com o comprador, quando já tinha recebido € 7.500 na conta bancária? Não vislumbramos haver nenhum, vislumbrando-se nesse ato uma conduta típica de um vendedor que, quanto muito, terá sido indicativa da seriedade de uma declaração negocial previamente emitida. Em todo o caso, não foi instrumental ao presuntivo empobrecimento do denunciante, já que terá sido posterior à mencionada transferência bancária. Se o vendedor aumentou o preço da venda ao se encontrar com o denunciante, trata-se de facto subsequente ao putativo empobrecimento deste último mediante a transferência de € 7.500, e que, por si só, não indicia um erro ou engano astuciosa ou ardilosamente congeminado para empobrecer o queixoso, podendo atribuir-se a incumprimento contratual de má fé. Ainda que se entendesse que o pretexto invocado no pedido de adiantamento no pagamento de € 7.500 fosse inverídico ou falso, não existe qualquer ardil ou astúcia nessa atuação. Um contraente que usasse da razão, da prudência e do zelo do normal comprador de automóvel não aceitaria transferir € 7.500 a quem não conhecia, para pagar a compra de uma viatura que não vira e cuja propriedade desconhecia se era de quem se lhe apresentava como sendo vendedor e se estava livre de ónus, encargos ou garantias. De igual modo, o putativo facto de o vendedor ter anunciado a venda no OLX por preço superior aos € 8.500 e ter retirado tal anuncio antes do encontro marcado com o denunciante para a concretização da compra do automóvel, além de ter sido posterior à transferência de € 7.500, não compreende indício de um erro ou engano ardilosa ou astuciosamente engendrado para empobrecer o queixoso. Não existindo indícios de burla e de falsidade informática, decide-se indeferir o requerimento de apreensão de saldo bancário. Notifique-se e devolvam-se os autos ao Ministério Público.» * Inconformado, recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões: 1.Pelos motivos supra mencionados e aqui tidos como renovados, o despacho recorrido, que indeferiu o requerimento do Ministério Público para apreensão do saldo bancário existente e depositado na conta bancária acima melhor identificada e nos moldes referidos, não foi adequado, nem materialmente correcto, por se vislumbrar que tal quantia poderá ser restituída ao ofendido ou declarada perdida a favor do Estado. 2. Com efeito, não andou bem o Tribunal a quo quando concluiu que os elementos existentes no processo eram parcos e insuficientes e não configuravam indício da prática dos crimes de burla e de falsidade informática. Isto porque, analisados os elementos probatórios já carreados para os autos e conjugados entre si e em confronto com as regras da livre apreciação da prova, à luz dos ensinamentos das regras da experiência comum, já existem elementos suficientes que indiciam a prática do(s) crime(s) objecto deste inquérito, através dos quais AA recebeu na sua conta um crédito, no valor de 7.500,00 EUR, que este sabia não lhe ser devido. 3. Ao assumir, de forma inexacta, uma situação de reserva mental do vendedor ou a existência de um engano ou erro inculcado no comprador, mas sem astúcia e/ou ardil criado, o Tribunal a quo comprometeu a decisão e a efectividade da justiça penal e inviabilizou a apreensão requerida. 4. No que concerne ao conceito de “fundadas razões” do n.º 1 do art. 181.º do C.P.P., o mesmo está necessariamente ligado ao periculum in mora e ao fundado receio de sonegação do bem ou valor que interessa à prova de um facto ilícito típico e na sua probabilidade de ter uma relação directa com a investigação desse crime, o que justifica a adopção de uma medida de tutela urgente. E, s.m.o., não se exigirá, contrariamente ao juízo efectuado na decisão posta em crise, que estejamos perante suficientes ou fortes indícios de que o activo seja vantagem do crime, mas apenas indícios, enquanto fundadas razões para crer que seja esse o caso. 5. No caso sub judice, resulta evidente que o(s) suspeito(s), com recurso a manobras enganosas e actuação astuciosa, publicitaram uma venda não verídica de um veículo, que sabiam não lhes pertencer, recorrendo a uma plataforma digital com o intuito de explorar a confiança típica das transacções não presenciais, logo, a actuação do(s) mesmo(s) ultrapassou uma mera intenção não concretizada, integrando o conceito de “ardil” típico do crime de burla. 6. Ademais, tal conduta preenche não apenas os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime de burla, como igualmente do crime de falsidade informática, por via da introdução e manipulação fraudulenta de dados informáticos com intuito de obter vantagem ilegítima. 7. Por isso, de forma compreensível, quando procedeu ao pagamento antecipado do preço do veículo, o ofendido encontrava-se convencido de que o putativo vendedor, por ter expressado essa intenção, entregaria o veículo após a recepção do montante acordado. Contudo, a conduta imediatamente posterior ao pagamento evidencia que o(s) suspeito(s) jamais teve(tiveram) intenção de cumprir o acordado, sendo manifesto que o erro em que o ofendido incorreu quanto à real intenção do(s) agente(s) foi determinante para a prática do acto de disposição patrimonial. 8. Assim, havendo razões para acreditar, como efectivamente há, que determinado activo foi obtido com a prática de um crime, logo que se reconheça o seu interesse para a descoberta da verdade e/ou para a prova, dever-se-á proceder à sua apreensão cautelar, o que não foi observado pelo despacho posto em crise. 9. Face à natureza e finalidades da apreensão, que exige celeridade e eficácia na actuação processual, o regime dos arts. 178.º e 181.º do C.P.P. não exige a produção de diligências probatórias complementares para comprovação da denúncia. Uma tal exigência tornaria a apreensão inútil e ineficaz e tornar-se-ia um verdadeiro obstáculo à sua concretização, frustrando a possibilidade de conservação do dinheiro integrador da vantagem ilícita obtida e, assim, se premiando os agentes do crime. 10. Ademais, não se pode descurar que o dinheiro é uma coisa fungível e, como tal, é um activo de fácil e rápida dissipação. Porém, é passível de ser substituído por outra coisa do mesmo género, qualidade e quantidade. Pelo que, a existência de dinheiro em igual montante àquele que foi transferido na sequência da prática de um crime, continua a ser indiciariamente uma vantagem desse crime e a sua apreensão prossegue inegável interesse para a descoberta da verdade e a prova e terá a virtualidade de impedir que os fundos existentes na conta se dispersem na economia legítima e sejam utilizados em benefício do agente e/ou canalizados para outros fins. Acrescenta-se ainda, mas sem se prescindir do que supra se alegou. 11. Verificando-se nos autos indícios de que os autores do(s) crime(s) em investigação terão induzido o ofendido em erro, mediante a criação astuciosa de uma situação enganosa, com o propósito de obter uma vantagem patrimonial ilegítima, levando- a, nessa sequência, a realizar um depósito de 7.500,00 EUR (sete mil e quinhentos euros) na conta bancária titulada por AA, com o IBAN.: … – valor esse de que o(s) suspeito(s) se terá(ão) posteriormente apropriado, de forma fraudulenta –, revela-se inequívoco o interesse da apreensão requerida, seja para efeitos de futura restituição à vítima ou para uma eventual declaração de perda desses valores a favor do Estado. 12. A apreensão requerida além de necessária, apresenta-se como proporcional e adequada, pois que a restrição que implica aos direitos do titular da conta objecto da medida terá de ser considerada menor por comparação com as finalidades que com ela se pretendem assegurar. E a sua efectivação não compromete irremediavelmente os direitos do titular da conta bancária, dado que a privação de disponibilidade dos direitos do visado não é definitiva, mas meramente provisória, revogável a todo o tempo, em função do que o seu titular alegar e apresentar em sua defesa e da prova que, ulteriormente, for produzida. 13. Normas jurídicas violadas: arts. 178.º, n.º 1, e 181.º, n.º 1, do C.P.P.. * Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido da adesão á posição do Ministério Público em primeira instância e acrescentando: «Analisado o despacho recorrido, considera-se que o indeferimento da pretendida apreensão de saldo bancário assenta numa análise dos factos que não espelha o que resulta da denúncia apresentada, a qual, no que respeita aos ilícitos em causa, sustentou o pedido efetuado pelo Ministério Público. Efetivamente, o despacho recorrido assenta no pressuposto de que foi o proprietário do veículo (vendedor) quem colocou – por interposta pessoa - o anúncio destinado à venda de tal veículo, tendo sido na sequência da publicação de tal anúncio que foram encetados os contactos telefónicos com o denunciante, concluindo, com base em tal, ser a atuação típica de um vendedor de automóvel. Assinala-se no despacho, em consequência desse pressuposto, a inexistência de erro ou engano, determinante do prejuízo consistente na transferência para a conta bancária indicada ao denunciante da quantia de € 7.500,00, antes de ver o veículo e de aferir do estado do mesmo, bem como antes de ser efetuada a transferência de propriedade, não se tendo considerado a invocação nos contactos telefónicos de questões de saúde e de urgência na transferência como sendo uma atuação enganadora. Questiona-se, perante tal, no despacho: “Caso contrário, qual a razão ou o interesse para o vendedor se dar a conhecer, encontrando-se com o comprador, quando já tinha recebido € 7.500 na conta bancária? Não vislumbramos haver nenhum, vislumbrando-se nesse ato uma conduta típica de um vendedor que, quanto muito, terá sido indicativa da seriedade de uma declaração negocial previamente emitida.” Sucede que, conforme resulta da denúncia, o anúncio destinado à venda do veículo pelo seu efetivo proprietário – BB - foi publicado na plataforma OLX, com proposta de venda pelo valor de € 14.000,00. O denunciante não foi com BB – ou por interposta pessoa em representação deste – que contactou, mas sim com outrem, na sequência de um anúncio de venda do veículo, publicado no Facebook, com proposta de venda de tal bem pelo valor de € 8.500,00. Nessa sequência, o denunciante enviou, via Messenger, uma mensagem a quem publicou o anúncio no Facebook, na sequência da qual foi contacto por telefone por alguém que se identificou como sendo o proprietário do veículo, e que acordou a venda do mesmo pelo valor de € 7.500,00, vindo o denunciante, conforme lhe foi pedido, sendo invocada muita urgência por motivos de saúde, a proceder à transferência da quantia de € 7.5000,00, para a conta cujo saldo o Ministério Público requereu que fosse apreendido. Foi indicada ao denunciante que, após a transferência, se deveria dirigira à Loja do Cidadão, nas ..., a fim de ver o veículo e ser efetuada a transferência de propriedade. Por sua vez, ao proprietário do veículo também foi dito, por alguém assumindo-se como comprador, que se deveria dirigir ao mesmo local, na data e hora aprazadas com o denunciante, a fim de se concretizar a venda do veículo, pelo valor de € 14.000,00. BB, convencido de que já tinha comprador para o veículo, retirou o anúncio da plataforma OLX. Tendo ambos comparecido simultaneamente na loja do cidadão das ..., aperceberam-se então do logro, que acarretou para o denunciante um prejuízo no valor de € 7.500,00. Perante os factos descritos, considera-se ser manifesto estarem preenchidos os elementos do crime de burla, conforme descritos pelo artº. 217º. nº. 1 do CP. Foi publicado um anúncio de venda de um veículo por alguém que não era o seu proprietário, fazendo crer, com tal anúncio, o contrário, na sequência do que foram encetados contactos telefónicos com o denunciante, por via dos quais alguém se identificou como proprietário, levando este a efetuar uma transferência bancária do que seria o valor de aquisição do veículo, antes de entrar na posse do mesmo, com o argumento de grande urgência do vendedor em tal transferência por questões de saúde. O denunciante praticou um ato que lhe causou prejuízo patrimonial por ter sido levado a crer que estava a adquirir um veículo ao seu legitimo proprietário e que iria entrar na posse de tal veículo logo após efetuar a transferência em causa. Quer dizer, o(s) agente(s), mediante a conduta adotada, acima descrita, criou(criaram) a falsa convicção no ofendido – o que foi determinante para que este procedesse à transferência para a conta que lhe foi indicada da quantia de € 7.500,00 – de que estava(m) em condições de proceder à transferência de propriedade do veículo que anunciaram, quando não era(m) o(s) legítimo(s) proprietário(s) ou possuidor(es) de tal veículo. A conduta em causa não pode deixar de ser considerada como enganosa e/ou ardilosa, consubstanciando-se na colocação à venda de um bem alheio, sem autorização do proprietário, e no entabular de conversações com o ofendido – no âmbito das quais se invocou a necessidade de a transferência ser efetuada com urgência - assim se convencendo este a proceder a uma transferência bancária, antes de entrar na posse do bem. Considera-se assim existirem elementos em função dos quais é possível concluir-se estar em causa a prática de um crime de burla, p. e p. pelos artºs. 217º. nº. 1 e 218º. nº. 1 do CP, sendo que, no que respeita a um eventual crime de falsidade informática, p. e p. pelo artº. 3º. nº. 1da lei nº. 109/2009, de 15 de setembro, apesar de tudo levar a crer que também esteja o mesmo em causa, a conclusão pela sua verificação será ainda precoce. Justificava-se assim, plenamente, nos termos e com os fundamentos invocados no recurso interposto, o deferimento do pedido de apreensão do saldo bancário que se encontra depositado na conta bancária com o IBAN.: …, titulada por AA e domiciliada no ..., até ao limite de 7.500,00 EUR, nos termos e para os efeitos previstos no art. 181.º, n.º 1, do C.P.P. e art. 111.º, n.º 1, do C.P. Pelo exposto, conclui-se no sentido de ser dado provimento ao recurso.» * Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência. * Cumpre decidir. OBJECTO DO RECURSO Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995] Desta forma, a questão a decidir consiste apenas na existência ou não de indícios da prática de crime de burla que legitime a apreensão da quantia monetária correspondente ao indiciado prejuízo patrimonial subjacente. * 2. Fundamentação: a. Conteúdo da denúncia apresentada à autoridade policial: «Por à hora supra mencionada deslocou-se a este Departamento Policial o Senhor CC, devidamente identificado em item próprio, a comunicar uma situação de burla, quando se encontrava no local de ocorrência ( devidamente identificado em item próprio ) O lesado informou que no passado dia ... de ... de 2025, andava a procura de uma viatura automóvel no site conhecido por Facebook verificou um anuncio de venda de automóveis ( Grupo procura e venda carros usados Portugal ) onde visualizou uma viatura de marca ... modelo...de matricula ..-QI-.. ( devidamente identificada em item próprio ) a venda por cerca de 8500 euros. Face ao que foi dito o lesado entrou em contacto com o alegado vendedor através da aplicação de mensagens conhecida por Messenger, com um senhor de nome DD ) desconhece mais dados da sua identificação, onde falaram como poderiam efetuar o negocio. De referir que apos a pequena conversa com o alegado vendedor foi efetuado nova conversação através do WhatsApp ( ... ) que seria de um senhor de nome EE, que seria familiar do suspeito em cima mencionado e deu-se a conhecer como sendo o vendedor da viatura supracitada. Apos as conversações de como adquirir a viatura ficou combinado entre o lesado e o alegado vendedor que no dia de hoje deslocar-se-iam ao registo automóvel, apos o lesado efetuar um pagamento de 7500 euros em uma entidade bancaria, situação que tinha sido requerida pelo alegado vendedor e sem que nada o fizesse prever e por se encontrar de boa fé com o negocio mencionado o senhor CC acedeu as pretensões do burlão, devido ao facto da urgência e alegados motivos de saúde do suposto vendedor e por esse motivo em vez dos 8500 euros que seria o valor inicial apenas teria que efetuar o deposito de 7500 euros na conta n.º ..., numero de conta ... em nome de AA do banco .... O lesado deslocou-se ao banco e depositou os 7500 euros na conta supracitada pelas 14h25 conforme talão que se junta, logo apos o pagamento deslocou-se ao local combinado para verificar a viatura e efetuar a transferência de proprietário. No local combinado encontrava-se o senhor BB ( devidamente identificado em item testemunha ) com a viatura supracitada, tanto a testemunha como o lesado verificaram o estado da viatura e acordaram fazer a transferência. Para surpresa do lesado como da testemunha e apos o lesado ter dito que já teria feito a transferência dos 7500 euros pedidos, o senhor BB informou que não tinha sido isso o acordado. Vieram a apurar que a testemunha teria um anuncio da viatura em questão a venda no site denominado por OLX e que teriam entrado em contacto para adquirirem a mesma por os 14000 euros que estava a ser vendida e apos a testemunha ter feito a combinação para a venda retirou o anuncio da plataforma mencionada e combinou o dia de hoje para o suposto comprador ver o estado pessoalmente, situação que pensava que estava a ser a legitima, nesse sentido tanto o lesado como a testemunha verificaram nessa hora que teriam sido enganados, mas apenas o lesado teve um prejuízo patrimonial de cerca de 7500 euros. De referir que o lesado ainda se deslocou a entidade bancaria para tentar cancelar a operação bancaria que tinha efetuado, mas foi informado como se tratou de um deposito não daria para cancelar porque o dinheiro depositado fica de imediato disponível na conta do burlão, motivo pelo qual se deslocou a este departamento policial para efetuar a respetiva queixa crime. A posteriori será junto todas as mensagens trocadas com os burlões devido ao facto do lesado apenas possuir essas conversas digitalmente - O Lesado expressou o desejo de procedimento criminal, e onde não prescinde de ser notificado por carta, em caso de arquivamento do processo Testemunha: BB Doc. Identif.: Bilhete de Identidade n.º … Denunciante: CC» b. Foi nesta sequência que o Ministério Público requereu a apreensão do saldo na identificada conta bancária. Em causa está o pedido de apreensão de determinada quantia depositada em conta bancária, em virtude da existência de indícios da prática do crime de burla. Nos termos do nº 1 do art.º 178º do Cód. Proc. Penal “são apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, … ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova”. Precisa o nº 1 do art.º 181º do mesmo Código que “o juiz procede à apreensão em bancos ou outras instituições de crédito de documentos, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objectos, mesmo que em cofres individuais, quando tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, mesmo que não pertençam ao arguido ou não estejam depositados em seu nome”. Retira-se destes normativos que o Juiz procede à apreensão, em bancos, de instrumentos, produtos ou vantagens, quando, cumulativamente: - tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e - se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova. É hoje entendimento unânime que a admissibilidade da apreensão de títulos, valores e quantias pode ter lugar, não só quando se verificar a sua relevância para a prova mas também quando revestir grande interesse para a “descoberta da verdade”, “incluindo a verdade patrimonial” (cfr. João Conde Correia in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 3ª Ed., Tomo II, p. 686). Desde que a quantia a apreender tenha interesse probatório ou seja necessária para garantir a execução da sua perda, as instâncias formais de controlo podem desencadear as diligências tendentes à sua colocação sob custódia final (idem pag. 717) O Tribunal a quo coloca em causa o pressuposto de que a apreensão requerida esteja relacionada com o crime de burla, porquanto no seu entender não se verificam os elementos típicos do crime de burla entendendo que estamos, antes, no domínio de responsabilidade contratual, muitas vezes designada por «fraude Civil», mediante reserva mental, ou simulação. E, muito resumidamente, refere o despacho sob censura que foi o proprietário do veículo (vendedor) quem colocou – por interposta pessoa - o anúncio destinado à venda de tal veículo, tendo sido na sequência da publicação de tal anúncio que foram encetados os contactos telefónicos com o denunciante, concluindo, com base em tal, ser a atuação típica de um vendedor de automóvel. E partindo deste pressuposto descreve um incumprimento contratual em negócio de compra e venda de automóvel por parte do vendedor, que, pelo mais, terá atuado com reserva mental, emitindo uma declaração negocial de venda que não pretendia cumprir. E conclui « Se o vendedor aumentou o preço da venda ao se encontrar com o denunciante, trata-se de facto subsequente ao putativo empobrecimento deste último mediante a transferência de € 7.500, e que, por si só, não indicia um erro ou engano astuciosa ou ardilosamente congeminado para empobrecer o queixoso, podendo atribuir-se a incumprimento contratual de má fé. Ora, não é isto que resulta da denuncia, como bem refere a Digna Procuradora Geral Adjunta junto deste Tribunal. O anúncio destinado à venda do veículo pelo seu efetivo proprietário – BB - foi publicado na plataforma OLX, com proposta de venda pelo valor de € 14.000,00 e não na referida plataforma do Facebook O denunciante até ao dia em que se deslocou para fazer o registo e encontrar-se com o verdadeiro dono do veículo nunca tinha contatado com este– ou por interposta pessoa em representação deste. Contactou, antes, com outrem que se fez passar por representante do dono do veículo, na sequência de um anúncio de venda do veículo, publicado no Facebook, com proposta de venda de tal bem pelo valor de € 8.500,00. Nessa sequência, o denunciante enviou, via Messenger, uma mensagem a quem publicou o anúncio no Facebook, na sequência da qual foi contado por telefone por alguém que se identificou como sendo o proprietário do veículo, e que acordou a venda do mesmo pelo valor de € 7.500,00, vindo o denunciante, conforme lhe foi pedido e sendo invocada muita urgência por motivos de saúde, a proceder à transferência da quantia de € 7.5000,00 para uma conta titulada por na conta bancária titulada por AA, com o IBAN.: … – valor esse de que o(s) suspeito(s) se terá(ão) posteriormente apropriado, de forma fraudulenta, ou seja para a conta cujo saldo o Ministério Público requereu que fosse apreendido. Foi indicada ao denunciante que, após a transferência, se deveria dirigira à Loja do Cidadão, nas ..., a fim de ver o veículo e ser efetuada a transferência de propriedade. Por sua vez, ao proprietário do veículo também foi dito, por alguém assumindo-se como comprador, que se deveria dirigir ao mesmo local, na data e hora aprazadas com o denunciante, a fim de se concretizar a venda do veículo, pelo valor de € 14.000,00. BB, por seu turno, convencido de que já tinha comprador para o veículo, retirou o anúncio da plataforma OLX. Preenchimento do tipo objetivo e subjetivo do crime de burla: Estabelece o nº 1 do art.º 217º do C. Penal, relativamente ao crime de burla: “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”. São elementos do tipo objetivo do crime de burla. O processo de execução vinculada, por força do qual o atentado ao património do ofendido é realizado através de um artifício fraudulento, tendente a induzir a vítima em erro. Por isso, no crime de burla a ação relevante deverá ser levada a efeito por atuação do sujeito passivo do crime, ou seja, a pessoa burlada; No caso a publicação da venda numa plataforma da rede social pelo não proprietário da viatura fazendo-se passar por dono ou representante do dono da viatura que sabia não ser, adiantando motivos de saúde para a venda rápida e após a transferência da quantia inicialmente pedida para uma conta que não era do real proprietário e o projetado encontro no registo automóvel para concretizarem a transmissão da propriedade fazendo crer ao ofendido que estaria assim reunidas todas as condições de uma venda lícita. A transferência da quantia peticionada para a conta que não era do proprietário da viatura traduz-se na verificação o prejuízo patrimonial, consubstanciado numa diminuição de valor no património do lesado, que teve por causa adequada a atuação do agente que anunciou na plataforma Facebook e marcou o encontro no Registo Automóvel. Assim, e como se observa no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 25/3/2009 (disponível em www.dgsi.pt), é incontornável afirmar-se que o crime de burla: - é um crime material ou de resultado, que apenas se consuma com a saída das coisas ou dos valores da esfera de disponibilidade fáctica do sujeito passivo ou da vítima [“Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, Tomo II, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, 1999, pág. 276, em comentário da autoria de A. M. Almeida Costa]; - é um crime com participação da vítima, ou seja, um delito em que a saída dos valores da esfera de disponibilidade de facto do titular legítimo decorre, em último termo, de um comportamento do sujeito passivo [Maria Fernanda Palma/Rui Carlos Pereira, “O crime de burla no Código Penal de 1982-95”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXV (1994), p. 321 e ss.]; - o bem jurídico protegido pela norma é o património globalmente considerado. Pela tipificação do crime de burla, a ordem jurídica protege a vítima contra manifestações de autolesão patrimonial – contra atos lesivos de deslocação patrimonial levados a cabo por ela própria de forma inconsciente, porque em resultado do erro que o agente astuciosamente lhe criou. Deste modo, o agente concretiza os seus intentos através da ação da própria vítima que é por si “instrumentalizada” a praticar atos de diminuição do seu património. Assim, segundo alguma doutrina, em sede de imputação objetiva do evento à conduta do agente o crime de burla comporta um “triplo nexo de causalidade” [Maria Fernanda Palma/Rui Pereira, antes cit.]; ou pelo menos, segundo outros, um “duplo nexo de causalidade” — entre a astúcia e o aparecimento, na vítima, de um estado de erro ou engano, e entre esse estado de erro ou engano e a prática, pela vítima, de atos lesivos do património [Beleza dos Santos in “A burla prevista no artigo 451 ° do Código Penal e a fraude punida pelo artigo 456.° do mesmo Código” Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 76, pág. 291 a 325 e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-04-2008 (Conselheiro Souto de Moura), processo 06P3057, http://www.dgsi.pt/jstj]. Como salienta A. M. Almeida Costa, a burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento. Traduz-se ela na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar atos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios.(…) Para aferição da idoneidade do meio enganador, deve-se tomar em consideração a personalidade ou características particulares do burlado (cfr., neste sentido, o acórdão do STJ de 20/3/2003, disponível em www.dgsi.pt). Por isso, aquilo que pode não revelar idoneidade como meio para enganar a generalidade das pessoas, pode-o assumir, no caso concreto, em face da particular credulidade ou falta de resistência do burlado, nomeadamente mercê da fragilidade intelectual ou inexperiência ou de especiais relações de confiança para com o agente. Como se assinala nos acórdãos do STJ de 12/12/2002 e de 20/3/2003 (disponíveis em www.dgsi.pt), longe de envolver, de forma inevitável, a adoção de processos rebuscados ou engenhosos, a sagacidade do agente comporta uma regra de "economia de esforço", limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima – o que pode ocorrer quando se verifica uma aproximação à vítima, a criação de relações pessoais que permitiram que, de forma simples, esta tenha sido enganada com recurso a meios simples (uma história comovente, tal como a necessidade da venda por questões de saúde) Relativamente ao tipo subjetivo, o crime de burla caracteriza-se por o agente atuar com dolo, a que acresce um elemento subjetivo especial – o chamado “dolo específico”. Assim, o agente deverá atuar com conhecimento e vontade de realização da globalidade dos elementos do tipo objetivo e, ainda, com a específica intenção de obter para si, ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo. E resulta da denúncia que foi só no local do encontro para procederem ao registo automóvel que o burlado foi posto perante o verdadeiro dono do veículo que, por seu turno, igualmente, se apercebe que tinha sido vitima de um logro, já que alguém fazendo-se passar por si criou um novo anúncio para venda da sua viatura noutra plataforma de anúncios, que não a OLX, por um preço muito inferior comunicando-lhe, assim, que tinha encontrado um comprador e foi isto que os juntou naquele dia. Termos em que os elementos disponíveis na denuncia indicavam claramente que se estaria na presença de um crime de burla que legitimaria o requerimento do Ministério Público. Fica prejudicada a análise do crime de falsidade informática, pois que o indiciado crime de burla bastava para se autorizar a apreensão requerida. Pelo que procede, sem mais, o recurso. * 3.Decisão: Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar totalmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido - Referência: 159874706, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste Juízo de Instrução Criminal de Sintra - Juiz 2 e, em sua substituição, determina-se a apreensão nos termos requeridos pelo Ministério Publico. Sem custas. * Lisboa, 2 de dezembro de 2025 Alexandra Veiga Rui Coelho Manuel Advínculo Sequeira |