Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
182/09.6JELSB.L1-5
Relator: NUNO GOMES DA SILVA
Descritores: AGENTE ENCOBERTO
AGENTE INFILTRADO
AGENTE PROVOCADOR
PROIBIÇÃO DE PROVA
PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Iº Quando os recorrentes se limitam a afirmar que a prova não tem credibilidade, ou não existe, assim desconsiderando o modo como o tribunal nela se estribou, não têm direito a usar o alongamento do prazo de recurso de 20 para 30 dias (art.411, nº4, CPP), sendo a lei expressa ao exigir, para o efeito, que o objecto do recurso seja a reapreciação da prova gravada;
IIº A propósito da infiltração policial, a doutrina e a jurisprudência distinguem entre o agente provocador por um lado e, por outro, o agente encoberto e o agente infiltrado;
IIIº O agente provocador será o membro do órgão de polícia criminal ou alguém a seu mando que pela sua actuação enganosa sugere eficazmente ao autor a vontade de praticar o crime que antes não tinha representado e o leva a praticá-lo, quando sem essa intervenção a actividade delituosa não teria ocorrido. A vontade de delinquir surge ou é reforçada no autor, não por sua própria e livre decisão, mas como consequência da actividade de outra pessoa, o membro do órgão policial;
IVº Agente infiltrado – polícia ou agente por si comandado – é aquele que se insinua nos meios em que se praticam crimes, com ocultação da sua qualidade, de modo a ganhar a confiança dos criminosos, com vista a obter informações e provas contra eles, mas sem os determinar à prática de infracções. Neste caso, o agente não suscita a infracção, introduz-se na organização com o objectivo de descobrir e fazer punir o criminoso, não actuando para dar vida ao crime, antes contribuindo para a sua descoberta;
Vº As acções encobertas são um meio de investigação a usar com parcimónia e o modo como se desenvolvem deve ser objecto de aprofundado escrutínio, o que no caso foi respeitado, tendo o tribunal, a partir do momento em que em audiência teve de lidar com a existência da acção encoberta, procurado o seu esclarecimento com a profundidade devida;
VIº Estando em causa o transporte por via marítima de droga desde o continente americano, até ao porto de Lisboa, onde seria descarregada e lavada por via terrestre para Espanha, só se iniciando a acção encoberta quando a droga já estava a caminho, não pode ser caracterizada como provocação a acção do agente que, no Porto de Lisboa, permitiu que a droga fosse retirada do contentor onde fora colocada no início da viagem e que chegasse à posse dos elementos da organização que a fariam chegar ao seu destino final, em Espanha;
VIIº Mesmo que tenha existido acção enganosa no início da acção criminosa, no continente americano, esse vício não produziria o chamado “efeito-à-distância”, em relação aos agentes que em Lisboa receberam a droga do agente encoberto para a levar até Espanha, uma vez que a intervenção destes não está ligada aos acontecimentos precedentes (transporte deste o continente americano até Lisboa) e não foi determinada pelo, eventual, meio enganoso que desencadeou a operação de tráfico;
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: 1. – No âmbito do processo nº 182/09.6JELSB da 4ª Vara Criminal de Lisboa, os arguidos R..., Ra..., F..., H… e Y... foram pronunciados pela prática em co-autoria material e concurso real de:
- um crime de associação criminosa do art. 28º do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro;
- um crime de tráfico de estupefacientes, agravado, dos arts. 21º, nº 1 e 24º, als. c) e j) do citado Dec. Lei nº 15/93.
Ao arguido R... foi ainda imputado um crime de aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação do art. 266º, nº 1, al. a) do C. Penal.
Efectuado o julgamento foi decidido:
- Absolver a arguida Y... dos crimes pelos quais estava pronunciada;
- Absolver o arguido R... do crime de aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação do art. 266º, nº 1, al. a) do C. Penal;
- Absolver os arguidos R..., Ra..., F..., H... do crime de associação criminosa para o tráfico de estupefacientes e do crime de tráfico de estupefacientes agravado pelos quais estavam pronunciados;
- Condenar pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes do art. 21º, nº 1 do Dec Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro cada um dos arguidos R... e Ra... na pena de 6 anos de prisão e cada um dos arguidos F... e H... na pena de 6 anos e 6 meses de prisão;
- Condenar os arguidos F... e H... na pena acessória de expulsão do território nacional pelo período de 6 anos.

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2. - O processo foi remetido a este Tribunal da Relação para apreciação dos seguintes recursos:

A) Recurso interposto pelo arguido Ra... ... do despacho proferido a fls 1712-1717, no decurso da audiência.

Esse despacho apreciou, indeferindo-o, um requerimento do arguido H... que consta da acta da audiência de julgamento da sessão da tarde de 2010.07.12 (fls 1689 e ss) em que este arguido requereu, além do mais, a junção aos autos dos relatos de acção encoberta e que foi “subscrito” nesta parte pelo arguido Ra... ..., argumentando este ainda que a produção de relatos contemporâneos da operação encoberta são requisito da sua legalidade e que o relatório “síntese” posterior ao desenrolar da acção encoberta não pode valer como meio de prova.
As conclusões da motivação respectiva (fls. 1815-1819) são as seguintes (transcrição):
1ª. Decisão recorrida: o despacho de fls. 1712/1717.
2.ª O despacho recorrido ao ter aceite que valha como prova nos autos o relatório de fls. 1608 enferma de erro de Direito, por violação dos artigos 3º, n.º 6 [e 4º, n.º 1] da Lei n.º 101/2002, de 25 de Agosto, 125º e 126º, n.º 2, d) [in fine] do CPP, pois que o documento em causa (i) não é um «relato da intervenção do agente encoberto» mas sim um documento avulso, preparado pela PJ a mando do DCIAP para o fito de ser lido neste julgamento, quando intimados foram para juntar o relato devido (ii) apto a conter menções que não se sabe se não descrições fidedignas da actuação do agente encoberto ou alusões feitas constar depois como sendo de tal natureza e havendo elementos que mostram que o referido documento contém omissões significativas [como a presença de um agente da DEA], sendo certo que foi elaborado quando o OPC já tinha obtidos declarações de arguidos, entre os quais as do ora recorrente e é duvidosa a identidade do subscritor como sendo o agente encoberto que agiu no caso e (iii) significa, além disso negar aos arguidos o benefício legalmente concedido de haver como prova utilizável um documento formal elaborado nos termos estritos da lei a evidenciar os termos da ocorrência de uma acção intrusiva como a acção encoberta.
3.ª O despacho recorrido, ao ter negado que fosse captado para os autos o relato da intervenção do agente encoberto [os relatos dispersos» como com ironia lhe chama o DCIAP] enferma de erro de Direito por violação dos artigos 340º, n.º 1, 120º. n.º 2, d) [in fine] do CPP, por se afigurar como diligência essencial para a descoberta da verdade e boa decisão da causa e para a defesa dos arguidos.
Termina pedindo que seja i) declarado como meio de prova proibida o relatório de fls. 1806, com as demais consequências nomeadamente a desvalorização probatória dos depoimentos dos OPCS que foram inquiridos sobre ele [S..., Ó... e alegado agente encoberto] e ii) seja declarada a nulidade do despacho que indeferiu a notificação à PJ para entrega nos autos dos relatos legais da acção encoberta em causa.
A magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso (fls 1939) alegando em síntese que a elaboração de um relatório de síntese da acção encoberta foi feita para preservar a segurança de todos os intervenientes e que a lei não prevê a produção de relatórios intercalares de uma acção encoberta. Salientou também que a decisão final sobre a validação como meio de prova válido de tal relatório fora relegada para a decisão final.

B) Recurso interposto pelo arguido Ra... do despacho proferido a fls 1749-1752, no decurso da audiência.

Esse despacho apreciou, indeferindo-o, um requerimento do arguido (fls 1705) em que este invocando o art. 340º CPP requereu que fosse remetido ofício à DEA (Drug Enforcement Administration), para o seu escritório de Madrid, a fim de fosse confirmada a sua participação na acção encoberta (nº 36/09.6TELSB) nomeadamente através da apresentação às autoridades policiais portugueses do indivíduo a quem na dita acção encoberta foi atribuído o nome de “código” “Donald” ou “Calvo”.
As conclusões da motivação respectiva (fls. 1820-1822) são as seguintes (transcrição):
1ª Decisão recorrida: o despacho de fls. 1749/1752.
2ª O despacho recorrido, ao ter negado que fosse captado para os autos informação a prestar pela DEA/Madrid sobre a intervenção desta entidade numa acção encoberta que teve lugar na investigação e cuja existência só foi descoberta em audiência de julgamento e aí referida em termos ambíguos e vagos, enferma de erro de Direito por violação dos artigos 340º, n.º 1, 120º. n.º 2, d) [in fine] do CPP, por se afigurar como diligência essencial para a descoberta da verdade e boa decisão da causa e para a defesa dos arguidos.
Termina pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que ordene que se oficie à DEA/Madrid no sentido de confirmar em que termos teve intervenção na investigação dos autos.
A magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso (fls 1935-1940) alegando em síntese que a acção encoberta foi desencadeada após informação da DEA sobre a eventual existência de um carregamento de cocaína que estaria para ser desembarcado em Portugal e que com isso se esgotou a actuação dessa entidade que não teve intervenção na acção encoberta.

C) Recurso interposto pelo arguido R... do despacho proferido na sessão da audiência de 2010.07.27 (cfr acta a fls 1786).

Esse despacho apreciou, indeferindo-o, um requerimento do arguido (fls 1766) em que este invocando o art. 340º CPP pediu que fosse ordenado ao DCIAP para juntar aos autos a documentação por meio da qual foi “requerida” ao Ministério Público a autorização para ser desencadeada a acção encoberta; os moldes em que se conteria a dita acção; os termos em que se procurou obter a legitimação da intervenção de um “terceiro”.
As conclusões da respectiva motivação (fls 1839-1854) são as seguintes (transcrição):
1. R... arguido nestes autos requereu, ao abrigo da Lei 101/2001 de 25/08, ao Tribunal que oficiasse o DCIAP para juntar aos autos:
• a documentação por meio da qual foi requerida ao Magistrado do Ministério Público a prévia autorização para ser realizada a supra referida acção encoberta;
• os moldes em que se conteria a concretização da acção encoberta;
• bem como, os termos em que se pretendeu legitimada a intervenção do referido "terceiro"
2. E pela MM.a Juiz Presidente foi proferido despacho do seguinte modo, indeferindo in fine o requerimento do recorrente:
« (... ) Desde logo, importa sublinhar que, como foi referido pelo inspector chefe Ó... e pelo Inspector Coordenador S..., a acção encoberta aqui em causa foi, em devido tempo, acompanhada e autorizada pelas autoridades judiciárias competentes (DCIAP e TCIC).
Resulta do disposto na Lei 101/2001, de 25/8 que a autoridade judiciária só ordenará a junção ao processo do relato da intervenção do agente encoberto — e apenas o relato e não outras peças processuais relacionados com procedimentos adoptados no âmbito da acção encoberta, os quais, a serem juntos, poderiam pôr em causa a segurança dos intervenientes nessa acção — se a reputar absolutamente indispensável em termos probatórios.
Resulta igualmente do disposto na citada lei que em julgamento poderá ser determinada, por indispensabilidade da prova, a comparência em audiência do agente encoberto.
Salvo melhor opinião, parece-nos que, pelas razões apontadas, não se encontra legalmente prevista a junção aos autos de outras peças processuais relacionadas com a acção encoberta nem tal nos parece que pudesse vir a ter interesse ou relevância em termos probatórios.
Com efeito, os inspectores acima mencionados, conforme referido em anterior despacho prestaram todos os esclarecimentos atinentes à acção encoberta, ao modo como esta se iniciou e decorreu e às circunstâncias em que interveio o "denominado terceiro" conhecido por "Calvo" ...» (Bold nosso)
3. Foi referido pelo Inspector-Chefe Ó... no seu depoimento, a actuação, na investigação deste processo, de dois agentes infiltrados.
4. Foi por todos os arguidos nas suas declarações referida a intervenção de um outro indivíduo, um terceiro, o qual conheciam por "Calvo", pelo qual o agente encoberto sempre se fez acompanhar no terreno.
5. O que foi confirmado pelo depoimento do agente encoberto.
6. Resulta pois, das declarações dos arguidos, em conjugação com os depoimentos: do agente encoberto, do inspector-Chefe Ó..., do Inspector-Coordenador S..., a existência, de facto, de um "terceiro" que actuou na acção encoberta, juntamente com o agente encoberto "Jaime", e ambos sob o controlo da polícia judiciária. Não existindo referência a este terceiro no relato junto aos autos.
7. Decorre do n.°2 do art. 1° da Lei 101/2001 de 25/08 que se consideram acções encobertas "... aquelas que sejam desenvolvidas por funcionários de investigação criminal ou por terceiro actuando sob o controlo da polícia judiciária para prevenção ou repressão dos crimes indicados nesta lei, com ocultação da sua qualidade e identidade." Considera portanto a citada lei que, as suas disposições não se aplicam somente ao agente encoberto, abrangendo também o denominado "terceiro", o qual também é "parte" na acção encoberta, e estará por ela "protegido" do mesmo modo que o agente encoberto, no que respeita à licitude da sua conduta. Nem de outro modo faria sentido este intervir.
8. E, após o que, não volta a ser feita qualquer referência ao "terceiro" nesta Lei.
9. No entanto, atenta a menção contida no n°2 do art. 1°, entendemos, salvo melhor opinião, que todo o diploma será extensivo a este — terceiro - , tratando-se a omissão de um mero lapso legislativo. Isto é, se a lei "protege" a actuação do agente encoberto desenfermando a mesma da sua ilegalidade, então, também terá que proteger a actuação do "terceiro", para que este não incorra na sua actuação, na prática dos crimes que visa prevenir, isto é, não tenha uma actuação ilícita.
10. Assim entendendo, os requisitos constantes do art. 3° do mesmo diploma legal, nomeadamente: a necessária autorização legal para que o terceiro intervenha numa determinada acção encoberta, e os moldes em que se conterá essa intervenção, também se aplicarão ao "terceiro", cuja intervenção importa estar desde logo legitimada.
11. Legitimação esta que se aferirá do despacho que autoriza a acção encoberta, no seu todo.
12. Pelo que, é imperativo que este despacho contenha os moldes em que se concretizará a acção encoberta, isto é, em que actuarão os seus intervenientes. Bem como, os limites da sua actuação.
13. Sendo esses moldes e limites fulcrais para aferir se houve ou não excesso de actuação por parte deste "terceiro", o "Calvo" ou "Donald", e, consequentemente, se a presente acção encoberta respeitou o n.°1 do art. 3° da Lei 101/2001 de 25/8, isto é, se se adequou, de facto, aos fins de prevenção criminal que a determinaram, nomeadamente, a descoberta de provas, e se foi proporcional, quer àqueles fins, quer ao crime em questão.
14. É pois, fundamental para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, apurar da legitimidade da actuação deste "Calvo"/ "Donald", "terceiro" interveniente, esclarecer se essa actuação se conteve dentro dos limites para que estava autorizada, e, ainda, apurar se estava de facto autorizado a actuar, ou se estamos perante uma intervenção ilegal.
15. Sob pena de, em qualquer das duas hipóteses, a acção encoberta, considerada no seu todo, ter extravasado a respectiva autorização legal, e estar enfermada de ilegalidade, quer formal, quer material.
16. É maioritária a doutrina que, em paralelismo com o regime aplicável às escutas telefónicas ( arts. 187°-190° e 126°, n°3 do CPP) entende este vício como uma nulidade que acarreta a proibição de carrear para estes autos, e neles terem qualquer valor, provas obtidas através daquele meio de prova que se determinou ser ilegal; dando-se a mesma como inexistente.
17. Urge, neste contexto, esclarecer, se esta intervenção esteve dentro da legalidade; legitimada, ou não.
18. Legitimação que terá de constar do despacho que autorizou a acção encoberta, sob pena de vulgarização e facilitismo na realização destas acções, informalidades que não se coadunam absolutamente, com a tipicidade da lei penal e processual penal portuguesa, nem com as estritas margens por que esta se rege, em especial e essencialmente quando está em causa a liberdade do arguido, sob pena de se violarem as suas garantias de defesa.
19. Não se podendo olvidar também a incongruência de a intervenção do "terceiro"/"Calvo" não constar de todo no relato, o qual foi feito dias antes do depoimento do agente encoberto, e na íntegra por este. Relato que é completamente omisso quanto ao "terceiro". O que, não poderemos deixar de entender como uma incongruência da parte do agente encoberto, bem corno uma nítida desconsideração deste e de quem o fiscalizou, pelos trâmites processuais legais.
20. Ora, tratam-se de questões que só poderão ser aferidas mediante inspecção do próprio despacho.
21. Inspecção que, se admite, seja, por parte das defesas, com omissão de dados relativos à identidade dos intervenientes, e quaisquer questões que ponham em causa a segurança dos mesmos. E junção desta "versão" aos autos. Mas que, seja, porém, judicial quanto ao original, com comparação judicial deste com aquela versão.
22. A lei é clara, quando no n.° 6 do art. 3° obriga a que da actuação do agente encoberto seja feito um relato. Tal relato tem exactamente o fim de se poder, através dele, obter esclarecimentos, quer quanto ao envolvimento e factos praticados pelos arguidos, quer, relativamente ao controlo da actuação do agente encoberto, e "terceiro", e conformidade destas actuações com a lei, designadamente, com os seus limites, contidos na autorização da acção, bem como, da sua adequação aos fins de prevenção da acção encoberta.
23. É pois, o relato, uma peça processual de extrema relevância para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, e, por essa razão, rege a lei que tenha que existir. E este, apenas atenta a sua efectiva indispensabilidade, será junto aos autos.
24. O certo é que foi. Tendo-se considerado o relato, que é a mais importante peça processual resultante da acção encoberta, de tal modo indispensável que foi junto no processo, não se vislumbra em que é que junção dos documentos pretendidos no requerimento poderá ferir a lei e a segurança dos intervenientes na acção, sendo estes documentos em questão, como são, de menor perigo nesse sentido que o relato.
25. Da circunstância de a lei não prever a junção destes documentos aos autos não se infere de modo algum que essa junção não seja permitida.
26. Aliás, a lei é omissa quanto a esta questão, pelo que, novamente, fazendo o paralelismo com o regime do art. 187°, n°8 do CPP, relativo às escutas telefónicas, conclui-se que nada impede que aqueles sejam juntos aos autos.
27. Desde o início verificou-se uma falta de transparência quanto às investigações e investigadores deste processo, quando, estando em causa a liberdade dos arguidos, como já se disse, bem como, as suas garantias de defesa, se dá a violação consciente e provocada do Princípio Fundamental de Defesa que rege pela Igualdade de Armas dos sujeitos processuais nesta fase rainha: o julgamento.
28. O que, mais uma vez, tende a ferir a credibilidade da investigação deste processo, por nem ter sido informado em tempo o Tribunal da existência da acção encoberta, quando esta foi um meio fundamental de obtenção de prova.
29. Esta falta de transparência obsta, obviamente, a que se possa concluir da legitimidade e legalidade das intervenções dos encoberto e terceiro, e sua conformidade com o despacho que autoriza a acção encoberta, bem como, da efectiva e expressa previsão da intervenção de um "terceiro": "Calvo" ou "Donald" no despacho de autorização, apenas e só, através de depoimentos, sem qualquer corroboração destes depoimentos com um outro suporte, mormente, formal.
30. Assim, entendemos não assistir razão à MM.a Juiz Presidente da 4a Vara Criminal de Lisboa, com o melhor respeito, pela opinião expressa na decisão judicial de que ora se recorre, pelos motivos apontados.
A magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso (fls 1945-1948) alegando em síntese que a lei não prevê a junção aos autos de quaisquer outros elementos da acção encoberta para lá do relato da intervenção do agente encoberto”, e da possibilidade de inquirição do agente encoberto quando tal se revelar absolutamente indispensável. Sendo que o DCIAP esclareceu através de ofício que todas as informações e relatos foram sempre transmitidas para validação e foram validados.

D) Recurso da decisão final interposto pelo arguido Ra...

As conclusões da motivação respectiva (fls. 1980-2004) são as seguintes (transcrição):
1ª O arguido mantém interesse nos recursos interlocutórios que interpôs durante a audiência cujas motivações foram entregues em (i) 09.08.10 e (ii) 11.08.10
2ª Ocorre vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite por insuficiência a aplicação do direito ao caso submetido à apreciação do Tribunal, o que inegra nulidade prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 120º do CPP.
3ª O Tribunal não esgotou todos os meios ao seu alcance com vista a determinar os contornos da acção encoberta que durante a audiência de julgamento após insistência da defesa dos arguidos, veio a apurar-se ter, afinal, existido, designadamente quem propôs o negócio a quem, elencando no acórdão os factos que permitam ou não concluir que o crime objecto dos autos foi provocado por terceiro (actuando sob o controlo da PJ) .
4ª O esclarecimento e conhecimento desses factos e situações são fundamentais e imprescindíveis para decidir se houve ou não provocação à prática do crime.
5ª A utilização deste meio enganoso, além de fazer com que a provocação caia sob a alçada dos métodos de prova proibidos, sub espécie, meios enganosos (art.126º, nº2, al.a) do CPP), exige ainda uma chamada de atenção para o art.126º, por forma a que qualquer meio de prova que ofenda o princípio nemo tenetur se ipsum accusare, se não pode ser declarado ilícito por se haver usado tortura ou coacção, ou possa ser por haver atentado contra a integridade moral da pessoa.
6ª Por se tratar de um meio enganoso, cai sob a alçada dos meios proibidos de prova, e acarretaria a proibição de valoração à prova mediata, o chamado efeito-à-distância.
7ª É precisamente pela operância do efeito-à-distância que não podia o Tribunal deixar de esclarecer a questão essencial e determinante sobre a origem do negócio e contacto inicial mantido, pese embora o mesmo pudesse, inclusivamente, não ter sido mantido com qualquer dos arguidos que essa qualidade assumem nos autos.
8ª Ocorreu erro notório na apreciação da prova [artigo 410º, n.º 2, alínea c) do CPP quando no aresto recorrido se deu como provado, relativamente ao ora recorrente que, [facto n.º 14] adquiriu em Portugal o veículo Audi A3 Cinzento e, ao mesmo tempo deu como provado [facto n.º 83] apenas entrou em Portugal para daqui transportar a droga para Espanha.
9ª O recorrente discorda e impugna os factos que o aresto recorrido deu como provados (i) que antecederam a sua intervenção (ii) referentes à sua intervenção
10ª No que se refere ao momento anterior à sua intervenção, a génese da acção encoberta, o recorrente entende que o Tribunal a quo não poderia ter dado como provados quer os factos referentes à origem da informação quer os que se referem à existência de contactos alegadamente mantidos entre o Calvo e uma suposta organização [factos 1º a 4º e 9º].
11ª São provas que impõem decisão diversa:
12ª Em primeiro lugar o depoimento da testemunha Ó... [Acta da audiência de julgamentos de 12.07.2010, ficheiro 20100506103104_52985_64687.html., minutos 24:10 a 32:18], Inspector responsável pela acção encoberta que inicialmente a instâncias da defesa do ora recorrente refere a existência de um pedido da DEA e a sua formalização.
13ª Em segundo lugar o depoimento do Coordenador Inspector S... [Acta da audiência de julgamento de 01.07.2010, ficheiro 20100506103104_52985_64687 minutos 04:00 a 09:00], que embora refira a existência da informação da DEA não foi capaz de precisar aquilo que em concreto foi transmitido.
14ª Em terceiro lugar, a prova documental existente nos autos, que adquire como momento inicial do processo uma informação da UCO espanhola de 07.04.2009, alegadamente enviada via fax e constante de fls. 7 segundo a qual teria lugar no nosso país uma venda de cocaína.
15ª No que se refere à intervenção do ora recorrente, o Tribunal deu como provado em síntese que no dia 06 de Abril a mando da organização este, juntamente com os co-arguidos, se deslocou a Portugal para recolher efectuar o transporte da cocaína; que foi o ora recorrente quem procedeu à contagem das embalagens de cocaína e as arrumou na lateral do veículo na qual viriam posteriormente a ser apreendidas e que a saída da zona de Lisboa fez-se sempre com o arguido Ra... à frente, no Audi cinzento, seguido de perto pelo arguido R…, no Audi azul [factos n.º 10, 25, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 60, 61, 79, 80, e 83] que se impugnam.
16ª São provas que impõem decisão neste sentido:
17ª Em primeiro lugar as declarações do ora recorrente [Acta da audiência de julgamento de 12-07-2010, ficheiro n.º 20100506103104_52985_64687, minutos 00:00 a 52:20 ], acima resumidas explicou a razão da vinda a Portgual e a sua permanência no dia em causa.
18ª Em segundo lugar o documento junto aos autos a fls. ##, que corresponde a uma comunicação do Hotel V..., efectuada já em sede de audiência de julgamento, que atesta que o arguido R… (e o ora recorrente) efectuaram o checkin no Hotel pelas 12:00 e o checkout nesse mesmo dia pelas 21:30
19ª Em terceiro lugar as declarações do arguido R… [Acta da audiência de julgamento de 06-05-2010, ficheiro n.º 20100506103104_52985_64687, minutos 01:20 a 02:02:39 ], que explicou que veio com o Ra... a Portugal para este adquirir o veículo Audi A3 Cinzento, e que quando lhe pediram para efectuar o transporte não deu conhecimento disso ao Ra....
20ª Em quarto lugar as declarações do arguido F... [Acta da audiência de julgamento em 06-05-2010, ficheiro 20100506103104_52985_64687 minutos 39:40 a 45:00] que explicou que o ora recorrente pretendia recolher o seu saco do porta bagagens do carro e que foi ele quem solicitou ao ora recorrente que levasse o carro do estacionamento onde se encontrava até ao local onde o ora recorrente tinha estacionado o seu carro.
21ª Em quinto lugar o relatório de diligência externa de fls. 14 dos autos que refere que pelas 15:00 o Audi A3 Azul foi localizado junto ao CCVG a dirigir-se para o parque de estacionamento nas traseiras do Hotel T.... Estacionou no piso 2 do estacionamento. G [Calvo] sai do estacionamento e dirige-se para a Audi Cinza, quando estava próximo da viatura os suspeitos [F... e Ra...] A e E deslocaram-se para junto daquela. Os 3 seguiram apeados para o interior do silo. Quando visualizados de novo A, G e E já se encontravam junto à viatura A3 Azul sendo que o suspeito F [Hugo] estava junto dos mesmos quando já eram cerca das 15:15. E [Ra...] abriu a bagageira e juntamente com A observou o interior da viatura sendo que se observou que olhavam como que procurando algo.(negrito e sublinhado nosso)
22ª Em sexto lugar o aditamento de fls. 165 dos autos no qual se adita que «a determinado momento F... com Ra... na presença dos 2 indivíduos ainda desconhecidos estiveram no estacionamento junto ao A3 azul e analisaram a viatura pormenorizadamente, percebendo-se agora que estariam a avaliar a qualidade da dissimulação da cocaína.»
23ª Em sétimo lugar o depoimento do inspector A M... [Acta da audiência de julgamento em 07-06-2010, F:/20100506103104_52985_64687, minutos 00:00 a 32:00], que esteve encarregue da vigilâncias «dos Audis» que desconhecia a existência de uma operação encoberta, e que referiu ter presenciado o momento em que os arguidos se deslocaram ao Audi Azul e o agente encoberto juntamente com o “calvo” entraram no veículo e o levaram, referindo que os arguidos estiveram em pé a conversar, que os viu trocar coisas mas nunca a entrar no veiculo, salvo no momento em que os 2 individuos levaram o veículo.
24ª O aresto recorrido enferma de erro de Direito, por violação dos artigos 70º, 71º e 72º do Código Penal, na medida em que situou a pena numa medida concreta de seis anos, quando na verdade, mesmo que não valesse o que o arguido alegou quanto à sua inocência, há elementos que justificam a fixação em dosimetria concreta mais benigna.
25ª A pena aplicada ao ora recorrente deveria ter-se situado no mínimo legal, estando inclusivamente reunidos os pressupostos, conforme supra referenciados, previstos no artigo 50º do código penal que determinam a suspensão da execução da pena aplicada nessa medida.
26ª Os artigos 1º n.º 1, 3º n.º 1 e 6, 4º n.º 1 a 4 [e bem assim os preceitos para onde este remete], da Lei n.º 101/2001 de 25.08, conjugados com os artigos 348º n.º 3, 355º n.º 1, 375º, do CPP quando prevêem a possibilidade de condenação através da valoração de depoimento por testemunha cuja identificação não foi alcançada de modo suficiente, e que alegando o estatuto de agente encoberto não viu ser obtido para os autos o relato da acção encoberta que em 48 horas haveria de ter sido elaborado são materialmente inconstitucionais por violação dos artigos 32º n.º 1, 5 e 8, e 272º n.º 1 a 3 da CRP.
Termina pedindo, caso não haja razão para reenvio, a revogação da decisão recorrida ou a sua condenação em pena mais benigna com a execução suspensa.
A magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso (fls 2201-2236) defendendo a sua improcedência.

E) Recurso da decisão final interposto pelo arguido H...

As conclusões da motivação respectiva (fls. 2008-2045) são as seguintes (transcrição):
1 - Face a erro notório na apreciação da prova, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e contradição insanável entre a fundamentação que vicia a decisão recorrida, encontra-se o referido acórdão inquinado pelo vício do Art. 410º, nº 1 e 2, al. a), b) e c) do CPP que conduz à nulidade do mesmo, devendo ta ser declarado e repetido o julgamento.
2 - Face à inexistência do crime de associação criminosa absolver o recorrente do crime de tráfico de produtos estupefacientes de que vinha acusado, por atento o princípio in dubio pro réu, bem como face à falta de verificação dos elementos tipo objectivos do crime de que vem acusado, já que em momento algum se verificou perigo para a saúde pública tendo A POLÍCIA E AS AUTORIDADES DESDE SEMPRE O TOTAL DOMÍNIO DO FACTO E DO PRODUTO ESTUPEFACIENTE.
3 - Ainda que o concluído nos pontos 1 a. 6 se não entenda provado, o que só por dever de oficio se concebe, considerar as penas aplicadas excessivas e desajustadas à conduta, idade, dolo e atenuantes da mesma, sendo as penas drasticamente reduzidas, para pena que se situe no limite mínimo da moldura penal aplicável, numa pena não superior a quatro anos de prisão.
Termina pedindo a anulação ou substituição do acórdão recorrido por outro que o absolva ou a repetição do julgamento por utilização de prova proibida ou a redução da pena.

F) Recurso da decisão final interposto pelo arguido F... Q...

As conclusões da motivação respectiva (fls. 2048-2083) são as seguintes (transcrição):
1 - Face a erro notório na apreciação da prova, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e contradição insanável entre a fundamentação que vicia a decisão recorrida, encontra-se o referido acórdão inquinado pelo vício do Art. 410º, nº 1 e 2, al. a), b) e c) do CPP que conduz à nulidade do mesmo, devendo ta ser declarado e repetido o julgamento.
2 - Face à inexistência do crime de associação criminosa absolver o recorrente do crime de tráfico de produtos estupefacientes de que vinha acusado, por atento o princípio in dubio pro réu, bem como face à falta de verificação dos elementos tipo objectivos do crime de que vem acusado, já que em momento algum se verificou perigo para a saúde pública tendo A POLÍCIA E AS AUTORIDADES DESDE SEMPRE O TOTAL DOMÍNIO DO FACTO E DO PRODUTO ESTUPEFACIENTE.
3 - Ainda que o concluído nos pontos 1 a. 6 se não entenda provado, o que só por dever de oficio se concebe, considerar as penas aplicadas excessivas e desajustadas à conduta, idade, dolo e atenuantes da mesma, sendo as penas drasticamente reduzidas, para pena que se situe no limite mínimo da moldura penal aplicável, numa pena não superior a quatro anos de prisão.
Termina pedindo a anulação ou substituição do acórdão recorrido por outro que o absolva ou a repetição do julgamento por utilização de prova proibida ou a redução da pena.

G) Recurso da decisão final interposto pelo arguido R...

As conclusões da motivação respectiva (fls. 2086-2121) são as seguintes (transcrição):
1 - Face a erro notório na apreciação da prova, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e contradição insanável entre a fundamentação que vicia a decisão recorrida, encontra-se o referido acórdão inquinado pelo vício do Art. 410º, nº 1 e 2, al. a), b) e c) do CPP que conduz à nulidade do mesmo, devendo ta ser declarado e repetido o julgamento.
2 - Face à inexistência do crime de associação criminosa absolver o recorrente do crime de tráfico de produtos estupefacientes de que vinha acusado, por atento o princípio in dubio pro réu, bem como face à falta de verificação dos elementos tipo objectivos do crime de que vem acusado, já que em momento algum se verificou perigo para a saúde pública tendo A POLÍCIA E AS AUTORIDADES DESDE SEMPRE O TOTAL DOMÍNIO DO FACTO E DO PRODUTO ESTUPEFACIENTE.
3 - Ainda que o concluído nos pontos 1 a. 6 se não entenda provado, o que só por dever de oficio se concebe, considerar as penas aplicadas excessivas e desajustadas à conduta, idade, dolo e atenuantes da mesma, sendo as penas drasticamente reduzidas, para pena que se situe no limite mínimo da moldura penal aplicável, numa pena não superior a quatro anos de prisão.
Termina pedindo a anulação ou substituição do acórdão recorrido por outro que o absolva ou a repetição do julgamento por utilização de prova proibida ou a redução da pena. Ainda a devolução do veículo e bens que lhe foram apreendidos.

A magistrada do Ministério Público apresentou resposta conjunta aos recursos dos arguidos H..., F... Q... e R.... Em síntese, concluiu que:
- os recursos são extemporâneos;
- a decisão recorrida está correctamente fundamentada, nomeadamente quanto à não utilização como prova do relatório da acção encoberta;
- não existe nulidade quanto ao depoimento do agente encoberto nem vício algum afecta a perícia efectuada ao telemóveis dos arguidos;
- não existe qualquer dos vícios a que alude o art. 410º, nº 2 CPP que o recorrente, aliás, não concretiza nem violação do princípio in dubio pro reo;
- está correcto o enquadramento jurídico dos factos e são adequadas as penas impostas.

No despacho que admitiu o recurso foi ordenada a notificação do arguido R... para informar se mantinha interesse na apreciação do recurso interlocutório (cfr supra C)).
O arguido veio então referir que mantém interesse na manutenção do mencionado recurso (cfr fls 2262).
Neste Tribunal, o Sr. procurador-geral adjunto deu parecer em que se limitou a “acompanhar” a posição defendida pela magistrada do Ministério Público.
Cumprido o art. 417º, nº 2 CPP (diploma a que pertencem as normas adiante indicadas sem menção de origem) apenas o arguido Ra... respondeu de forma que consubstancia no essencial uma resposta à contra-motivação do seu recurso que fora apresentada pelo Ministério Público na primeira instância.

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3. – Questão prévia respeitante à tempestividade dos recursos dos arguidos H..., F... Q... e R... interpostos da decisão final

A questão está colocada pela magistrada do Ministério Público e tem pertinência.
Deve notar-se, antes de mais, que o acórdão recorrido foi depositado em 2010.09.06 (fls 1867) e que os ditos recursos deram entrada em 2010.10.06 (cfr fls 2005 – email, com anexos).
Tudo está em saber se, nos termos em que se apresentam, é justificado o uso do prazo alargado de 30 dias de que os recorrentes entenderam socorrer-se ou se apenas beneficiariam do prazo normal de 20 dias (art. 411º, nºs 1 e 4).
Sobre o assunto, mais do que esgrimir argumentos convirá citar a jurisprudência do Supremo Tribunal que pela sua normal autoridade se há-de seguir.
Assim, por exemplo, no Acórdão de 2010.03.25 Proc 427/08.0TBSTB.E1.S1 in www.dgsi.pt ) consignou-se o seguinte que vem sendo tido como entendimento pacífico:
I - A partir da reforma operada pela Lei 59/98, de 25-08, pretendendo o recorrente impugnar um acórdão final proferido por tribunal colectivo, pode optar por uma de duas coisas: visando exclusivamente o reexame de matéria de direito – art. 432.º, al. d) – dirige o recurso directamente ao STJ; se não visar exclusivamente este reexame, dirige-o então, de facto e de direito, à Relação (arts. 427.º e 428.º, n.º 1, do CPP), caso em que da decisão desta, não sendo caso de irrecorribilidade, nos termos do art. 400.º do CPP, poderá depois recorrer para o STJ.
II - Neste caso, porém, o recurso – agora puramente de revista – terá que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (da Relação) em matéria de direito, com exclusão dos eventuais vícios, processuais ou de facto, do julgamento da 1.ª instância, admitindo-se que o STJ, em certos casos, se possa abster de conhecer do fundo da causa e ordenar o reenvio nos termos processualmente estabelecidos.
III - A partir de então passou, assim, a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do art. 410.º, n.º 2, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão, e uma outra, mais ampla e abrangente, porque não confinada ao texto da decisão, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades.
IV - No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas als. a), b) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, cuja indagação, como resulta do preceito, apenas se poderá fazer através da leitura do texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo.
V - No segundo caso – impugnação da matéria de facto nos termos dos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP – a apreciação pelo tribunal superior já não se restringe ao texto da decisão, mas abrange a análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431.º, al. b), do CPP.
VI - Esta possibilidade de sindicância de matéria de facto, não sendo tão restrita como a operada através da análise dos vícios decisórios – que se circunscreve ao texto da decisão em reapreciação – por se debruçar sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre, no entanto, quatro tipo de limitações:
- uma limitação decorrente da necessidade de observância por parte do recorrente de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignada na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso;
- a nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, a não vivência do julgamento, sede do contraditório, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
- há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento integral, mas antes um reexame necessariamente segmentado, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo;
- e a reapreciação só pode determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitam uma outra decisão.
De acordo com esta orientação e nos termos que vêm de resto a ser seguidos neste Tribunal o recorrente que pretenda impugnar a matéria de facto há-de dar estrito cumprimento ao disposto nos nºs 3 e 4 do art. 412º e assim: i) indicar os concretos pontos que considerasse incorrectamente julgados; ii) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; iii) e, por referência ao consignado na acta sobre a gravação, as concretas passagens em que se fundasse a sua impugnação.
Ora os recorrentes nada disto fizeram nestes termos e em boa verdade o que pretendem ser impugnação da matéria de facto não passa de mera discordância sobre o modo como a prova foi apreciada, discordância essa que é naturalmente legítima mas que será porventura forçado transformar tecnicamente em impugnação. Mas ainda que se possa considerar como impugnação o que se impõe salientar é que o uso do prazo alargado apenas se justifica quando o recurso tenha por objecto a reapreciação da prova gravada. É isso que taxativamente determina o nº 4 do art. 411º. É a eventual morosidade dessa tarefa pelo detalhe que exige e pela amplitude da prova Note-se por exemplo, que os depoimentos das três testemunhas, membros da PJ que depuseram sobre o que se tornou o ponto central de discussão na audiência de julgamento, a existência de uma acção encoberta, tiveram a duração de 5 horas e 37 minutos. que precise de ser analisada que justifica o alargamento do prazo.
Não foi, porém, o que aconteceu na elaboração dos recursos em causa, como se procurará explicitar.
As suas motivações estão estruturadas de forma semelhante, com largas partes – para não dizer a esmagadora maioria – em que a argumentação é repetida.
Essa estruturação é feita do modo seguinte em todos eles:
I – Da impugnação da matéria de facto com recurso à prova gravada
II – Da verificação dos vícios previstos no Art. 410º do CPP
III – Da acção encoberta Nesta parte se reproduzindo censuravelmente, porque isso é feito sem menção da sua origem (desde fls 2032 a 2042 no recurso do arguido H...; desde fls 2071 a fls 2081 no recurso do arguido Faber; desde 2108 a 2118 no recurso do arguido R...), a parte essencial da argumentação do acórdão do TR Lisboa de 2010.05.25, publicado em www.dgsi.pt, adiante mencionado, sobre a figura do “agente provocador”.
V – Da medida da pena
Por qualquer razão que nos escapa é feita menção no intróito de todas elas a outro título (IV – Do enquadramento jurídico dos factos) que depois não tem desenvolvimento na motivação propriamente dita.
Nas partes que se designam como «I – Da impugnação da matéria de facto provada com recurso à prova testemunhal gravada» as que aqui interessam escrutinar, todos os arguidos impugnam os factos dados como provados sob os nºs 1, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 38 a 41, 48, e 56 a 59.
Além destes, os arguidos F... e H... impugnam também os factos nºs 24, 30 e 31.
Relativamente às impugnações do facto 1 afirma-se (em todas as motivações), que não existe nos autos prova que suporte tal afirmação, seja ela testemunhal seja por meio de documento oficial que se reputa de exigível. E passa-se em seguida, à apreciação da credibilidade da prova, quer sobre um “fax” oriundo de autoridades espanholas (de resto não referido entre os meios de prova quer quanto à inaceitabilidade do depoimento da testemunha Ó.... Nenhuma menção, porém, à indicação de provas que imponham decisão diversa da recorrida ou quanto às concretas passagens de um depoimento gravado, com referência à sua localização, em que se funde a impugnação.
Como é patente, não há a propósito do que se diz ser a impugnação deste facto qualquer transcrição do depoimento da testemunha, limitando-se o recorrente a indicar uma expressão que terá sido proferida, sem indicação do local onde o tribunal possa conferir a autenticidade e fidedignidade dessa afirmação pois é para isso que serve a análise da gravação.
Acresce até – embora tal não seja determinante para a questão do uso do prazo alargado –que também não há qualquer explicitação sobre a existência de uma prova que deva merecer do tribunal de recurso uma consideração especial em relação à avaliação feita no tribunal recorrido e que imponha decisão diversa da recorrida. Não há uma prova que o recorrente entenda que precise de ser ponderada.
Por conseguinte, o que os recorrentes afirmam é que a prova ou não existe ou não tem credibilidade pretendendo assim que se desconsidere o modo como o tribunal nela se estribou.
Mas isso não corresponde de forma alguma ao que se dispõe na al. b) do nº 3 e no nº 4 do art. 412º e, para isso, não tinham direito a usar o alongamento do prazo de recurso de 20 para 30 dias. Insiste-se: o nº 4 do art. 411º refere expressamente que o alargamento do prazo tem lugar quando o objecto do recurso seja a reapreciação da prova gravada e, por isso, a motivação visando essa reapreciação tem de ser feita pelo modo estritamente previsto no nº 4 do art. 412º.
O que fica dito vale para a restante parte das motivações em que se aborda a matéria de facto e a prova respectiva.
Quanto ao ponto 4 dos factos provados que se diz também impugnado, de novo se fazem considerações sobre a quantidade e a qualidade da prova produzida e se alude de forma genérica a uma afirmação que terá sido feita pela testemunha Ó... sem indicação da sua concreta localização.
O mesmo se passa com os pontos 5, 6, 8, 9, 10, 30, 31, 38 a 41, 48, 56 a 59 relativamente aos quais os recorrentes manifestam a sua discordância mas apenas por terem sido dado como provados sem prova consistente ou bastante a seu respeito. De notar que relativamente aos pontos 9, 30 e 31 as impugnações têm também como fundamento não a indicação de qualquer prova que imponha decisão diversa da recorrida mas sim a alegada nulidade do depoimento da testemunha “funcionário Jaime”.
Quanto ao ponto 7 apenas é referido ou que há contradição com outros pontos de facto ou, no tocante a depoimentos prestados somente se menciona, sem qualquer concretização, que foram díspares e não convergentes os depoimentos das testemunhas Ó..., S... e “funcionário Jaime” sobre a localização da mochila contendo droga.
Ora, era por exemplo determinante referir especificadamente em que consistiram essas versões díspares e onde poderiam ser localizadas quando é certo que a testemunha “Jaime” referiu que a droga estava dentro do contentor e a testemunha Ó... foi ainda mais preciso referindo que se tratava de um contentor frigorífico com ananases e que a mochila com a droga estava à entrada, no cimo da primeira palete.
Também as impugnações da matéria de facto respeitante ao ponto 24 têm por base uma afirmação de uma testemunha que nem sequer é identificada (designado como “inspector perito em telecomunicações e responsável pela transcrição e download do conteúdo dos respectivos telemóveis”) partindo-se daí para o que se diz ser a impugnação de “toda a matéria de facto” respeitante às comunicações telefónicas
Por isso, do mesmo modo, relativamente às impugnações deste facto não se justificava o uso do prazo de 30 dias.
É certo que na parte designada como “Da verificação dos vícios previstos no Art. 410º do CPP” são feitas algumas transcrições de depoimentos. Porém isso não satisfaz o exigível. O que se impõe é que o recorrente indique as concretas passagens da gravação (não que as transcreva) em que funda a sua impugnação por forma a que o tribunal de recurso proceda ao controlo dessa prova. A indicação detalhada – “ponto por ponto” Cfr v.g. Acórdão do STJ de 2009.1028, no proc 121/07.9PBPTM in www.dgsi.pt – dos momentos em que são proferidas as afirmações que se pretende que sejam utilizadas justifica-se obviamente num processo como o presente em que um só depoimento tem a duração de aproximadamente de duas horas e meia (e há mais do que um com essa duração). Ora, essa tarefa não foi cumprida apenas se indicando o momento de início e fim dos depoimentos mencionados o que não exige qualquer acréscimo de labor; basta a consulta do “índice” da gravação áudio inserto no CD.
Acresce, decisivamente, que como é sabido a invocação do erro notório na apreciação da prova, vício previsto na al. c) do nº 2 do art. 410º não é o modo correcto e adequado de impugnar a matéria de facto. Como é por demais sabido o erro notório é aquele que não escapa à análise imediata do homem médio ao serem cotejados os factos provados e não provados e a fundamentação que é feita a propósito. Porque esse erro pode advir ou de uma incorrecção evidente da valoração e interpretação dos meios de prova ou quando o tribunal retira de um facto uma conclusão ilógica ou arbitrária, à margem duma análise racional ou em violação das regras de experiência comum tudo porém havendo de resultar e só resultar do próprio “texto e contexto” da decisão recorrida Cfr v.g, entre muitos outros, além do Acórdão supra mencionado na nota 1, ainda os Acs. STJ de 2004.01.07, no proc 03P3213 in www.dgsi.pt e de 2006.07.19, no proc 1932/06, da 3ª secção, com sumário disponível em www.pgdlisboa.pt.
A extemporaneidade destes recursos determina a sua rejeição e determina também a rejeição do recurso interlocutório interposto pelo arguido R....
Dando de barato que o recorrente não deu cumprimento ao que lhe impõe o nº 5 do art. 412º, ou seja, a especificação obrigatória nas conclusões de que mantinha o interesse no recurso retido e apenas o fez na sequência de convite para esse efeito (validamente, portanto, como parece que decorre do nº 3 do art. 417º) o certo é que com a decisão a tomar agora sobre a intempestividade do recurso final se torna insubsistente a possibilidade de apreciar esse recurso ligado como está, por esse pressuposto, àquele outro. Na verdade, é a subida daquele e a sua apreciação que “permitem” que seja apreciado o recurso com subida a final. Se não há recurso validamente interposto da decisão final torna-se óbvio que não pode ser apreciado o recurso interlocutório cujo conhecimento estava dependente da apreciação daquele.
Assim, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 411º, nºs 1, al. a) e 4, 412º, nº 5, 414º, nºs 2 e 3, 417º, nº 6, al. a) e 420º, nº 1, al. b) são de rejeitar os mencionados recursos supra mencionados em 1 C, E, F e G.


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4. – Recurso interlocutório interposto pelo arguido Ra... do despacho proferido a fls 1712-1717 supra mencionado em 1 A)

4.1. - Como já foi referido esse despacho apreciou, indeferindo-o, um requerimento do arguido H... que consta da acta da audiência de julgamento da sessão da tarde de 2010.07.12 (fls 1689 e ss) em que este arguido requereu, além do mais, a junção aos autos do relatório de acção encoberta requerimento esse que foi subscrito nessa parte pelo arguido Ra... ..., argumentando este ainda que a produção de relatos contemporâneos da operação encoberta é requisito da sua legalidade e que o relatório “síntese” posterior ao desenrolar da acção encoberta não pode valer como meio de prova.
A questão da existência da acção encoberta desencadeada pela Polícia Judiciária ao abrigo da Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto, tornou-se dominante no decurso da audiência de julgamento como claramente resulta tanto das actas, como do teor dos recursos interlocutórios e do acórdão como ainda dos recursos da decisão final.

4.2. - Em síntese, do ponto de vista formal, o que se passou foi o seguinte:
4.2.1. - Na sessão da audiência da tarde de 2010.06.07 (fls 1545 e ss), foi levantada pela defesa do arguido Ra... ... a questão da existência de uma acção encoberta mencionada num processo em fase de recurso (281/08.1JELSB) com semelhança factual quanto à intervenção de um agente encoberto designado por “Hugo”, como no caso dos autos;
4.2.2. - Na sequência da determinação do tribunal, o Departamento Central de Investigação e Acção Penal veio informar (fls 1558) que teria havido uma acção encoberta com o nº 36/09.6TELSB.
4.2.3. - Na sessão da audiência de 2010.06.17 (fls 1560 e ss) a magistrada do Ministério Público requereu que fosse junto aos autos o relato da intervenção do agente encoberto e que este prestasse depoimento por vídeoconferência com distorção de imagem e de voz nos termos do disposto nos arts. 5º e 7º da Lei nº 93/99, de 14 de Julho, por força do art. 4º, nº 4 da Lei nº 101/2001.
4.2.4. - A defesa do arguido Ra... ... requereu, ainda na mesma sessão, que fosse determinada a presença da testemunha na audiência e não que ela fosse inquirida de modo a ocultar-se a sua “individualização”. O fundamento para tal foi o de ter havido contacto entre o agente encoberto e os arguidos e ser essencial o reconhecimento mútuo entre estes e aquele.
4.2.5. - Foram deferidos ambos os requerimentos sendo ordenada a junção do relato de acordo com o disposto no art. 4º da Lei nº 101/2001 e determinado que o depoimento do agente encoberto fosse presencial dada a obrigação de tal depoimento decorrer com reserva de publicidade o que acautelaria eventuais exigências de publicidade.
4.2.6. - Em 2010.06.22 (fls 1607) foi junto aos autos um relatório oriundo do processo nº 36/09.6TELSB (acção encoberta) subscrito pelo funcionário de investigação criminal “Jaime” que, de acordo com o seu teor, teria sido o agente encoberto. Esse relatório tem a data de 2010.06.21. Foi assim elaborado por determinação do magistrado do Ministério Público titular do dito processo 36/09.6TELSB (cfr cópia do despacho respectivo a fls 1644) que salientou a circunstância de no âmbito da acção encoberta terem sido sempre comunicados para validação os actos praticados na acção encoberta.
Dele foi dado oportuno conhecimento aos sujeitos processuais.
4.2.7. – O despacho atrás mencionado proferido na acção encoberta nº 36/09.6TELSB determina o seguinte:
«(…) face aos desenvolvimentos verificados no âmbito do julgamento do processo 182/09.6JELSB, há que dar cumprimento ao pedido de remessa de relato documentado a fls 112, já autorizado.
Nestes termos, verificando-se que as informações sobre os actos praticados no âmbito da presente AE e dos seus resultados foram sempre transmitidas, para validação, em informações/relatos dispersos, tendo sido tempestivamente validados todos os actos praticados, determino a entre dos autos à UPAT a fim de ser elaborado relato da intervenção do agente encoberto, separado do relato dos factos posteriores às detenções, com preservação da segurança de todos os intervenientes, devendo cópia de tal relato ser oportunamente remetido/entregue para junção ao processo 182/09.6JELSB».
4.2.7. - Em 2010.06.25 foi junto aos autos (fls 1641) ofício da Polícia Judiciária dando conta de que o funcionário de investigação criminal “Jaime” que actuara como agente encoberto desempenhava então tarefa idêntica no centro do país que e a sua actual fisionomia era já diferente da que tinha aquando da sua intervenção na acção encoberta. Era por isso pedido que o seu depoimento ocorresse com utilização plena dos mecanismos de ocultação da nitidez de imagem e de distorção de voz para não serem postas em risco a sua vida e integridade física.
4.2.8. - Por despacho proferido em 2010.06.25 (fls 1647), notificado aos sujeitos processuais, foram considerados ponderosos os motivos de segurança invocados no ofício referido supra e determinado que o depoimento em causa fosse prestado por videoconferência com observância do disposto no art. 5º, nº 2 da Lei nº 93/99, de 14 de Julho, como efectivamente veio a suceder (acta da audiência de fls 1661-1662). Sobre este despacho não houve da parte dos sujeitos processuais qualquer reacção.
4.2.9. - O despacho recorrido (fls 1712-1717) considerou, em suma ser inútil a diligência pedida por terem já prestado depoimento sobre o âmbito da acção encoberta o funcionário de investigação criminal que actuara como agente encoberto, o inspector-chefe Ó... que chefiou a operação e o coordenador de investigação criminal S... superior hierárquico de ambos. Entendeu, em consequência, que a prova produzida ultrapassava já largamento o objecto do relatório junto.
4.2.10. – No acórdão (a fls 1890-1892) foi decidido como “questão prévia” da fundamentação não ter em conta como meio de prova E não declará-lo nulo ou meio de prova proibido. o relatório junto aos autos supra referido em 4.2.6. Essencialmente porque foi considerado que tal relatório não fora elaborado nas condições previstas na Lei nº 101/2001.

4.3. – Fez bem o tribunal em não considerar o relatório elaborado em 2010.06.21 e junto aos autos como meio de prova de prova a ponderar na decisão da causa mas no cômputo geral a sua intervenção a este respeito no decurso da audiência é passível de alguma crítica.
O art. 3º da Lei nº 101/2001 que estabelece os pressupostos da existência da acção encoberta dispõe:
1 - As acções encobertas devem ser adequadas aos fins de prevenção e repressão criminais identificados em concreto, nomeadamente a descoberta de material probatório, e proporcionais quer àquelas finalidades quer à gravidade do crime em investigação.
2 - Ninguém pode ser obrigado a participar em acção encoberta.
3 - A realização de uma acção encoberta no âmbito do inquérito depende de prévia autorização do competente magistrado do Ministério Público, sendo obrigatoriamente comunicada ao juiz de instrução e considerando-se a mesma validada se não for proferido despacho de recusa nas setenta e duas horas seguintes.
4 - Se a acção referida no número anterior decorrer no âmbito da prevenção criminal, é competente para autorização o juiz de instrução criminal, mediante proposta do Ministério Público.
5 - Nos casos referidos no número anterior, a competência para a iniciativa e a decisão é, respectivamente, do magistrado do Ministério Público junto do Departamento Central de Investigação e Acção Penal e do juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal.
6 - A Polícia Judiciária fará o relato da intervenção do agente encoberto à autoridade judiciária competente no prazo máximo de quarenta e oito horas após o termo daquela.
A acção encoberta que está em causa terá sido desencadeada no âmbito da “prevenção criminal”, de acordo com os nºs 4 e 5 do art. 3º da Lei nº 101/2001 uma vez que, como está documentado, a iniciativa coube ao Departamento Central de Investigação e Acção Penal.
Por seu turno o art. 4º do diploma citado que tem a expressiva epígrafe “Protecção de funcionário e terceiro” determina:
1 - A autoridade judiciária só ordenará a junção ao processo do relato a que se refere o n.º 5 do artigo 3.º se a reputar absolutamente indispensável em termos probatórios.
2 - A apreciação da indispensabilidade pode ser remetida para o termo do inquérito ou da instrução, ficando entretanto o expediente, mediante prévio registo, na posse da Polícia Judiciária.
3 - Oficiosamente ou a requerimento da Polícia Judiciária, a autoridade judiciária competente pode, mediante decisão fundamentada, autorizar que o agente encoberto que tenha actuado com identidade fictícia ao abrigo do artigo 5.º da presente lei preste depoimento sob esta identidade em processo relativo aos factos objecto da sua actuação.
4 - No caso de o juiz determinar, por indispensabilidade da prova, a comparência em audiência de julgamento do agente encoberto, observará sempre o disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo 87.º do Código de Processo Penal, sendo igualmente aplicável o disposto na Lei n.º 93/99, de 14 de Julho.
Parece evidente que a lei não está clara, digamos só assim. Desde logo se se atentar no nº 1 deste artigo 4º constata-se que a menção aí feita ao “relato” a que se refere o nº 5 do art. 3º não é correcta porque nesta disposição não se alude a qualquer relato.
Mas, além disso, a sua obscuridade ressalta ainda num outro aspecto.
De duas uma: ou a acção encoberta decorre no “âmbito de um inquérito” visando a “descoberta de material probatório” sendo a sua autorização da competência do magistrado do Ministério Público titular do inquérito (cfr nº 3 do artigo) – o que não foi caso – com validação dos procedimentos propostos pelo juiz de instrução; ou decorre no âmbito da “prevenção criminal” e a proposta é do “Ministério Público junto do Departamento Central de Investigação e Acção Penal” e a decisão sobre os seus fundamentos e justificação, isto é, se deve ou não ter lugar pertence ao “juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal”, que é a situação que se nos apresenta.
Então, se a acção encoberta tem lugar no âmbito de um processo de inquérito as autoridades judiciárias competentes serão o magistrado titular desse inquérito e o juiz de instrução que haja de ser chamado a nele intervir.
Porém, se a acção encoberta se desenvolve fora de um inquérito – para fins de “prevenção criminal” – as autoridades judiciárias competentes já são outras como mencionado.
Cabe, porém, aqui convocar a lição do prof. Manuel da Costa Andrade “Métodos Ocultos de Investigação (Plädyoer para uma teoria geral)” in “Que Futuro para o Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 2009, pags 530) segundo a qual é notório «o progressivo esbatimento da fronteira entre a investigação/repressão, como actividade própria do processo penal, e a prevenção de perigos como tarefa da polícia». De resto, o Mestre dá conta que a jurisprudência alemão «vem mesmo sustentando a legitimidade de as provas obtidas no cumprimento de actividade de prevenção poderem ser valoradas em processo penal». Outras provas, naturalmente, que não o relato pois quanto a este há limitações não ultrapassáveis como se dirá infra.
Para o que aqui interessa há-de notar-se a circunstância de ter havido um despacho da Sra juíza-presidente considerando «indispensável para a descoberta da verdade e boa decisão da causa … a junção aos autos do relato da intervenção do agente encoberto» (cfr despacho de fls 1562 na sessão da audiência de 2010.06.17) e que, apesar dele, o tribunal teve de contentar-se – é o termo – com um relatório feito a destempo que nada tem a ver com o(s) relato(s) coevo(s) da intervenção do agente encoberto e que este, ou o seu superior hierárquico na operação Isabel Oneto in “O Agente Infiltrado, Contributo para a Compreensão do Regime Jurídico das Acções Encobertas”, Coimbra Editora, 2005, pags 196-197 entende não só que dificilmente poderá existir apenas um relato, como admite ainda que esse relato possa ser feito pelos supervisores da operação com base nas informações que o agente encoberto transmita. , há-de ter apresentado à autoridade judiciária no prazo previsto no nº 6 do art. 3 mencionado.
Estes procedimentos – por um lado a objectiva sonegação dos relatos, por outro a passividade do tribunal – terão sido correctos quando compaginados com os princípios gerais que enformam o processo penal mormente o que consagra o processo penal como de estrutura acusatória integrada pelo princípio de investigação?
Salvo o devido respeito, não!
De acordo com esse princípio da investigação não tem o juiz o poder-dever de investigar e esclarecer autónoma e oficiosamente, para além dos contributos da acusação e da defesa os factos submetidos a julgamento? Não está este princípio consagrado com carácter geral no art. 340º?
Não vigora em processo penal o princípio da suficiência (e está aqui em causa uma vertente desse princípio) de acordo com o qual o lugar adequado ao esclarecimento de todas as questões que se revelem necessárias para a decisão a tomar sobre a determinação da responsabilidade penal é o processo (penal)?
Dir-se-á, porém, que o apelo a um critério de concordância prática das finalidades em conflito – sempre de ponderar – é impossível de contornar e que, por conseguinte, a exigência de protecção da vida e da integridade física do funcionário ou de terceiro (cfr a mencionada epígrafe do art. 4º referido supra) justificaria que os relatos em causa não chegassem ao processo. Claro que seria aceitável esta abordagem mas para isso era preciso que se tornasse absolutamente claro que era esse o fundamento da recusa em fornecer os relatos/informações da acção encoberta. E tal não resulta com a devida evidência do despacho (cfr supra 4.2.7.) que ordenou a feitura de um relatório mais de um ano depois dos acontecimentos ocorridos no âmbito da acção encoberta que vieram a culminar com a detenção dos arguidos. Sublinhe-se, já agora, ser surpreendente um tal despacho ordenando a prática de um acto que se não coaduna com a previsão legal. Cfr a propósito os arts. 2º, nº 2 e 3º, nº 1, als. b) e c) do Estatuto do Ministério Público e art. 53º, nº 1 CPP.
Vale a pena recordar a lapidar e expressiva afirmação da testemunha S... Que foi integralmente escutado, como outros designadamente o do inspector-chefe Ó... e o do funcionário de investigação criminal “Jaime”. no seu depoimento: «O perigo que existia já existiu; a partir do momento em que acção encoberta está descoberta se calhar devemos tirar partido disso».
Porém, apesar do que fica dito a questão, crê-se, não ficaria resolvida mesmo que os relatos da acção encoberta que houvessem de chegar ao processo tivessem sido os “originais”. Há ainda outros aspectos do problema que não foram equacionados.
Qual será na realidade a função do relato feito na acção encoberta? E qual o seu valor probatório?
Ele deverá ser tido, como se afigura, sobretudo ou apenas um meio processual de «permitir o controle da regularidade e legitimidade da actuação oculta nos seus pressupostos e no seu modo de execução e a contextualizar os elementos ou indícios recolhidos nunca podendo conter (nem substituir) o testemunho ou as declarações do agente sobre os eventos observados» Cfr Sandra Oliveira e Silva in “A Protecção de Testemunhas no Processo Penal”, Coimbra Editora, 2007, pag 151 e nota 289.. É nesse sentido que se orienta a doutrina Além de Sandra Oliveira e Silva, ob e loc cit, também Sandra Pereira no estudo “A Recolha de Prova por Agente Infiltrado” in “Prova Criminal e Direito de Defesa, Estudos sobre a Teoria da prova e Garantias de Defesa”, Almedina, 2010, pag 153-154 e Paulo P. Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal …” pag 641, nota 34. considerando que o relato em si enquanto documento descritor daquilo a que o agente assistiu não tem valor probatório, apesar de o citado art. 4º, nº 1 da Lei nº 101/2001 inculcar a ideia de que é possível utilizá-lo “em termos probatórios”, se isso for “absolutamente indispensável”. A este respeito há entendimento pacífico de que a leitura do relato viola os princípios básicos da imediação e do contraditório.
Ora, no caso, o agente encoberto prestou o seu depoimento de forma circunstanciada, como se mencionará infra, melhor cumprindo o desígnio de dar a conhecer o que no seu âmbito se passou com respeito pelos princípios processuais, ainda que com limitações, dada a ocultação de imagem e a distorção de voz, permitidas por lei.
Assim, sendo embora pertinente a questão colocada pelo recorrente acerca da não utilização como meio de prova do relatório junto aos autos sobre a acção encoberta ela acabou ultrapassada pela posição do tribunal de não utilizar o dito relatório, não se justificando a junção aos autos dos relatórios coetâneos do seu desenvolvimento para o fim pretendido pelo recorrente.
Quanto à pretensão da «desvalorização probatória» dos depoimentos das testemunhas S..., Ó... e agente encoberto não se afigura que assista razão ao recorrente.
Como é evidente – basta escutar os depoimentos – as testemunhas depuseram sobre os termos em que decorreu a acção encoberta e não sobre o relatório que está em causa ainda que ao seu teor se possa ter referido circunstancialmente o agente encoberto e apenas ele.
Em face do que se nega provimento ao recurso.

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5. - Recurso interlocutório interposto pelo arguido Ra... ... do despacho proferido a fls 1749-1752 supra mencionado em 1 B)

Pretende o recorrente que seja revogada a decisão que indeferiu o seu pedido para que fosse solicitada à DEA (Drug Enforcement Adminstration) confirmação sobre a sua participação na acção encoberta nomeadamente através da intervenção de um seu colaborador com o nome de código “Donald” ou “Calvo”, como seria conhecido pelos arguidos.
Não se afigura que assista razão ao recorrente. A confirmação da intervenção da DEA, a existir, não esclareceria, por si, a questão que diz pretender dilucidar, a de precisar que papel assumiu o dito “Calvo” no decurso da acção encoberta.
De resto, caberá recordar que, de acordo com o depoimento do inspector-chefe Ó..., o denominado “Calvo” ou “Donald” participou na acção encoberta tendo para tal «sido autorizado pelo Tribunal Central de Instrução Criminal». Além disso, também se impõe frisar que tanto esta testemunha como o coordenador de investigação criminal S... acabaram por confirmar que o contacto com a DEA não foi objecto de formalização e que tudo se resumiu, neste particular aspecto, a uma informação transmitida de uma organização (policial) para outra. Para usar a expressiva afirmação desta testemunha: «Não há ofício da DEA; não tenho eu nem tem ninguém». Não se afigura assim plausível que a DEA confirme seja o que for e, principalmente, muito menos que seja útil essa informação para o fim que o recorrente pretenderia alcançar, o de saber se houve ou não uma actuação daquele no papel de agente provocador.
Entende-se, assim que este recurso não merece provimento.

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6. - Recurso da decisão final interposto pelo arguido Ra... ... do despacho proferido a fls 1712-1717 supra mencionado em 1 D)

6.1. - O resultado do julgamento quanto aos factos provados e não provados e respectiva fundamentação foi o seguinte:

6.1.1. – Factos provados (transcrição)

1. Em data não exactamente apurada, mas por volta de 24/25 de Março de 2009, a DEA (Drug Enforcement Administration, dos EUA), através do seu escritório em Madrid, solicitou a cooperação das autoridades policiais e judiciais portuguesas para intervirem numa operação de tráfico de cocaína, levada a cabo por determinada organização;
2. No âmbito desta operação tinha sido introduzida num contentor, transportado no navio C… P…, proveniente da Colômbia, cuja chegada ao porto de Lisboa estava prevista para 29 de Março de 2009, uma mochila contendo cerca de 25 quilogramas de cocaína;
3. Este produto destinava-se a ser retirado contentor antes de ser entregue ao destinatário final;
4. Para tal, elementos da referida organização, contactaram, em circunstâncias não totalmente apuradas, um indivíduo colaborador da DEA (referenciado pelos arguidos como “Calvo”, a que a acusação alude como “terceiro de identidade desconhecida” e que doravante se designará por “Calvo”) no sentido de angariar por seu intermédio alguém com acesso a conhecimentos portuários a aduaneiros que pudesse retirar a cocaína do interior do contentor, que já se encontrava expedido;
5. Na sequência desta informação a Polícia Judiciária, com a supervisão das autoridades judiciárias competentes, desencadeou uma operação policial vulgarmente designada por “acção encoberta” ou “acção de agente encoberto” visando controlar o acesso à droga de quem se deslocasse a Portugal a mando da organização.
6. E indicou um funcionário de investigação criminal que nos autos se identificou como “Jaime” (referenciado pelos arguidos pelo nome de “H..” e que adiante será designado por “funcionário Jaime” como sendo a pessoa com conhecimentos portuários e aduaneiros capaz de retirar o produto do contentor quando este chegasse ao Cais de Lisboa
7. A 30 de Março elementos da Polícia Judiciária verificaram a chegada do C... P... ao porto da Liscont em Lisboa, e com a cooperação da DGAIEC, abriram o contentor SUDU6010704, do qual retiraram uma mochila com 25 embalagens de cocaína com o peso bruto de 26, 250 quilogramas;
8. De seguida informaram a DEA e o seu colaborador que a droga tinha sido retirada do contentor;
9. Nesses contactos ficou combinado que, a mando da organização, se deslocariam a Portugal vários indivíduos para negociar o recebimento da cocaína e assegurar o seu transporte;
10. Para recolher a cocaína e efectuar o seu transporte para Espanha, no dia 6 de Abril deslocaram-se a Portugal, a mando da organização, os arguidos R..., Ra... ..., F... Q... e H..., todos residentes em Espanha, encontrando-se os dois últimos arguidos acompanhados, por razões não totalmente apuradas, pela arguida Y...;
11. Para o efeito, os arguidos utilizaram as seguintes viaturas automóveis:
- Opel Astra, matrícula 0000 CZN, em nome de L…;
- Audi A3, cinzento, matrícula 0000 CYJ, em nome de A…;
- Audi A3, azul, matrícula 0000 CDD, em nome de S…;
12. Os arguidos R... e Ra..., viajaram desde Espanha para Portugal, no Audi A3 azul, propriedade do primeiro;
13. Os arguidos F... Q... e H..., acompanhados pela arguida Y..., viajaram, de Espanha para Portugal, no Opel Astra cinzento;
14. Ao chegar a Portugal, o arguido Ra... adquiriu, no Estoril, o Audi A3 cinzento;
15. Entretanto a Polícia Judiciária, tendo obtido a informação de que alguns dos arguidos iriam ficar alojados no Parque das Nações, montou uma operação de vigilância no Centro Comercial Vasco da Gama.
16. Ao fim da tarde de dia 6, os arguidos R...l e Ra... deslocaram-se, no Audi A3 cinzento, ao Centro Comercial Cascaishopping, onde compraram dois telemóveis com os números: 000 000 017 e 000 000 049.
17. De seguida o arguido Ra... ligou o telemóvel com o número 000 000 049 e fez três chamadas.
18. A primeira, às 18h 09 para o número 000 000 017, o telefone que ficou com o arguido R…, a segunda e a terceira, pelas 18h10, no mesmo minuto, para o número 0000. 000 000 481, um telefone espanhol também pertencente ao arguido R....
19. O arguido R... também fez chamadas, logo após a aquisição dos telemóveis.
20. Do número que lhe coube - 000 000 017 - fez, pelas 18H08, uma chamada para um número espanhol: 0000. 000 000 289.
21. Pelas 18H24 a arguida Y... recebeu, via SMS, a indicação do número 000 000 017 do telemóvel, adquirido no Cascaisshopping pelo arguido R....
22.O SMS, foi enviado através de um número que, na agenda do telemóvel da arguida Y... pertence a alguém com o nome de “Rrepe” ou identificado por “Rrepe” (0000. 000 000 169).
23. Na sequência desta troca de contactos, o arguido F... telefonou, através do número 0000. 000 000 295, para o número português de R...:
000 000 017, combinando um encontro no Centro Comercial Vasco da Gama (doravante designado por CCVG).
24. Esta chamada foi efectuada pelas 18H27, três minutos depois da arguida ter recebido o SMS acima referido.
25. Após a deslocação ao Cascaishopping, os arguidos Ra... e R... fizeram check-in no Hotel V..., no Estoril.
26. Ainda na noite de 6 de Abril, pelas 23H00, no CCVG o “Calvo” encontrou-se com o arguido F..., com quem já mantivera contacto em Espanha por intermédio de um indivíduo chamado Juan Carlos;
27. Tendo ficado combinada a entrega do produto estupefaciente para o dia seguinte, 7 de Abril de 2009.
28. No fim do encontro, os arguidos R... e Ra... foram para o Hotel V..., no Estoril, e os restantes arguidos, para o hotel VE..., no Parque das Nações, em Lisboa.
29. Os quais registaram a entrada no hotel, em nome da arguida, cerca da 01H20 de dia 07.04.2009.
30. Por volta da 1h. 40m. do dia 7 de Abril de 2009 os arguidos F... e H... encontraram-se no átrio do hotel VE... com o “funcionário Jaime” e com o “Calvo”;
31. Nesse encontro o “Calvo” apresentou o “funcionário Jaime” aos arguidos F... e H..., tendo sido discutidas diversas condições da entrega do produto estupefaciente, nomeadamente o serviço prestado, e mantido o combinado encontro na manhã seguinte;
32. Nesse mesmo dia de manhã, o Opel Astra cinza com a matrícula espanhola 0000 CZN, estava estacionado no parque do Hotel VE....
33. Cerca das 11H00, esta viatura saiu do estacionamento do hotel, transportando os arguidos F..., Y... e H....
34. E entrou para o estacionamento subterrâneo da Gare do Oriente, muito perto do hotel de onde saiu.
35. Cerca das 11H40, estavam estacionados, sem ocupantes, junto do AKI da Gare do Oriente, o Audi A3, de cor cinza, com a matrícula 0000 CYJ e o Audi A3, de cor azul com a matrícula 0000 CDD.
36. Pelas 12H05, aproximaram-se das viaturas Audi, os arguidos F..., R... e Ra..., juntamente com o “Calvo”.
37. Os arguidos F..., R... e Ra... seguiram apeados em direcção ao CCVG e o funcionário Jaime e o Calvo entraram para a viatura Audi azul.
38. Logo após a entrega do Audi azul ao Calvo e ao funcionário Jaime, os arguidos R..., F..., Y... e H... efectuaram e receberam chamadas para telefones espanhóis.
39. Deste modo:
- a arguida recebeu e efectuou uma chamada para Rrepe, mencionado no ponto 22;
- o arguido F... fez uma série de chamadas para um indivíduo de nome Paisa, 0000. 000 000 841;
40. O arguido H... esteve ao telefone com a mesma pessoa que o arguido, F..., o utilizador do número 0000. 000 000 841 e com outra pessoa que dá pelo nome de Maru com o número 0000. 000 000 577;
41. O arguido R... telefonou à mesma pessoa a quem tinha feito a primeira chamada do telefone logo que o adquiriu, o utilizador do número espanhol 0000. 000 000 289 mencionado no ponto 20.
42. No caminho para o CCVG, os arguidos F..., R... e Ra... separaram-se.
43. O arguido Ra... subiu a escada para o primeiro andar da gare, enquanto o arguido F... e R... permaneceram juntos no piso térreo.
44. Já no final da gare, os arguidos F... e R... subiram ao primeiro andar e juntaram-se ao arguido Ra....
45. Dentro do CCVG, os arguidos F..., Ra... e R... juntaram-se à arguida
Y... e ao arguido H..., que os esperavam no interior do CCVG, tendo almoçado todos juntos.
46. Logo após o almoço os arguidos começaram a circular no interior do Centro, mas os arguidos Y... e H... mantinham distância do restante grupo.
47. Cerca das 15H00, os arguidos F... e Ra... saíram do CCVG e dirigiram-se para junto do AKI da Gare do Oriente.
48. Ocasião em que o arguido H... recebeu duas chamadas que tiveram origem nos mesmos números espanhóis com quem comunicou quando o carro foi entregue ao funcionário Jaime: 0000. 000 000 841 e 0000.000000577.
49. Os arguidos F... e Ra..., quando saíram do CCVG, deslocaram-se para o mesmo local onde haviam entregue a viatura Audi A3 azul.
50. Passados poucos minutos, o “Calvo”, recolheu-os nesse local e encaminhou-os, a pé, para um parque de estacionamento, coberto, situado nas traseiras do hotel TT, junto da gare do Oriente.
51. Os restantes arguidos permaneceram, todos juntos, no interior do Centro.
52. Os arguidos Ra..., F... e o “Calvo”, dirigiram-se, apeados, ao encontro do Audi azul e do “funcionário Jaime”, que os esperava no piso 2 do referido parque de estacionamento.
53. O “funcionário Jaime” e o arguido Ra... entraram para o banco de trás do Audi, de onde o primeiro tirou vinte e cinco pacotes de cocaína dos forros laterais da viatura, para que fossem contados.
54. No exterior da viatura, o arguido F... e o “Calvo” esperavam que o arguido Ra... desse a contagem dos pacotes de cocaína por terminada.
55. Pelas 15H30, o arguido F... e o “funcionário Jaime”, juntamente com o “Calvo”, abandonaram o parque apeados, ficando o arguido Ra... dentro da viatura.
56. Nesta altura, foram efectuadas diversas chamadas telefónicas entre os arguidos R..., Ra..., F... e H....
57. O arguido R... comunicou com o arguido Ra..., enquanto que o arguido F... ligou para o arguido H....
58. O arguido H... trocou ainda algumas chamadas com Espanha, voltando a falar com Maru, através do número 0000.000000577, e após o telefonema do arguido F..., telefonou imediatamente para o número 0000. 000 000 841.
59. Os mesmos números com quem tinham comunicado aquando da entrega do Audi A3 azul para ser carregado de cocaína.
60. O “Calvo” e o “funcionário Jaime” abandonaram o parque, e apanharam um táxi, para a zona dos Olivais onde chegaram às 15H40.
61. Enquanto isso, o arguido Ra... permaneceu dentro do Audi A3 azul, a arrumar os pacotes de cocaína.
62. De seguida conduziu a viatura do interior do estacionamento para junto do Audi cinza, onde já se encontrava o arguido R....
63. Quando o arguido Ra... chegou junto do arguido R..., que entretanto se havia deslocado sozinho para perto do AKI da gare do Oriente, saiu do Audi Azul, entrou no Audi Cinza e iniciou marcha.
64. Por seu turno o arguido R..., ao volante do Audi azul, seguiu atrás do arguido Ra....
65. A saída da zona de Lisboa fez-se sempre com o arguido Ra... à frente, no Audi cinzento, seguido de perto pelo arguido R..., no Audi azul.
66. Os arguidos Ra... e R..., dirigiram-se para sul, pela Ponte Vasco da Gama, e quando entraram para abastecer, na área de serviço de Alcochete, foram interceptados por elementos da Policia Judiciaria.
67. Precisamente na última paragem antes de território espanhol, tendo em conta a rota para Sevilha marcada no GPS do carro Audi conduzido pelo arguido R....
68. Entretanto, pelas 16H10, os arguidos F..., Y... e H..., que tinham ficado na zona do Parque das Nações, regressaram ao Opel Astra.
69. Já no parque de estacionamento os arguidos F... e H... efectuaram manobras de contra-vigilância, com passagens rentes à viatura sem entrar de imediato na mesma, com o objectivo de verificar se estavam a ser seguidos.
70. À saída do parqueamento, já dentro da viatura Opel Astra, com a matrícula 0000 CZN, os arguidos F..., H... e Y... foram abordados por inspectores da Policia Judiciária.
71. Na viatura conduzida pelo arguido R... - Audi A3 azul, - foram apreendidos:
- vinte e cinco embalagens tipo tijolo, contendo cocaína, dissimuladas no interior dos forros laterais da viatura, com o peso bruto de 26391, 985 gramas e liquido de 26 391, 464 gramas;
- um GPS da marca Tom Tom que apresentava uma rota até ao centro de Sevilha.
- dois telemóveis de marca LG;
- a quantia monetária de € 185;
72. O arguido tinha ainda consigo, a quantia monetária de €100, que examinada se concluiu tratar-se de reproduções conseguidas através de impressão offset e impressão policromática de jacto de tinta.
73. O arguido Ra..., tinha dentro da viatura em que se deslocava-Audi A3 cinzento, matrícula espanhola 0000 CYJ:
- quatro telemóveis;
- duas caixas de plástico da operadora Optimus, dos telemóveis números 934498649 e 930000017. Estes números correspondem aos telefones adquiridos ao fim da tarde de 06.04.2009 no Cascaishopping e serviram para a maior parte dos contactos entre os elementos do grupo em território nacional;
- a quantia monetária de € 1 730,00;
- um GPS;
74. O arguido Ra... tinha ainda consigo, um telemóvel de marca LG, a quantia monetária de € 255 e um guardanapo de papel com o n.º 35194981794 manuscrito, bem como os objectos melhor descritos no auto de apreensão de fls. 48, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
75. O arguido F..., trazia, um telemóvel Nókia, um cartão de entrada do Hotel VIP Executive, em nome de M…, referente à estadia de 6 e 7/04/2009, bem como os documentos e objectos melhor descritos a fls. 63, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
76. Ao arguido H..., dentro da viatura em que se deslocava - Opel Astra cinzento, matrícula espanhola 0000 CNZ - foram apreendidos
- :três telemóveis;
- um comprovativo de pagamento de seguro da viatura 0000CNZ, em nome
do arguido H....
- o comprovativo da sujeição da viatura 0000CNZ à inspecção técnica e a autorização de circulação da mesma;
- demais documentação, melhor descrita no auto de apreensão de fls. 99 e 102, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido
77. O arguido H... trazia ainda consigo:
- um telemóvel, da rede Vodafone;
- a quantia monetária de € 200;
- setenta e um dólares;
- demais documentação, melhor descrita no auto de apreensão de fls. 105, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
78. A arguida Y... tinha em seu poder:
- três telemóveis;
- trinta e quatro mil oitocentos e quinze pesos colombianos;
- um papel com dizeres manuscritos, conforme resulta do auto de apreensão de fls. 131, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
79. Os arguidos R..., Ra..., F... Q... e H... conheciam a natureza estupefaciente e características da cocaína que vieram recolher a Portugal, nas circunstâncias referidas, e transportar para Espanha.
80. Agiram livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram criminalmente punidas por lei.
81.As quantias monetárias apreendidas ao arguido R... e F..., os telemóveis apreendidos aos arguidos R..., Ra..., F... e H... e o veículo automóvel apreendido ao arguido R..., foram utilizados para o transporte da cocaína.
82. Os arguidos não têm qualquer ligação a Portugal, não tendo aqui família, amigos ou emprego.
83. Apenas entraram em território nacional para daqui transportarem a cocaína, para Espanha.
Sobre as condições pessoais dos arguidos apurou-se que:
84. O arguido R... tem 38 anos de idade;
85. Cresceu num ambiente familiar desestruturado fortemente condicionado pela problemática de alcoolismo do pai;
86. Assistiu e foi vítima de frequentes episódios de violência doméstica infligidos pelo pai;
87. Foi institucionalizado com os seus irmãos quando tinha 2 anos de idade;
88. Na instituição recebia visitas esporádicas da família;
89. Concluiu com aproveitamento um curso de formação profissional na área da metalurgia e mecânica automóvel;
90. Iniciou a actividade profissional muito cedo, na área da jardinagem, mais tarde trabalhou com um tio na construção civil e posteriormente com um irmão - proprietário de uma empresa de transportes - como motorista;
91. Há cerca de 2 anos começou a trabalhar por conta própria na compra e venda de automóveis através da Internet;
92. Vive com uma companheira há 15 anos e tem dois filhos desta relação, um com 15 anos de idade e outro com 18 meses;
93. Antes de ser detido vivia numa casa de realojamento camarário;
94. Recebe visitas da companheira com frequência;
95. Em Portugal não tem condenações averbadas no CRC;
96. Em Espanha sofreu as seguintes condenações:
Em 26/6/1992 foi condenado, por decisão transitada em 7/7/1992, por um crime de roubo na pena de 8 meses de prisão suspensa.
Em 21/5/1993 foi condenado, por decisão transitada em 24/5/1993, por um crime de falsificação numa pena de multa;
Em 30/1/1995 foi condenado, por decisão transitada em 13/2/1995, por um crime de tráfico de estupefacientes na pena de 20 meses de prisão e um milhão de pesetas de multa;
Em 24/4/1998 foi condenado, por decisão transitada na mesma data, por um crime de receptação na pena de 1 ano de prisão substituída por multa;
97. O arguido Ra... ... tem 30 anos de idade;
98. Os pais, separados desde os 10 anos de idade do arguido, proporcionaram-lhe sempre uma vivência calma, afectuosa e economicamente privilegiada (pai psicólogo; mãe, professora de biologia);
99. Concluiu doze anos de escolaridade sem reprovações;
100. Fez formação como montador de estruturas aeronáuticas;
101. Começou a trabalhar, com alguma estabilidade e consistência, numa loja de telemóveis;
102. Dois anos depois concorreu para a Airbus Military, firma de montagem de estruturas finais de aviões, onde foi admitido;
103. À data da detenção vivia com a mãe e mantinha uma relação afectiva perspectivando fazer vida em comum com a namorada num apartamento que lhe seria cedido pelo pai;
104. Na Airbus Military é estimado e conceituado pelas suas prestações profissionais e características pessoais;
105. Auferia, por mês, 3.000 €;
106. Tinha uma situação económica desafogada;
107. A mãe visita-o no EP todas as semanas;
108. O pai, inicialmente também o visitava todos os fins de semana mas, por problemas de saúde, deixou de o fazer prestando-lhe, porém, todo o apoio;
109. Teve problemas de adaptação ao EP que foram, contudo, ultrapassados com a transferência para outro reduto;
110. Não tem averbadas condenações no CRC português;
111. Em Espanha tem registada uma condenação de 7/11/2007, por decisão transitada em julgado na mesma data, por um crime de burla, numa pena de 6 meses de prisão suspensa;
112. O arguido F... tem 34 anos de idade;
113. A infância e a adolescência do arguido decorreram de forma harmoniosa estimulando os pais a valorização dos seus filhos;
114. Completou 11 anos de escolaridade;
115. Aos 12 anos começou a trabalhar para ajudar os pais que tinham algumas dificuldades;
116. Trabalhou como empregado de bar, explorou com o pai um bar com jogo de bilhar, trabalhou no sector de vendas de viaturas, casas e terrenos e como taxista;
117. Aos 24 anos emigrou para Espanha com a sua companheira, com quem vive em união de facto;
118. À data dos factos vivia com a companheira na zona de Madrid;
119. Têm dois filhos com 7 e 2 anos de idade;
120. Durante os 10 anos de permanência em Espanha o arguido trabalhou na construção civil, como condutor, empregado de bar e, em simultâneo estabeleceu-se por conta própria, explorando uma loja de venda/reparação de produtos de telecomunicações;
121. Em 2008/2009 a sua situação económica agravou-se;
122. No EP recebe visitas bimensais da companheira que lhe tem prestado todo o apoio;
123. É tido pela família e amigos como uma pessoa trabalhadora;
124. Não tem condenações registadas (em Portugal ou Espanha);
125. O arguido H... tem 42 anos de idade;
126. O percurso escolar do arguido decorreu sem incidentes;
127. Abandonou os estudos aos 20 anos de idade no primeiro ano do Ensino Superior do Curso de Administração de Empresas;
128. Emigrou para Espanha há cerca de 11 anos, para se juntar à mãe, mulher e filho actualmente com 19 anos, que aí se tinham fixado;
129. Separou-se da mulher há 8 anos e encetou novo relacionamento afectivo há cerca de 5 anos;
130. À data dos factos vivia com a companheira e uma enteada e trabalhava, com contrato efectivo, numa empresa de telecomunicações;
131. No EP tem sido visitado pela enteada e cunhados;
132. Não tem condenações registadas (em Portugal ou Espanha);
133. A arguida Y... tem 30 anos de idade;
134. A sua infância decorreu em ambiente austero face ao carácter autoritário e dominador do pai que infligia maus tratos à mulher;
135. Na sequência da morte do pai num acidente de viação e mãe estabeleceu novo relacionamento e com o novo marido e os filhos deslocou-se para outra cidade onde se estabeleceu no sector dos têxteis.
136. A arguida começou a revelar nessa altura dificuldades de adaptação;
137. Após dez anos de escolaridade e uma pequena experiência laboral, aos 16 anos de idade iniciou a prática da prostituição, registando neste contexto algumas saídas do país por curtos períodos de tempo;
138. Em 2001, com 20 anos de idade, emigrou para Espanha, onde residia a irmã e envolveu-se nos meios da prostituição;
139. Trabalhou em diversos clubes em várias cidades espanholas;
140. Tem uma filha do relacionamento com R... Q... com o qual viveu cerca de três anos em união de facto;
141. No EP recebe visitas mensais do R...;
142. A filha está entregue aos cuidados da irmã.

6.1.2. – Factos não provados (transcrição):

Não se provaram os factos alegados, contrários ou diversos dos que foram dados como provados, nomeadamente, com interesse para a decisão da causa, não se provou que:
Os arguidos R..., Ra... ..., F... Q..., H..., e Y..., juntamente com outros indivíduos, de identidade desconhecida, se tivessem unido em grupo, em data indeterminada, mas seguramente já em 06 de Abril de 2009, para, de forma concertada, efectuarem transporte de cocaína, para Espanha, através de Portugal, com vista à sua comercialização e obtenção de benefícios económicos.
Dentro do grupo constituído pelos arguidos, tivesse sido efectuada a repartição de tarefas que cada um teria que levar a cabo e que os arguidos, entre si, se tivessem repartido em dois grupos e traçado um plano, previamente acordado entre todos, de recolha da cocaína em Portugal;
Os arguidos tivessem constituído entre si, e com os demais indivíduos, não identificados, um grupo organizado, com ligações a Espanha e Colômbia, actuando sempre, nos moldes descritos, em comunhão de esforços e união de vontades destinados à prática do crime de tráfico de estupefacientes com a finalidade comum de obterem avultados benefícios económicos que sabiam não lhes ser devidos;
A Y... tivesse acompanhado os arguidos F... e H... a Portugal para, para recolher a cocaína e assegurar o seu transporte para Espanha;
O arguido R... soubesse que transportava notas falsas, que pretendia colocar em circulação, como se de verdadeiras se tratassem.
As quantias monetárias apreendidas aos arguidos Ra..., H... e à arguida Y... fossem provenientes da actividade de transporte da cocaína;
Os veículos AudiA3 de matrícula 0000CYJ e o OPEL ASTRA, de matrícula 0000C2N e os demais objectos apreendidos aos arguidos, tivessem sido utilizados no transporte da cocaína.
___________________________________
Da matéria descrita na acusação foram retirados do elenco dos factos provados ou não provados todos os factos irrelevantes e conclusivos.

6.1.3. – Fundamentação da matéria de facto (transcrição)

A convicção do tribunal, quanto aos factos que deu por assentes, formou-se com base no conjunto da prova produzida, na audiência de julgamento, e respectiva apreciação critica à luz das regras da experiência comum e da normalidade social.
Questão prévia sobre validade do relatório de fls. 1208 subscrito pelo funcionário de investigação criminal “Jaime”.
Na sequência de requerimento apresentado, na sessão do passado dia 7 de Junho, pela defesa dos arguidos Ra... e H..., e subscrito pelos restantes arguidos, foi solicitada à Directoria Nacional da Policia Judiciária informação sobre se na investigação destes autos existiu uma acção encoberta (AE).
Confirmada pelo DCIAP (Departamento Central de Investigação e Acção Penal) a existência dessa acção, identificada a fls. 1558 por AE nº 36/09.6TELSB foi solicitado ao DCIAP o relato da intervenção do agente encoberto e foi decidido ouvir o próprio agente.
Em 22/6/2010 foi junto aos autos um documento intitulado “Relatório”subscrito pelo funcionário de investigação criminal “Jaime” com data de 21 de Junho de 2010 (cfr. fls. 1608).
Sobre esse relatório, e sobre o facto de ter a data de 21 de Junho de 2010, informou o DCIAP, a pedido do Tribunal, que as informações sobre os actos praticados no âmbito da AE e dos seus resultados, foram sempre transmitidas, para validação, em relatos dispersos, tendo sido tempestivamente validados todos os actos praticados e que por determinação do Sr. Procurador da República subscritor do despacho de fls. 1644 foi elaborado relato - o denominado “relatório” - da intervenção do agente encoberto, separado do relato dos factos posteriores às detenções, com preservação da segurança de todos os intervenientes.
Na sessão de dia 1 de Julho a defesa do arguido Ra... ... requereu que o relatório de fls. 1608 não fosse admitido como prova válida da diligência.
Os restantes arguidos subscreveram este requerimento.
O Ministério Público sustentou que o facto de o agente encoberto efectuar um relato com base nas informações validadas em tempo, tem a ver com a necessidade de preservar a segurança da operação e a dos intervenientes, facto esse que infelizmente não vem sendo entendido como objecto primordial da existência de uma acção encoberta, sendo certo que tal forma de actuação é perfeitamente legal, o contrário não resultando da Lei.
O Tribunal, por entender que, quer o agente encoberto, quer o então inspector coordenador das acções encobertas poderiam eventualmente prestar esclarecimentos adicionais sobre as circunstâncias em que o relatório e os relatos tinham sido efectuados, relegou para final o conhecimento da arguida invalidade desse relatório.
Sobre esta questão o agente encoberto e os dois inspectores limitaram-se a corroborar a informação prestada pelo DCIAP.
Coloca-se agora a questão de saber se o relatório remetido pelo DCIAP, subscrito pelo “funcionário Jaime” com data de 21/6/2010 - mais de um ano depois da AE ter tido lugar - relatando, nesta data, a sua intervenção, deve ser admitido como elemento probatório no âmbito da acção encoberta.
Prevê o artº 4 da Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto (que aprovou o regime jurídico das acções encobertas) que, caso se mostre absolutamente indispensável em termos probatórios, a autoridade judiciária pode determinar a junção aos autos do relato da intervenção do agente encoberto, elaborado nos termos do disposto no artº 3/6 da mesma lei, e/ou mediante decisão fundamentada, autorizar que o agente encoberto que tenha actuado com identidade fictícia preste depoimento sob esta identidade em processo relativo aos factos objecto da sua actuação.
Dispõe-se, por seu turno, no citado artº 3/6 que a Polícia Judiciária fará o relato da intervenção do agente encoberto à autoridade judiciária competente no prazo máximo de quarenta e oito horas após o termo daquela (acção encoberta).
Daqui decorre que o documento remetido pelo DCIAP não obedece aos requisitos previstos neste preceito legal e foi elaborado muito depois da acção encoberta ter terminado.
E, assim, afigura-se-nos que, tal como refere o arguido Ra... ..., o relatório remetido pelo DCIAP, na medida em que não é o relato da intervenção do agente encoberto elaborado nas condições previstas na Lei 101/2001, não deve ser considerado como prova válida dessa acção.
Razão pela qual, na motivação da matéria de facto que se seguirá, não será tido em conta esse relatório.
______________
Posto isto, passaremos então à análise da prova produzida em julgamento, a qual teve dois momentos distintos que importa considerar.
Um primeiro momento, no decurso do qual foram ouvidos os arguidos R... e F... – únicos que, no início, quiseram prestar declarações – e os inspectores da Polícia Judiciária, que integraram as brigadas que efectuaram as vigilâncias no Centro Comercial Vasco da Gama (CCVG) e o seguimento dos arguidos que acompanharam os seus movimentos durante o dia 7 de Abril e procederam à sua detenção e apreensão da cocaína realçando-se, neste particular, o depoimento do inspector T... que coordenou a “operação policial no terreno”.
Um segundo momento, que teve lugar logo depois de se ter tido conhecimento da existência de uma acção encoberta - promovida ao abrigo da Lei 101/2001 de 25 de Agosto - a partir do qual a discussão se centrou nessa acção e nos seus contornos. Foi solicitado o relato da acção encoberta que, no final, pelas razões já indicadas acabou por se mostrar desnecessário, e foram ouvidos, o inspector coordenador J..., o agente encoberto, identificado pelos arguidos por “Hugo”, e conhecido nos autos por “funcionário Jaime”, o inspector coordenador das acções encobertas (S...) e o inspector chefe Ó....
Neste segundo momento, e já na sequência destes últimos depoimentos, o arguido Ra... prestou declarações e o arguido F... prestou declarações adicionais para rebater algumas das afirmações feitas pelo “funcionário Jaime”.
Esta testemunha foi ouvida por teleconferência com distorção de voz e imagem ao abrigo do artº 15 da Lei 93/99 (Lei de protecção de testemunhas) e respondeu a todos os pedidos de esclarecimento apresentados pela acusação e defesa.
Um parêntesis apenas para referir que, sobre o nome do agente encoberto, a prova produzida em julgamento não foi conclusiva, razão pela qual adoptámos o nome de “funcionário Jaime”, nome pelo qual o agente encoberto se apresentou nos autos e prestou depoimento em julgamento.
Com efeito, agente afirmou, de modo peremptório, que se apresentou aos arguidos pelo nome de “Vieira”. Os arguidos R... e F... insistiram que o agente encoberto lhes foi apresentado pelo nome de Hugo e que estavam convencidos de que era esse o seu verdadeiro nome.
Este nome, pelo qual na acusação é identificado o agente encoberto (como “arguido Hugo”) , surge na fase de inquérito e é transposto para a acusação e para o despacho de pronúncia.
Dos autos resulta que os arguidos vêm associando este processo a um outro (ou uns outros…) que correu termos na 8ª Vara Criminal (proc. nº 281/08.1JELSB) apontando semelhanças entre estes processos nos quais se confirmou existirem acções encobertas. Ora, no processo da 8ª Vara um dos intervenientes, que actuou como agente encoberto, era identificado por “Hugo”.
Não é de estranhar que, neste contexto, tenha surgido o nome de “Hugo”, sendo até possível que os arguidos tenham associado as várias situações e tenham concluído que o agente seria o mesmo e que - por improvável que pareça face às medidas de segurança de que se deverão revestir este tipo de acções de forma a evitar que o agente corra algum tipo de risco - se teria identificado pelo mesmo nome. Menos se estranha se tivermos em conta que os arguidos F..., H..., R... e Ra... contactaram com o agente encoberto apenas em três ocasiões – uma primeira vez na noite de dia 6 e duas no dia 7 de Abril, sempre durante poucos minutos, admitindo-se que, perante a situação em que se encontravam, de alguma tensão e nervosismo por recearem que estivessem a ser seguidos ou vigiados, não tenham sequer fixado o nome do agente.
Feita esta breve introdução, muito sucintamente diremos, reportando-nos àquele primeiro momento, que sobre a detenção e transporte da droga a prova produzida não ofereceu dúvidas.
É inequívoco que o arguido R... transportava, no Audi A3 azul cerca de 25 Kg de cocaína e que se preparava, quando foi interceptado pelas autoridades policiais portuguesas, para levar a substância estupefaciente para Espanha.
Já quanto ao envolvimento dos vários arguidos na operação de tráfico que está em causa nestes autos, registaram-se significativas divergências entre os arguidos e os inspectores da Polícia Judiciária.
A prova iniciou-se, como foi dito, com as declarações dos arguidos R... e F..., que embora tenham admitido que sabiam que estava em causa um negócio de droga - o F... terá sabido logo em Espanha, em circunstâncias que adiante analisaremos, o R... já em Portugal - contaram histórias pouco verosímeis e, como veremos, contraditadas por muito outros elementos probatórios e pelas regras da experiência comum.
Ambos fizeram um esforço notório para não envolver os outros três arguidos nessa operação de tráfico.
E, assim, o arguido R..., começou por dizer que em Espanha se dedica à compra e venda de carros, estava a dever 12.000 €. Comprou um carro – o Audi Azul – por 7.000/8000 € dois meses antes de vir a Portugal.
Entrando em contradição com declarações prestadas em primeiro interrogatório, com as quais foi confrontado nos termos legais, disse que dois meses antes de vir a Portugal comprou um Audi Azul que nada tinha a ver com o transporte da droga uma vez que só soube que tinha de fazer esse transporte no dia 6 de Abril, ao fim da tarde, quando já estava em Portugal e depois do Ra... ter adquirido o Audi cinzento.
Sobre as razões da sua vinda a Portugal acompanhado pelo arguido Ra... ..., a versão do arguido não nos mereceu o menor crédito. Teria supostamente vindo acompanhar o Ra..., de quem é amigo há vários anos, que lhe pediu para lhe arranjar um carro. Arranjou-lhe um Audi (de matrícula espanhola) através de um indivíduo que conheceu em Espanha que lhe propôs a realização do negócio. Sabia que o veículo tinha uma avaria e decidiu vir buscá-lo com o Ra... para o levar a um centro de reparações em Espanha. Dos mil euros que ia receber, quatrocentos euros seriam para gastos e seiscentos euros para o reboque.
Questionado sobre a estranheza de toda esta situação e sobre as razões porque vinham os dois a Portugal e não rebocava o carro para Espanha, deu uma explicação totalmente ilógica sobre os preços dos reboques.
E foi nestas circunstâncias que veio com o Ra... a Portugal, com o único intuito de comprar o Audi. Quando cá chegou e depois de terem feito o negócio – em pouco tempo uma vez que chegaram a Lisboa por volta das 12h. e às 18h. já se estavam a deslocar ambos ao Cascais Shopping no Audi cinzento adquirido no Estoril - apercebeu-se, através de um telefonema de Espanha, que tinha caído numa emboscada e que, afinal, além do carro ainda tinha que levar droga.
O arguido Ra... ignorava o que se estava a passar e viu-se forçado a dizer-lhe que precisava de ficar em Portugal mais um dia para tratar de um outro negócio de carros. O amigo aceitou ficar com ele para não regressar sozinho a Sevilha apesar de, como foi referido no decurso da audiência, ter uma consulta importante de maxilo-facial no dia 7, em Sevilha, no centro de saúde (vide depoimento da testemunha M ..., mãe do arguido Ra... e declarações do arguido Ra...).
De resto, o arguido R... confirmou que comprou o telemóvel no Cascais Shopping, através do qual estabeleceu contacto com o F..., confirmou os encontros no CCVG com o “Calvo” e com uma outra pessoa que se teria apresentado pelo nome de “Hugo”, as deslocações aos parques de estacionamento.
Procurou sempre ao longo das suas declarações não envolver o arguido Ra..., dizendo que o amigo não sabia de nada e que no dia 7 de Abril estava até muito impaciente e zangado porque tinha pressa de chegar a Sevilha, onde tinha a consulta médica.
Sobre o facto de se dizer na acusação, na sequência da operação de vigilância policial através da qual foram observados todos os movimentos dos arguidos, que o arguido Ra... acompanhou o F..., o “Calvo” e o “funcionário Jaime” ao carro onde foi posteriormente encontrada a cocaína, já depois da droga lá ter sido acondicionada pelo “Calvo” e pelo “funcionário Jaime”, disse que o Ra... tinha a saco de viagem no porta bagagens do seu carro e que se dirigiu para o parque de estacionamento com o F... para fazer a troca da bagagem explicação que, contudo, como se lhe fez notar, não esclarece o que se passou no interior do Audi azul com o Ra... e o “funcionário Jaime” e muito menos que o Ra..., que estava impaciente e com tanta pressa para chegar a Sevilha, tenha esperado pelo R... entre 30/40m (separaram-se no CCVG às 15h e juntaram-se no parque de estacionamento entre as 15h. 30m. e as 15h. 40m.
Sobre o H... e a Y... disse que os viu pela primeira vez no dia 6 à noite com o F... (que também só conheceu nesse dia) que conversaram sobre assuntos triviais, que o H... não viu a droga e que não teria certamente nada a ver com o assunto.
Por último, no tocante às notas falsas disse que lhe foram entregues pelo indivíduo que o contratou em Espanha e que não sabia que as notas não eram verdadeiras.
Por seu turno, o arguido F..., embora tenha confirmado que sabia que vinha a Portugal participar num negócio de droga trazendo uma quantia - 30.000 € - para entregar a uma pessoa que estaria aqui à sua espera e receber de outra a chave do carro onde seria transportada a substância estupefaciente, assumiu sozinho as responsabilidades por esta actividade, pela qual terá recebido em Espanha um telemóvel e a quantia de 420 € para as despesas, e receberia, mais tarde, 2.000 €, e, à semelhança do R..., procurou igualmente não envolver os arguidos H... e Y... dizendo que sugeriu ao H... que o acompanhasse a Portugal porque o seu carro estava avariado não lhe referindo, porém, com que propósito aqui vinha e que a Y..., namorada do H..., aceitou acompanhá-los porque queria ir a Fátima.
Confirmou os encontros com o R... e com o Ra... e, para não envolver os outros arguidos, foi apresentando justificações, em geral pouco credíveis, designadamente para o facto de algumas mensagens e telefonemas relacionados com a actividade de tráfico que estava em curso terem sido recebidos ou efectuados através dos telemóveis do H... e da Y..., (desta arguida em menor número).
Disse ainda que conheceu o “Calvo” por intermédio de um cliente da sua loja chamado “Juan Carlos” que lho apresentou, uns dias depois de lhe ter dito que o negócio dos telemóveis estava a correr mal, dizendo-lhe que tinha um negócio para ele.
Combinou, aí sim directamente com o “Calvo”, vir a Portugal entregar o dinheiro e a chave do carro, encontrando-se com ele no CCVG no dia 6 à noite e no hotel, com o “Calvo e o “Hugo”, e que neste segundo encontro estava sozinho.
Confirmou os encontros, no dia seguinte - dia 7 - com estes dois indivíduos, a entrega do Audi azul, a restituição do carro já com a droga. Sobre a deslocação do Ra... ao Audi azul corroborou o que já havia sido dito pelo R....
Confrontado com o facto de, na sua agenda pessoal, ao lado do número do telemóvel do arguido H... estar escrito o nome de “Gato”, nome este referenciado no processo como estando associado a alguém com ligações à organização que importou a droga apreendida, disse que se tinha enganado pois queria escrever “gordinho”. Veremos, porém, que é com este nome - “Gato”- que o arguido F... apresenta o H... ao “agente encoberto”.
O arguido Ra..., que prestou declarações já nas últimas sessões do julgamento e depois do depoimento do agente encoberto, corroborou a versão do R....
Confirmou que comprou o Audi no Estoril e que veio a Portugal com esse único propósito, que o veículo acendia uma luz quando ligava e que, por essa razão, lhe fizeram um abatimento no preço, que o R... lhe disse que tinha um outro negócio de carros e que precisava de ficar em Portugal até ao dia seguinte.
No dia seguinte, no CCVG, depois do almoço, o R... disse-lhe para acompanhar o F... ao carro enquanto lavava as mãos. Até aí não se tinha apercebido de nada de estranho ou suspeito…
Dirigiu-se com o F... para a área de estacionamento do Aki. O “Calvo” apareceu e disse que tinham estacionado o carro - o Audi azul - noutro local. Quis ir ao carro do R... buscar a sua bagagem.
Entrou no Audi azul, no lugar do condutor. Nessa altura o agente encoberto disse que a droga estava acondicionada nas partes laterais do carro e mostrou-lhe.
Percebeu então onde estava metido. Ficou desorientado.
Recebeu uma chamada do R.... Estava muito aborrecido com ele e perguntou-lhe porque é que o estava a meter naquilo.
Conduziu o Audi azul até ao parque de estacionamento do Aki onde estava o seu carro. Mudou a bagagem e partiu na direcção de Sevilha.
Quando estava a atravessar a ponte a luz do carro acendeu. Telefonou ao R....
Pôs gasolina e ficou à espera dele.
Não se foi embora quando se apercebeu do que se estava a passar porque sabia que eles estavam armados e teve medo.
Por último, os inspectores da PJ, que intervieram na operação policial de vigilância e seguimento dos arguidos, confirmaram os factos descritos na acusação, as movimentações dos arguidos, os vários encontros destes com os dois indivíduos com o “Calvo” e o “funcionário Jaime”.
O inspector T... corroborou integralmente os factos que constam da acusação e que, no essencial, correspondem ao que foi observado no terreno pelos inspectores que integravam as várias brigadas.
Disse ainda este inspector que viu o arguido Ra... entrar no Audi azul com o agente encoberto e sentarem-se ambos no banco traseiro do veículo onde permaneceram cerca de dez minutos, enquanto o “Calvo” e o F... esperavam cá fora.
Esclareceu que estava parado a uma distância de 50/60m do Audi azul e que via a cabeça deles percebendo-se que estavam a mexer-se ou a fazer movimentos.. O Calvo e o F... esperavam cá fora. Passados os dez minutos o “funcionário Jaime” saiu e, na companhia do “Calvo” e do F..., afastou-se, a pé, na direcção da saída do parque de estacionamento. Despediram-se do F... e apanharam um táxi.
Entretanto viram o R... com o H... e a Y... no parque de estacionamento do Aki. Quando o Ra... chegou o R... aproximou-se. Foram abertos dois porta-bagagens. O Ra... passou um saco de um carro para o outro.
Saíram ambos do parque de forma apressada. O Ra... conduzia o Audi cinzento e o R... o azul.
E, assim, os vários elementos probatórios não nos deixaram dúvidas quanto o envolvimento de todos os arguidos, com excepção da arguida Y..., no tráfico da cocaína apreendida.
Na verdade, as declarações dos arguidos não ofereceram a menor credibilidade. O arguido Ra..., perante as evidências, decidiu dar uma justificação, nada credível, para o facto, que obviamente não conseguiu desmentir, face ao depoimento do inspector T... e ao depoimento do “funcionário Jaime”, de ter estado sentado com o agente encoberto no Audi Azul e de ter visto e examinado a droga que estava dissimulada nos painéis laterais do veículo.
A explicação encontrada não só carece, em absoluto, de lógica, como é desmentida pelas duas testemunhas. Na hipótese, bastante inverosímil, de o arguido Ra..., contra a sua vontade, ter sido envolvido numa actividade a que era supostamente alheio não faz sentido que não se tenha afastado logo do local e que, ao invés, tenha ido ao encontro do R... (o amigo que o tinha enganado) conduzindo o Audi azul, onde estava a droga, lhe tenha telefonado por duas vezes durante a travessia da Ponte Vasco da Gama e tenha parado numa estação de serviço à sua espera.
As declarações dos arguidos são, na verdade, um somatório de incongruências e contradições:
Vejamos, apenas a título de exemplo:
Começando pelas razões pelas quais os arguidos se deslocaram a Portugal:
Desde logo, neste particular, a versão do arguido R... é, como foi dito, contraditória com o que afirmou em primeiro interrogatório.
Disse na altura que “ devido a problemas económicos contactou uma pessoa (…) alguns dias depois contactaram-no e disseram-lhe que necessitava de um carro Coupé de quatro portas, que arranjou (…) que esse carro é o Audi azul onde foiencontrada a cocaína (…) que se dirigiu para a zona do Estoril com o co-arguido Ra... para ir buscar outro carro de marca Audi A3 de cor cinzenta (…) que esse carro foi comprado pelo Ra... e seria posteriormente vendido em Espanha”.
Confrontado, no julgamento, com estas declarações disse que na altura não sabia bem o que se estava a passar e acabou por dizer a primeira coisa que lhe veio à cabeça, ou então foi “um mal entendido” (cfr. fls. 192)
Resulta, sem sombra de dúvida, destas declarações - que nos merecem maior credibilidade, por se nos afigurarem mais espontâneas, lógicas e coerentes relatando pormenores que certamente não ocorreriam ao arguido caso estivesse apenas a dizer “aquilo que lhe veio à cabeça” - que o Audi azul foi comprado ou “arranjado” para que o arguido R... realizasse “o serviço” que lhe proporcionaria o rendimento procurado e não temos dúvidas de que o arguido sabia de que serviço se tratava. Quem não saberia se fosse colocado perante idênticas circunstâncias?!
Acresce que, em total contradição com as declarações prestadas em julgamento, o arguido R... referiu que o Ra... comprou o Audi A3 para posteriormente o vender em Espanha.
Porém, tanto o arguido Ra... como a sua mãe, a testemunha M ..., disseram que o Ra... precisava de um carro e por isso veio com o R... a Portugal para o adquirir.
E veio adquirir o carro exactamente na véspera de uma importante consulta de maxilo facial marcada para as 12h. de dia 7, pela qual teve de esperar bastante tempo.
E mesmo assim, depois de saber que o R... precisava de ficar mais um dia em Portugal decidiu ficar com ele, acompanhando-o para todo o lado e em todos os contactos estabelecidos no dia 6 e no dia 7 de Abril (até partirem para Sevilha);
E comprou um carro com uma avaria, sem saber de que avaria se tratava e pagou-o a pronto por 10.000 €.
E nesses movimentos e deslocações o arguido Ra... não estranhou que o R... entregasse a seu carro – o Audi azul – a duas pessoas desconhecidas? Se o que estava em causa era a venda do carro (ou de um carro, não se percebeu bem…) não estranhou que o R... não os acompanhasse? Recorde-se que o arguido Ra... disse que até se ter dirigido com o F... para o Audi Azul e de o “funcionário Jaime” lhe ter mostrado as placas de cocaína não tinha achado nada de estranho.
No pequeno percurso efectuado entre o Parque das Nações e o posto de abastecimento onde foi interceptado telefonou pelo menos por duas vezes ao R... com quem aparentemente estava, ou devia estar, zangado;
E quanto ao F..., é crível que tenha feito mais de 2.000 km (ida e volta de Madrid Sevilha Lisboa) – gasolina, portagens, estadias para 3 pessoas - quando Madrid está à distância de 600 km e de uma noite de comboio – para afinal receber em troca apenas 2.000 €, parte dos quais eram consumidos na viagem?
E que o tenham “mandado” vir a Lisboa apenas para entregar os 30.000 € e uma chave que, afinal, foi entregue pelo R... o que de resto é confirmado por este?
E o H..., que supostamente teria aceite o convite do F... para vir a Portugal em viagem de turismo, acompanhou o F... ao CCVG e andou com ele, recebeu e fez chamadas do seu telemóvel para os mesmos números (espanhóis e colombianos) que telefonaram e receberam chamadas do F... no seu telefone?
São aliás inúmeras as incongruências do F... sobre os motivos porque o H... e a Y... receberam e efectuaram algumas chamadas telefónicas suspeitas, sobretudo o H... já que na Y... o número de chamadas foi muito inferior e menos significativo.
Pelas regras da experiência comum e pelo que se conhece sobre os procedimentos adoptados neste tipo de contactos e negócios ilícitos, que impõem o máximo de descrição e reserva, não é normal, por razões de segurança, que as pessoas envolvidas nesses negócios partilhem com outras os números de telefone e que os traficantes, nos contactos entre si, envolvam terceiras pessoas alheias ao negócio, o que é perfeitamente natural e compreensível. O contrário é que seria estranho.
Logo após a entrega do carro com o estupefaciente F... telefona alternadamente para o H... e três vezes para o “Maru”.
Por sua vez o H... já tinha telefonado para a mesma pessoa três vezes, justamente no momento em que os arguidos F..., R... e Ra... foram entregar o carro (11.57, 12.23 e 13.26) e volta a telefonar pela mesma hora em que F... o faz, depois de ter sido entregue o carro com o estupefaciente.
A existência destes telefones em comum, e realização dos vários contactos em paralelo nos momentos mais importantes da actividade de tráfico em curso é mais um elemento a apontar inequivocamente para uma forte ligação destes arguidos, entre si e em comum, a pessoas ligadas em Espanha à organização responsável pela importação e distribuição da cocaína.
Todas estas questões, e tantas outras que se tornaria fastidioso enumerar, fizeram com que tivéssemos ficado convencidos que, pelo menos, os arguidos R..., Ra..., F... e H... vieram a Portugal com o intuito de receber a cocaína e transportá-la para Espanha.
A circunstância de os arguidos R... e Ra... não conhecerem os outros arguidos e de estes não os conhecerem a eles, não põe em causa esta conclusão porquanto todos eles, ao que se apurou - e a prova produzida não nos permitiu ir mais longe - se deslocaram a Portugal a mando de uma organização.
Acresce dizer que se dúvidas existissem - e, na realidade, já não as tínhamos - sobre o envolvimento destes quatro arguidos elas desvaneceram-se totalmente com o depoimento do “funcionário Jaime” que disse que o F... e o H... lhe foram apresentados, por volta da 1h. 40m. de dia 7 de Abril, no Hotel VE... (e não apenas o F... como referiu este arguido nas suas declarações) que o F... apresentou o H... com a alcunha de “Gato” - que os questionou sobre os motivos porque o avisaram da vinda a Portugal tão em cima da hora e porque razão demoraram tanto tempo a vir buscar a droga que foi desalfandegado no dia 30 de Março, que a maior parte da conversa foi conduzida pelo H... que lhe disse, sempre na presença do F..., que aquela droga se destinava a alguém que à última hora tinha desistido da transacção e tiveram de arranjar outro comprador.
Disseram-lhe que tinham um carro preparado para o efeito. Falaram do preço a pagar pelo seu serviço. Para além de 30.000 € do desalfandegamento pediu-lhes 150.000 € (6.000€ por cada quilo de cocaína) por ter guardado a droga durante vários dias. Disse que, quando estavam a discutir o preço do serviço disseram-lhe que lhe pagariam esse valor mais tarde mediante contrapartida de um outro desalfandegamento de cerca de 50 Kg de cocaína, que viria igualmente a caminho, dando-lhe as indicações do contentor onde essa substância era transportada, facto que, como referiu o agente, foi confirmado pela polícia judiciária que apreendeu a droga mas não fez nada para não pôr em risco a sua segurança.
Apenas quanto à Y... se suscitaram dúvidas inultrapassáveis que foram resolvidas a favor da arguida por aplicação do princípio in dúbio pro reo..
Com efeito, vários indícios apontavam igualmente para o seu envolvimento na actividade de narcotráfico desenvolvida pelos restantes arguidos ou, pelo menos, para o conhecimento desta actividade.
Desde logo, a circunstância de a Y... ter sido o elo de ligação entre os dois grupos de arguidos já que, como resulta claramente da perícia aos telefones e das declarações dos arguidos R... e F..., a Y... recebeu no seu telemóvel, via SMS, através de um número espanhol para o qual o arguido R... pouco antes ligara, o número de telefone do R... (de um aparelho acabado de adquirir por este arguido no Cascais Shopping) número esse - 930000017 - para o qual o F..., que, recorde-se, veio com a Y... de Espanha, três minutos depois da arguida ter recebido o SMS, ligou combinando com o R... um encontro, nesse noite, no Centro Comercial Vasco da Gama.
Ainda o facto de as reservas dos quartos do Hotel VE..., onde os três arguidos - F..., H... e Y..., - pernoitaram de 6 para 7 de Abril, terem sido feitas em nome da arguida Y..., o que não deixa de causar alguma estranheza porquanto a arguida, de acordo com o F..., era namorada do H... e decidiu acompanhá-los a Portugal em viagem de turismo.
Por último, o depoimento do agente encoberto que referiu que o F... lhe disse que era a Y... que tinha o dinheiro para lhe pagar o serviço de “desalfandegamento” da cocaína e que o viu dirigir-se à Y... e receber das mãos desta um saco.
Todos estes factos, levaram-nos a suspeitar que a arguida Y... estava tão envolvida na actividade de tráfico como os outros arguidos ou que, pelo menos, tinha conhecimento dessa actividade. Suspeitas tanto maiores quanto nos permitimos duvidar, sobretudo depois dos depoimentos da irmã da Y... e do ex-companheiro e pai da filha da arguida, da relação de namoro entre os arguidos H... e Y... e da versão do arguido F... de que teriam ambos combinado um fim de semana, a sós, em Sevilha.
Porém, afigura-se-nos que estes indícios não são suficientemente sólidos e consistentes para que se dê como provado o envolvimento da arguida na actividade de tráfico por duas razões essenciais: o “funcionário Jaime” não contactou directamente com a arguida e baseou-se unicamente no que lhe foi transmitido pelo F...; e resulta, com evidência, dos autos que a arguida Y... se dedicou, e vem dedicando, à prostituição (cfr. relatório social e depoimentos da irmã e do ex-companheiro). Nestas circunstâncias não se poderá excluir a hipótese da Y... se ter deslocado a Portugal como acompanhante do H... e de, nessa qualidade, ter acedido a receber no seu telemóvel o sms e a reservar os quartos em seu nome ou guardar o dinheiro sem estar conivente com a actividade de tráfico dos restantes arguidos.
Aqui chegados resta-nos analisar a questão que ocupou grande parte do julgamento.
Confirmada a existência da AE a prova centrou-se, a partir desse momento, nessa acção, na sua origem e contornos e na análise das circunstâncias em que a polícia judiciária, por intermédio de um seu funcionário e de um colaborador da DEA, actuando sob o seu controlo, haviam agido.
Em suma, importava saber se essa acção encoberta tinha determinado os arguidos, ou alguns dos arguidos, a agirem nos termos apurados e indagar se o agente da PJ e/ou seu colaborador, em Portugal ou em Espanha, induziram qualquer um dos arguidos a praticar os factos dados como provados.
Sobre a intervenção do “agente encoberto” (o “funcionário Jaime”) tal hipótese ficou, ao que se julga, afastada na sequência do depoimento deste agente e dos depoimentos inspectores S... e Ó... que explicaram, com lógica, coerência e de forma credível, as circunstâncias em que a polícia judiciária foi contactada pela DEA, concluindo-se a partir dessas explicações, não contraditadas, de forma consistente, por qualquer um dos arguidos, que a polícia judiciária e o agente encoberto se limitaram a aceder a um pedido da “organização” no sentido de diligenciarem pelo desembarque da cocaína a qual, quando esse pedido foi feito, já tinha sido introduzida no contentor transportado pelo “C… P…”, factos que foram, aliás, dados por provados.
Foi, pois, nestas circunstâncias que o “funcionário Jaime” se fez passar por um colaborador da organização retirando a droga do contentor e guardando-a para a entregar às pessoas que a viessem buscar. Limitou-se a colaborar com os traficantes no desembarque dessa substância e a guardá-la, até a virem buscar, “cobrando” uma quantia monetária pelo serviço prestado.
Esta actuação do “funcionário Jaime” não parece merecer qualquer reparo tanto mais que as acções encobertas, obrigatoriamente levadas a cabo com o controlo de uma autoridade judiciária, são admitidas na nossa legislação sendo os crimes de associação criminosa e de tráfico alguns dos que permitem, exactamente, a utilização de tal meio, com fins de investigação criminal (lei 101/2001, de 25/8) artº 2, als .i e j).
Não estão tais acções aqui postas estão em causa.
O que se discute, isso sim, é se a conduta dos arguidos teria sido determinada pelo usualmente designado “agente provocador”, facto que, a verificar-se, levaria a que a prova assim obtida o teria sido por métodos proibidos, estando, por conseguinte, ferida de nulidade.
Sobre este assunto diz, nomeadamente, M. Costa Andrade “ É pacífico o entendimento de que devem existir limites para além dos quais o recurso a “homens de confiança” é, de todo em todo, inadmissível. Tal sucederá, nomeadamente, quando aquela prática ultrapasse os limites do permitido em termos de Estado de Direito (“Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal”, Coimbra Editora, 1992, pág. 224).
Refere-se igualmente em acórdão do Tribunal Constitucional:
“ O artº 32, nº6 da CRP dispõe que são nulas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa à integridade física ou moral da pessoa…
É, porém, o artº 26, nº 1e 2 do C.P.P. que reproduz o apontado nº 6 e no seu nº2, al. a) estabelece que são ofensivas de integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas… mediante… meios cruéis ou enganosos.
E a nulidade das provas obtidas por meios enganosos arrasta a invalidade do acto em que se verificaram e dos actos que dele dependerem ou podem afectar – artº 122 do C.P.P..
Característico deste meio enganoso de prova é a figura do agente provocador em que um membro da autoridade policial, ou um civil comandado pela polícia, induz outrem a delinquir por forma a facilitar a recolha de provas da ocorrência do acto criminoso. E é de rejeitar a sua aceitação porque não podem ser as próprias autoridades a criar ou a alimentar a própria vontade de realização do ilícito, cuja prova visam recolher, para posteriormente assegurarem a respectiva punição. Isso traduziria um cinismo moral incompatível com a necessária boa reputação e legitimação das autoridades da justiça penal (sublinhado nosso) (in agente provocador - Jurisprudência do Tribunal Constitucional, acórdão nº 76/2001, processo nº 508/99, 2ª secção, relator, Guilherme da Fonseca).
E sobre os efeitos da actuação do agente provocador acrescenta ainda Simas Santos que “No quadro normativo vigente a actuação do agente provocador é normalmente considerada como ilegítima, caindo nos limites das proibições de prova, sendo patente o consenso da doutrina e jurisprudência de que importa distinguir os casos em que a actuação do agente policial (agente encoberto) cria uma intenção criminosa até então inexistente, dos casos em que o sujeito já está implícita e potencialmente inclinado a delinquir e a actuação do agente policial apenas põe em marcha aquela decisão. Isto é, importa distinguir entre a criação de uma oportunidade com vista à realização de uma intenção criminosa, e a criação dessa mesma intenção (in Acórdão do STJ de 20/2/2003, relator Simas Santos in www. Dgsi.pt).
Da maioria da já vasta doutrina e jurisprudência sobre este tema retira-se uma conclusão inequívoca. É absolutamente necessário traçar a fronteira entre o crime que é provocado pelo próprio agente (que aparecerá como agente provocador) e a actuação do agente que se limita a praticar actos típicos necessários a permitir que o facto criminal se desenvolva o necessário e suficiente para a recolha dos meios de prova necessários a obter uma efectiva condenação.
Por isso, como se conclui no já citado acórdão do Tribunal Constitucional“ (…) se distingue a figura do agente provocador do agente infiltrado, caracterizando-se este por o agente se insinuar junto dos agentes do crime, ocultando-lhes a sua qualidade, de modo a ganhar a sua confiança a fim de obter informações e provas contra eles, mas sem os determinar à prática de infracções. E comummente se vêm aceitando as provas obtidas através de agente infiltrado.
E se a utilização do agente provocador representa sempre um acto de deslealdade que afecta a cultura jurídica democrática e a legitimação do processo, tal não ocorre na figura do agente infiltrado em que tais valores não se revelam afectados”.
Ou ainda, citando de novo M. Costa Andrade, dever-se-á ter presente que “a provocação em matéria de proibição de prova só intervém se as actuações desses agentes visam incitar outra pessoa a cometer uma infracção que, sem essa intervenção, não teria lugar, com vista a obter a prova de uma infracção que sem essa conduta não existiria (…)”.
Voltando ao caso dos autos, parece poder concluir-se, com segurança, e com a plena consciência de que a actuação dos agentes que intervêm nas acções encobertas deve ser analisada com o máximo de prudência e cautela, que não existe qualquer indicio de que o agente encoberto (o “funcionário Jaime”) tenha controlado as operações e muito menos que tenha determinado ou motivado os arguidos (todos ou alguns deles) à prática do crime aqui em causa tanto mais que, como resultou dos depoimentos dos inspectores que coordenaram a acção, a polícia judiciária foi chamada a intervir quando a cocaína já estava a caminho e o contentor estava prestes a chegar ao porto de Lisboa.
Mas como já foi dito, as suspeitas dos arguidos centraram-se, no colaborador da DEA, relativamente ao qual, admite-se, não se foi tão longe quanto se foi com o funcionário da polícia judiciária.
Coloca-se, porém, a questão de saber se era necessário ir mais longe, ou se os elementos probatórios recolhidos nos permitiam, com segurança - exactamente a mesma segurança com que se concluiu que o agente encoberto não “provocou” a prática do crime - excluir a hipótese de ter havido uma provocação e do “Calvo” ter actuado como agente provocador.
Ora, salvo melhor opinião, entendemos que a prova produzida permitia afastar essa hipótese, bastando-nos nomeadamente, com as incongruências e contradições das declarações do arguido F..., com o envolvimento do arguido H... e com o facto dos dois grupos de arguidos não se conhecerem entre si e de partirem de destinos diferentes.
Foi notório, como, aliás, referiu a exma. sra. Procuradora da República nas alegações finais, que o arguido F... alterou, as suas declarações da primeira para a segunda sessão. Digamos que ajustou a sua versão dos factos procurando dar mais consistência à tese da provocação, tese essa que aos poucos, de uma sessão para a outra, e atingindo o ponto alto nas declarações prestadas já próximo do final da audiência de julgamento foi ganhando consistência à medida que se ia esbatendo a intervenção do “Juan Carlos” – a pessoa que o terá contactado em primeiro lugar no seu estabelecimento em Madrid, que o terá apresentado ao “Calvo” dizendo-lhe que tinha um negócio para ele, e sobre o qual não recaiu qualquer tipo de suspeita de que poderia tratar-se de agente encoberto ou provocador. Era simplesmente um cliente da sua loja com o qual desabafara, poucos dias antes, sobre as dificuldades do negócio dos telemóveis.
No entanto, como se retira das primeiras declarações do arguido F..., foi justamente o Juan Carlos que o apresentou ao Calvo e que lhe disse que tinha um negócio para lhe propor. Como compatibilizar estas afirmações com o que disse o arguido no final da audiência, de que estaria cá por causa do Calvo ou que foi o Calvo que o contactou.
Estas afirmações do F... surgem justamente no momento em que já não subsistem dúvidas acerca da existência de uma acção encoberta e da existência de um colaborador da DEA – o “Calvo” que o contactou em Espanha e que em Portugal acompanhou o agente encoberto nos vários encontros com os arguidos e na entrega da droga.
As circunstâncias em que o H... veio a Portugal levam-nos igualmente a afastar a tese defendida pelo F.... Da prova produzida resulta com clareza que o H... estava tão (ou mais) envolvido no negócio da droga como o F... e os restantes arguidos. Ora, como é que, na “tese” do F... se “encaixa” a vinda do H..., dando por assente que a versão que, nesse particular, o arguido apresentou em julgamento não teve acolhimento nem mereceu qualquer credibilidade e foi totalmente desmentida pelos restantes elementos probatórios.
Acresce que resultou claro do julgamento que o H... não conhecia o “Calvo” e que não foi por ele contactado em Espanha. O “funcionário Jaime” disse que a conversa que teve com o F... e com o H..., no hotel, à 1h. 40m. de dia 7 de Abril, foi conduzida por este último arguido que o informou dos motivos porque se atrasaram a vir buscar a droga, e que foi igualmente o arguido H... que assumiu algum protagonismo nas negociações dos preço do serviço.
Ora, conjugando as declarações do F... - que, pelas razões indicadas, não nos mereceram crédito - com o depoimento do funcionário Jaime (que vem corroborar o que já resultava do mapa de conexões de chamadas telefónicas e das vigilâncias) ficámos convictos que, como referiu o inspector Ó..., qualquer um dos arguidos, veio a Portugal após contacto com elementos da organização e que os contactos do F... com o “Calvo” terão ocorrido, no âmbito da colaboração que este decidiu prestar à organização.
Assim se explica que nesta operação de levantamento e transporte de droga se tenham deslocado a Portugal quatro pessoas de sítios diferentes de Espanha, contactadas por pessoas distintas (duas de Sevilha e duas de Madrid, admitindo que o arguido H..., que reside em Valência, se encontrava, por coincidência, em Madrid) distribuídas por dois grupos que não se conheciam entre si.
Estamos, em suma, na presença de uma operação complexa, que envolve várias pessoas e pressupõe diversos contactos, que não se coaduna com a provocação (isolada) de um, e apenas um, dos arguidos.
Mas mesmo que porventura concluíssemos que o F... só veio a Portugal porque foi induzido pelo Calvo e que de contrário nunca se envolveria nessa operação – e afigura-se-nos que não existem os menores indícios de que tal tenha acontecido – não poderíamos extrapolar essa conclusão para os outros arguidos os quais, aliás, jamais sugeriram essa hipótese.
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Relativamente às condições pessoais, sociais e económicas dos arguidos valoraram-se as declarações dos próprios, os relatórios sociais do IRS, os documentos juntos pelos arguidos na audiência de julgamento, os depoimentos das testemunhas de defesa, com destaque para os seguintes depoimentos: da mãe e da mulher do R... (testemunhas R... A... e A... C...) que falaram sobre as dificuldades económicas do R... e enalteceram as suas qualidades como filho e como pai, e da testemunha M... M... que falou sobre o negócio de compra e venda de carros a que o R... se dedicava em Sevilha antes de ser detido, das testemunhas do arguido Ra... (M ... (mãe do arguido) que disse que sabia que o filho queria comprar um carro e que no dia 7 tinha uma consulta de maxilo facial marcada, da testemunha Manuel que enalteceu as qualidades profissionais do arguido explicando que o ingresso na Airbus é difícil e que o Ra... conseguiu ultrapassar com êxito essas dificuldades, que o contrato de trabalho ficou suspenso à espera da decisão do tribunal - juntou posteriormente declaração da empresa - e que na empresa ficaram todos surpreendidos com a detenção do Ra.... Por último, das testemunhas A.. M... (irmã da Y...) que disse que a irmã se dedicava à prostituição, que era acompanhante do H... e que o pai da filha da Y... - R... Q..., igualmente ouvido em audiência - quer fazer vida em comum com a Y....
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Foi ainda valorada a seguinte prova documental que confirma a factualidade dada por assente:
Pericial:
Exame toxicológico de fls. 769;
Exame de notas - fls. 649.
Documental:
Auto de detenção – cfr. fls. 155;
Autos de apreensão - fls. 26 (cocaína), 34 (apreensões ao R...) 40 (apreensão de 100 € falsos ao R...), 48 (apreensão ao Ra... ), 50 (apreensão, 72, 99,102 (Opel Astra), 105 e 106 (revista e apreensão ao H...), 131 (Y...);
Testes rápidos - fls.25;
Documentos - fls. 21 a 24, 35
- fls. 39 recibo de Hotel V..., no Estoril-
- fls. 47,49, 53 a 61,
- fls. 72 e 82 (cartão de entrada no hotel VE... da estadia entre 6 e 7.04.2009 em nome de Mu..., e apreendido ao arguido F...)
73 a 89 103 a 104, 107 a 118, 130,132;
Declaração de autorização de exame do conteúdo dos telemóveis - fls. 62, 90, 119, 133;
Relatos de Diligência Externa - fls. 14 a 18;
Fotos de fls. 19, 27 a 28, 52, 101;
Autos de leitura de telemóvel - fls. 63 a 65 (do Ra...), 91 a 92 (F...), 120 a 123 (H...), 134 a 137 (Y...).
Listagem de chamadas e mensagens - fls.583 a 616, 825 a 826 A;
Listagem de carregamentos - fls. 618 a 621;
Mapa de Conexões das Chamadas - fls. 683 a 688.
Apensos.
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Fundamentação dos factos não provados
Sobre os factos dados como não provados, como já foi referido ou não foi feita qualquer prova que os confirmasse ou, perante o conjunto da prova produzida e respectiva apreciação crítica, não conseguiu o Tribunal formar, com a segurança que se impõe e com o grau de certeza que, em julgamento, a prova exige, a convicção da respectiva veracidade.

6.2 . – Considerações gerais sobre a matéria do recurso

A primeira questão colocada pelo recorrente no seu recurso é da insuficiência da matéria de facto resultante de se não ter apurado tudo o que seria necessário para definir os contornos da acção encoberta – ou melhor dito o que antecedeu o início da acção encoberta desencadeada em Portugal – e daí extrair conclusões seguras sobre a existência ou inexistência de uma acção encoberta.
Em textos doutrinários Além do que foi referido supra na nota 7 cfr ainda «’Bruscamente no Verão Passado’, A reforma do Código de Processo Penal, 2009», Coimbra Editora, § 14; «Escutas Telefónicas, Conhecimentos Fortuitos e Primeiro Ministro», in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 139º, Maio/Junho 2010. recentes o prof Manuel Costa Andrade, como se sabe pioneiro em Portugal do tratamento sistematizado das questões relativas a proibições de prova, insiste na necessidade de, no uso de meios ocultos de investigação, se preservar e salvaguardar esferas de privacidade e de segredo e de relações de confiança de irrecusável dignidade social ou reconhecido peso institucional tendo como pano de fundo aquilo que designa como “matricial direito geral de personalidade” tudo por causa da tendência para a institucionalização de meios de investigação cada vez mais invasivos e eivados de deslealdade – os ditos meios ocultos de investigação – que, reconhece, vieram para ficar e são “representados” como imprescindíveis, salientando sempre que mercê da sua “danosidade qualificada” as exigências de equilíbrio entre a segurança e a liberdade e o concomitantemente respeito pelos princípios da proporcionalidade e da subsidiariedade são particularmente acrescidos.
No tocante ao que genericamente se designa por agente encoberto o Mestre assinala de novo Na RLJ citada, pags. 277-278). (na RLJ citada), convocando o ensinamento da doutrina alemã, a acentuada danosidade e insídia no recurso a esse meio oculto de investigação se comparado com as escutas telefónicas:
«Recorde-se que nas escutas telefónicas os interlocutores são surpreendidos na “inocência” da sua comunicação. Apesar disso, a verdade é que eles dizem – só dizem – invariavelmente aquilo em verdade e autenticidade eles querem dizer. Na síntese do Tribunal Constitucional federal, na escuta telefónica as “declarações do atingido assentam na sua livre decisão. O que aqui não é querido é tão só o conhecimento das declarações pelas instâncias de perseguição”. Diferentemente o agente encoberto estimula, conduz e orienta a conversa, levando as pessoas-alvo a dizer ou a fazer o que de outra forma não diriam nem fariam. Manipulação e heteronomia que atingem a sua expressão extremada nos casos de agente provocador em que o Estado, ou alguém em seu nome, induz uma pessoa a cometer um crime pelo qual a quer punir. Ao contrário do que sucede com a escuta telefónica, o que verdadeiramente caracteriza a intervenção do agente encoberto é “em primeira linha a reconformação (Umgestaltung) estratégica do ambiente pessoal. As declarações provocadas não acontecem num ambiente privado, apenas carregado por normais riscos de informação mas num contexto que foi exclusiva ou decididamente redefinido e modelado por autoridades estaduais de informação” (…) o agente encoberto não se limita a ocultar o seu propósito de recolher provas. Para além disso, tenta transmitir ao suspeito uma imagem de proximidade, confiança e solidariedade. “O engano associado à introdução de um agente encoberto vai assim claramente para além da mera Heimlichkeit e distingue-se qualitativamente da escuta telefónica ou da observação”.»
A este tipo de preocupação com o modo de investigar através de meios ocultos e em particular com a legalidade do recurso ao que se designa como agente encoberto (versus agente provocador) embora claramente a favor da sua admissibilidade também não é alheia, de há muito, a jurisprudência portuguesa. Assim, no final da década de 90 do século passado e na metade inicial da primeira década do século XXI diversos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça abordaram o assunto com especial destaque para os de 1997.01.15, 2002.01.30 e 2003.02.20, 2005.11.30 Os de 1997.01.15 e 2003.02.20 publicados na CJ/STJ 1/97-183 e 1/03-210, respectivamente. O de 2005.11.30 em www.dgsi.pt. O acórdão de 2002.01.30 foi proferido no proc 3079/2001-3ª e relatado pelo Conselheiro Lourenço Martins. . Também de referência é o acórdão do Tribunal Constitucional nº 578/98, de 1998.10.14 DR 1ª Série, nº 48, de 1999/02.26. Também o acórdão nº 76/2001,de 2001.02.14, citado na decisão recorrida, se pronunciou sobre o tema abordando-se, contudo naquele outro..
Mais recentemente, cumpre mencionar os acórdãos do TR Lisboa de 2006.11.29 e 2010.05.25 Publicados em www.dgsi.pt . O último referido já supra na nota 3. onde é feita, em particular no último, uma expressiva e abundante resenha das posições jurisprudenciais e doutrinais sobre o assunto.
Também na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a matéria foi tratada sendo marcante o acórdão “Teixeira de Castro v. Portugal” de 1998.06.09 que determinou a condenação do Estado português por considerar ter havido uma situação de provocação na intervenção da autoridade policial. Pese embora menções críticas que lhe foram dirigidas por alguns comentadores nacionais Assim, na RPCC, Ano 10, 1, pags 145 e ss o Conselheiro Henriques Gaspar que fora o agente do Governo português e no acórdão STJ de 2003.02.20 citado supra, relatado pelo Conselheiro Simas Santos que, então PGA, interviera também na defesa da posição portuguesa e que refere a necessidade de maior equilíbrio na delimitação do que seja provocação policial citando a propósito outro acórdão do TEDH de 2002.03.21 no caso “Calabró”. Em contraponto comentadores houve que subscreveram sem reservas a doutrina do acórdão como é o caso de Maia Costa na Revista do Ministério Público, nº 81, pags 162-174, vindo ainda a reiterar a posição assumida noutro comentário posterior também na Revista do Ministério Público, nº 93, pags 169-172 (embora a propósito do acórdão do STJ de 2002.10.30) a verdade é que a posição do TEDH tem sido reafirmada como no mais recente acórdão “Ramanauskas v. Lituânia” de 2008.02.05 Onde se invoca insistentemente a doutrina do caso “Teixeira de Castro”. . Ainda que se possa assinalar que, de certa maneira, embora naturalmente dado o quadro legal em que se move, é um tanto limitada essa abordagem do TEDH por colocar a tónica da sua argumentação tão só na necessidade de respeito pelas exigências gerais de um processo equitativo (art. 6º, nº 1 da Convenção) o que não ocorre, segundo a perspectiva seguida naquela instância quando a intervenção do agente policial se não limita a examinar de uma maneira puramente passiva a actividade delituosa mas exerce sobre o agente uma qualquer influência que o leva a cometer um crime que de outra maneira não cometeria.
Outros contributos, de natureza doutrinária, foram permitindo sedimentar posições sobre esta matéria. Para além de alguns mais antigos, frequentemente citados, que lidaram com a questão no âmbito da legislação já revogada destacam-se os que a trataram já à luz da Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto que estabeleceu o “regime das acções encobertas para fins de prevenção e investigação criminal” como é o caso dos estudos de Isabel Oneto “O Agente Infiltrado …” cit, onde, além do mais, é feita uma detalhada descrição da evolução histórica das figuras do agente infiltrado e do agente provocador., Sandra Pereira Ob cit. pags 137 e ss e Susana Aires de Sousa “Agent Provocateur e Meios Enganosos de Prova. Algumas Reflexões” in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, 2003, pags. 1207 e ss. .
Em síntese, pode dizer-se que, como tantas vezes, a partir da elaboração da doutrina e da jurisprudência alemãs se alinharam propostas mais ou menos complexas de abordagem centradas essencialmente no que se designa genericamente por «direito à autodeterminação informativa» onde estão acobertados direitos ligados entre si designadamente o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e o direito à intimidade decorrentes, por sua vez, do direito à intangibilidade da dignidade humana (cfr art. 25º, nº 1 CRP). Se uma faceta primordial do desenvolvimento e de expressão deste direito é o estabelecimento de relações sociais com superior qualidade – digamos assim, em benefício da clarificação da ideia – naturalmente que as que se desenvolvam com o actor mais destacado da sociedade, o Estado de Direito, hão-de revestir-se de verticalidade e rectidão da parte deste, hão-de ser francas desenvolvidas com lhaneza e não sustentadas por enganos. Ao cidadão assiste, em suma, o direito a que as suas relações com o Estado ocorram livres de estratagemas enganosos.
Afirmado isto como princípio geral, a ponderação dos sempre presentes interesses conflituantes obriga a critérios de concordância prática, também aqui, mais uma vez, com apelo ao que já se designou como «regime geral sobre a limitação de direitos fundamentais». Procura-se então com o auxílio dos omnipresentes princípios da proporcionalidade e da subsidiariedade a superação das antinomias decorrentes da exigência de protecção de outras vertentes da liberdade, mormente a protecção da segurança do Estado, logo das pessoas (se aquele é de “Direito”), e do bem estar destas contra as ameaças de uma criminalidade desenvolvida, transnacional até, sofisticada e organizada que coloca problemas complexos e graves para a sua prevenção e repressão impondo o uso de meios de investigação cada vez mais invasivos dos direitos fundamentais e das liberdades públicas como a vigilância electrónica, as escutas, a entrega controlada de estupefacientes ou a infiltração policial.
Reconhecida a danosidade social de certo tipo de intervenção do Estado na actividade investigatória ela conflitua naturalmente com o regime jurídico utilizado por este para derrogar directamente princípios processuais garantísticos.
A propósito da infiltração policial, em geral a literatura jurídica e a jurisprudência estão de acordo em distinguir o agente provocador de um lado e, de outro, diferentes figuras de mais difícil delimitação com o agente encoberto e o agente infiltrado, se é que se justifica esta diferenciação que é feita em regra por contraponto com aquela do agente provocador. E estão também de acordo em considerar que a figura do agente provocador se enquadra nos meios proibidos de prova.
Agente provocador será o membro do órgão de polícia criminal ou alguém a seu mando que pela sua actuação enganosa sugere eficazmente ao autor a vontade de praticar um crime que antes não tinha representado e o leva a praticá-lo quando sem essa intervenção a actividade delituosa não teria ocorrido. A vontade de delinquir surge ou é reforçada no autor não por sua própria e livre decisão mas como consequência da actividade de outra pessoa, o membro do órgão policial.
Este conceito é no essencial, coincidente, como se verá infra, com a definição proposta no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2002.01.30, citado supra Salvo erro o Acórdão não está publicado. Tendo sido então ordenado o reenvio para ser esclarecido precisamente se houvera ou não provocação o processo acabou depois por voltar ao STJ nele sendo proferido o acórdão de 2003.02.20 (relatado pelo Conselheiro Simas Santos), esse sim publicado e objecto de numerosas referências na doutrina e na jurisprudência., relatado pelo Conselheiro Lourenço Martins que como é sabido tem por si, de há muito, a dedicação ao estudo das questões atinentes ao tráfico de estupefacientes e sua investigação.
Sem menosprezo pela demais jurisprudência crê-se ser esta uma decisão de referência pela forma abrangente (dentro dos limites de uma decisão judicial) como trata toda a matéria.
Assim:
a) Historia a introdução na legislação portuguesa do agente infiltrado. Faz alusão à sua origem histórica.
b) Faz referência a definições de agente encoberto (undercover agent na designação americana) segundo duas perspectivas doutrinais: i) um agente da autoridade em completa passividade relativamente à decisão criminosa, frequentando os meios conotados com a prática de crimes, à espreita do seu cometimento, como se de um simples “polícia à paisana” se tratasse; ou ii) alguém que actua como um agente infiltrado, isto é, um funcionário de polícia ou um terceiro sob controlo deste, que se insinua no milieu criminal em busca de confiança com delinquentes ou suspeitos de crimes no propósito de conseguir provas que possam levar à condenação, mas sem os determinar à sua prática.
c) Salientando a propósito a indefinição das fronteiras de delimitação dos conceitos já patente na doutrina E que é confirmada como ressalta dos estudos citados supra nas notas 8, 9 e 10. entende útil distinguir apenas entre agente provocador e agente infiltrado.
d) Propõe definições para as figuras (essenciais, para o caso) de agente provocador e agente infiltrado.
Agente provocador é, na perspectiva do acórdão, o membro da autoridade policial ou um terceiro por esta controlado que dolosamente determina outrem à comissão de um crime, o qual não teria cometido sem a sua intervenção, movido pelo desejo de obter provas da prática desse crime ou de submeter esse outrem a um processo penal e à condenação. De forma mais simples: o agente provocador é aquele que induz outrem a delinquir com a finalidade de o condenar.
Agente infiltrado – policia ou terceiro por si comandado – é aquele que se insinua nos meios em que se praticam crimes, com ocultação da sua qualidade, de modo a ganhar a confiança dos criminosos, com vista a obter informações e provas contra eles mas sem os determinar à prática de infracções.
Na vertente substantiva: o agente provocador incita, instiga outrem à prática do crime, torna-se autor mediato do crime, enquanto o agente infiltrado trabalha num meio em que os crimes já foram praticados, estão em execução ou na eminência de ocorrerem.
Enquanto o agente provocador faz nascer ou reforçar a resolução criminosa, a acção do agente infiltrado não suscitou a infracção. Limitando-se a introduzir-se na organização com o objectivo de descobrir e fazer punir o criminoso, não actuando, pois, para dar vida ao crime, mas com uma pretensão de descoberta, de revelação.
e) Chama a atenção para o ensinamento anglo-saxónico a propósito das figuras do undercover agent e do entrapment onde se acentua a necessidade de o encoberto não encorajar (causalmente), não dever armadilhar inocentes, não dever incitar através da oferta de ganhos excepcionais, sendo importante conhecer os antecedentes do suspeito, da sua predisposição ou não para a prática do crime. E onde se insiste particularmente no due process, na legalidade dos meios e fins da actividade policial, apelando à lealdade na administração da Justiça, enfatizando a necessidade de intervenção de um magistrado independente no controlo do processo.
f) Critica ainda a redacção da Lei nº 101/2001 na medida em que admite qualquer modalidade de participação delitual para o agente encoberto e alerta para a exigência de circunspecção no seu novo uso que não deveria decrescer por se lhe terem aumentado os riscos.
Isto posto.

6.3. – Os ensinamentos da doutrina e da jurisprudência são inequívocos. As acções encobertas são um meio de investigação a usar com parcimónia e o modo como se desenvolvem deve ser objecto de aprofundado escrutínio.
Ora, salvo o devido respeito, a partir do momento em que, no decurso da audiência, o tribunal teve de lidar com a existência da acção encoberta como um ponto a ponderar susceptível de interferir na sua decisão, procurou o seu esclarecimento com a profundidade devida.
Nessa medida não há nessa decisão uma carência de factos que hajam deixado de ser equacionados no âmbito do quadro das soluções de direito plausíveis para uma decisão segura que é, como se sabe, o que caracteriza a invocada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício a que alude o nº 2 do art. 410º o que se constata se forem devidamente analisados e interpretados os factos dados como provados e a fundamentação a seu respeito.
Vejamos a questão sob o ponto de vista da intervenção do recorrente Ra... ....
Como parece evidente há no conjunto dos factos dois momentos que podem ser separados. Por um lado, o transporte da droga e o seu “desembaraço” – passe a expressão – à chegada a Portugal por meio da acção encoberta e, por outro, as acções que foram desenvolvidas para levar a droga para Espanha. Estes dois momentos foram intermediados, digamos assim, pelo lapso de tempo durante o qual a droga esteve sob a guarda da PJ no âmbito da referida acção encoberta. Note-se desde já que como foi referido nos seus depoimentos pelas testemunhas que por ela foram responsáveis, o coordenador de investigação criminal S... e o inspector-chefe Ó... esta foi desencadeada, como está provado, quando foi facultada a informação à PJ de que já vinha a caminho de Portugal a droga que veio a ser apreendida.
A operação de transporte parece ter na sua origem um dado de facto com o seu quê de absurdo que consistiria no envio da droga colocada no contentor do navio sem que estivesse assegurado o modo como haveria de ser feito o dito “desembaraço”, isto é o modo, como haveria, em Portugal, de ser retirada do contentor sem ser detectada pelas autoridades aduaneiras. Poderia isso sugerir uma qualquer intervenção de “Calvo”, a pessoa tida como informador/colaborador da DEA, logo no início dos acontecimentos caucionando o desembaraço da droga à chegada a Portugal. Porém, esse absurdo é aparente se tivermos em conta que, de acordo com a prova testemunhal, um plano inicial engendrado para isso teria falhado sendo esse falhanço o causador da intervenção do denominado “Calvo” a quem foi necessário recorrer para que este encontrasse uma solução para pôr a salvo a cocaína enviada. Torna-se patente que foi apenas a impossibilidade de seguir o plano original de retirada da droga do contentor (fosse ele qual fosse) que levou à intervenção imprevista do “Calvo” já com os acontecimentos a decorrer. Foi isso que referiram as testemunhas que intervieram na acção encoberta, os já mencionados S..., e Ó... bem como o funcionário de investigação criminal “Jaime”.
Sobre o teor do depoimento deste que foi quem teve o papel operacional como “encoberto” dir-se-á, num breve parêntesis, porque a ele haverá referências ulteriores que se mostrou sem falhas lógicas ou contradições mesmo sob a pressão, em pleno contraditório, do interrogatório cruzado com respostas totalmente esclarecedoras das dúvidas suscitadas. Por conseguinte, um depoimento que quanto à sua substância foi idóneo e credível no tocante a todos os aspectos que abordou.
Isto apesar de, ter sido prestado por teleconferência, com ocultação de imagem e distorção de voz, ao abrigo do disposto nos arts. 4º e 5º da Lei nº 93/99, de 14 de Julho, por remissão expressa do art. 4º, nº 4 da Lei nº 101/2001, de 25 Agosto que estabelece o regime jurídico das acções encobertas. E de, do ponto de vista formal, não ter sido respeitado o procedimento previsto no art. 10º da citada Lei nº 93/99. Ou seja, sem que a Sra. juíza-presidente tivesse tomado as providências devidas para assegurar que esse depoimento fosse prestado com a presença de um magistrado acompanhante que desempenhasse as diversas funções mencionadas no citado artigo Foi isso que se constatou logo ao escutar o início do mencionado depoimento com as hesitações da Sra. juíza presidente, em diálogo com a Sra procuradora e com Mandatários, sobre a identificação e a prestação de juramento (em que a Sra juíza afirma a dado passo, repetidamente: «Não tem identidadde verdadeira não presta juramento». Porém acabou por prestá-lo,) e resulta também das actas da audiência e da ausência de processado a esse respeito., como identificar e ajuramentar a testemunha, receber o compromisso de sigilo do pessoal que assegure a transmissão, garantir a autenticidade e integridade do registo videográfico, etc. A questão não foi colocada na audiência na qual necessariamente estavam presentes os sujeitos processuais (e no caso dos arguidos também os seus mandatários, claro) e não cominando a lei nenhuma sanção para o incumprimento do dito formalismo tudo se reconduz à ocorrência de uma irregularidade de acordo com o regime geral previsto no art. 123º, nº 1 que, por não ter sido arguida se tem como sanada.
Recorde-se que como é por demais sabido o regime das nulidades quer insanáveis quer sanáveis é «taxativo» como decorre dos arts. 119º e 120º, nº 2 não sendo admissível «aplicação analógica».
Adiante se retomará o assunto a propósito da conclusão 26ª.
Uma breve síntese do que declarou “Jaime” quanto ao que teria sido a origem dos acontecimentos, intervenção neles de “Calvo” e conhecimento entre este e arguidos:
- A informação da DEA foi recebida a três da chegada do contentor;
- Quem enviava a droga tinha uma estrutura organizada que englobaria desde a colocação da droga no contentor até à chegada a Espanha, incluindo a retirada do contentor. Foi quando algo falhou que contactaram o informador da DEA. A organização não teve outro “remédio” senão confiar nele.
- O primeiro contacto com “Calvo” foi telefónico no dia 2 de Abril. Foram-lhe dados alguns pormenores para “construção” da cobertura.
- Na noite de 6 de Abril houve um primeiro encontro de Calvo com arguidos a que se seguiu um outro encontro em que já participou.
- Neste encontro, perto do Hotel Vip… esteve com H... e F....
- Ouviu-os tratar “Calvo” pelo nome.
- Pediu explicações sobre aviso da chagada em cima da hora tendo-lhe sido dito que a droga era destinada a um comprador que desistiu.
- Falaram sobre os preços do seu “serviço”, tendo-lhe sido dito que não podiam entregar-lhe tudo o que pedia mas como estaria um segundo carregamento a caminho com chegada a 12 de Abril, então pagariam tudo.
- O encontro do dia seguinte em que ia acompanhado de “Calvo”, no Centro Comercial Vasco da Gama, foi de novo com F... e H... só depois se lhes juntando Ra... e R... quando já estavam sentados na área de restauração do Centro.
Sobre o que seria o segundo carregamento referiu (a pergunta da mandatária do arguido F...) contra o que está referido na fundamentação e foi referido pela testemunha S...:
- Que o outro contentor viria num navio cuja viagem se iniciou a 30 de Março. A droga teria sido carregada a 2 de Abril, noutro porto.
Retomando …
A informação da DEA dava o “Calvo”, como a pessoa que fez chegar àquela entidade as informações de que dispunha sobre a operação. Sobre ela e o seu papel foi referido pelas já mencionadas testemunhas ser «conhecedor da organização … que pretendia trazer a droga e levá-la para Espanha» e a propósito da sobredita aparente desconformidade lógica a respeito do envio da droga sem garantia de “desembaraço” foi dito que «aquilo que criaram connosco foi uma alternativa a algo que lhes terá falhado … o que falhou não sabemos» (S...). «Teria havido um problema qualquer em Espanha que terá inviabilizado o plano inicial» e a solução encontrada de contactar o “Calvo” «seria uma solução de recurso». O “Calvo” «conhecia as pessoas e foi por isso que se dirigiram a ele … foi essa a informação que tiveram» (Ó...).
Dir-se-á que estas afirmações são vagas e veiculam apenas informações de origem não identificada com pouco valor probatório no tocante ao afastamento de uma provocação na origem da operação. O certo é que, em contraponto, nada há que permita ligar o “Calvo” por qualquer modo à origem dos acontecimentos, ou seja, ao carregamento da droga no contentor, na América do Sul. Acresce que como também está referido na fundamentação e resulta dos depoimentos (S... e “Jaime”) a circunstância de essa parte da operação respeitante ao “desembaraço” da droga, ter corrido bem deu origem a que fosse tomada e concretizada a decisão de enviar um novo carregamento (como referido a “Jaime” pelo arguido H...) justificado precisamente por esse sucesso tendo a PJ recebido a informação sobre o número do contentor e data da sua chegada (12 de Abril) e acabado por proceder à apreensão de 55 kgrs de cocaína o que deu origem a inquérito contra desconhecidos. Tudo conferindo verosimilhança e credibilidade a essa versão da origem dos acontecimentos e a tornar explicável aquele ponto aparentemente absurdo ou ilógico confirmando a existência de um prévio plano criminoso e de uma intenção de levar por diante uma acção delituosa desencadeados sem a intervenção ou como consequência de uma actividade enganosa levada a efeito por “Calvo” que se não fora essa dita actividade não teria sido sequer congeminada nem levada a cabo. Seja isto no âmbito da acção encoberta ou mesmo antes de esta ser formalmente desencadeada.
Por conseguinte, a montante, o mesmo é dizer no tocante ao embarque da droga para a Europa, não existe qualquer razão de facto que justifique que se coloque a hipótese de existir uma provocação no sentido acima mencionado. A acção encoberta só se desencadeou quando a droga já estava a caminho e é plausível, de acordo com critérios de lógica e senso comum, que a intervenção de “Calvo” tenha ocorrido apenas e só como foi referido nos depoimentos mencionados porque algo correu mal em relação ao plano inicial de “desembaraço”.
Admita-se, contudo, que, no primeiro momento que se mencionou, poderia ter havido uma acção enganosa que levasse ao início do processo. Chegada a droga a Portugal ter-lhe-ia de ser dado destino.
Aqui o chamado “efeito-à-distância” que o recorrente invoca poderia ser tido em conta se os receptores da droga fossem do mesmo passo os seus destinatários finais, o que se entende não ser o caso. Aí sim, seria de ponderar que o contágio da provocação – o mesmo é dizer da prova proibida – pudesse estender-se até aos desenvolvimentos da operação em Espanha e Portugal.
Nada disso, porém, aconteceu, sendo claro que a intervenção do recorrente Ra... ... não está ligada aos acontecimentos precedentes.
Convoque-se em primeiro lugar o depoimento da testemunha “Jaime”. Referiu esta que no primeiro encontro que teve com os arguidos H... e F... (cfr facto nº 30) procurou explicações para a razão do atraso de vários dias para a recolha da droga e sobre o aviso em cima da hora da chegada de quem vinha buscá-la e que a resposta que obteve do arguido H... foi a de que isso se devera à circunstância de o produto ser destinado a um comprador que desistira o que levara à procura de uma alternativa.
Sobre este ponto, como de outros do depoimento de “Jaime” em que este transmite conversas que teve com terceiros que são arguidos não se pode falar de depoimento inadmissível por ser indirecto.
Recorde-se o que o art. 129º, nº 1 dispõe: se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova.
A este respeito a reflexão de Carlos Adérito Teixeira “Depoimento Indirecto e Arguido: Admissibilidade e Livre Valoração versus Proibição de Prova”, Revista do CEJ, 2005, nº 2, pags. 160-164. é, crê-se, de toda a pertinência. Na letra do preceito ao ser usada a expressão “do que ouviu dizer a pessoa determinada” parece não se pretender distinguir entre pessoa determinada que seja arguido ou possa assumir o estatuto de testemunha. Porém, ainda na perspectiva da interpretação literal ao usar-se a seguir a expressão “chamado … a depor” parece outrossim excluir-se o caso em que a “pessoa- fonte” é o arguido pois não faz sentido, no âmbito de uma audiência de julgamento, “chamar” quem ali está presente dada a sua condição e que, por causa desta não tem o dever de prestar declarações e prestando-as, não tem o dever de falar verdade.
Donde resulta que o disposto no art. 129º, nº 1 não é aplicável à situação em que os arguidos sejam as “pessoas-fonte”; o que ali se dispõe de modo algum significa que os depoimentos de ouvir-dizer a arguidos não devam ser valorados. Impõe-se então convocar os princípios e normas de carácter geral. Assim, tendo-se por inaplicável ao caso «a norma de condicionamento geral» fica vigorando em pleno o princípio geral sobre a legalidade e liberdade da prova resultante das disposições conjugadas dos arts. 125 e 127º. De resto, em correspondência com a doutrina do Tribunal Constitucional de 1999.07.08 Acórdão nº 440/99.de 1999.07.08. Curiosamente apreciando recursos num processo da 1ª Vara Criminal de Lisboa (proc 584/94.0JGLSB/B) a cujo julgamento o relator do presente tinha presidido, sendo acórdão de 1998.03.23. segundo a qual o depoimento indirecto não é, em absoluto proibido.
A isto acresce um conjunto de elementos de facto e que resultam da prova produzida cuja interpretação não pode ser outra que não seja a de confirmarem a “independência” da actuação dos arguidos R... e Ra... relativamente a todos os acontecimentos anteriores à chegada da droga e também à sua própria chegada a Portugal.
Assim:
Desde logo ninguém fazer qualquer menção à circunstância de “Calvo” ter tido contactos de espécie alguma com Ra... e R..., no âmbito da acção encoberta ou fora dela.
Depois:
A circunstância de os arguidos R... e Ra... terem viajado juntos para Portugal a partir de um ponto diferente dos demais (Sevilha) e por sua vez separados no percurso que tiveram já na zona de Lisboa;
O modo como já em Portugal se comportaram i) com a aquisição de telemóveis com números portugueses; ii) a sequência de contactos estabelecidos primeiro com telefones espanhóis e depois o contacto de F... com R... após Y... ter recebido de Espanha por sms a informação do nº de telefone acabado de adquirir por R...; iii) apenas terem estabelecido contacto com o arguido F..., após a aquisição de um telefone com um número português tudo permitindo e impondo concluir que a deslocação dos arguidos R... e Ra... foi realmente feita separadamente e sem conhecerem os contactos dos que tinham responsabilidade na “importação” droga.
O que é coonestado ainda pela circunstância de o encontro inicial de “Jaime” e “Calvo” ter acontecido apenas com H... e F... que lhe foram apresentados por alcunhas, como é usual e de, nesse encontro, as matérias sobre preços a pagar pelo serviço de “Jaime” terem sito tratadas por H... que assumiu o protagonismo sobre esses assuntos e dando-lhe, como já referido, a explicação sobre uma mudança de compradores que existira dizendo-lhe ainda que faria o pagamento total do que lhe fora pedido quando viesse receber o carregamento que já vinha a caminho.
De notar, sempre de acordo com o depoimento de “Jaime” que nem Ra... nem R... se identificaram de modo algum, quando os contactou no dia seguinte no Centro Comercial Vasco da Gama, nem H... ou F... lhos apresentaram com indicação da sua identidade (verdadeira ou fictícia) o que reforça a ideia de que também para estes aqueles seriam desconhecidos.
Por outro lado, a circunstância de terem viajado de modo a que o regresso se fizesse em dois veículos, como é normal em transportes de droga em que um deles serve de batedor, e sobretudo o protagonismo assumido a partir do momento em que a droga chegou trazida por “Jaime”, já acondicionada no veículo, muito em particular com o controle de quantidade e qualidade de que se encarregou o Ra...(tirou os pacotes do local onde já estavam acondicionados, contou-os e desembrulhou um deles verificando se o seu conteúdo era realmente cocaína, tudo conforme o depoimento de “Jaime”) e em parte dos demais membros da PJ que de longe controlavam os acontecimentos, mostram também que o seu papel era o de transportadores não para H... e F..., ou para quem estes representavam, mas por conta de outros, os recebedores finais em Espanha. Ao que acresce, e esse é também um ponto a sublinhar com particular relevo, a circunstância também referida por “Jaime” de Ra... e R... (e só estes) terem insistido para irem com ele ao local onde a droga estaria guardada a fim de acompanharem o seu acondicionamento no veículo de transporte e de ter sido Ra... (e não F... ou H...) a explicar-lhe como deveria fazer-se esse acondicionamento.
Portanto, tudo permite concluir, repete-se, que fossem quais fossem as condições do embarque da droga na origem havia uma entidade representada por H… e F... que tinha a seu cargo o seu escoamento para Espanha e que foi essa entidade a fazer a ligação com os destinatários finais representados, digamos, por Ra... e R....
Ora, convém aqui recordar, muito sucintamente, o ensinamento corrente a propósito do chamado “efeito-à-distância” expressão que adapta aquela outra originária de formulação anglo-saxónica: fruit of poisonous tree.
No seguimento do Acórdão de referência proferido pelo Tribunal Constitucional Ac. nº 198/2004, de 2004.03.24. Tomaram-no como referente, citando-o, por exemplo os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2006.06.07 (proc 06P650) – de onde foi retirado o trecho entre aspas – e de 2008.02.20 (proc 07P4553). Seguiu também a sua doutrina o de 2009.03.12 (proc 09P0395) todos disponíveis em www.dgsi.pt é tido como assente na jurisprudência que «a projecção da invalidade de prova em matéria de legitimidade ou validade da prova sequencial a prova nula não é automática e que, em cada caso, há que determinar se existe um nexo de antijuricidade que fundamente o “efeito-à-distância”, ou se, em diverso, existe na prova subsequente um tal grau de autonomia relativamente à prova inválida que destaque o meio de prova subsequente substancialmente daquela».
Isto significa que havendo uma prova obtida com violação de direitos do acusado que não pode ser usada contra ele há, ainda assim, a possibilidade de salvaguarda de outras reflexas afastando da doutrina do “efeito-à-distância”, aquele outro do “efeito-dominó” que arraste para a invalidade todas as provas em qualquer circunstância. Na formulação correntemente usada a salvo ficam as provas obtidas por «fonte independente», «descoberta inevitável» ou «mácula dissipada».
No caso concreto, o que há a salientar em primeiro lugar é que a acção encoberta em si não é nem deixa de ser prova proibida.
Prova proibida será a que resultar de meio enganoso usado no seu âmbito. Já se procurou evidenciar que esse dito meio enganoso não foi usado na acção encoberta e, principalmente, que a intervenção do recorrente nada teria a ver com a sua eventual existência. Não teria sido nunca um meio enganoso usado para desencadear a operação de tráfico que poderia levar depois o recorrente a envolver-se nela com as responsabilidades que assumiu. Mas admitindo – admitindo apenas, frise-se de novo – que antes dela, no início do processo factual, teria havido o uso de um qualquer meio enganoso através do qual alguém tivesse sido levado à prática de actos preparatórios ou mesmo de execução de um delito provocado (o embarque da droga na América do Sul) crê-se ser patente e clara, para além da manifesta autonomia dos factos respeitantes ao recorrente, como já se procurou evidenciar, também a autonomia da prova obtida a respeito desses factos. Ela provem em boa medida da intervenção e do depoimento correspondente de “Jaime” mas também dos depoimentos dos demais membros da Polícia Judiciária não intervenientes na acção encoberta que presenciaram a actuação do recorrente. Assim como da demais prova de outra natureza – recolhida no âmbito do processo e não na acção encoberta – não posta em causa, elencada e apreciada na fundamentação.
Sempre teria assim havido produção de provas com «mácula dissipada», ou seja, de provas que não obstante derivadas de uma outra ilegal foram depois adquiridas de forma que as tornou claramente diferenciadas e autónomas o que, por conseguinte, impediria a sua contaminação. Provas com uma mera «relação colateral e não relevante» resultantes do prosseguimento da investigação alcançadas através do «recurso a meios lícitos e alternativos de investigação, da continuação da recolha de outros meios de prova, desta vez independentes e não manchado» Citado Acórdão do STJ de 2009.03.12 e doutrina aí mencionada.
Improcedem, pois, as conclusões 1ª a 7ª da motivação do recorrente.

6.4. – Invoca o recorrente a existência de erro notório na apreciação da prova em virtude de o tribunal ter dado como provado que o recorrente adquiriu em Portugal o veículo Audi A3 cinzento [facto provado 14] e do mesmo passo se ter dado como provado [facto 83] que o recorrente e o arguido R... apenas entraram em Portugal para daqui transportarem a cocaína para Espanha.
Já supra (no ponto 3) se fez menção ao que se deve entender por erro notório de acordo com o ensinamento da melhor jurisprudência.
Repetindo:
Aquele que não escapa à análise imediata do homem médio ao serem cotejados os factos provados e não provados e a fundamentação que é feita a propósito Poderá advir ou de uma incorrecção evidente da valoração e interpretação dos meios de prova ou quando o tribunal retira de um facto uma conclusão ilógica ou arbitrária, à margem duma análise racional ou em violação das regras de experiência comum tudo porém havendo de resultar e só resultar do próprio “texto e contexto” da decisão recorrida.
Segundo esta orientação não se vê em que possa consistir o mencionado erro notório. Em boa verdade nem o recorrente esclarece o seu ponto de vista pois a conclusão 8ª é a reprodução do art. 25 do “corpo” da motivação e não uma síntese de qualquer argumentação que houvesse sido ali feita.
Em boa verdade nada há de ilógico, de irracional ou contrário às regras de experiência na afirmação de que o recorrente apenas entrou em Portugal para transportar a droga para Espanha e de que foi aqui que, com o arguido R..., completou a logística necessária para isso com a aquisição de um outro carro. Estivesse isso planeado ou não o que para o caso é indiferente.
Improcede, assim, a conclusão 8ª da motivação.

6.5. – Nas conclusões seguintes (9ª a 23ª) o recorrente impugna a matéria de facto dada como provada.
Começa pelos pontos 1 a 4 e 9 dos provados referindo que a prova tida em conta pelo tribunal não permite a conclusão extraída.
Não é correcto afirmar, contudo, como o faz o recorrente que as testemunhas ouvidas a propósito da acção encoberta entraram em contradição sobre o que designa por «contacto alegadamente efectuado pela DEA». Como resulta claramente da prova esse contacto existiu mas não foi formalizado por qualquer meio escrito.
Como já se mencionou a propósito do recurso interlocutório (cfr supra ponto 5) isso mesmo foi logo de início frisado pelo coordenador de investigação criminal S... quando referiu «…não há ofício da DEA; não tenho eu nem tem ninguém …; a DEA traz-nos a informação …». E foi reiterado pelo inspector-chefe Ó... que dirigiu directamente a acção encoberta. Assim cerca de 2m19s: «…contactaram-nos com a informação…»; cerca de 3m45s: …«…veio a Lisboa falar comigo [“Calvo”, interpolação ] tal como os colegas da DEA me tinham explicado ao telefone. Recolhi os dados indispensáveis ao início da acção encoberta e assim foi feito …». Cerca de 30m40s: «… eu escrevi na acção encoberta o que a DEA me disse …». E a pergunta da mandatária do arguido F...: «… é que não houve uma informação verbal que depois foi passada a escrito … eu escrevi na acção encoberta o que a DEA me disse …». Aliás, cerca de 31m40s há uma curto diálogo entre a Sra. juíza-presidente e o Exmo Mandatário do recorrente em que a Sra. juíza resume, digamos, o que a tal respeito já fora dito pela testemunha dizendo que não tinha havido «… uma comunicação formal, por escrito, tanto quanto se lembre …» respondendo o Exmo Mandatário «… ah! É que não tinha percebido! …». Havendo ainda uma resposta a pergunta directa do Exmo mandatário do recorrente em que a testemunha reafirma que recebeu a informação da DEA pelo telefone. No seguimento desta pergunta a testemunha afirma, aliás, curiosamente, que «faxs e mails» são tidos pela Polícia como «perigosos» meios de comunicação.
Por conseguinte, quando se refere que a «informação foi formalizada» mais não se pretende significar que foi transposta para o papel a informação verbal recebida da DEA para propor a acção encoberta.
De resto, esta matéria é absolutamente irrelevante, há que salientá-lo, pois nem sequer nos factos provados se faz menção ao modo como o contacto havido entre a polícia portuguesa e a DEA foi estabelecido. Existiu, isso é inequívoco, e deu origem a que fosse proposta e desencadeada uma acção encoberta.
Que a informação era no essencial fundamentada demonstra-o desde logo o desenvolvimento da própria acção encoberta como detalhadamente a descreveu a testemunha “Jaime”.
Por outro lado, não se descortina, salvo o devido respeito, porque razão se afirma que o fax de fls 7, oriundo da polícia espanhola é prova que imponha decisão diversa da recorrida. Esse elemento não acrescenta nem retira absolutamente nada aos factos provados 1 a 4 e 9. A circunstância de haver informações da polícia espanhola – que aliás terão sido transmitidas a 6 de Abril (cfr fls 3) e confirmadas no fax mencionado – que deram origem ao processo em nada contende com a existência de uma acção encoberta que já estava a decorrer.
Além disso, no tocante à impugnação de contactos mantidos entre “Calvo” e elementos responsáveis pela vinda da cocaína (art. 32º do “corpo” da motivação e conclusão 10ª), deve notar-se que o recorrente não indica prova que imponha decisão diversa. Não a constitui as referências feitas aos depoimentos das testemunhas (cfr conclusões 11º a 14ª) e não pode ser conferida qualquer relevância à afirmação contida em 2) do art. 33 do corpo da motivação onde se firma que inexistem elementos de prova documental ou testemunhal que atestem esses contactos. Se a prova é inexistente não impõe coisa alguma. E de resto que os contactos existiram é incontornável como o demonstra o decurso dos acontecimentos e como o admite até o arguido F... nas suas declarações embora lhe dê um sentido diverso. Note-se entre outros aspectos que este arguido disse conhecer “Calvo”, referiu ter trazido 30.000 € (que foram entregues a “Jaime” para pagamento do seu serviço) que lhe teriam sido entregues por “Calvo” em Espanha e insistiu sempre que cumpria ordens de “Calvo”. Logo houve contactos que é o que o recorrente impugna.
Impugna ainda o recorrente os factos respeitantes à sua concreta intervenção nos acontecimentos.
A primeira nota a este respeito e no tocante à impugnação do facto provado 10 é para sublinhar que nele se consignou como provado que para recolher a cocaína o recorrente e os arguidos R..., F... e H... se deslocaram a Portugal mas não se diz, como o afirma o recorrente (cfr art. 34º do “corpo” da motivação e conclusão 15ª) que veio juntamente com os co-arguidos.
Assiste, contudo, razão ao recorrente no tocante à impugnação do facto 25 dos provados.
O facto provado 16 tem o seguinte teor:
16. Ao fim da tarde de dia 6, os arguidos R... e Ra... deslocaram-se, no Audi A3 cinzento, ao Centro Comercial Cascaishopping, onde compraram dois telemóveis com os números: 000 000 017 e 000 000 049.
E o facto provado 25, por seu turno, consignou-se o seguinte:
25. Após a deslocação ao Cascaishopping, os arguidos Ra... e R... fizeram check-in no Hotel V..., no Estoril.
Porém, de acordo com o documento de fls 1648 – oriundo de “V... G... SA” dá conta de que o check in foi feito naquele hotel às 12h07m e o check out às 21h37.
Por conseguinte impõe-se a eliminação do facto provado 25 e em sua substituição o aditamento de um outro que será o 14-A com o seguinte teor:
“Pelas 12h07m os arguidos R... e Ra... ... fizeram check-in no Hotel V..., no Estoril”.
Impugna o recorrente os demais factos referentes à sua participação especificamente os seguintes:
52. Os arguidos Ra..., F... e o “Calvo”, dirigiram-se, apeados, ao encontro do Audi azul e do “funcionário Jaime”, que os esperava no piso 2 do referido parque de estacionamento.
53. O “funcionário Jaime” e o arguido Ra... entraram para o banco de trás do Audi, de onde o primeiro tirou vinte e cinco pacotes de cocaína dos forros laterais da viatura, para que fossem contados.
54. No exterior da viatura, o arguido F... e o “Calvo” esperavam que o arguido Ra... desse a contagem dos pacotes de cocaína por terminada.
55. Pelas 15H30, o arguido F... e o “funcionário Jaime”, juntamente com o “Calvo”, abandonaram o parque apeados, ficando o arguido Ra... dentro da viatura.
56. Nesta altura, foram efectuadas diversas chamadas telefónicas entre os arguidos R..., Ra..., F... e H....
57. O arguido R... comunicou com o arguido Ra..., enquanto que o arguido F... ligou para o arguido H....
……………………………………………………………………………...
60. O “Calvo” e o “funcionário Jaime” abandonaram o parque, e apanharam um táxi, para a zona dos Olivais onde chegaram às 15H40.
61. Enquanto isso, o arguido Ra... permaneceu dentro do Audi A3 azul, a arrumar os pacotes de cocaína.
……………………………………………………………………………...
79. Os arguidos R..., Ra... ..., F... Q... e H... conheciam a natureza estupefaciente e características da cocaína que vieram recolher a Portugal, nas circunstâncias referidas, e transportar para Espanha.
80. Agiram livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram criminalmente punidas por lei.
83. Apenas entraram em território em território nacional para daqui transportarem a cocaína para Espanha.
As provas que o recorrente entende que impõem decisão diversa da recorrida são (cfr conclusões 16ª a 23ª):
- As suas próprias declarações;
- As declarações do arguido R...;
- As declarações do arguido F...;
- O relatório de diligência externa de fls 14;
- O aditamento de fls 165;
- O depoimento do inspector A M....
O primeiro aspecto a frisar é o de que aquilo que se designa como “aditamento de fls 165” nem sequer pode ser atendido para o efeito pretendido. É desde logo discutível que uma “informação de serviço” – pois é disso que se trata – subscrita por um inspector possa valer como meio de prova. Mas nem valerá a pena discorrer sobre a matéria. Basta atentar que tal meio de prova não foi tido em consideração na audiência mormente aquando do depoimento do seu subscritor, o inspector A M... e a ele se não refere a fundamentação considerando-o, seja positiva seja negativamente. Trata-se, por conseguinte de algo que não foi valorado pelo tribunal.
Quanto ao “relato de diligência externa” de fls 14-18 é também duvidoso que possa ser tido como meio de prova em virtude de, em última análise, constituir um depoimento escrito sobre factos que os órgãos de polícia criminal terão presenciado. Ora, serão estes que deverão depor em tribunal acerca de tal matéria em nome dos princípios da imediação e do contraditório, já que mais não seja. Mas o certo é que o dito “relato” foi indicado como meio de prova pela acusação sem oposição e foi tido em conta na decisão final.
Dito isto há-de dizer-se também que o mencionado “relato” nada prova de diferente daquilo que está referido nos factos provados. Ali se dá conta de que o recorrente, ao abordar o Audi Azul que viera de ser “carregado” com as embalagens de cocaína, abriu a bagageira e observou o interior. O que de modo algum exclui o que está consignado nos pontos 53 e 54 provados. A circunstância de o recorrente ter aberto a mala e ter observado o seu interior não é excludente de, em seguida, ter entrado no veículo para o banco de trás para conferir a existência da cocaína. Em rigor nem sequer o recorrente afirma que assim seja limitando-se a avançar sem detalhe que esse “relato” impõe outra conclusão que não tira. Se o que se pretende é conferir substância à afirmação do próprio recorrente de que foi à bagageira para recolher as suas coisas e passá-las para o outro Audi 3, aquele que conduzia quando foi detido, é manifesto que tal propósito não procede perante a prova produzida segundo a qual esteve dentro do veículo, no banco de trás, a verificar a existência, quantidade e qualidade do que ali era transportado (cfr depoimentos das testemunhas “Jaime” e T...).
Quanto ao depoimento da testemunha inspector A M... é manifesto que dele nada se pode extrair que imponha decisão diversa quanto aos factos concretamente impugnados. Reporta-se ao momento em que, da parte da manhã de 7 de Abril, os arguidos R... e Ra... se dirigiram para junto do Audi azul, na companhia de “Jaime”, Calvo e F..., a fim de, depois, Jaime levar o veículo para ser carregado. Aquilo que a testemunha referiu e que o recorrente transcreve e sublinha (cfr parte final do ponto (3) do art. 44 do “corpo” da motivação), ou seja que os arguidos e “Jaime” se aproximaram dos Audis e estiveram ali a conversar não é contraditório com nenhum facto dos provados que o recorrente impugna. E na verdade, apesar de se tratar de factos laterais, também não é contraditório com o depoimento de “Jaime” Este, a tal respeito, a pergunta da Sra. procuradora (cerca de 50m40s: «E indicou-lhe como? Abriu o carro, entrou para o carro?») respondeu apenas «sim» sem esclarecer se o recorrente apenas tinha aberto o carro ou se também tinha entrado, detendo-se mais no tipo de explicação que lhe tinha sido dado. É natural, porém, que pelo menos o carro tivesse sido aberto perante a explicação dada sobre a retirada do forro lateral, sendo mencionada até a existência de uma marca «junto à viga» central a partir da qual essa operação deveria ser feita. Mas mais uma vez o depoimento de A M... não é excludente da versão de “Jaime” na medida em que tenha afirmado peremptoriamente a não entrada no veículo.
Por último, o recorrente pretende serem provas que impõem decisão diversa da recorrida as suas próprias declarações, e as dos arguidos F... e R.... Naturalmente que as versões são contraditórias mas o tribunal explicou detalhadamente – porventura até com minúcia excessiva face ao que determina o nº 2 do art. 374º quando alude a uma exposição “concisa” – as razões porque não levou em consideração estas declarações quanto à versão que pretendiam fazer valer, além do mais pela sua inverosimilhança, e porque se lhe opuseram os depoimentos tidos como credíveis das testemunhas. Fê-lo sem margem para reparo podendo dizer-se que se há prova que imponha decisão diversa da que o recorrente pretende ser a sua é a que foi produzida com abundância. Diga-se que neste particular aspecto mais do que a indicação de prova que imponha decisão diversa da recorrida aquilo em que o recorrente mais se empenha, ao fim e ao cabo, é em manifestar a sua discordância sobre o modo como a prova foi apreciada o que sendo legítimo não é em rigor impugnação.
Improcedem, pois as conclusões 9ª a 23ª.

6.6. – Na conclusão 26ª pugna o recorrente pela declaração de inconstitucionalidade dos «arts 1º nº 1, 3º nºs 1 e 6, 4º nºs 1 a 4 da Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto [e bem assim os preceitos para onde este remete], de 25.08, conjugados com os artigos 348º n.º 3, 355º n.º 1, 375º, do CPP quando prevêem a possibilidade de condenação através da valoração de depoimento por testemunha cuja identificação não foi alcançada de modo suficiente, e que alegando o estatuto de agente encoberto não viu ser obtido para os autos o relato da acção encoberta que em 48 horas haveria de ter sido elaborado são materialmente inconstitucionais por violação dos artigos 32º n.º 1, 5 e 8, e 272º n.º 1 a 3 da CRP».
O recorrente limita-se a invocar a dita inconstitucionalidade por violação dos artigos citados da Constituição mas não aduz nenhuma argumentação sobre a razão da sua invocação (cfr também arts 42 e 43 do “corpo” da motivação).
Já supra se abordou a questão da nenhuma expressão do relato da acção encoberta para sustentar a prova de factos que pudessem determinar a condenação dos arguidos e como a questão foi superada por um lado com a prestação do depoimento de “Jaime” e por outro, na decisão, com a não valoração do dito relato nas condições em que foi apresentado. Falece assim desde logo uma das razões invocadas pelo recorrente que é a da não obtenção para os autos do relatório da acção encoberta que haja sido feito em 48 horas, nos termos do art. 3º, nº 6 da lei nº 101/2001. De resto, há ainda que pôr em destaque, de novo – pois isso foi também já referido supra – que a acção encoberta não foi levada a efeito no âmbito do inquérito, e que o fosse, a junção do relato ao inquérito não é obrigatória; pelo contrário como resulta do art. 4º, nº 1 da Lei mencionada.
Assim, com o depoimento do agente encoberto foram asseguradas de modo eficaz as garantias de defesa do recorrente nomeadamente a imediação e o contraditório. Naturalmente de forma não plena mas essa limitação foi justificada por razões que na usual ponderação de valores em jogo acabam por ser justificadas, a saber razões, que se prendem com a própria segurança do agente encoberto. O certo, contudo, é que a defesa do recorrente (como as demais) teve a possibilidade de amplamente proceder ao contra-interrogatório.
De resto, deve notar-se também que a prestação de depoimento com ocultação de identidade prevista na Lei nº 93/99, de 14 de Julho, para a qual remete o art. 4º, nº 4 da Lei nº 101/2001 segue as recomendações das instâncias internacionais, nomeadamente do Conselho da Europa Como dá conta Sandra Oliveira e Silva, ob cit., pags. 152 e ss..
Acresce que – e isso é escamoteado pelo recorrente – de modo algum se pode dizer que a condenação do recorrente foi obtida apenas por meio do depoimento do agente encoberto, que esse foi o único meio de prova a suportar essa decisão Basta ler a descrição dos factos e a fundamentação que é feita para concluir de forma absolutamente peremptória que muita outra prova contribuiu para essa condenação.
Mas o que é mais, o recorrente não se opôs, como também já referido supra (a que tal depoimento fosse prestado mesmo quando foi decidido que tal aconteceria nos termos do disposto no art. 5º, nº 2 da Lei nº 93/99, de 14 de Julho (cfr despacho de fls 1647) e sobretudo também não se opôs a que tal sucedesse nas condições concretas em tal sucedeu (cfr 4.2.8).
É certo que na audiência da manhã de 2010.0701 (cfr acta a fls 1658-1660) o recorrente requereu que o testemunho do agente encoberto só tivesse lugar depois de o tribunal se certificar que o depoente e o agente encoberto eram «uma e a mesma pessoa». Contudo, quando na sessão da tarde do mesmo dia (cfr acta a fls 1661-1662) foi prestado o dito depoimento nas condições já mencionadas supra em 6.3. e o recorrente não reagiu de modo algum.
Por conseguinte, não só a decisão sobre a prestação do depoimento transitou como o incumprimento do disposto no art. 10º da Lei nº 93/99, a que o recorrente não se opôs configurou uma irregularidade já sanada, como mencionado supra.
Sempre seria, pois de considerar extemporânea a arguição da inconstitucionalidade nos termos em que se apresenta no recurso da decisão final.
Dir-se-á, por fim, que se não afigura curial invocar a inconstitucionalidade de um determinado regime legal quando esse regime legal não foi aplicado na integra. A deficiência – passe a expressão – não estará no regime legal mas na forma incompleta como foi aplicado. Porém, frisa-se de novo, sem reacção do recorrente que desse modo permitiu a sua sanação.
Improcede assim a conclusão 26ª.


6.7. – Nas conclusões 24º e 25º invoca o recorrente que houve erro de direito expresso na medida da pena que entende sempre deveria ser mais benigna, pugnando pela sua fixação no mínimo legal com suspensão da sua execução.
A pena imposta, recorde-se, foi a de 6 anos de prisão numa moldura abstracta entre os 4 e os 12 anos de prisão (art, 21º, nº 1 do Dec Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro), ou seja, pouco acima do limite mínimo.
Tida a pena, qualquer pena e por conseguinte também as penas de substituição, como instrumento de política criminal destinado a actuar sobre a generalidade dos cidadãos – logo no sentido da prevenção geral – afastando-os da prática dos crimes através da ameaça penal que o Estado consagra na lei, essa intervenção estatal costuma ver-se numa dupla perspectiva.
Na perspectiva da prevenção geral negativa ou de intimidação através da imposição da pena, para esse efeito, a quem delinquiu ou na perspectiva mais moderna da prevenção geral positiva ou de integração em que se pretende demonstrar a validade das normas jurídicas violadas e a efectiva tutela jurídica dos bens que elas visam proteger. Em que se procura, em suma, que os padrões de comportamento se adequem a essas normas para garantir a restauração da paz jurídica tendo embora como pano de fundo o limite inultrapassável da aferição da culpa do delinquente que «legitimará» a sua justeza e adequação. É este o ensinamento da melhor doutrina Cfr Figueiredo Dias, “Direito Penal, Parte Geral, 2ª ed, pags 49 e ss que precisamente chama a atenção para a circunstância de este «programa político-criminal» ter sido assumido pelo legislador no art. 40º do C. Penal a partir da sua versão de 1995 Figueiredo Dias, ob cit, pag. 84.
No mesmo sentido se orienta a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que pela sua normal autoridade se há-de seguir.
Assim, por exemplo, no recente Acórdão de 2010.06.09 Proc 249/09.6JELSB.L1.S1 in www.dgsi.pt, depois de se pôr em relevo precisamente que o modelo do Código Penal sobre os fins das penas está condensando no art. 40º, sobrelevando a necessidade de protecção dos bens jurídicos consigna-se o seguinte:
«Os tráficos de estupefacientes são comunitariamente sentidos como actividades de largo espectro de afectação de valores sociais fundamentais, e de intensos riscos para bens jurídicos estruturantes, e cuja desconsideração perturba o própria coesão social, desde o enorme perigo e dano para a saúde dos consumidores de produtos estupefacientes, como por todo o cortejo de fracturas sociais que andas associadas, quer nas famílias, quer por infracções concomitantes, ou pela corrosão das economias legais com os ganhos ilícitos resultantes das actividades de tráfico.
A dimensão dos riscos e das consequências faz surgir, neste domínio, uma particular saliência das finalidades de prevenção geral – prevenção de integração para recomposição dos valores afectados e para a afirmação comunitária da validade das normas que, punindo as actividades de tráfico, protegem tais valores.
Mas também, por isso mesmo, a dimensão da ilicitude que impõe o primado das finalidades de prevenção geral tem de estar conformada pela situação concreta e pelas variadas formulações, objectivas e subjectivas, da actividade que esteja em causa.
O nível e a densidade da ilicitude constituem, nos crimes de tráfico de estupefacientes, os elementos referenciais das exigências de prevenção geral.»
Dando como assente – em benefício do recorrente – a interpretação dos factos que o tribunal fez e que se afigura questionável “reduzindo” a sua participação ao mero «segurança do transporte actuando como “batedor”» o que se não enquadra plenamente no que ficou provado, como já supra se assinalou, nomeadamente no tocante ao controle que exerceu quando a cocaína foi entregue aos arguidos, não é possível escamotear, ainda assim, aspectos manifestamente preponderantes na apreciação da «dimensão da ilicitude» como a quantidade de estupefaciente envolvido na prática do crime e a sofisticação dos meios e da actuação desenvolvida. Isto perante uma situação pessoal que nem sequer é a “típica” de situações semelhantes já que este tipo de tarefas – as que o tribunal considerou que o recorrente desempenhou – são em regra cometidas e o seu desempenho é aceite por pessoas com condições sociais e pessoais adversas o que não é manifestamente o seu caso como resulta dos factos provados.
Acrescendo ainda a circunstância de o recorrente ter antecedentes criminais recentes, com uma condenação por crime de burla, há-de concluir-se que não está prefigurada uma situação de prognose favorável que justifique ponderar a aplicação de uma pena de substituição.
A que de todo o modo sempre seria pouco recomendável recorrer salvo circunstâncias fora de comum plenamente evidenciadas, como já se sublinhou.
A este respeito Ainda que se trate de uma situação em que está em causa um “correio” de droga à qual normalmente se associa um menor grau de culpa justificativo de um pendor mais benevolente., o da excepcionalidade da suspensão da execução da pena, na linha da jurisprudência citada é também oportuna nova invocação da jurisprudência Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2007.11.15, proc 07P3761; no mesmo sentido v.g. Acórdão de 2007.09.27, proc 07P3297, ambos em www.dgsi.pt :
«Tratando-se de um transporte significativo de droga, por um correio, postulam-se razões de prevenção geral de intimidação que marcam uma forte presença; sempre que um Estado enfraquece a sua reacção contra tais condutas, logo recrudesce a respectiva prática. E são também fortes as exigências da prevenção geral de integração, neste tipo de crime: tráfico de estupefacientes. A Resolução do Conselho de Ministros n.º 46/99, de 26 de Maio, que aprovou a estratégia nacional de luta contra a droga, fixou como um dos objectivos primordiais o reforço do combate ao tráfico, aliás, como opção estratégica fundamental para Portugal. E acrescentou que «as dramáticas consequências do tenebroso negócio do tráfico ilícito de drogas, empreendido tantas vezes por verdadeiras organizações criminosas, e que atinge não apenas a vida dos jovens mas também a vida das famílias e a saúde e segurança da comunidade, são de tal modo chocantes que se torna um imperativo mobilizar todos os esforços para combater o tráfico com redobrada determinação...(…)
Assim, a suspensão da execução da pena nos casos de tráfico comum e de tráfico agravado de estupefacientes, em que não se verifiquem razões muito ponderosas, que no caso se não postulam, seria atentatória da necessidade estratégica nacional e internacional de combate a esse tipo de crime, faria desacreditar as expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada e não serviria os imperativos de prevenção geral».
Resulta, portanto, que a pretensão do recorrente não pode ser acolhida.
Improcedem assim as conclusões 24ª e 25ª.

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7. – Em face do exposto decide-se:
A) Rejeitar o recurso interlocutório interposto pelo arguido R... do despacho proferido na sessão da audiência de 2010.07.27 (cfr acta a fls 1786).
B) Rejeitar os recursos da decisão final interpostos pelos arguidos R..., F... e H....
C) Negar provimento aos recursos interlocutórios do arguido Ra... dos despachos proferidos a fls 1712-1717 e 1749-1752.
D) Alterar a matéria de facto nos termos supra mencionados em 6.5. eliminando o facto provado 25 e aditando um outro que será o 14-A com o seguinte teor:
“Pelas 12h07m os arguidos R... e Ra... ... fizeram check-in no Hotel V..., no Estoril”.
E) Negar provimento ao recurso da decisão final do arguido Ra....
F) Condenar cada um dos arguidos R..., F... e H... na importância de 3 UC’s ao abrigo do art. 420º, nº 1, al. b) e ainda em 4 UC’s de taxa de justiça.
O arguido R... pagará ainda 3 UC’s pelo decaimento no recurso interlocutório.
G) Condenar o arguido Ra... em 3 UC’s de taxa de justiça pelo decaimento em cada um dos recursos interlocutórios e em 5 UC’s de taxa de justiça pelo decaimento no recurso da decisão final.

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Feito e revisto pelo 1º signatário.

Lisboa, 22 de Março de 2011

Nuno Gomes da Silva
Filomena Lima