Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2683/12.0TJLSB.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
URBANIZAÇÃO
CLAUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
NULIDADE
ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/01/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I. É nula, por força do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, a cláusula contratual geral que define a obrigação de prestação de serviços por parte do predisponente remetendo para os “mesmos moldes em que tem vindo a ser efectuada”, sem que em passo algum do contrato se mostrem discriminados os termos em que tal prestação tinha vindo a ser prestada.
II. São nulas, por força do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, as cláusulas contratuais gerais que vinculem o aderente, adquirente de um lote de terreno destinado à construção de moradia própria, ao pagamento ao predisponente de uma quantia como contrapartida pela prestação de serviços comuns ao empreendimento urbanístico em que o imóvel se insira, sem limitações temporais, sem possibilidade de o aderente futuramente intervir na nomeação de outro prestador de serviços e com a obrigação de transmitir tais obrigações a futuro adquirente do imóvel.
III. Tendo o aderente peticionado a nulidade da totalidade do contrato de prestação de serviços onde se inserem as cláusulas julgadas nulas ao abrigo do regime jurídico das ccg, tal pretensão deverá ser analisada à luz do regime da redução dos negócios jurídicos, mantendo-se a parte restante do contrato a menos que se conclua que outra teria sido a vontade conjetural das partes à data da celebração do contrato.
IV. Não constitui abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o facto de os aderentes, em ação anteriormente instaurada contra eles pela predisponente, terem impugnado a obrigação de pagamento da contrapartida pela prestação de serviços sem questionarem a validade do contrato e posteriormente terem instaurado ação em que pretendem a declaração de nulidade do contrato.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa:



I-RELATÓRIO:


Em 16.5.2012 Amélia e Z, como 1.ºs Autores, e Rui e Iris, como 2.ºs AA., intentaram nos Juízos Cíveis de Lisboa ação declarativa, com processo sumário, contra A, S.A. e B, Lda.

Os AA. alegaram, em síntese, que a 1.ª R. é uma sociedade que se dedica à compra e venda de bens imobiliários e a 2.ª R. é uma sociedade que se dedica à gestão e exploração de equipamentos desportivos. Em 02.3.1998 os 1.ºs AA. compraram à 1.ª R. um lote de terreno para construção sito na Herdade (…), concelho de Almada. Em 07.11.2000 os 2.ºs AA. compraram à 1.ª R. um lote de terreno para construção também sito na Herdade (…). Sucede que, sem advertência ou explicação prévia, aquando da celebração da escritura os AA. foram confrontados com uma condição da compra e venda, traduzida na obrigatoriedade de subscreverem um documento complementar. Esse documento complementar consubstanciava um contrato de prestação de serviços e é um contrato de adesão, cujas cláusulas não foram negociadas nem explicadas aos AA. e violam o disposto nos artigos 5.º, 21.º alínea b), 15.º, 18.º alíneas j) e l) e 13.º do RJCCG e art.º 13.º da CRP, sendo certo que aquando da contratação os AA. estavam convencidos de que os imóveis que haviam adquirido se integrariam num condomínio privado, vedado ao público, quando afinal tal não era verdade, tendo o Município de Almada ordenado administrativamente que as portarias com cancela que existiam na Herdade fossem retiradas. Mais afirmaram os AA. que as RR. não estavam a prestar os mencionados serviços, os quais de todo o modo fazem parte das atribuições e obrigações do Município e por conseguinte não devem ser cobrados aos proprietários, sendo certo que nem todos os proprietários tiveram de assinar o dito documento complementar.

Os AA. terminaram pedindo que fossem declaradas nulas as cláusulas que compõem o contrato (documento complementar) em questão, por violação dos dispositivos legais supra referidos e bem assim do art.º 8.º, alínea b) do RJCCG, e ainda que “todas as prestações cujo pagamento tenham sido exigíveis aos 1ºs e 2ºs AA. no âmbito dos serviços que as RR. alegam ter-lhes prestado, sejam consideradas ilegais e abusivas, assim se desonerando os 1.ºs e 2.ºs AA. de tal pagamento.”

As RR. contestaram, por exceção e por impugnação. Por exceção, a 1.ª R. arguiu a sua ilegitimidade, na medida em que os contratos de compra e venda haviam sido celebrados entre os AA. e a sociedade C, S.A., após o que esta sociedade se fundiu, por incorporação na 1.ª R., com esta, e em 31.7.2007 a 1.ª R. foi objeto de cisão, com destaque de parte do seu património, o qual foi incorporado na ora 2.ª R., que assumiu todos os direitos e obrigações inerentes aos contratos de prestação de serviços objeto destes autos. As RR. arguiram ainda a existência de caso julgado quanto aos 1.ºs AA., na medida em que, em ação instaurada pela ora 2.ª R. contra os ora 1.ºs AA., estes foram condenados ao pagamento de prestações em atraso referentes ao contrato de prestação de serviços a que estes autos respeitam.

Por outro lado, está em discussão nos tribunais administrativos a questão da legalidade das ditas portarias com cancela, o que constitui questão prejudicial que deveria impor a suspensão da presente instância. Mais afirmaram as RR. que a C esclareceu devidamente os AA. quanto às cláusulas ora em crise, os quais concordaram expressamente com elas, sendo certo que já figuravam nos respetivos contratos-promessa. Segundo as RR., os imóveis dos AA. estão integrados num empreendimento turístico, estando sujeitos ao regime jurídico fixado no Dec.-Lei n.º 228/2009, de 14.9, o qual impõe aos proprietários a obrigação de contribuírem para as despesas comuns.

As RR. terminaram concluindo pela procedência das exceções arguidas, por provadas, com a consequente absolvição da instância “e” do pedido, “devendo por isso a presente acção ser julgada improcedente” (sic).

Os AA. replicaram, pugnando pela improcedência das exceções e requerendo alegada ampliação da causa de pedir, consubstanciada na alegação de que o “documento suplementar” não satisfazia as exigências do regime jurídico dos empreendimentos turísticos, devendo as respetivas cláusulas serem julgadas nulas também com esse fundamento.

As RR. opuseram-se à alegada ampliação da causa de pedir.

Por despacho datado de 22.01.2013 fixou-se à causa o valor de € 259 973,46 e consequentemente determinou-se que a ação passasse a ser tramitada como processo ordinário e fosse remetida à distribuição pelas Varas Cíveis de Lisboa.

Em 13.3.2013 foi proferido despacho saneador, no qual se absolveu a 1.ª R. da instância, por ilegitimidade processual, julgou-se improcedente a exceção de caso julgado, indeferiu-se a requerida suspensão da instância e admitiu-se a ampliação do pedido e da causa de pedir. Mais se procedeu à seleção da matéria de facto assente e à fixação da base instrutória.

Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, em sessões realizadas em 17.9.2013, 18.9.2013, 08.10.2013, 26.11.2013 e 24.6.2014.

Em 14.9.2014 foi proferido despacho auscultando as partes acerca de eventual abuso de direito por parte dos 1.ºs AA., na modalidade de venire contra factum proprium.

Em 28.11.2014 foi proferida sentença em que se julgou a ação não provada e improcedente e consequentemente absolveu-se a 2.ª R. do pedido.

Os AA. apelaram da sentença, tendo apresentado alegações em que formularam as seguintes conclusões:

I. Tendo por guia os Temas de Prova (artº 596º do CPC) o presente recurso adotou a metodologia legal (artº 640º do CPC) indicando os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, indicando com exatidão as passagens da gravação onde se funda o presente recurso e terminando com a decisão que se entende deveria ter sido proferida. Invoca igualmente o presente recurso documentos, cuja relevância para a decisão se afiguram essenciais e cuja leitura se transcreve, dando-se todas as transcrições apresentadas por reproduzidas nesta sede, pois que indicam decisão diversa da que foi proferida.
II. Quando a sentença afirma: “ Inexistindo verdadeira condição e sendo o documento complementar legalmente permitido, improcede qualquer argumento de surpresa.”, configura a denegação da justiça que os AA. vieram solicitar, pois é a R. que lhe chama condição, e que a utiliza em consonância na escritura de compra e venda tal como se encontra provado nos factos 6º e 8ª (respeitantes às escrituras de compra e venda dos lotes de terreno da Herdade …. dos aqui AA.) e patentearam os depoimentos de todas as testemunhas para as quais se remete conforme descriminado no corpo do recurso, nomeadamente Jacinto, José Artur, Francisco, José da Silva e António.
III. Os AA. pretendem que seja valorada a situação partindo do pressuposto que no âmbito da liberdade contratual com as restrições próprias por se tratar de um contrato de adesão cuja redação se rege pelo Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais (RJCCG), aprovado pelo DL 446/85 de 25 de Outubro com a última redacção conferida pelo DL 249/99 de 7 de Julho, tenham sido enganados quanto ao facto de se tratar a assinatura do contrato complementar de uma condição, sem a qual estes não poderiam ter adquirido o lote de terreno prometido, tal como se encontra gizado pela R.
IV. Do probatório transcrito verifica-se a falta da comunicação das cláusulas em termos de suficiente clareza e consciência do que as mesmas comportavam, além do mais, as mesmas foram impostas e partiram de um pressuposto igualmente erróneo, o facto de estarem convictos de que a Herdade da Aroeira se tratava de um condomínio fechado ou privado, verificando-se a violação do artº 5º do RJCCG, pelo que o contrato se encontra eivado de nulidade.
V. As respostas aos temas de prova 3º e 4º e ainda o 11º, reapreciando a matéria de facto, conforme os depoimentos supra transcritos, para os quais se remete a pgs. 8 a 10, revelam que os promitentes-compradores assinaram um contrato que fazia referência aos eventuais serviços que viriam a ser prestados, mas a verdade é que estes nunca lhes foram explicados, muito menos negociados, e nem sequer que seriam sujeitos a contrato complementar a assinar, enquanto condição da outorga da escritura de compra e venda. E entende-se a coação a que foram sujeitos os compradores, que tendo já pago um sinal avultado (normalmente de 20% sobre o valor total da aquisição do terreno cfr. depoimento da testemunha ex-adv. da R.), a desistência do negócio o faria perder, como se sabe.
VI. Em conformidade com a prova produzida, e com as testemunhas dos AA. que não tem interesse na causa, - ao contrário das testemunhas da R. que sendo seus funcionários tem uma dependência hierárquica e financeira, notando-se que o legal representante da R. Dr. Pedro se encontrou presente nas audiências, precisamente no dia do depoimento das testemunhas da R. (cfr. depoimento transcrito supra a pg. 23 – os factos 26 e 27 da sentença deverão ser dados por provados, bem como o facto 19 deve ser dado por não provado.
VII. Sobre a prestação dos serviços como verificámos pelos depoimentos dos moradores e proprietários, estes não são prestados conforme o clausulado, ou seja não é feita a manutenção de um elevado nível de conservação dos espaços verdes e de utilização colectiva, acessos viários e pedonais, bem como o asseio dos mesmos, nem a manutenção da vedação que se encontra danificada, não há segurança activa, pois há furtos, introdução de vendedores de vários bens e a portaria é apenas uma encenação, factos que resultam suficiente e claramente provados com os depoimentos de Jacinto, José Artur, Francisco, José da Silva, António e Maria de Fátima.
VIII. O pressuposto de que partiam os compradores dos lotes da HA, e designadamente os aqui AA. era que os serviços constantes do contrato complementar, seriam prestados no âmbito de um condomínio fechado, tal como se verifica dos depoimentos supra transcritos para os quais se remete, e é a própria sentença que dá como provado no nº 18 o facto de: a Herdade … não tem estatuto de domínio privado, pelo que qualquer pessoa pode livremente aceder à mesma, sendo proibida a sua identificação.
IX. Quanto à questão das cancelas a verdade é que estas não estão previstas no processo de loteamento, não estão licenciadas, e ter-se-á tratado de promoção imobiliária como referiu o Sr. Arquitecto Ricardo, assessor da vereadora do Urbanismo da CMA aos 11mn 20 ss, pelo que ter-se-á de concluir que o objeto do contrato nessa parte seria ilegal, por isso impossível.
X. Os factos nºs 24 e 25 deverão ser dados como provados e consequentemente concluir-se pelo erro sobre os pressupostos em que o contrato foi celebrado, pois a Cláusula Primeira do documento complementar refere os serviços prestados com a manutenção de vedação da propriedade, segurança activa e portaria, tendo inculcado nos AA. e demais compradores nas semelhantes circunstâncias, a convicção que a Herdade (…) teria um acesso restrito, garantindo uma segurança efectiva, tratando-se de um condomínio fechado o que não corresponde à realidade, em concordância com os depoimentos transcritos a pgs. 17 a 20 para as quais se remete, salientando-se os sublinhados neles constantes, e dando-se os mesmos por integralmente transcritos para os devidos efeitos legais.
XI. Os serviços não são prestados (ainda que, sem conceder, o tivessem sido no passado), e como se prova da redação do contrato e do próprio depoimento das testemunhas, a acrescer a própria sentença, não há possibilidade de desvinculação dos obrigados ao pagamento de tais pretensos serviços.
XII. Retira-se assim que não só é injusta a prestação em causa, como o clausulado do documento complementar é proibido por ser contrário à boa-fé, nos termos do artº 15º do RJCCG.
XIII. A sentença padece de contradição, pois dá por provado o tema de prova 10º que corresponde ao nº 15 dos factos provados: É a edilidade de Almada que procede à de recolha de lixos domésticos no interior da Herdade (…)., e não retira a consequência de anular nessa parte a cláusula que consigna a prestação de um serviço que comprovadamente não presta, com a inerente redução do preço.
XIV. Trata-se o documento complementar de um contrato privado, pois é celebrado entre uma empresa privada e particulares, mas a verdade é que o objeto do contrato estabelece a prestação de serviços públicos que foram transferidos para a entidade privada, mas obviamente, como decorre da leitura do próprio protocolo e é esclarecido pela CMA no documento nº 17 (in fine), junto aos autos e referido pela testemunha António (ex-presidente da Junta de Freguesia da Charneca da Caparica de 1990 -2005, na sequência da sua interpelação Doc. nº 17-A,) não comporta quaisquer responsabilidades para os proprietários e residentes da Herdade (…).
XV. Todos os proprietários estão nas mesmas circunstâncias de facto, mas não de direito, e o que se está aqui a tratar é realmente essa diferença de tratamento pois que as obrigações em causa foram na sua essência transferidas por uma entidade pública, tratando-se de serviços públicos que passaram a ser prestados por uma entidade privada e ainda por cima é paga apenas por uma parte.
XVI. A R. no cumprimento da ordem judicial, a pedido dos AA. de proceder à junção do documento nº 16 (relativo à relação de todas as propriedades da Herdade (…), bem como na relação de todos os proprietários da H.A. que não outorgaram o contrato complementar ou cópias de todos os contratos complementares celebrados com proprietários da Herdade …) e ao substituí-lo sucessivamente em função de outros ia gerando a confusão com o intuito óbvio de gerar a dificuldade que a sentença proclama a pg. 18, para que esta retirasse a conclusão da impossibilidade de provar a percentagem das propriedades cujos titulares pagam pela prestação de serviços.
XVII. O erro de justiça que se aponta, repousa assim no facto de a sentença não ter admitido que os custos deveriam ser repartidos por todos os proprietários da Herdade (…), tratando-se de despesas com espaços comuns, e que ao serem assumidos apenas por aqueles que assinaram o contrato complementar, e que não compraram em revenda o lote, ocorre violação do princípio da igualdade, para além do facto de tais serviços, inscrevendo-se na esfera das competências públicas, não deveriam responsabilizar os compradores dos lotes, pois é responsabilidade apenas da promotora, aqui R. conforme decorre do Doc. nº 15 da PI, junto aos autos para o qual se remete, e ainda conforme os FACTOS PROVADOS nºs 12 e 13 da sentença.
XVIII. Em sintonia com o douto acórdão deste Tribunal proferido no processo nº 4618/06.0YXLSB.L1-8 em 28.10.2010, deverá ser proibida a cláusula do contrato complementar (quinta e sétima respetivamente) que impõe aos AA. que em caso de venda do imóvel, incluam no contrato, como condição escrita, a transmissão das obrigações assumidas no contrato complementar, ao abrigo da al. l) do arts. 18º e al. c) do artº 22 c) ambos do RJCCG devendo ser declarada nula por aplicação do artº 12º do citado diploma legal.
XIX. Quanto à obrigação constante da Cláusula Terceira (do contrato dos 1ºs AA.) e da Cláusula Quarta (dos 2ºs AA) diz o seguinte: “O segundo Outorgante obriga-se a aceitar os serviços assim prestados (…) os quais não poderá recusar ou por qualquer forma opor-se, impedir ou criar entraves à sua prestação”. já o acórdão supra identificado havia julgada como proibida esta mesma cláusula, pois a cláusula efetivamente confere de modo direto e indirecto à R. a faculdade exclusiva de verificar e estabelecer a qualidade dos serviços fornecidos, pelo que deve ser a mesma declarada absolutamente proibida ao abrigo do disposto na al. b) do artº 21º e als. c) e g) do art. 22 do RJCCG e consequentemente declarada nula.
XX. A sentença incorre em erro de julgamento, desconsiderando os factos, e não valorizando que se tratam de prestações periódicas automaticamente renováveis, (traduzindo-se num vinculo perpétuo e inalterável) as quais não podem ser recusadas ou cuja deficiência não lhes pode ser assacada, conforme resulta da redacção conjugada das Cláusulas Primeira e Terceira e Quarta respectivamente do Contrato dos 1ºs AA e 2ºs AA. devendo por isso também ser declarada a sua nulidade por força da al. l) do artº 18º do RJCCG.
XXI. O abuso de direito (arguido apenas depois de todo o julgamento) que a sentença assaca aos 1ºs AA. não pode proceder pois no outro processo em que os aqui 1ºs AA. eram RR., não foi apreciada a legalidade do contrato, mas apenas o seu cumprimento. O contrato existe, e à data não se questionou a sua legalidade, mas também não foi a mesma reconhecida. Com efeito, o Juiz não apreciou a legalidade do contrato, mas sim se em concordância com as suas cláusulas se o mesmo era ou não cumprido. E como se sabe a nulidade é invocável a todo o tempo e é insanável.

Os apelantes terminaram pedindo que a sentença recorrida fosse substituída por decisão que julgasse procedente a ação proposta pelos AA., declarando-se nulo o documento complementar, referente a uma alegada prestação de serviços.

A 2.ª R. contra-alegou, rematando com as seguintes conclusões:

1. Não existe qualquer erro de julgamento, nem qualquer contradição de matéria de facto, ou qualquer outro vício que possa inquinar a Douta Decisão, que julgou improcedente a presente ação.
2. Como bem entendeu o Tribunal a quo o documento complementar é legal, inexistindo qualquer fator surpresa.
3. Da prova produzida, resulta claro que os contratos foram livremente celebrados entre as partes, não tendo os autores sido obrigados a assinar o que quer que fosse.
4. Resulta dos próprios depoimentos citados pelos Autores que todos os compradores que assinaram o documento complementar tiveram perfeita e atempada consciência e conhecimento do teor do mesmo.
5. Como bem decidiu a Sentença recorrida o conteúdo do contrato de prestação de serviços, documento. complementar, tem redação muito semelhante à cláusula do contrato promessa de compra e venda assinado pelos Autores, pelo que não se pode admitir e aceitar a alegação de argumento surpresa.
6. Bem decidiu o Tribunal a quo quando entendeu que a cláusula sobre a prestação de serviços incluída no contrato promessa constitui meio adequado e eficaz de comunicação da respetiva cláusula contratual geral, integrada no contrato definitivo, pelo que
7. Nenhum reparo há a fazer à Sentença recorrida.
8. Não existe qualquer elemento probatório que permita e/ou justifique a alteração das respostas dadas às questão de direito e à matéria de facto, nomeadamente, a resposta dada aos pontos 26 e 27 dos factos não provados da Sentença recorrida.
9. Não resultando dos depoimentos das testemunhas identificadas e citadas pelos autores qualquer prova de tal factualidade, tanto mais que tais testemunhas não foram convincentes, conforme bem decidiu e referiu o Tribunal a quo na motivação da Sentença recorrida.
10. Não existiu, nem existe qualquer omissão de comunicação de cláusulas contratuais.
11. Não existe qualquer violação ao disposto no art. 5º e 8º do RJCCG.
12.  Os Autores foram atempadamente informados do teor da cláusula a inserir no contrato de prestação de serviços.
13. Não existe, assim, qualquer censura a fazer à Sentença recorrida, devendo manter-se a resposta ao ponto 19 da matéria de facto provada, tal como a resposta ao ponto 14 dos factos provados.
14. A recorrida não transferiu para os compradores quaisquer responsabilidades públicas.
15. A recorrida efetivamente presta os serviços de vedação da propriedade, segurança ativa, serviços de portaria e limpeza. Serviços de que os autores beneficiam.
16. Esta factualidade dada como provada, resulta claramente demonstrada e provada pelos depoimentos das testemunhas Eneida e Alberto, transcritos nas alegações supra citadas.
17. Relativamente aos pontos 24 e 25 dos factos não provados, cumpre referir que efetivamente não foi feita prova dessa factualidade, pelo que não faz sentido que ora os Autores venham requerer que seja dado como provada tal matéria.
18. Como bem decidiu o Tribunal a quo não se afigura injusta a prestação em causa, não existindo qualquer ilegalidade na prestação e manutenção dos serviços prestados pela recorrida.
19. Não existe qualquer contradição entre a resposta à matéria de facto constante no ponto 14 e 15 dos factos provados.
20. Sobre a matéria de facto constante do ponto 28 e 29 dos factos não provados, não foi feita prova de tal factualidade.
21. A recorrida sempre agiu de boa-fé, colaborando na descoberta da verdade material, tendo junto aos autos todas as listagens com a identificação de todos os proprietários que celebraram o documento complementar, bem como cópia de todas as escrituras de compra e venda, e respetivos documentos complementares e ainda lista das propriedades da Herdade (…) cujos proprietários efetivamente pagaram a retribuição de serviços, pelo que não se pode aceitar as acusações infundadas dos autores.
22. Não existindo qualquer confusão gerada por falta de transparência da recorria, pois esta tudo fez para esclarecer os autos.
23. Da prova produzida e dos factos provados não é possível concluir pela existência de qualquer cláusula proibida ou nula.
24. Inexistindo qualquer violação do princípio da boa — fé ou do principio da igualdade.
25. Não existindo qualquer nulidade, como bem decidiu o Tribunal a quo.
26. Ao invés, e como entendeu o Tribunal a quo existe uma situação de abuso de direito dos autores, na modalidade de "venire contra factum proprium".
27. Pois, os Autores sempre exigiram da Ré e reclamaram da mesma, o integral cumprimento do contrato, a prestação de todos os serviços, que acusavam não estar a ser integralmente cumpridos.
28. A Recorrida agindo de boa-fé, sempre pugnou por cumprir as obrigações que para si decorrem do contrato celebrado, mantendo e melhorando os serviços prestados, contando receber a contrapartida acordada.
29. Pelo que ora, os Autores ao virem peticionar, nos presentes autos, a invalidade do contrato celebrado, alegando vícios na vontade negocial, assumem uma posição não só diversa, como conscientemente contraditória, com a posição anteriormente assumida, inclusive em ação judicial anterior.
30. Facto que e como bem refere o Douto Tribunal a quo consubstancia uma situação de abuso de direito, nos termos do art.º 334.° do Código Civil, sendo por isso ilegítima a pretensão dos Autores.
31. Deste modo, não existe nenhum reparo a fazer à Sentença recorrida.
32. A decisão da matéria de facto não padece de nenhum erro, pelo que não deve ser alterada.
33. Não existe qualquer erro na apreciação da prova e na aplicação e interpretação do Direito ao caso concreto.
34. Os Recorrentes o que pretendem é que com base em meros juízos conclusivos, dar como provados factos que não conseguiram provar.
35. Pelo exposto, e salvo melhor entendimento, deve ser julgado improcedente o presente Recurso de Apelação e, consequentemente, ser confirmada a Douta Sentença Recorrida.

Foram colhidos os vistos legais.

FUNDAMENTAÇÃO:

As questões suscitadas no recurso são as seguintes: impugnação da matéria de facto; nulidade do aludido documento complementar; abuso de direito por parte dos 1.ºs AA..

Primeira questão (impugnação da matéria de facto)

O tribunal a quo deu como provada a seguinte.

Matéria de facto:

1. Os 1.ºs autores são proprietários do imóvel sito na rua (…), n.º x, Herdade (…),  Charneca da Caparica, concelho de Almada. A)
2. Os 2.ºs autores são proprietários do imóvel sito na rua (…), n.º y, Herdade (…) Charneca da Caparica, concelho de Almada. B)
3. A 1.ª ré é uma sociedade que se dedica à compra e venda de bens imobiliários. C)
4. A 2.ª ré é uma sociedade que se dedica à gestão e exploração de equipamentos desportivos. D)
5. A 1.ª autora prometeu comprar o lote de terreno para construção n.º x, com a área de 1.494,94 m2 (onde atualmente se inscreve a sua casa) a SILAROEIRA – Sociedade de Desenvolvimento Turístico, S.A.
Ficou clausulado na cláusula quinta do contrato-promessa que: “A fim de preservar a qualidade do empreendimento, a segurança dos seus utentes e assegurar a manutenção de um elevado nível de conservação dos espaços verdes e de utilização coletiva, acessos vários e pedonais, bem como o asseio dos mesmos, factos que ambos os outorgantes reconhecem ser de interesse recíproco e da generalidade dos proprietários de lotes da Herdade da Aroeira, o SEGUNDO OUTORGANTE obriga-se a, após a data da outorga da escritura de compra e venda, pagar à PRIMEIRA OUTORGANTE como contrapartida pelos serviços prestados por aquela com a manutenção da vedação da propriedade, segurança ativa, portaria e sistema de recolha de lixos domésticos, nos mesmos moldes em que tem vindo a ser efetuada, uma prestação mensal que, em 1997, se cifrará em Esc.: 6.130$00 (…)”. E), I, documento de fls. 54 e ss.
6. Pela escritura pública de fls. 62-64, o notário atestou que o legal representante de C, S.A. e os 1.ºs autores declararam vender e comprar respetivamente o lote de construção acima identificado, mais declarando “Que como condição da compra e venda, os segundos outorgantes aceitam submeter-se ao cumprimento das obrigações constantes das cláusulas que compõe o documento complementar a esta escritura, nos termos do número 2 do artigo 64.º do Código do Notariado, cujo conteúdo declaram ter lido, e perfeitamente conhecer, pelo que é dispensada a leitura.”, que se encontra a fls. 65-66, com o seguinte teor:

Cláusula Primeira - A fim de preservar a qualidade do empreendimento, a segurança dos seus utentes e assegurar a manutenção de um elevado nível de conservação dos espaços verdes e de utilização coletiva, acessos viários e pedonais, bem como o asseio dos mesmos, factos que ambos os outorgantes reconhecem ser de interesse recíproco e da generalidade dos proprietários de lotes da Herdade da Aroeira, o SEGUNDO OUTORGANTE obriga-se a, após a data da outorga da escritura de compra e venda, pagar à C, S.A. como contrapartida pelos serviços prestados por aquela com a manutenção da vedação da propriedade, segurança ativa, portaria e sistema de recolha de lixos domésticos, nos mesmos moldes em que tem vindo a ser efetuada, uma prestação mensal que, em 1998, se cifrará em seis mil duzentos e setenta e um escudos (Esc.: 6.271$00), incluindo IVA à taxa legal em vigor.
Cláusula Segunda - Esta prestação mensal será atualizada a um de Janeiro de cada ano pela C, S.A. com base no valor da inflação verificada no ano antecedente.
Cláusula Terceira - Os segundos outorgantes obriga-se a aceitar os serviços assim prestados pela C, S.A. ou por quem esta designar, os quais não poderá recusar ou por qualquer forma opor-se, impedir ou criar entraves à sua prestação.
Cláusula Quarta – O pagamento da importância atrás referida deverá ser efetuada no prazo de 15 dias após a emissão da fatura e, no caso de mora, serão devidos juros à taxa legal aplicável para as dívidas comerciais, acrescidas de quatro pontos percentuais.
Cláusula Quinta – Caso venham a proceder à transmissão ou arrendamento do lote de terreno ora adquirido, obriga-se o comprador a incluir como condição escrita do respetivos contrato, a aceitação e cumprimento pelo terceiro adquirente ou arrendatário, das obrigações atrás assumidas.
Cláusula Sexta – No caso de violação da obrigação constante da Cláusula Quinta, a pagar à sociedade C, S.A. uma indemnização em montante correspondente a vinte vezes a prestação anual devida no ano em que tiver ocorrido a violação.” F) e documentos.

7. O 2.º autor prometeu comprar o lote de terreno para construção n.º y com a área de 1.840,00 m2 (onde atualmente se inscreve a sua casa) à C, S.A. Ficou clausulado na cláusula sexta do contrato-promessa que: “A fim de preservar a qualidade do empreendimento, a segurança dos seus utentes e assegurar a manutenção de um elevado nível de conservação dos espaços verdes e de utilização coletiva, acessos vários e pedonais, bem como o asseio dos mesmos, factos que ambos os outorgantes reconhecem ser de interesse recíproco e da generalidade dos proprietários de lotes da Herdade (…), o SEGUNDO OUTORGANTE obriga-se a, após a data da outorga da escritura de compra e venda, pagar à PRIMEIRA OUTORGANTE como contrapartida pelos serviços prestados por aquela com a manutenção da vedação da propriedade, segurança ativa, portaria e sistema de recolha de lixos domésticos, nos mesmos moldes em que tem vindo a ser efetuada, uma prestação anual que, em 2000, se cifrará em Esc.: 78.948$00 (…).G), I) e documento de fls. 67 e ss.
8. Pela escritura pública de fls. 73 e ss., o legal representante de C, S.A. e os 2.ºs autores declararam vender e comprar respetivamente o lote para construção acima identificado, mais declarando “Que como condição da compra e venda, os segundos outorgantes aceitam submeter-se ao cumprimento das obrigações constantes das cláusulas que compõe o documento complementar a esta escritura, nos termos do número 2 do artigo 64.º do Código do Notariado, cujo conteúdo declaram ter lido, e perfeitamente conhecer, pelo que é dispensada a leitura”, que se encontra a fls. 77-78, com o seguinte teor:
Cláusula Primeira - A fim de preservar a qualidade do empreendimento, a segurança dos seus utentes e assegurar a manutenção de um elevado nível de conservação dos espaços verdes e de utilização coletiva, acessos viários e pedonais, bem como o asseio dos mesmos, factos que ambos os outorgantes reconhecem ser de interesse recíproco e da generalidade dos proprietários de lotes da Herdade da Aroeira, o SEGUNDO OUTORGANTE obriga-se a, após a data da outorga da escritura de compra e venda, pagar à C, S.A. como contrapartida pelos serviços prestados por aquela com a manutenção da vedação da propriedade, segurança ativa, portaria e sistema de recolha de lixos domésticos, nos mesmos moldes em que tem vindo a ser efetuada, uma prestação anual e antecipada que, em 2000, se cifra em setenta e oito mil e novecentos e quarenta e oito escudos (Esc.: 78.948$00), (…).
Cláusula Segunda - Esta prestação mensal será atualizada a um de Março de cada ano pela C, S.A. com base no valor da inflação verificada no ano antecedente. (…)
Cláusula Quarta - Os segundos outorgantes obriga-se a aceitar os serviços assim prestados pela C, S.A. ou por quem esta designar, os quais não poderá recusar ou por qualquer forma opor-se, impedir ou criar entraves à sua prestação.
(…)
Cláusula Quinta – O pagamento da importância atrás referida deverá ser efetuada até um de Abril de cada ano por transferência bancária para a conta NIB (…) e, no caso de mora, serão devidos juros à taxa legal aplicável para as dívidas comerciais, acrescidas de quatro pontos percentuais.
Cláusula Sexta – No caso de violação de quaisquer obrigações constantes deste documento, obrigam-se a pagar à sociedade C, S.A. uma indemnização em montante correspondente a vinte vezes a prestação anual devida no ano em que tiver ocorrido a violação.
Cláusula Sétima – Caso venham a proceder à transmissão ou arrendamento do lote de terreno ora adquirido, obriga-se o comprador a incluir como condição escrita do respetivo contrato, a aceitação e  cumprimento pelo terceiro adquirente ou arrendatário, das obrigações atrás assumidas.” H) e documento de fls. 77-78.
9. À data dos contratos, a Herdade (…) encontrava-se vedada e possuía duas portarias com cancela. J)
10. Na decorrência da colocação de duas portarias com cancela, o Município de Almada ordenou administrativamente que as mesmas fossem retiradas e nessa sequência as rés interpuseram Ação judicial para declarar a nulidade de tal ato, tendo em primeira instância sido declarada improcedente, encontrando-se sob recurso. L)
11. A Herdade (…) é composta por 350 ha, sendo constituída por quatro processos de urbanização tramitados na Câmara Municipal de Almada. M)
12. A Câmara Municipal de Almada celebrou um Protocolo visando o desenvolvimento urbanístico e turístico da zona nos idos anos de 1993/1994. N)
13. No âmbito desse protocolo a Câmara Municipal de Almada transferiu as suas responsabilidades de conservação e manutenção no que se refere a espaços verdes, pavimentos, passeios e limpeza para a C. O)
14. A ré procede à manutenção da vedação da propriedade, segurança ativa, portaria, bem como a limpeza das bermas, passeios e estradas. (Provado no que se refere ao tema de prova correspondente ao artigo 10.º da base instrutória)
15. A recolha de lixos domésticos no interior da Herdade (…) é realizada pela edilidade da Câmara Municipal de Almada. (Provado no que se refere ao tema de prova correspondente ao artigo 10.º da base instrutória)
16. Todos os proprietários e residentes da Herdade (…) beneficiam dos mesmos serviços. (Provado no que se refere ao tema de prova correspondente ao artigo 6.º da base instrutória)
17. Nem todos os proprietários da Herdade (…) se encontram obrigados pelo aludido complementar. (Provado no que se refere ao tema de prova correspondente ao artigo 7.º da base instrutória)
18. A Herdade (…) não tem estatuto de domínio privado, pelo que qualquer pessoa pode livremente aceder à mesma, sendo proibida a sua identificação. (Provado no que se refere ao tema de prova correspondente ao artigo 8.º da base instrutória)
19. Aquando da celebração dos respetivos contratos de compra e venda, os autores encontravam-se perfeitamente conscientes de que seria outorgado o contrato de prestação de serviços, constante do documento complementar. (Provado apenas no que se refere ao tema de prova correspondente ao artigo 11.º da base instrutória)
20. A ora ré propôs contra os ora 1.ºs autores a ação declarativa de condenação, sob o n.º 132116/09.6YIPRT, do 1.º Juízo Cível de Almada, para pagamento da retribuição pela prestação de serviços constante do documento complementar. Na contestação, os réus, ora 1.ºs autores, excecionaram a ilegitimidade, a ineptidão da petição inicial, a prescrição e a exceção de não cumprimento do contrato. Na douta sentença, os 1.º s autores foram condenados a pagar à ora ré a quantia correspondente a 75% do preço, relativa aos serviços prestados, conforme decorre de fls. 124 e ss..
21. A 2.ª ré sucedeu na posição jurídica da 1.ª ré e da C, conforme decorre da certidão de fls. 174.

O Tribunal a quodeclarou ainda que:

Não se provou que:

22. As cláusulas que constam dos documentos complementares foram previamente negociadas entre as partes. 11.º
23. Cerca de 80% dos proprietários da Herdade (…) pagam pela prestação de serviços.
24. A 1.ª ré vendeu os supra identificados lotes aos 1.ºs e 2.ºs autores, alegando tratar-se de terrenos insertos em condomínio privado. 1.º
25. Tal publicidade foi adotada em múltiplas vendas de lotes idênticas às dos 1.ºs e 2.ºs autores, criando a convicção de se tratar de condomínio fechado ao público. 2.º
26. Os 1.ºs autores no próprio dia da escritura foram confrontados com uma condição de compra e venda, consubstanciada na aceitação de se submeterem ao cumprimento das obrigações constantes das cláusulas que compõem o documento complementar, à semelhança de outros compradores em semelhantes circunstâncias. 3.º
27. Tal exigência de aceitar submeter-se à outorga de um documento complementar no âmbito da celebração do contrato de compra e venda não foi comunicada aos compradores dos lotes. 4.º
28. Só os compradores que foram sujeitos à outorga do contrato complementar suportam as despesas referentes à prestação desses serviços, respeitantes a atribuições públicas transferidas para uma entidade privada. 5.º
29. As rés nunca explicitaram a forma de prestar os serviços, nem prestaram contas sobre as receitas e despesas relativas à execução dos contratos complementares. 9.º

O Direito:

Nos termos do n.º 1 do art.º 662.º do CPC “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”

Pretendendo o recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto, deverá, nos termos do art.º 640.º do CPC, sob pena de rejeição, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (n.º 2 alínea a) do art.º 640.º do CPC).

Os apelantes entendem que o tribunal a quo devia ter dado como provados os factos que enumerou sob os n.ºs 24, 25, 26, 27, 28 e 29 (e que o tribunal julgou não provados) e, pelo contrário, deveria ter dado como não provados os factos n.ºs 14 e 19, que o tribunal julgou provados. Para sustentar essa tese os apelantes invocam o depoimento das doze testemunhas ouvidas na audiência de julgamento, além de documentos juntos aos autos.

Vejamos.

Segundo os apelantes, deveriam ser julgados provados os seguintes factos (que o tribunal a quo considerou não provados):

24. A 1.ª ré vendeu os supra identificados lotes aos 1.ºs e 2.ºs autores, alegando tratar-se de terrenos insertos em condomínio privado. (art.º 1.º da base instrutória).
25. Tal publicidade foi adotada em múltiplas vendas de lotes idênticas às dos 1.ºs e 2.ºs autores, criando a convicção de se tratar de condomínio fechado ao público. (2.º da b.i.).

O n.º 24 reporta-se à convicção dos AA., na ocasião da celebração do negócio. Ora, não foi produzida prova que fundamente o juízo de que aos AA. foi dito de que a Herdade (…) era um condomínio, ou seja, constituía um empreendimento imobiliário composto de edifícios ou frações propriedade exclusiva dos condóminos e de partes ou áreas comuns pertencentes em compropriedade aos condóminos, tudo constituindo objeto de propriedade privada, conforme previsto no art.º 1438.º-A do Código Civil. Nos documentos publicitários juntos pelos AA. a fls 79 e 89 (documentos 9 e 14 juntos com a p.i.) fala-se em “zona preservada”, em “complexo residencial e de golfe”, em “empreendimento”. É certo que se realça que “o empreendimento é totalmente vedado”, que tem portaria e “segurança 24 horas por dia”, mas tal não chega para que se presuma que se tratava de um condomínio, ou de um espaço fechado ao público. Aliás, não consta que os campos de golfe, piscina, espaço comercial e “futuro hotel”, publicitados a fls 79, estivessem reservados aos moradores na área do empreendimento. A existência de vedação e de portaria transmitia, naturalmente, que se tratava de uma zona de acesso controlado, diferente dos habituais espaços residenciais urbanizados, mas não necessariamente que se tratava de um condomínio. Em relação ao caso concreto dos AA., apenas a testemunha Jacinto, pai do A. Rui, afirmou que os “vendedores” haviam garantido “que aquilo era um condomínio privado”. De todo o modo, a ligação familiar desta testemunha ao referido A. e o próprio teor do depoimento, muito confuso acerca do ato negocial a que terá assistido (primeiro disse que acompanhou a fase “da negociação” e que tinha estado presente na escritura, depois disse que não acompanhou a escritura “inicial”) suscitou-nos, nesta matéria, tal como ao tribunal a quo, dúvidas acerca da sua credibilidade. Porém, se em relação aos AA. em concreto nada se provou quanto à sua convicção aquando da compra, admite-se que tenha havido compradores que pensassem que a Herdade (…) era um condomínio, e como tal um espaço fechado ao público, uma vez que houve testemunhas, que aí fizeram aquisições idênticas às dos AA., que afirmaram, em termos que não nos suscitaram razões para duvidar, ter sido essa a sua convicção e ter sido isso que lhes foi transmitido pelos “vendedores”, isto é, pelas pessoas encarregadas de promover as vendas. Foi o caso das testemunhas José Artur, Francisco, José da Silva.

Assim, afigura-se-nos que deve alterar-se a resposta dada sob o n.º 25, devendo dar-se como provado o seguinte:

Alguns compradores adquiriram lotes idênticos aos dos AA. convencidos, por tal lhes ter sido garantido pelas pessoas encarregadas de promover as vendas, de que a Herdade (…) era um condomínio fechado ao público.”

Os apelantes também entendem que deveriam ser julgados provados os seguintes factos (que o tribunal a quo considerou não provados):

26. Os 1.ºs autores no próprio dia da escritura foram confrontados com uma condição de compra e venda, consubstanciada na aceitação de se submeterem ao cumprimento das obrigações constantes das cláusulas que compõem o documento complementar, à semelhança de outros compradores em semelhantes circunstâncias. (3.º da b.i.).
27. Tal exigência de aceitar submeter-se à outorga de um documento complementar no âmbito da celebração do contrato de compra e venda não foi comunicada aos compradores dos lotes. (4.º da b.i.).

O que se afirma nestes números é que os AA. terão sido confrontados, no momento da celebração da escritura de compra e venda, com a obrigação de se sujeitarem às obrigações constantes de um documento complementar, supra transcritas nos números 6 e 8 da matéria de facto. Tratava-se da obrigação de os AA. aceitarem a prestação de determinados serviços por parte da vendedora ou de quem ela indicasse, a troco de uma contrapartida pecuniária, sem possibilidade de recusa e com a imposição de, no caso de os AA. transmitirem a outrem o lote de terreno, fazerem incluir no contrato uma cláusula idêntica, sob pena de terem de pagar uma indemnização. Estas obrigações constituiriam, nos termos da terminologia constante da escritura de compra e venda, “condição da compra e venda”. Segundo o que consta nestes números da matéria de facto, cuja prova os apelantes reclamam, os AA. não tinham sido antes informados desta exigência. Ora, nesta matéria afigura-se-nos que o tribunal decidiu bem. De facto, no contrato-promessa que cada um dos AA. subscreveu está expressamente referido que os AA. se sujeitariam às referidas obrigações (vide contratos – promessa a fls 54 e seguintes e a fls 67 e seguintes), as quais estão descritas em moldes idênticos aos do “documento complementar”. Por outro lado, não se vê que, face aos termos das referidas cláusulas, os AA. alimentassem a expetativa de celebrarem o contrato de compra e venda sem simultaneamente terem de reafirmar as aludidas obrigações respeitantes à referida prestação de serviços. O negócio prometido tinha várias cláusulas e componentes, não sendo possível (pelo menos não era o que tinha sido acordado) concluí-lo apenas com a subscrição de uma das parcelas. Não foi produzida qualquer prova no sentido de que os AA. não se aperceberam do conteúdo do contrato-promessa que assinaram e que, no momento da celebração da escritura definitiva, o teor do aludido documento complementar e a necessidade de o subscreverem constituiu uma surpresa. É certo que na audiência de julgamento a testemunha Jacinto, pai do 2.º A., afirmou que na altura da escritura de compra e venda tinha aparecido, para o filho assinar, um contrato de que não sabiam nada e que tiveram de assinar por causa da responsabilidade já assumida. Porém, esse depoimento não merece, face ao já exposto supra, credibilidade. Quanto aos 1.ºs AA., deve notar-se que tendo sido demandados judicialmente pela R. para pagarem montantes referentes à aludida prestação de serviços, nada alegaram nessa ação acerca de uma pretensa surpresa ou coação aquando da realização da escritura (vide n.º 20 da matéria de facto).

Repete-se, pois, que nesta parte não há que alterar a decisão de facto.

Embora de forma não muito clara, pretendem os AA. que se dê como provado o facto n.º 28, que o tribunal a quo julgou não provado, e que tem a seguinte redação:

Só os compradores que foram sujeitos à outorga do contrato complementar suportam as despesas referentes à prestação desses serviços, respeitantes a atribuições públicas transferidas para uma entidade privada” (5.º da base instrutória).

Não se vislumbra, seja na prova documental constante nos autos, seja nos depoimentos prestados, qualquer motivo para alterar o recorrido juízo de insuficiência de prova do aqui afirmado. De facto, foi inclusivamente produzido depoimento que aponta diretamente em sentido contrário ao aqui asseverado: a testemunha Eneida, funcionária administrativa da R., que exerce as suas funções para o grupo (…), na Herdade (…), desde 1989 e se ocupa da faturação dos aludidos serviços, afirmou que todos os moradores na Herdade (…), à exceção de alguns mais antigos, que adquiriram os lotes ao promotor inicial, “F”, suportam a despesa dos serviços, havendo pessoas que pagam os serviços mesmo sem terem subscrito os aludidos contratos, nomeadamente no caso de revendas. As testemunhas Maria de Fátima e Francisco, apontadas em sentido contrário pelos apelantes, manifestaram um conhecimento muito parcelar sobre o assunto (a testemunha Maria de Fátima invocou um “inquérito” feito em passeio pela Herdade, com a 1.ª A., em que terão abordado uma vintena de pessoas; a testemunha Francisco, embora tenha sido, segundo declarou, secretário da Associação dos Proprietários e Residentes na Herdade (…) – D – durante seis meses, nada concretizou de relevante quanto a esta matéria, como aliás se denota da transcrição do seu depoimento a este respeito efetuado pelos apelantes - página 26).

Nem se vislumbra que a 2.ª R. possa ser responsabilizada pela falta dessa prova ou pelas dúvidas que a esse respeito restaram ao tribunal a quo, pois a R., que ao longo do processo foi sucessivamente confrontada com mais e mais pedidos de junção de documentos e elementos, a todos respondeu, embora com dificuldades de alguma forma compreensíveis pela extensão dos elementos pedidos e pelo facto de, como os próprios AA. admitem, a R. não gerir um condomínio e estarem em causa imóveis pertencentes a uma multiplicidade de proprietários que não lhe dão contas das transações efetuadas.

Na página 28 do recurso questiona-se o facto não provado 29 (por lapso, escreveu-se no recurso “18”), que os apelantes entendem dever dar-se como provado e tem a seguinte redação:

As rés nunca explicitaram a forma de prestar os serviços, nem prestaram contas sobre as receitas e despesas relativas à execução dos contratos complementares” (9.º da base instrutória).

Os apelantes apontam os depoimentos das testemunhas Francisco e José da Silva para fundarem a prova deste facto. Ora, a verdade é que José da Silva, atualmente proprietário de um T1 na Herdade (…), nada depôs no sentido do facto referido, e Francisco fez um depoimento apenas assente na sua experiência enquanto secretário da D, a qual durou somente seis meses, conforme se referiu supra.

Conclui-se, assim, que não há motivos para alterar a decisão de facto também nesta parte.

Passemos agora à análise dos factos que, segundo os apelantes, foram indevidamente julgados provados pelo tribunal a quo.
São os seguintes:

14. A ré procede à manutenção da vedação da propriedade, segurança ativa, portaria, bem como a limpeza das bermas, passeios e estradas (artigo 10.º da base instrutória).
19. Aquando da celebração dos respetivos contratos de compra e venda, os autores encontravam-se perfeitamente conscientes de que seria outorgado o contrato de prestação de serviços, constante do documento complementar (artigo 11.º da base instrutória).

Quanto ao facto n.º 19, a sua prova resulta do teor dos contratos-promessa, reiterando-se o já ponderado a propósito dos factos não provados n.ºs 26 e 27.

Quanto ao facto n.º 14, a sua prova resultou sobretudo do depoimento, pormenorizado e consistente, efetuado pela testemunha Alberto, responsável pela área de segurança, vigilância e manutenção da Herdade (…), ao serviço da 2.ª R., e que trabalha na Herdade há 35 anos. É certo que várias testemunhas se queixaram acerca da qualidade dos serviços, mas não em termos que permitam concluir que eles não eram nem são pura e simplesmente prestados.

Em suma, a impugnação da matéria de facto é apenas parcialmente procedente, devendo dar-se como provado um n.º 21-A, com a seguinte redação:

Alguns compradores adquiriram lotes idênticos aos dos AA. convencidos, por tal lhes ter sido garantido pelas pessoas encarregadas de promover as vendas, de que a Herdade (…) era um condomínio fechado ao público.”

Segunda questão (nulidade do documento complementar):

A massificação do comércio jurídico operada no século transato consubstanciou-se na criação de modelos negociais impostos por grandes empresas aos respetivos clientes, aos quais nada mais resta do que a eles aderirem ou não. A supremacia de que gozam os autores/utilizadores de tais modelos traduz-se, com frequência, na introdução nesses contratos de cláusulas abusivas, através das quais se inflacionam os direitos e prerrogativas dos predisponentes e se reduzem ou eliminam as respetivas obrigações e encargos, assim como se acentuam as obrigações e se atenuam os direitos dos respetivos aderentes.

Tal situação, subversora de um dos princípios básicos da vida jurídica privada, o da liberdade contratual, impunha que o legislador interviesse, para estabelecer as correções tidas por necessárias. Em Portugal foi publicado o Dec.-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro (que doravante designaremos de LCCG), apontado, conforme enunciado no seu artigo 1.º, às “cláusulas contratuais gerais elaboradas de antemão, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar.” Subsequentemente, nomeadamente para conformar o sistema jurídico português com as diretrizes contidas na Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, o aludido diploma foi alterado pelo Dec.-Lei n.º 220/95, de 31 de Janeiro e pelo Dec.-Lei n.º 249/99, de 7 de Julho. Com essas alterações passou a ficar claro que o regime previsto para as cláusulas contratuais gerais se aplica igualmente “às cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar” (n.º 2 do art.º 1.º, com a redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 249/99).

O regime jurídico das cláusulas contratuais gerais (LCCG) visa, pois, contrabalançar a fraqueza negocial em que incorrem os sujeitos de esquemas contratuais (v.g., os chamados “contratos de adesão”) cujo conteúdo não foi por aqueles elaborado e que foi previamente desenhado de molde a potenciar um comércio jurídico célere e massificado (propósito que, de resto, vem bem explicitado no preâmbulo do Dec.-Lei n.º 446/85).

Nos termos do n.º 3 do art.º 1.º da LCCG, “o ónus da prova de que uma cláusula contratual resultou de negociação prévia entre as partes recai sobre quem pretenda prevalecer-se do seu conteúdo.”

Ou seja, se alguma das partes quiser furtar ao regime da LCCG alguma cláusula contratual ou, mesmo, a totalidade de um contrato, por entender que no caso não ocorrem os pressupostos daquele regime, recai sobre si o ónus de demonstrar que tal ou tais cláusulas foram alvo de negociação prévia, isto é, que a respetiva fixação é fruto do clássico exercício da liberdade contratual tido em vista no art.º 405.º n.º 1 do Código Civil. Se não satisfizer essa exigência, a cláusula ou negócio sujeitar-se-á às restrições impostas pela LCCG.

Tal regra faz sentido em situações em que o negócio em causa aparenta ser de adesão ou conter cláusulas pré-determinadas. Se o contrato aparentar ter sido antecedido de negociação prévia e ninguém alegar o contrário, não se justifica trazer à liça o disposto no n.º 3 do art.º 1.º da LCCG, uma vez que não se suscita a questão cuja resolução ele visa.

No caso destes autos, constata-se que tanto os 1.ºs AA. como os 2.ºs AA. celebraram um contrato de compra e venda de um lote de terreno para construção, acompanhado de um “documento complementar”, atinente à prestação de serviços, referindo-se no contrato de compra e venda que como “condição” desta era subscrito pelas partes o documento complementar, cujo texto previa e prevê uma série de obrigações que os compradores deveriam cumprir.

Os AA. alegaram que tais cláusulas e obrigações foram unilateralmente redigidas pela vendedora, que lhas impuseram, como o fizeram a muitos outros compradores de lotes sitos na Herdade (…), tendo conteúdo idêntico entre si. Por isso os AA. entendem que o referido documento complementar é um contrato de adesão, regendo-se consequentemente pelo regime da LCCG.

Na sua contestação as RR. afirmaram que o clausulado do documento complementar havia sido “sujeito a prévia negociação entre as partes” (art.º 46.º da contestação), “tendo a C esclarecido devidamente os Autores sobre o seu teor e conteúdo, os quais expressamente concordaram com as mesmas, desde a data da celebração do contrato promessa de compra e venda” (art.º 47.º da contestação). Mais afirmaram que “todos os negócios de compra e venda de imóveis integrados no empreendimento em apreço, e que foram celebrados directamente pela C e pelas Rés, foram sempre acompanhadas por um documento complementar, objecto de negociação individual” (art.º 57.º da contestação).

Ora, foi dado expressamente como não provado que “As cláusulas que constam dos documentos complementares foram previamente negociadas entre as partes” (nº 22 dos factos, relativo ao art.º 11.º da base instrutória).

E o tribunal a quo não teve dúvidas, na sentença, em considerar que os aludidos documentos complementares são constituídos por cláusulas pré-elaboradas “pela Ré” (leia-se, pela vendedora C, cuja posição jurídica é atualmente ocupada pela 2.ª R.), nos termos e para os efeitos de aplicação da LCCG, conclusão que, como é óbvio, não foi questionada pelos AA. na apelação ora sub judice, nem foi desmentida pela apelada na sua contra-alegação.

Os elementos colhidos dos autos levam a corroborar a qualificação do dito documento complementar como sendo um contrato composto de cláusulas cujo conteúdo foi antecipadamente redigido pela vendedora, que o apresentou aos compradores para assim ser assinado, sem a possibilidade de estes contraporem alterações relevantes. Aliás, o depoimento da testemunha José António, advogado que trabalhou para o grupo SIL desde 1985 até 2009, foi muito claro nesse sentido, tendo afirmado na audiência de julgamento que interveio na celebração de centenas de escrituras de compra e venda de imóveis na Herdade (…), em representação da vendedora, as quais na sua esmagadora maioria eram acompanhadas do aludido documento complementar, o qual ao longo dos anos pouco evoluiu quanto ao seu conteúdo, tendo apenas sido acrescentada “a obrigação de transpor a cláusula no caso de venda.”

Tal afirmação, de resto, é confirmada pelas listagens e cópias de contratos juntas pela 2.ª R. aos autos.

O facto de o número de destinatários das aludidas cláusulas estar circunscrito aos interessados na aquisição de imóveis localizados na denominada Herdade (…) não conflitua com a aplicabilidade do regime jurídico da LCCG. Como refere Almeno de Sá (“Cláusulas Contratuais Gerais e Directiva Sobre Cláusulas Abusivas”, 2.ª edição, reimpressão, 2005, Almedina, pág. 215), para se estar perante cláusulas contratuais gerais não é “imprescindível que o texto predisposto tenha sido concebido para um número indeterminado de utilizações. Cabem igualmente no conceito as estipulações pensadas para uma pluralidade determinada de situações ou destinatários, pois o uso «geral» implicado pelo conceito não é posto em causa pela identificação do círculo de parceiros, efectivos ou potenciais, do utilizador”, dando como exemplo, nomeadamente, “os contratos predispostos por uma empresa imobiliária, referentes à alienação das identificadas fracções de um edifício acabado de construir.

Assim, os AA. sujeitaram-se a um modelo contratual pré-concebido pela antecessora da 2.ª R., a que os AA. se limitaram a aderir, sem terem a possibilidade de introduzir alterações relevantes às respetivas cláusulas. Caberia à R. demonstrar que, pelo contrário, os contratos foram fruto de negociação entre as partes, na totalidade ou, pelo menos, em relação a algumas cláusulas em concreto (n.º 3 do art.º 1.º da LCCG, já citado; § 3.º do n.º 2 do art.º 3.º da Directiva 93/13/CEE do Conselho: “Se o profissional sustar que uma cláusula normalizada foi objecto de negociação individual, caber-lhe-á o ónus da prova”).

Prova essa que, como se disse, não foi feita.

Averiguemos agora se as ditas cláusulas foram devidamente comunicadas aos aderentes.

Nos termos do n.º 1 do art.º 5.º da LCCG “as cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las.”

Tal comunicação “deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência” (n.º 2 do art.º 5.º).

É sobre o contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais que cabe o “ónus da prova da comunicação adequada e efectiva” (n.º 3 do art.º 5.º).

Além da comunicação das cláusulas contratuais gerais, o contratante que a elas recorra “deve informar, de acordo com as circunstâncias, a outra parte dos aspectos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique” (n.º 1 do art.º 6.º), assim como “devem ainda ser prestados todos os esclarecimentos razoáveis solicitados” (n.º 2 do art.º 6.º).

A violação destes deveres implica a exclusão da cláusula afetada.
Assim, nos termos do art.º 8.º da LCCG, “consideram-se excluídas dos contratos singulares:

a) As cláusulas que não tenham sido comunicadas nos termos do artigo 5.º;
b) As cláusulas comunicadas com violação do dever de informação, de molde que não seja de esperar o seu conhecimento efectivo;
c) As cláusulas que, pelo contexto em que surjam, pela epígrafe que as precede ou pela sua apresentação gráfica, passem despercebidas a um contratante normal, colocado na posição do contratante real;
d) As cláusulas inseridas em formulários, depois da assinatura de algum dos contratantes”.

No caso destes autos, está provado que as cláusulas constantes do aludido documento complementar já figuravam no contrato-promessa anteriormente subscrito pelos AA.. Assim, só por censurável negligência dos AA. é que estes poderiam não ter tomado conhecimento das mesmas, desconhecimento esse que, aliás, não se provou (factos não provados n.ºs 26 e 27), tendo-se até demonstrado o contrário (facto provado n.º 19).

Assim, à luz do regime das cláusulas contratuais gerais a vinculação dos AA. ao aludido documento complementar apenas poderá ser excluída por força da nulidade prevista nos artigos 12.º e seguintes da LCCG.

Como princípio geral, consigna-se na LCCG que “são proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa-fé” (art.º 15.º). Num esforço de concretização de tal princípio, acrescenta-se no art.º 16.º que na aplicação da norma anterior “devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face da situação considerada, e, especialmente:

a) A confiança suscitada, nas partes, pelo sentido global das cláusulas contratuais em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor deste e ainda por quaisquer outros elementos atendíveis;
b) O objectivo que as partes visam atingir negocialmente, procurando-se a sua efectivação à luz do tipo de contrato utilizado.”

O legislador tratou de enunciar cláusulas contratuais gerais que deverão ser consideradas absolutamente proibidas, sem prejuízo de outras, não expressamente previstas, que mereçam tal epíteto (artigos 18.º e 21.º) e, também exemplificativamente, cláusulas relativamente proibidas, ou seja, que poderão ser qualificadas de proibidas se a tal apontar o respetivo “quadro negocial padronizado” (artigos 19.º e 22.º).

Talvez desnecessariamente, no art.º 12.º da LCCG anuncia-se que “as cláusulas contratuais gerais proibidas por disposição deste diploma são nulas nos termos nele previstos”.

A boa-fé tida em vista neste diploma é a boa-fé objetiva, aqui apresentada em termos que, nas palavras dos autores do anteprojeto do Dec.-Lei n.º 446/85, exprime um princípio normativo que não fornece ao julgador uma regra apta a aplicação imediata, mas apenas uma proposta ou plano de disciplina, “ficando aberta, deste modo, a possibilidade de atingir todas as situações carecidas de uma intervenção postulada por exigências fundamentais de justiça” (Mário Júlio de Almeida Costa e António Menezes Cordeiro, “Cláusulas contratuais gerais, anotação ao Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro”, Livraria Almedina, 1986, pág. 39). Afigura-se-nos que, mais do que a “aparência de um critério” ou “etiqueta em branco” (como a apelida o Professor Oliveira Ascensão in Cláusulas contratuais gerais, cláusulas abusivas e boa fé”, Revista da Ordem dos Advogados, ano LX, vol. 2 – Abril 2000 – pág. 589), o apelo à boa-fé funciona aqui, servindo-nos da expressão do Professor Joaquim de Sousa Ribeiro, como “senha de entrada” que abre a via metodológica de uma ponderação objetiva de interesses (“O problema do contrato, as cláusulas contratuais gerais e o princípio da liberdade contratual”, Almedina, reimpressão, 2003, páginas 557 e 558), que opera no campo do exercício da liberdade contratual na fixação do conteúdo dos contratos (Joaquim de Sousa Ribeiro, obra citada, pág. 562). Quem tem o poder de pré-estabelecer os termos dos negócios jurídicos na área onde exerce a sua atividade, antecipadamente à própria determinação da contraparte, deve sopesar também os interesses previsíveis dos aderentes, em ordem a atingir um equilíbrio para cuja avaliação as soluções dispositivas/supletivas previstas na ordem jurídica constituem um padrão de referência (cfr. Joaquim de Sousa Ribeiro, obra citada, páginas 570, 579 a 583; também Almeno de Sá, “Cláusulas contratuais gerais e directiva sobre cláusulas abusivas”, citado, páginas 261 e 262). Nos considerandos da supra referida Diretiva 93/13/CE expressamente se expende que “a exigência de boa fé pode ser satisfeita pelo profissional, tratando de forma leal e equitativa com a outra parte, cujos legítimos interesses deve ter em conta”. E no art.º 3.º n.º 1 da Diretiva consigna-se que “uma cláusula contratual que não tenha sido objecto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa fé [concorda-se com Almeno de Sá, segundo o qual a tradução correta para a versão portuguesa da Diretiva seria “contra a boa-fé” – obra citada, página 71, nota 83], der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.” Poderá concordar-se com José Manuel Araújo de Barros, quando defende que “uma cláusula será contrária à boa fé se a confiança depositada pela contraparte contratual naquele que a predispôs for defraudada em virtude de, da análise comparativa dos interesses de ambos os contraentes resultar para o predisponente uma vantagem injustificável” (“Cláusulas contratuais gerais, DL n.º 446/85 – anotado, Recolha jurisprudencial”, Wolters Kluwer – Coimbra Editora, 2010, pág. 172).

Revertendo ao caso dos autos, provou-se que, respetivamente, em 02.3.1998 e em 07.11.2000 cada um dos dois casais formados pelos AA. comprou à C, S.A., um lote de terreno para construção, sitos (os dois lotes) na denominada “Herdade …”, localizada na Charneca de Caparica, concelho de Almada. A Herdade (…) é composta por 350 ha, sendo constituída por quatro processos de urbanização tramitados na Câmara Municipal de Almada (n.º 11 da matéria de facto). A Câmara Municipal de Almada celebrou um protocolo visando o desenvolvimento urbanístico e turístico da zona nos idos anos de 1993/1994 (n.º 12 da matéria de facto) e, no âmbito desse protocolo, transferiu as suas responsabilidades de conservação e manutenção no que se refere a espaços verdes, pavimentos, passeios e limpeza para a C (n.º 13 da matéria de facto). Assim, embora a Herdade da Aroeira não tenha estatuto de domínio privado (n.º 18 da matéria de facto), ou seja, as infraestruturas urbanísticas tais como vias rodoviárias, passeios, espaços verdes coletivos, pertençam ao domínio público, a C e, depois dela, a ora 2.ª R. (n.º 21 da matéria de facto), assumiu as funções acima referidas, com a ressalva de que a recolha de lixos domésticos é realizada pela Câmara Municipal (n.º 15 da matéria de facto). Além das aludidas tarefas a C procedia e atualmente a 2.ª R. procede à manutenção da vedação da propriedade, segurança ativa e portaria (n.º 14 da matéria de facto). De notar que aquando da celebração dos contratos sub judice a Herdade (…) encontrava-se vedada (como ainda está) e possuía (como ainda possui) duas portarias com cancela (n.º 9 da matéria de facto). Porém, atendendo a que, como é incontroverso nos autos, a Herdade (…) não é um condomínio nem um espaço de utilização reservada, qualquer pessoa pode livremente aceder à mesma, sendo proibida a sua identificação (n.º 18 da matéria de facto), o que deu azo a litígio entre as RR. e a Câmara Municipal de Almada, que ordenou que as cancelas fossem retiradas, encontrando-se essa questão em discussão na jurisdição administrativa (n.º 10 da matéria de facto).

Como contrapartida pela aludida prestação de serviços os AA. obrigaram-se a pagar à C uma determinada quantia (mensal no caso dos 1.ºs AA., anual no caso dos 2.ºs AA.). Com efeito, no documento complementar ficou consignado, na cláusula primeira, que “A fim de preservar a qualidade do empreendimento, a segurança dos seus utentes e assegurar a manutenção de um elevado nível de conservação dos espaços verdes e de utilização coletiva, acessos viários e pedonais, bem como o asseio dos mesmos, factos que ambos os outorgantes reconhecem ser de interesse recíproco e da generalidade dos proprietários de lotes da Herdade (…), o SEGUNDO OUTORGANTE obriga-se a, após a data da outorga da escritura de compra e venda, pagar à C, S.A. como contrapartida pelos serviços prestados por aquela com a manutenção da vedação da propriedade, segurança activa, portaria e sistema de recolha de lixos domésticos, nos mesmos moldes em que tem vindo a ser efetuada, uma prestação (…)”.

Trata-se, pois, de um contrato de prestação de serviços, geneticamente coligado com o contrato de compra e venda dos aludidos lotes.

A situação descrita serviria, aparentemente, três espécies de interesses: os do Município de Almada que, como disse na audiência de julgamento a testemunha Ricardo, adjunto da Sr.ª vereadora do urbanismo na Câmara Municipal de Almada, se viu aliviado do “acréscimo de serviço” que o loteamento implicaria, para o qual a Câmara não tinha suficiente “capacidade instalada”; os do promotor do empreendimento, que através da celebração do contrato de prestação de serviços com os compradores dos lotes angariava receitas que supririam as respetivas despesas, com eventual possibilidade de auferir algum lucro; os dos compradores (que nos aludidos lotes visavam, como fizeram, construir uma moradia), que garantiam um serviço que em princípio ultrapassaria, em qualidade e também no seu âmbito (vide a vedação e a vigilância), aqueles que o município proporcionaria.

Porém, haverá que averiguar se, na regulação jurídica desses interesses operada pelo dito documento complementar a vendedora/prestadora dos serviços, predisponente das suas cláusulas, não terá consignado direitos e/ou obrigações que atentam contra a boa-fé, acarretando a nulidade das respetivas cláusulas.

Os apelantes insurgem-se em particular contra as cláusulas que no caso dos 1.ºs AA. constituem as cláusulas primeira, terceira e quinta do documento complementar, e no caso dos 2.ºs AA. constituem as cláusulas primeira, quarta e sétima do documento complementar.

Essas cláusulas têm a seguinte redação (utilizaremos a numeração-versão do contrato subscrito pelos 1.ºs AA., sendo certo que o texto das cláusulas em questão é idêntico em ambos os contratos, com ressalva do valor e frequência da prestação a cargo dos compradores, que no caso dos 1.ºs AA. é mensal e no caso dos 2.ºs AA. é anual):

Cláusula primeira – “A fim de preservar a qualidade do empreendimento, a segurança dos seus utentes e assegurar a manutenção de um elevado nível de conservação dos espaços verdes e de utilização coletiva, acessos viários e pedonais, bem como o asseio dos mesmos, factos que ambos os outorgantes reconhecem ser de interesse recíproco e da generalidade dos proprietários de lotes da Herdade (…), o SEGUNDO OUTORGANTE obriga-se a, após a data da outorga da escritura de compra e venda, pagar à C, S.A. como contrapartida pelos serviços prestados por aquela com a manutenção da vedação da propriedade, segurança ativa, portaria e sistema de recolha de lixos domésticos, nos mesmos moldes em que tem vindo a ser efectuada, uma prestação mensal que, em 1998, se cifrará em seis mil duzentos e setenta e um escudos (Esc.: 6.271$00), incluindo IVA à taxa legal em vigor.” – negrito nosso.

Cláusula terceira – “O(s) segundo(s) outorgante(s) obriga-se a aceitar os serviços assim prestados pela C, S.A. ou por quem esta designar, os quais não poderá recusar ou por qualquer forma opor-se, impedir ou criar entraves à sua prestação.” – negrito nosso.

Cláusula quintaCaso venham a proceder à transmissão ou arrendamento do lote de terreno ora adquirido, obriga-se o(s) comprador(es) a incluir como condição escrita do respectivo contrato, a aceitação e cumprimento pelo terceiro adquirente ou arrendatário, das obrigações atrás assumidas” – negrito nosso.

Ora, a cláusula primeira, ao remeter para uma obrigação de prestação de serviços “nos mesmos moldes em que tem vindo a ser efectuada”, sem que em passo algum do contrato se mostrem discriminados tais “moldes”, obscurece a definição concreta dos termos das prestações devidas, atribuindo à prestadora uma posição de vantagem na definição do padrão de serviço a relevar. Tal “belisca” a proibição absoluta contida na alínea b) do art.º 21.º da LCCG, que exclui cláusulas contratuais que “confiram, de modo directo ou indirecto, a quem as predisponha, a faculdade exclusiva de verificar e estabelecer a qualidade das coisas ou serviços fornecidos”, assim dificultando a demonstração do incumprimento ou deficiência na prestação (sendo certo que são absolutamente proibidas as cláusulas que “excluam os deveres que recaem sobre o predisponente, em resultado de vícios da prestação” – alínea d) do art.º 21.º da LCCG). Note-se que uma eventual interpretação da aludida cláusula como contendo uma tácita declaração de que os aderentes tinham conhecimento de quais eram os “moldes” em que a prestação de serviços tinha “vindo a ser efetuada” esbarraria com a proibição absoluta, prevista na alínea e) do art.º 21.º da LCCG, de cláusulas contratuais gerais que “atestem conhecimentos das partes relativos ao contrato, quer em aspectos jurídicos, quer em questões materiais.

Por sua vez a cláusula terceira nega aos aderentes a possibilidade de recusarem a prestação do serviço pela predisponente ou por quem ela designar, em termos categóricos e absolutos: “os quais não poderá recusar ou por qualquer forma opor-se, impedir ou criar entraves à sua prestação”. Tal cláusula, conjugada com a cláusula quinta, que obriga o aderente, no caso de transmissão ou arrendamento do lote de terreno, a incluir no negócio a vinculação às obrigações decorrentes do contrato de prestação de serviços, tende ou visa mesmo a criação de uma situação análoga às obrigações propter rem, ou seja, obrigações que têm por objeto prestações de dare ou facere, cujo sujeito passivo se define pela titularidade de um direito real (cfr, v.g., Manuel Henrique Mesquita, “Obrigações reais e ónus reais”, Almedina, pág. 100).

As obrigações propter rem, enquanto deveres que têm origem no estatuto de um direito real, apenas existem nos casos previstos na lei (art.º 1306.º n.º 1 do Código Civil; neste sentido, v.g., Manuel Henrique Mesquita, obra citada, páginas 288 e 290). Assim, situações como a decorrente do negócio sub judice não assumem natureza real, mas tão só obrigacional (segunda parte do n.º 1 do art.º 1306.º do Código Civil). Manuel Henrique Mesquita, na obra supra citada, dá precisamente, como exemplo de obrigação que, não tendo natureza propter rem, apenas valendo inter partes - art.º 406.º n.º 2 do Código Civil -, pode, por via convencional, assumir efeitos aproximados aos de uma obrigação propter rem, a obrigação assumida pelos adquirentes dos lotes de terreno compreendidos em dado empreendimento urbanístico, de contribuírem, segundo certa proporção, para um fundo afetado ao pagamento de serviços, como vigilância ou limpeza, de que todos beneficiam, convencionando-se que cada proprietário fique vinculado a não alienar o direito de propriedade sem ceder conjuntamente a sua posição no contrato que constitui a fonte da obrigação (vide páginas 290 e 291, nota 47).

Ora, uma tal obrigação, prevista num contrato de adesão, é proibida, colidindo com a alínea j) do art.º 18.º da LCCJ, que proíbe em absoluto cláusulas contratuais gerais que “estabeleçam obrigações duradouras perpétuas ou cujo tempo de vigência dependa apenas da vontade de quem as predisponha”. Note-se que não é propriamente a proibição de constituir por via negocial uma figura de direitos reais não prevista na lei que aqui está em causa (para tal bastaria a aplicação do regime geral), mas a violação do princípio, generalizadamente aceite, de que ninguém deve poder ficar vinculado indefinidamente, não podendo ficar contratualmente impedido de extinguir um contrato de duração indeterminada (cfr. Ana Prata, “Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais”, 2010, Almedina, páginas 405 e 406).

A sentença recorrida entendeu que esta alínea da LCCJ não se mostrava preenchida pelas aludidas cláusulas contratuais, pois “o contrato apenas se mantém enquanto os autores forem proprietários do imóvel” e, “por outro lado, a obrigação em causa não constitui qualquer ónus real.”

Ora, o facto de a obrigação em causa não ter a natureza de um ónus real, por a tal a lei obstar, irreleva para a resolução do problema, como se viu supra; e quanto à possibilidade de os AA. se livrarem da obrigação mediante a venda do imóvel, parece evidente que é uma solução insatisfatória, pois do que se trata é de o aderente poder pôr termo ao contrato diretamente. A perspetiva das coisas aqui subjacente na sentença recorrida avalizaria um contrato tendencialmente perpétuo de prestação de serviços de água, ou de energia elétrica, ou de telefone fixo, na medida em que o aderente sempre se poderia livrar dele através da venda da sua casa…

Subjacente a tudo o exposto está a realidade, assente nos autos, de que os espaços verdes coletivos, vias rodoviárias e pedonais existentes na Herdade (…) não têm natureza privada, pois se o tivessem, à sua gestão e conservação aplicar-se-iam as regras da propriedade horizontal, como expressamente previa o n.º 3 do art.º 15.º do Dec.-Lei n.º 448/91, de 29.11 (“os espaços verdes e de utilização colectiva, infra-estruturas viárias e equipamentos de natureza privada constituem partes comuns dos edifícios a construir nos lotes resultantes da operação de loteamento e regem-se pelo disposto nos artigos 1420.º a 1438.º do Código Civil” – redação introduzida pela Lei n.º 25/92, de 31.8) e atualmente prevê o n.º 4 do art.º 43.º do Dec.-Lei n.º 555/99, de 16.12 - regime jurídico da urbanização e edificação – (“os espaços verdes e de utilização colectiva, infra-estruturas viárias e equipamentos de natureza privada constituem partes comuns dos lotes resultantes da operação de loteamento e dos edifícios que neles venham a ser construídos e regem-se pelo disposto nos artigos 1420.º a 1438.º-A do Código Civil”).

É certo que na contestação as RR. alegaram que os imóveis adquiridos pelos AA. se inserem num empreendimento turístico, nos termos do disposto no art.º 4.º n.º 1 alínea c) do Dec.-Lei n.º 228/2009, de 14 de setembro, uma vez que o alvará de loteamento n.º (…) emitido pela C.M.A., que abrange os imóveis dos AA., incluiria apartamentos classificados como apartamentos turísticos, e campos de golfe de utilidade turística. Assim, segundo defendiam as RR., os imóveis dos AA. estavam sujeitos à disciplina dos empreendimentos turísticos fixada no referido Dec.-Lei n.º 228/2009, que impõe aos proprietários a obrigação de contribuírem para as despesas comuns, conforme os artigos 52.º e seguintes. Nessa medida, subentende-se, a disciplina contratual acima referida teria pelo menos algum arrimo no ordenamento jurídico.

Na réplica os AA. negaram que os seus imóveis integrassem um empreendimento turístico, afirmaram que, a ser aplicado ao caso o regime jurídico dos empreendimentos turísticos, a lei aplicável seria o Decreto Regulamentar n.º 34/97, de 17 de setembro e não o Dec.-Lei n.º 228/2009 e acrescentaram que, independentemente do diploma aplicável, se os contratos dos autos se devessem reger pelo regime jurídico dos empreendimentos turísticos, então esse regime também se mostraria violado, com a consequente nulidade dos contratos.

Na sentença recorrida a questão da nulidade do contrato por violação do Dec.-Lei n.º 228/2009 foi julgada improcedente, por se entender que tal diploma não era aplicável ao caso dos autos, face à data da sua entrada em vigor.

Nesta parte a sentença não foi impugnada, pelo que não cabe a esta Relação reapreciar a validade ou invalidade dos contratos sub judice à luz do regime jurídico dos empreendimentos turísticos, em termos decisórios.

Porém, a eventual qualificação dos imóveis dos AA. como parte de um empreendimento turístico e a análise da legislação pertinente poderão auxiliar o confronto dos contratos de prestação de serviços sub judice com as exigências do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais.

No Protocolo de Acordo referido no n.º 12 da matéria de facto, celebrado entre o Município de Almada e a C, que está documentado a fls 140 a 149 dos autos e data de 09.6.1994, refere-se que a Câmara Municipal “entende que os prédios da denominada Herdade (…) com a área de 258,1 ha são urbanizáveis enquanto conjunto residencial e turístico, que respeita as disposições do Plano Director Municipal” (ponto 1, negrito nosso) e estipula-se que “o desenvolvimento do empreendimento, quer na sua vertente de loteamento, quer na sua vertente turística, será tutelado pela mesma entidade empresarial, a qual assumirá perante a CMA, a responsabilidade da concretização do empreendimento em todas as suas fases, bem como da posterior conservação e manutenção no que se refere a espaços verdes, pavimentos, passeios e limpeza” (ponto 2, negrito nosso). No ponto 3 do Protocolo, consigna-se que “de acordo com o disposto no Regulamento do PDM, para as áreas de vocação turística, a CMA, sem prejuízo das competências legalmente atribuídas a outras entidades, nomeadamente à Direcção Geral de Turismo, aprovará um projecto de loteamento ao abrigo do Decreto Regulamentar n.º 8/89, de 21 de Março e Decreto Lei n.º 448/91, de 29 de Novembro e nos termos do artigo 74.º do Regulamento do PDM (…) (negrito nosso).

Na sequência do aludido Protocolo a C.M.A. emitiu o alvará de loteamento n.º (…), datado de 17.02.1995, documentado a fls 158 a 173 dos autos. Nele é autorizada a constituição de 586 lotes, com a área total de 256 hectares, dos quais 540 lotes destinados a habitação unifamiliar e 15 lotes destinados a apartamentos turísticos (página 5 do alvará).

À data da celebração do Protocolo e da emissão do alvará (em que se integram os lotes que vieram a ser vendidos aos ora AA.), vigorava o Dec.-Lei n.º 328/86, de 30.9, o qual estabelecia as normas “respeitantes ao aproveitamento dos recursos turísticos do País e ao exercício da indústria hoteleira e similar e do alojamento turístico em geral” (art.º 1.º).

O referido diploma definia como estabelecimentos hoteleirosos destinados a proporcionar alojamento, mediante remuneração, com ou sem fornecimento de refeições, e outros serviços acessórios ou de apoio” (n.º 1 do art.º 11.º).

Entre os estabelecimentos hoteleiros contavam-se os aldeamentos turísticos (grupo 7, n.º 1 do art.º 12.º).

Fora do género estabelecimentos hoteleiros figuravam os apartamentos turísticos, que faziam parte dos “meios complementares do alojamento turístico” (alínea a) do n.º 1 do art.º 16.º e alínea b) do n.º 2 do art.º 11.º).

Os apartamentos turísticos eram definidos como “os conjuntos de apartamentos mobilados e independentes, habitualmente locados a turistas, dia a dia” (alínea a) do n.º 2 do art.º 16.º).

A par dos estabelecimentos hoteleiros e dos meios complementares do alojamento turístico o Dec.-Lei n.º 328/86 previa ainda os conjuntos turísticos, que a lei definia como “os núcleos de instalações contíguas e funcionalmente interdependentes destinados, mediante remuneração:

a) À prática de desportos ou a outras formas de entretenimento que, por si, constituem motivo de atracção turística, salvo se pertencerem a entidades oficiais, a associações desportivas ou a outras e o seu acesso não for facultado ao público em geral;
b) A proporcionar aos turistas qualquer forma de alojamento, ainda que não hoteleiro, e dispondo de adequadas estruturas complementares desportivas ou de animação e de serviços de restaurante” (art.º 17.º n.º 1).

O Decreto-Regulamentar n.º 8/89, de 21.3, referido no aludido Protocolo, regulamentava o aludido Dec.-Lei n.º 328/86, sendo apresentado pelo legislador como “regulamento respeitante à construção, instalação e funcionamento dos estabelecimentos hoteleiros, dos meios complementares de alojamento turístico, dos conjuntos turísticos, dos empreendimentos de animação, culturais e desportivos de interesse para o turismo, bem como dos estabelecimentos similares dos hoteleiros (…)” (art.º 1.º do Decreto-Regulamentar).

No regulamento os aldeamentos turísticos eram definidos como “estabelecimentos constituídos por um conjunto de instalações interdependentes e contíguas objecto de uma exploração turística integrada que se destinem, mediante remuneração, a proporcionar aos seus utilizadores alojamento, acompanhado de serviços acessórios e com equipamento complementar e de apoio” (n.º 1 do art.º 182.º). Segundo o nº 2 do art.º 182.º, “os aldeamentos turísticos constituem conjuntos urbanísticos que não podem apresentar soluções de continuidade e cujos limites têm de ser perfeitamente definidos aquando da sua aprovação, não podendo ser alterados sem prévia aprovação da Direcção-Geral do Turismo.” Mais se acrescentava, no n.º 3 do art.º 182.º, que “todo o terreno afecto ao aldeamento deverá ser devidamente delimitado com meios naturais ou artificiais, por forma a autonomizar o conjunto e a assegurar a privacidade do estabelecimento.”

Nos termos do art.º 184.º “os aldeamentos turísticos serão dotados de uma rede de infra-estruturas urbanísticas e de infra-estruturas e serviços de carácter turístico” (n.º 1).

Nos termos do art.º 185.º, consideram-se infraestruturas urbanísticastodas as que, nos termos da legislação em vigor ou dos respectivos contrato de urbanização e alvará de loteamento, se existirem, devam ser assumidas pelas câmaras municipais, nomeadamente as seguintes:

a) Redes gerais de abastecimento de águas, esgotos e electricidade, quando não forem exclusivas do empreendimento;
b) Redes gerais de drenagem de esgotos e respectivas estações de tratamento e bombagem de águas e esgotos, quando não forem exclusivas do empreendimento;
c) Postos de transformação públicos;
d) Arruamentos principais de acesso ao aldeamento e de passagem, se forem públicos.”

Quanto às infraestruturas e serviços de caráter turístico, a lei distingue entre os de utilização turística e os de exploração turística.

As infraestruturas e serviços de utilização turística correspondem “àqueles que, não sendo qualificáveis como serviços públicos, são postos gratuitamente à disposição dos clientes e dos proprietários do empreendimento, sendo as despesas de funcionamento, manutenção e conservação encargo comum de todos os proprietários do empreendimento” (alínea a) do n.º 3 do art.º 184.º). As infraestruturas e serviços de exploração turística correspondem “àqueles que são postos à disposição dos clientes e dos proprietários do empreendimento pela entidade exploradora mediante retribuição” (alínea b) do n.º 3 do art.º 184.º).

Como infraestruturas e serviços de utilização turística, a lei enumera, nomeadamente, “recepção-portaria”, “jardins e parques de utilização comuns”, “serviço de recolha de lixos”, “serviço de conservação, manutenção e limpeza das infra-estruturas de utilização turística”, “serviço de segurança e vigilância” (n.º 1 do art.º 186.º). Como infraestruturas e serviços de exploração turística o regulamento aponta, nomeadamente, restaurantes, estabelecimentos comerciais, serviço de limpeza das unidades do aldeamento (art.º 187.º n.º 1).

Quanto aos conjuntos turísticos, que, como o nome indica e resulta da definição contida no Dec.-Lei n.º 328/86, supra transcrita, se caracterizam pela interdependência de estruturas e/ou estabelecimentos heterogéneos, destinados ao alojamento de turistas e proporcionando, conjugadamente, formas de entretenimento que constituem motivo de atração turística, o Decreto-Regulamentar n.º 8/89 estipulava, no art.º 40.º, que “todos os estabelecimentos hoteleiros e similares e meios complementares de alojamento turístico integrados nos conjuntos turísticos devem satisfazer aos respectivos requisitos mínimos” e que “os anteprojectos ou projectos destes estabelecimentos deverão satisfazer os requisitos que para cada um são exigidos no presente Regulamento e demais legislação aplicável, com as adaptações resultantes da sua integração no conjunto turístico” (n.º 2).

O Dec.-Lei n.º 328/86 estipulava, no seu art.º 44.º, que ”a exploração de cada estabelecimento deve ser globalmente realizada por uma única entidade, que é a primeira responsável pelo seu funcionamento, bem como pelo cumprimento das normas reguladoras da actividade” (n.º 1). Porém, acrescentava-se no n.º 2 do mesmo artigo, que “a unidade de exploração do estabelecimento não é impeditiva de a sua propriedade pertencer a uma pluralidade de pessoas.”

Nos termos do n.º 4, a contrario, do mesmo artigo, no caso dos aldeamentos turísticos e dos apartamentos turísticos poderiam ser retiradas unidades de alojamento da exploração hoteleira. Porém, nos termos do art.º 188.º do regulamento (contido no Decreto-Regulamentar n.º 8/89), os aldeamentos turísticos deveriam dispor no mínimo de 100 camas afetas à exploração turística, não podendo ultrapassar no total as 2000, sem contar com as camas convertíveis, e em qualquer caso, o número mínimo de camas afetas à exploração turística nunca poderia ser inferior a 50% do total da capacidade do aldeamento, sob pena de o empreendimento deixar de poder ser classificado como aldeamento turístico (art.º 188.º).

Sendo certo que competia à Direção Geral do Turismo aprovar a localização e os projetos dos estabelecimentos hoteleiros, dos meios complementares de alojamento e dos conjuntos turísticos, proceder à respetiva qualificação e classificação e autorizar a sua abertura (n.º 1 do art.º 4.º do Dec.-Lei n.º 328/86), embora tal competência pudesse ser delegada, no todo ou em parte, nas câmaras municipais ou seus presidentes, se estas o solicitassem e estivessem dotadas dos meios adequados (art.º 7.º n.º 1 do Dec.-Lei n.º 328/86). Porém, o início da respetiva exploração carecia sempre de autorização prévia da Direção Geral do Turismo (art.º 36.º n.º 1 alínea a) do Dec.-Lei n.º 328/86).

Nos termos do art.º 45.º do Dec.-Lei n.º 328/86, “sempre que um estabelecimento seja propriedade de várias entidades ou pessoas, estas serão responsáveis, na proporção correspondente ao valor da sua fracção imobiliária ou unidade de alojamento, pela manutenção e conservação de todas as estruturas e instalações comuns necessárias ao seu funcionamento, nos termos estabelecidos neste diploma e suas disposições regulamentares” (n.º 1).

Tratando-se de empreendimentos que se desenvolvam em superfície, a obrigação prevista no número anterior compreende a conservação e manutenção das suas instalações, equipamentos e serviços de utilização turística considerados comuns, nos termos fixados neste diploma e suas disposições regulamentares” (n.º 2).
A obrigação a que se refere o número anterior é independente da afectação da respectiva fracção imobiliária ou unidade de alojamento à exploração turística, sendo os encargos resultantes do seu cumprimento suportados por todos os proprietários, na percentagem correspondente a cada um” (n.º 3).
Os empreendimentos referidos no n.º 2 só poderão entrar em funcionamento após terem sido entregues e recebidas pelas câmaras municipais respectivas as infra-estruturas urbanísticas do empreendimento, salvo o disposto no número seguinte” (n.º 4).
Durante o período de recepção das infra-estruturas pela câmara municipal, a Direcção-Geral do Turismo poderá conceder uma autorização provisória de funcionamento, válida pelo prazo de um ano, prorrogável por igual período, a requerimento do interessado” (n.º 5).
A autorização prevista no número anterior caducará no termo do respectivo prazo, sendo cassado o alvará de abertura se as infra-estruturas do empreendimento não tiverem sido recebidas pela câmara municipal por motivo imputável à entidade promotora do empreendimento” (n.º 6).

A manutenção e conservação das infra-estruturas urbanísticas do empreendimento, enquanto não forem assumidas pela câmara municipal, serão da exclusiva responsabilidade da sua entidade exploradora” (n.º 7).

Os encargos resultantes do cumprimento das obrigações previstas no número anterior não poderão ser repercutidos sobre os proprietários das fracções imobiliárias ou das unidades de alojamento, salvo acordo escrito em contrário, autenticado notarialmente” (n.º 8).

O disposto no número anterior não é aplicável às taxas municipais devidas por aquelas infra-estruturas, cujo pagamento é devido pelos proprietários nos termos do n.º 3 deste artigo” (n.º 9).

Nos termos do art.º 46.º do Dec.-Lei n.º 328/86, “às relações entre os proprietários das várias fracções imobiliárias ou unidades de alojamento dos empreendimentos a que se refere o artigo 45.º é aplicável o regime da propriedade horizontal, com as necessárias adaptações resultantes das características do empreendimento e do disposto no presente diploma e suas disposições regulamentares” (n.º 1).

As funções que cabem ao administrador do condomínio nos termos da lei geral serão exercidas nestes empreendimentos pela respectiva entidade exploradora, salvo o estabelecido no número seguinte” (n.º 2).

Os proprietários podem retirar à entidade exploradora as suas funções de administrador, desde que a deliberação seja tomada pela maioria dos votos relativamente ao valor total do empreendimento e seja apresentada à Direcção-Geral do Turismo uma entidade idónea para substituir aquela no exercício dessas funções” (n.º 3).
Nestes empreendimentos é da responsabilidade do administrador o cumprimento das obrigações estabelecidas nos n.os 1 e 2 do artigo 45.º” (n.º 4).
Tratando-se de empreendimentos que se desenvolvam em superfícies, são equiparadas às fracções autónomas as unidades de alojamento e as fracções imobiliárias que os integram” (n.º 5).
Para efeitos do disposto neste artigo, a entidade promotora do empreendimento deverá elaborar um título constitutivo da sua composição, no qual serão especificadas obrigatoriamente, nos termos a fixar em regulamento:

a) As partes do empreendimento correspondentes às várias unidades de alojamento e fracções imobiliárias que o integram, por forma que umas e outras fiquem perfeitamente individualizadas;
b) As infra-estruturas e serviços de carácter turístico correspondentes às respectivas instalações, equipamentos e serviços, quando os houver;
c) As infra-estruturas urbanísticas, quando for caso disso” (n.º 6).

Sob pena de não ser aceite, o título previsto no n.º 6 deverá ainda fixar, de acordo com as regras a estabelecer em regulamento:

a) O valor relativo de cada unidade ou fracção, expresso em percentagem ou permilagem do valor total do empreendimento;
b) As partes comuns do empreendimento” (n.º 9).
A Direcção-Geral do Turismo poderá recusar o título a que se refere o n.º 6 deste artigo, desde que não esteja elaborado de acordo com o disposto no presente diploma e suas disposições regulamentares” (n.º 10).
O título a que se refere o n.º 6 deste artigo tem de ser depositado na Direcção-Geral do Turismo com o pedido de abertura do estabelecimento, ou da fase a que respeitar, quando a sua construção estiver autorizada por fases, acompanhado do título constitutivo da propriedade horizontal do edifício onde está instalado, se for caso disso, sem o que não poderá ser concedida a respectiva autorização” (n.º 12).
A existência do título a que se refere o n.º 6 deste artigo deve ser obrigatoriamente mencionada nos contratos de transmissão, sob qualquer forma, de direitos relativos às unidades e fracções que integrem o empreendimento, sob pena de poderem ser declarados nulos a requerimento dos adquirentes” (n.º 13).

De realçar, assim, que os empreendimentos turísticos que integrassem unidades ou frações pertencentes a proprietários diferentes, funcionariam em termos próximos dos da propriedade horizontal, com a responsabilização conjunta dos proprietários pelas despesas comuns, que inclusivamente poderiam abarcar, mediante certos condicionalismos, a manutenção e conservação das infraestruturas urbanísticas do empreendimento, enquanto não fossem assumidas pela câmara municipal. Na base de tudo isto estaria um título constitutivo, elaborado pela entidade promotora do empreendimento, que teria de ser mencionado nos contratos de transmissão das unidades ou frações que integrassem o empreendimento, sob pena de poderem ser declarados nulos a requerimento do adquirente.

O Plano Director Municipal do Município de Almada (PDMA), que à data do acima referido Protocolo de Acordo já existia e veio a ser aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 5/97, de 14.01 (Diário da República I série-B, n.º 11, página 166 e seguintes), classifica como espaços urbanizáveis aqueles em que se admite a edificação de novas áreas urbanas, após a realização das respetivas infraestruturas urbanísticas, sendo que no caso dos espaços denominados de “não programados” caberá aos interessados na promoção urbanística da área, ou seja, à “iniciativa privada”, “assumir por inteiro a construção das infra-estruturas gerais e locais, a sua ligação e articulação com os sistemas existentes ou programados, bem como a resolução de eventuais problemas urbanísticos existentes que condicionem a concretização do uso do solo proposto no PDMA” (alínea b) do art.º 6.º do Regulamento do PDMA).

Nos termos do PDMA, os espaços urbanizáveis subdividem-se, quanto ao seu uso dominante, em “habitacionais” (“quando se destinam dominantemente ao uso residencial, incluindo os respectivos equipamentos colectivos de apoio” - alínea a) do n.º 2 do art.º 7.º), “industriais” (alínea b) do n.º 2 do art.º 7.º), de “vocação turística” (“quando se destinam predominantemente a equipamentos e empreendimentos turísticos, sendo a sua urbanização regulada igualmente pela legislação específica sobre empreendimentos turísticos” – alínea c) do mencionado n.º 2 do art.º 7.º ), “ equipamento ” ( quando se destinam predominantemente a equipamentos colectivos” – alínea d) do n.º 2 do art.º 7.º), “verdes de recreio e lazer” (“destinados à construção de espaços verdes para o recreio e lazer da população” – alínea e) do n.º 2 do art.º 7.º) e “terciário” (“quando se destinam dominantemente à construção de áreas concentradas de comércio e serviços” – alínea f) do n.º 2 do art.º 7.º).
No PDMA o território municipal é dividido em “unidades operativas de planeamento e gestão” (UNOP) – art.º 8.º.
Como UNOP 14 figura a “Aroeira”, que na alínea n) do art.º 8.º do PDMA é descrita como incluindo “as áreas anteriormente ocupadas pelo Pinhal da Aroeira, entretanto loteadas ilegalmente ou afectas ao empreendimento turístico da Aroeira. É uma área onde predomina a segunda residência”.
A secção XIV, referente à UNOP 14 – Aroeira, estipula, naquele que é o art.º 72.º do PDMA, sob a epígrafe “Uso do solo”, que:
1 – Os usos dominantes nesta unidade são o residencial, embora de segunda residência, e o turístico.
2 – Esta unidade operativa inclui as seguintes classes e categorias de espaços, cuja ocupação e transformação são reguladas, nomeadamente, pelas disposições específicas do capítulo III deste Regulamento:

a) Espaços urbanizáveis;
b) Espaços de vocação turística;
c) Espaços de equipamento.
3 – (…)
4 – (…).”
No art.º 73.º, sob a epígrafe “Espaços urbanizáveis”, estabelece-se que “a tipologia a privilegiar nas novas urbanizações deve ser a moradia. A edificação no lote deve processar-se de molde a preservar, tanto quanto possível, a arborização existente.”

No art.º 74.º, sob a epígrafe “Espaços de vocação turística”, declara-se que “dado tratar-se de uma propriedade única, a concretização deste empreendimento turístico deve ser precedida da definição dos condicionamentos a respeitar, para além da densidade de ocupação que é de 20 unidades de alojamento por hectare, mantendo-se os restantes parâmetros deste Regulamento. A percentagem de área de construção a desenvolver ao abrigo do Decreto-Lei n.º 448/91 poderá atingir os 40%”.

O Dec.-Lei n.º 448/91, de 29.11, também mencionado no Protocolo de Acordo, continha na altura o regime jurídico das operações de loteamento e de obras de urbanização.

Aí, além de sujeitar ao respetivo regime de licenciamento, como obras de urbanização, as “obras de criação e remodelação de infra-estruturas que integram a operação de loteamento e as destinadas a servir os conjuntos e aldeamentos turísticos e as ocupações industriais, nomeadamente arruamentos viários e pedonais e redes de abastecimento de água, de esgotos, de electricidade, de gás e de telecomunicações, e ainda de espaços verdes e outros espaços de utilização colectiva” (alínea b) do art.º 3.º), estipulava-se, no art.º 16.º, que “o proprietário e os demais titulares de direitos reais sobre o prédio a lotear cedem gratuitamente à câmara municipal parcelas de terreno para espaços verdes públicos e de utilização colectiva, infra-estruturas, designadamente arruamentos viários e pedonais, e equipamentos públicos, que, de acordo com a operação de loteamento, devam integrar o domínio público” (n.º 1). Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, “as parcelas de terreno cedidas à câmara municipal integram-se automaticamente no domínio público municipal com a emissão do alvará e não podem ser afectas a fim distinto do previsto no mesmo, valendo este para se proceder aos respectivos registos e averbamentos.”

Sendo certo que nos artigos 18.º e 19.º do diploma se regulava a atribuição a moradores ou grupos de moradores das zonas loteadas e urbanizadas, mediante a celebração de acordos de cooperação ou contratos de concessão do uso privativo do domínio público municipal com a respetiva câmara municipal, da gestão dos espaços verdes e de utilização coletiva, podendo incluir, nomeadamente, a sua limpeza e higiene, manutenção dos equipamentos de recreio e de lazer, vigilância de toda a área, por forma a evitar a sua depredação (n.º 2 do art.º 18.º).

Esta norma desenvolvia, ao nível dos moradores, o que pioneiramente (vide “A função pública urbanística e o seu exercício por particulares”, João Miranda, Coimbra Editora, 2012, pág. 415) era previsto nos artigos 45.º, alínea b) e 46.º do Decreto-Lei n.º 400/85, de 31.12 (que continha o anterior regime jurídico dos loteamentos urbanos), ou seja, no âmbito de um “contrato de urbanização” a atribuição a particulares, nomeadamente às entidades promotoras e financiadoras de obras de urbanização e ou de construção dos imóveis a edificar, a gestão e a conservação dos respetivos espaços livres públicos, contratos esses que, embora de forma mais genérica, continuaram a ser admitidos no Dec.-Lei n.º 448/91 (art.º 25.º).

O acordo celebrado entre a CMA e a C, supra referido sob o n.º 13 da matéria de facto, no âmbito do qual a CMA transferiu as suas responsabilidades de conservação e manutenção no que se refere a espaços verdes, pavimentos, passeios e limpeza para a C, insere-se nesta possibilidade de recurso à via contratual no exercício da função administrativa, genericamente admitido no art.º 179.º n.º 1 do Código de Procedimento Administrativo então em vigor, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 442/91, de 15.11 e atualmente no art.º 278.º do Código dos Contratos Públicos (cfr. Diogo Freitas do Amaral, “Curso de Direito Administrativo”, volume II, 4.ª edição, 2014, página 554).

Atualmente, o supra referido “contrato de urbanização” mostra-se regulado, como “contrato de concessão”, no art.º 47.º do Dec.-Lei n.º 555/99, de 16.12 (diploma que contém o regime jurídico da urbanização e edificação, sucessivamente alterado, tendo sido alvo de republicação integral em anexo ao Dec.-Lei n.º 136/2014, de 9.9) e também no art.º 25.º do mesmo diploma, que prevê a assunção, pelo requerente de licenciamento de operação urbanística que constitua sobrecarga incomportável para as infraestruturas existentes, dos encargos inerentes aos trabalhos necessários, bem como dos encargos de funcionamento das infraestruturas por um período mínimo de 10 anos.

Um tal contrato de concessão, se reunisse no seu objeto a responsabilização do promotor pela conservação das infraestruturas urbanísticas criadas na sequência da atividade de urbanização, ficando, em contrapartida, o promotor com o direito de cobrar taxas aos utentes ou aos moradores, comportaria um elemento do contrato de exploração do domínio público (cfr. art.º 415.º alínea b) do Código dos Contratos Públicos - João Ramos, “A função pública urbanística e o seu exercício por particulares”, citado, pág. 373). Tal elemento, ou seja, o direito de o promotor poder (unilateralmente) cobrar a referida contrapartida pela conservação das infraestruturas urbanísticas, falta no caso dos autos, pois tal direito não se mostra reconhecido pelo supra referido protocolo de acordo.

Não havendo que discutir aqui se o Município estaria legalmente habilitado à cobrança de taxas aos proprietários dos imóveis compreendidos no empreendimento urbanístico, a título de contrapartida pela manutenção das respetivas infraestruturas urbanísticas, caso estas estivessem a cargo do Município (nos termos das sucessivas Leis das Finanças Locais, “são nulas as deliberações de qualquer órgão das autarquias locais que determinem o lançamento de impostos, taxas, derramas ou mais-valias não previstos na lei” – cfr. art.º 1.º n.º 4 do Dec.-Lei n.º 98/84, de 29.3 e, depois, com irrelevantes alterações na redação do preceito, art.º 1.º n.º 4 da Lei n.º 1/87, de 06.01, art.º 2.º n.º 4 da Lei n.º 42/98, de 06.8, art.º 3.º n.º 3 da Lei n.º 2/2007, de 15.01, art.º 4.º n.º 2 da Lei n.º 73/2013, de 03.9 - sendo certo que os artigos 8.º alínea a) e 3.º n.º 1 alínea i) do Dec.-Lei n.º 98/84 reconheciam ao município o direito de cobrar taxas pela “realização de infra-estruturas urbanísticas”, enquanto no art.º 19.º alínea a) da Lei n.º 42/98 tal direito de taxação já se alargava à manutenção e reforço de infra-estruturas urbanísticas, continuando o art.º 6.º da Lei n.º 53-E/2006, de 29.12, diploma que aprovou o Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais, a admitir a existência de taxas municipais que incidam sobre “utilidades prestadas aos particulares ou geradas pela actividade dos municípios, designadamente” - corpo do n.º 1 do artigo - “pela realização, manutenção e reforço de infra-estruturas urbanísticas primárias e secundárias” - alínea a) do n.º 1 do artigo -, havendo que apreciar, caso a caso, se a prestação exigida tem a natureza sinalagmática própria das taxas (em contraposição com o imposto), sob pena de ilegalidade ou de inconstitucionalidade das normas que as prevejam (vide, v.g., acórdão do TC n.º 258/2008, de 30.4.2008).

Retomando a análise do regime jurídico dos empreendimentos turísticos, cabe apreciar aquele que vigorava à data em que os AA. adquiriram os seus imóveis.

À data das escrituras de compra e venda (02.3.1998 e 07.11.2000, respetivamente), o regime jurídico dos empreendimentos turísticos estava contido no Dec.-Lei n.º 167/97, de 4.7, regulamentado, quanto aos “meios complementares de alojamento turístico”, pelo Decreto-Regulamentar n.º 34/97, de 17.9.

Os novos diplomas não introduziram alterações que modificassem, no que é essencial e poderá ser relevante para o caso dos autos, o regime jurídico dos empreendimentos turísticos.

A par de uma definição, que antes não existia, de “empreendimento turístico” (art.º 1.º: “empreendimentos turísticos são os estabelecimentos que se destinam a prestar serviços de alojamento temporário, restauração ou animação de turistas, dispondo para o seu funcionamento de um adequado conjunto de estruturas, equipamentos e serviços complementares”), e da deslocação do conceito de aldeamentos turísticos da categoria de “estabelecimentos hoteleiros” para a dos “meios complementares de alojamento turístico” (artigos 1.º n.º 2, 2.º e 3.º do Dec.-Lei n.º 167/97 e 1.º alínea a) do Decreto-Regulamentar n.º 34/97), mantém-se o princípio da unidade de exploração do empreendimento turístico, sem prejuízo da possibilidade de pluralidade de titularidade das várias frações imobiliárias que o componham (art.º 45.º do Dec.-Lei n.º 167/97), a aplicabilidade, com as necessárias adaptações, do regime da propriedade horizontal às relações entre os proprietários das várias frações imobiliárias dos empreendimentos turísticos (n.º 1 do art.º 47.º do Dec.-Lei n.º 167/97), a exigência de emissão de um título constitutivo da composição do empreendimento, onde obrigatoriamente deviam ser especificadas as várias frações imobiliárias que o integravam, por forma a que ficassem perfeitamente individualizadas, o valor relativo de cada fração imobiliária, expresso em percentagem ou permilagem do valor total do empreendimento, a menção do fim a que se destinava cada uma das frações imobiliárias, a identificação das instalações e equipamentos comuns do empreendimento, a indicação dos serviços de utilização de uso comum, a indicação das instalações, equipamentos e serviços de exploração turística, as infraestruturas urbanísticas e a referência ao respetivo contrato de urbanização, quando fosse caso disso, e bem assim um regulamento de administração do empreendimento relativo, designadamente, à conservação e à fruição das instalações e equipamentos comuns (art.º 47.º, n.ºs 2 e 3 do Dec.-Lei n.º 167/97). Nos termos do n.º 4 do art.º 47.º, o referido título deveria ser depositado na Direção-Geral do Turismo “antes da celebração de qualquer contrato de transmissão, ou contrato-promessa de transmissão, das fracções imobiliárias que integrem o empreendimento”. Tal como no regime anterior, a existência do aludido título deveria ser “obrigatoriamente mencionada nos contratos de transmissão, ou nos contratos-promessa de transmissão, sob qualquer forma, de direitos relativos às fracções imobiliárias que integrem o empreendimento, sob pena de nulidade dos mesmos” (n.º 8 do art.º 47.º), passando agora o vício decorrente da omissão do título a constituir nulidade absoluta, e não nulidade atípica.

Por sua vez o Decreto-Regulamentar n.º 34/97 reiterava que nos aldeamentos turísticos pelo menos 50% das unidades de alojamento deveriam ser afetadas à exploração turística do empreendimento (n.º 1 do art.º 27.º), acrescentando-se que “a venda, o arrendamento, o direito de uso e habitação ou qualquer outra forma de transmissão da propriedade de uma fracção autónoma afecta à exploração turística estão sujeitos a autorização da Direcção-Geral do Turismo, sob pena de nulidade do respectivo negócio jurídico” (n.º 2 do art.º 27.º do Decreto-Regulamentar). De notar que o Decreto-Regulamentar n.º 20/99, de 13.9, que regulamentou o Dec.-Lei n.º 167/97 no que concerne aos conjuntos turísticos, previa que no caso de aldeamentos turísticos que integrassem conjuntos turísticos que reunissem requisitos de extraordinária qualidade, definidos no n.º 2 do art.º 18.º, os aldeamentos apenas teriam de afetar à exploração turística 35% das suas unidades de alojamento (n.º 1 do art.º 18.º).

Note-se que se deixou de prever norma que, à semelhança do n.º 8 do art.º 45.º do Dec.-Lei n.º 328/86, se pronunciasse acerca da possibilidade de a entidade exploradora do empreendimento turístico fazer repercutir sobre os proprietários das frações imobiliárias ou das unidades de alojamento os encargos resultantes da manutenção e conservação das infraestruturas urbanísticas do empreendimento, enquanto não fossem assumidas pela câmara municipal.

Como se relatou supra, aquando da apresentação da contestação as então RR. invocaram o disposto no Dec.-Lei n.º 228/2009, de 14.9.

Em rigor, o diploma aqui chamado à liça é o Dec.-Lei n.º 39/2008, de 07.3, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 228/2009 (a que se seguiram, entretanto, alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 15/2014, de 23.01, pelo Dec.-Lei n.º 128/2014, de 29.8 e, recentissimamente, pelo Dec.-Lei n.º 186/2015, de 03.9).

O Dec.-Lei n.º 39/2008 contém o atual regime jurídico dos empreendimentos turísticos.

As RR. apontaram em particular o disposto no art.º 4.º n.º 1 alínea c) e nos artigos 52.º e seguintes.

O mencionado art.º 4.º enuncia os tipos de empreendimentos turísticos, onde se incluem, além de outros, os “estabelecimentos hoteleiros” (alínea a)), os “aldeamentos turísticos” (alínea b)), os “apartamentos turísticos” (alínea c)) e os “conjuntos turísticos (resorts)” (alínea d)).

Quanto aos artigos 52.º e seguintes, integram o Capítulo VIII do diploma, que regula, conforme a epígrafe do Capítulo, a “propriedade plural em empreendimentos turísticos”, em termos que não se afastam relevantemente, para o caso sub judice, do regime anterior. Uma das grandes novidades do diploma, com interesse para a apreciação do caso destes autos, está prevista fora desse Capítulo, mais precisamente no art.º 45.º, que estipula que as unidades de alojamento estão permanentemente em regime de exploração turística, levada a cabo pela entidade exploradora do empreendimento turístico, não podendo ser objeto, pelos seus proprietários, de contratos que comprometam o seu uso turístico, designadamente contratos de arrendamento ou constituição de direitos de uso e habitação (n.º 6 do art.º 45.º). Deixa, assim, de ser possível excluir parte das unidades de alojamento do empreendimento da exploração turística, sem prejuízo de o proprietário da unidade de alojamento a poder ocupar, nos termos do contrato de exploração turística a que se referem os n.ºs 3 e 4 do art.º 45.º e que constitui o título que a entidade exploradora deverá obter de todos os proprietários para ficar habilitada à exploração da totalidade das unidades de alojamento (cfr. Joana Pinto Monteiro, “Regime dos Empreendimentos Turísticos anotado”, Coimbra Editora, 2011, páginas 109 a 111).

Isto posto, não se vislumbra que os imóveis pertencentes aos AA. integrem um empreendimento turístico, não tendo sido juntos aos autos quaisquer elementos que lhes atribuam essa natureza ou qualidade. Nada é mencionado a esse respeito nos contratos outorgados pelos AA., nem no referido Protocolo de Acordo, nem no alvará (n.º 346) junto aos autos.

A integração dos imóveis dos AA. num empreendimento turístico daria base jurídica à pretensão da R. de que os AA. contribuíssem, mediante uma prestação periódica, para as despesas de manutenção, conservação e funcionamento das partes comuns do empreendimento, incluindo os serviços de receção permanente, segurança e limpeza (conforme atualmente prevê o art.º 56.º do Dec.-Lei n.º 39/2008, assim como se previa no Dec.-Lei n.º 328/86, de 30.9 – supra analisado - e no Dec.-Lei n.º 167/97, de 4.7, também atrás mencionado - vide art.º 48.º), em termos tendencialmente perpétuos, sendo certo que tal obrigação, prevista nas situações de propriedade plural em empreendimentos turísticos, tem a natureza de obrigação propter rem (cfr. Sandra Passinhas, “Empreendimentos turísticos em propriedade plural”, in Temas CEDOUA: Empreendimentos turísticos, FDUC, Almedina, 2010, página 208; art.º 54.º n.º 8 do Dec.-Lei n.º 39/2008, com a redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 228/2009).

Note-se que tal vinculação propter rem teria, à luz do regime jurídico dos empreendimentos turísticos, como contrapartida a responsabilização da entidade exploradora do empreendimento perante os proprietários, em termos semelhantes aos da propriedade horizontal, incluindo a possibilidade de os proprietários, reunidos em assembleia geral, retirarem à entidade exploradora as funções correspondentes às de administrador de condomínio e nomearem outrem para esse cargo (art.º 50.º do Dec.-Lei n.º 167/97, de 04.7; atualmente, artigos 58.º a 63.º do Dec.-Lei n.º 39/2008, de 07.3).

Ora, essa estrutura de controlo não se mostra instituída no caso dos autos, o que torna evidente o desequilíbrio, favorável à predisponente, que as referidas cláusulas terceira e quinta do contrato subscrito pelos 1.ºs AA., correspondentes às cláusulas quarta e sétima do contrato subscrito pelos 2.ºs AA., introduzem nas relações jurídicas estabelecidas entre as partes. Acresce que o teor da cláusula terceira (quarta, no caso dos 2.ºs AA.), inculca a possibilidade de a predisponente ceder a sua posição no contrato a terceiro, não previamente identificado, ou com ele sub-contratar, sem necessidade de autorização dos AA. (“o(s) segundo(s) outorgante(s) obriga-se a aceitar os serviços assim prestados pela SILAROEIRA (…) ou por quem esta designar (…)”,o queé absolutamente vedado pela alínea l) do art.º 18.º da LCCG, que proíbe cláusulas que “consagrem, a favor de quem as predisponha, a possibilidade de cessão da posição contratual, de transmissão de dívidas ou de subcontratar, sem o acordo da contraparte, salvo se a identidade do terceiro constar do contrato inicial.”

Desequilíbrio esse agravado pelo supra analisado segmento inserido na cláusula primeira (obrigação de prestação de serviços “nos mesmos moldes em que tem vindo a ser efectuada”), pois configura o teor das obrigações da predisponente de forma obscura, reportando-as tão só aos “moldes” da prestação tal como anteriormente efetuada, assim se apresentando um padrão de referência da obrigação da predisponente que esta poderá, por a tal a impelir a situação que ocupa, definir de forma mais favorável aos seus interesses.

Esta introdução, no quadro de um contrato de adesão, de um padrão tendencialmente unilateral, a favor da predisponente, de definição do objeto da prestação devida pela predisponente e de aferição da sua qualidade, viola o princípio da boa-fé genericamente consagrado no art.º 15.º da LCCG, o que acarreta a nulidade da respetiva cláusula (art.º 12.º da LCCG). Porém, afigura-se-nos que o aludido segmento da “cláusula primeira” do contrato é identificável como cláusula autónoma, ou seja, constitui regra que tem uma missão específica no negócio, no caso o estabelecimento de um critério de aferição da prestação devida pela predisponente, tanto quanto ao género quanto à qualidade.

Assim, não está em causa a nulidade de todo o texto do “documento complementar” que se mostra incluído na denominada “cláusula primeira”, mas tão só da parcela ora referida, que constitui substancialmente uma cláusula autónoma (figuremos uma alínea com a seguinte redação: “os serviços supra referidos serão prestados nos mesmos moldes em que têm vindo a ser efetuados”).

Temos, pois, que a aludida cláusula contida na “cláusula primeira” do contrato de prestação de serviços celebrado entre as partes é nula, ao abrigo dos artigos 15.º e 12.º da LCCG, assim como são nulas, ao abrigo do disposto dos referidos artigos e bem assim das alíneas j), l) e art.º 20.º (sendo inquestionável que no negócio os AA. são “consumidores finais”) da LCCG, as cláusulas terceira e quinta do contrato (“documento complementar”) celebrado pelos 1.ºs AA. e as cláusulas quarta e sétima do contrato (“documento complementar”) outorgado pelos 2.ºs AA. (pugnando pela nulidade de cláusulas contratuais gerais idênticas, vide o acórdão desta Relação, de 28.10.2010, processo 4618/06.0YXLSB.L1-8, citado pelos apelantes).

Os AA. pretendem que seja declarada a nulidade da totalidade do contrato de prestação de serviços que celebraram com a Silaroeira e que agora vigora entre eles e a 2.ª R..

Vejamos.

A lei não concede aos aderentes, no caso de nulidade de algumas das cláusulas do contrato de adesão, a faculdade de optarem pela nulidade total do contrato (neste sentido, v.g., Ana Prata, “Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais”, citado, páginas 314 a 322). O que a lei prevê é que, numa lógica de defesa dos interesses do aderente, este declare optar pela manutenção do contrato, pese embora a nulidade de alguma ou algumas das cláusulas contratuais gerais que nele existam (art.º 13.º n.º 1 da LCCG). Se o fizer o aderente retira ao tribunal a tarefa de, para os efeitos de aplicação do art.º 292.º do Código Civil (que prevê como regra geral a redução do negócio, no caso de anulação ou nulidade parcial), averiguar se, face à vontade conjetural das partes, objetivada no instrumento negocial, o contrato, desprovido da parte viciada, não deveria subsistir (Ana Prata, obra citada, página 322). Feita a aludida opção pelo aderente (no sentido da manutenção do negócio), “a manutenção de tais contratos implica a vigência, na parte afectada, das normas supletivas aplicáveis, com recurso, se necessário, às regras de integração dos negócios jurídicos” (n.º 2 do art.º 13.º). Só assim não será se a manutenção do contrato, sem as cláusulas afetadas, conduzir “a um desequilíbrio de prestações gravemente atentatório da boa-fé”, caso em que se aplicará o citado regime de redução dos negócios jurídicos (art.º 14.º da LCCG).

Como se viu, os AA. não declararam optar pela manutenção do respetivo contrato, sem as cláusulas afetadas: pelo contrário, pugnaram pela nulidade de todo o contrato (de prestação de serviços, que não o de compra e venda; aliás, nenhuma das partes, AA. e R., ponderaram, reclamando-a, a extensão à compra e venda dos efeitos de eventual declaração de nulidade do contrato de prestação de serviços).

Ora, assim sendo, vigorará o já mencionado regime de redução dos negócios jurídicos (art.º 14.º da LCCJ). Ou seja, a nulidade parcial não determina a invalidade de todo o negócio, a menos que se mostre “que este não teria sido concluído sem a parte viciada”. De facto, no que respeita ao problema da redução do negócio parcialmente nulo ou anulado, o Código Civil português optou pela doutrina tradicional, estabelecendo uma presunção de divisibilidade ou separabilidade do negócio, sob o ponto de vista da vontade conjetural das partes, em obediência, também, ao princípio da conservação dos negócios (Carlos Alberto da Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, 4.ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2.ª reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 635; contra, Menezes Cordeiro, “Tratado de Direito Civil Português”, I, Parte Geral, tomo I, 3.ª edição, 2011, Almedina, páginas 878 a 883; na jurisprudência, no sentido deste acórdão, v.g., STJ, 29.11.2012, processo 10781/06.2YYPRT-B.P1.S1). Aliás, segundo o TJUE, o objetivo prosseguido pelo legislador da União no quadro da Diretiva 93/13/CEE consiste em restabelecer o equilíbrio entre as partes, mantendo ao mesmo tempo, em princípio, a validade da totalidade do contrato, e não em anular todos os contratos que contêm cláusulas abusivas (cf. § 31 Acórdão Pereničová e Perenič, C-453/10, de 15.3.2012).

Isto sem prejuízo de eventualmente regras imperativas obstarem, no caso concreto, à manutenção do contrato em forma “reduzida” (vide Menezes Cordeiro, obra citada, páginas 879 e 880).

Sendo certo que, segundo a jurisprudência do TJ, “o artigo 6.º, n.º 1, da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que, na apreciação da questão de saber se um contrato celebrado com um consumidor por um profissional e que contém uma ou várias cláusulas abusivas pode subsistir sem as referidas cláusulas, o juiz não se pode basear unicamente no caráter eventualmente vantajoso para uma das partes, neste caso o consumidor, da anulação do contrato em causa no seu todo. A referida diretiva não se opõe, contudo, a que um Estado-Membro preveja, no respeito do direito da União, que um contrato celebrado com um consumidor por um profissional e que contém uma ou várias cláusulas abusivas seja nulo no seu todo quando se afigurar que tal assegura uma melhor proteção do consumidor (§ 36 do citado acórdão do TJ).

No caso dos autos, sem as aludidas cláusulas julgadas nulas teríamos um contrato mediante o qual a vendedora dos imóveis se obrigava a prestar serviços de manutenção da vedação da Herdade da Aroeira, segurança ativa, portaria e sistema de recolha de lixos domésticos, assim como conservação e limpeza dos espaços verdes e de utilização coletiva, acessos viários e pedonais (cláusula primeira), mediante uma prestação mensal ou anual, que seria atualizada anualmente pela predisponente com base no valor da inflação verificada no ano antecedente (atual cláusula segunda), cujo pagamento deveria ser efetuado, no caso do contrato dos 1.ºs AA., no prazo de 15 dias após a emissão da respetiva fatura (atual cláusula quarta), e no caso dos 2.ºs AA., até o dia 1 de abril de cada ano (atual cláusula quinta) sendo devidos, em ambos os contratos, no caso de mora, juros à taxa legal aplicável para as dívidas comerciais, acrescidos de quatro pontos percentuais (atual cláusula quarta no contrato dos 1.ºs AA. e atual cláusula quinta no contrato dos 2.ºs AA.). Afetada, por perda de objeto, ficaria a cláusula sexta do contrato dos 1.ºs AA., que previa, “No caso de violação da obrigação constante da Cláusula Quinta [inclusão das obrigações do contrato de prestação de serviços em eventual contrato de transmissão ou arrendamento do lote de terreno adquirido], a pagar à sociedade SILAROEIRA (…), uma indemnização em montante correspondente a vinte vezes a prestação anual devida no ano em que tiver ocorrido a violação”. A cessação do contrato, uma vez extirpado este das cláusulas nulas, far-se-ia nos termos gerais, avultando, nos termos do disposto no art.º 1156.º do Código Civil (“as disposições sobre o mandato são extensivas, com as necessárias adaptações, às modalidades do contrato de prestação de serviço que a lei não regule especialmente”), a previsão do n.º 1 do art.º 1170.º do Código Civil (“o mandato é livremente revogável por qualquer das partes, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação”), sem prejuízo das particularidades de cada caso concreto.

Não está demonstrado (aliás nada foi afirmado nesse sentido nem pelas RR. nem pelos AA.), que as partes se teriam abstido de celebrar o contrato de prestação de serviços se tivessem perspetivado a invalidade das cláusulas supra referidas. Afinal, a prestação dos aludidos serviços interessava objetivamente aos AA. e a sua remuneração interessava à C. Note-se, quanto ao interesse dos AA. na prestação dos serviços pela C, que não se mostra que estes coincidiriam ou coincidem na totalidade ou se limitariam ou se limitam ao desempenho de tarefas que caberiam nas funções públicas do Município de Almada. Por outro lado, eventuais queixas posteriores quanto às deficiências e lacunas no serviço efetivamente prestado constituem matéria atinente ao (in)cumprimento do contrato e responsabilidade respetiva, irrelevando face ao objeto desta ação. Aliás, os próprios AA. fizeram questão em frisar esse aspeto, em resposta à exceção de caso julgado arguida pelas RR. na contestação (“a presente acção centra-se em matéria jurídica, trata-se de apreciar o conteúdo do contrato à luz do ordenamento a que este se encontra sujeito (Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais)” - art.º 8.º da réplica; “Se a matéria em causa fosse a mesma dos autos chamados à colação como caso julgado, o R. alegaria factos demonstrativos da prestação dos serviços, o que não faz” – art.º 10.º da réplica; “por conseguinte, não se verifica caso julgado, pois a presente acção suscita a apreciação da legalidade do contrato e não o seu incumprimento, o abuso a que se referem os AA. não é o do incumprimento tout court mas, sim, na forma como aquele foi preparado, elaborado e lhes foi imposto” (art.º 11.º da réplica).

Os apelantes defendem ainda, como fundamento da nulidade do contrato, a violação do princípio da igualdade, plasmado no art.º 13.º da CRP, decorrente do facto de a obrigação de pagamento da aludida prestação de serviços apenas incidir sobre os proprietários que subscreveram o aludido documento complementar, sendo certo que existem proprietários que não subscreveram esse documento e que por isso não estão sujeitos à aludida obrigação, apesar de beneficiarem dos mesmos serviços que os AA. e os outros proprietários que se encontram em situação idêntica à destes.

Vejamos.

Provou-se que “todos os proprietários e residentes da Herdade da Aroeira beneficiam dos mesmos serviços” (n.º 16 da matéria de facto);
Nem todos os proprietários da Herdade da Aroeira se encontram obrigados pelo aludido complementar” (n.º 17 da matéria de facto);
Não se deu como provado que “cerca de 80% dos proprietários da Aroeira da Herdade da Aroeira pagam pela prestação de serviços” (n.º 23 dos factos não provados) nem que “só os compradores que foram sujeitos à outorga do contrato complementar suportam as despesas referentes à prestação desses serviços, respeitantes a atribuições públicas transferidas para uma entidade privada” (n.º 28 da matéria de facto).

Nos termos do art.º 13.º da CRP (“princípio da igualdade”), “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei” (n.º 1) e “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual” (n.º 2).

O princípio da igualdade, estruturante do Estado de direito democrático e social (Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa anotada”, volume I, 4.ª edição, 2007, Coimbra Editora, páginas 336 e 337), impõe a igualdade de todas as pessoas, independentemente do seu nascimento e do seu status, perante a lei (igualdade de Estado de direito liberal), garante a igualdade de participação na vida política da coletividade e de acesso aos cargos públicos e funções políticas (igualdade de Estado de direito democrático) e exige a eliminação das desigualdades de facto para se assegurar uma igualdade material no plano económico, social e cultural (igualdade de Estado de direito social) (Gomes Canotilho e Vital Moreira, obra citada, pág. 337). Sendo um princípio disciplinador de toda a atividade pública nas suas relações com os cidadãos, o princípio da igualdade, em certos domínios e de acordo com a aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas (art.º 18.º n.º 1 da CRP), pode impor-se também às entidades privadas. Seguindo a análise a esse respeito operada por Gomes Canotilho e Vital Moreira (obra citada, páginas 347 e 348), dir-se-á que a vinculação do direito privado ao princípio da igualdade consubstanciar-se-á, desde logo, na proibição de discriminações com base nas categorias subjetivas enumeradas no art.º 13.º n.º 2 da CRP ou de outras constitucionalmente proibidas (v.g., art.º 36.º n.º 4), em qualquer ato ou negócio jurídico, funcionando, assim, o princípio da igualdade, como limite externo da liberdade negocial, podendo determinar autonomamente a invalidade de atos ou negócios jurídicos que o infrinjam. Em qualquer caso, assinalam aqueles constitucionalistas, “a relevância do princípio da igualdade nas relações privadas, como expressão da «constitucionalização do direito civil», se é certo que implica uma correspondente limitação da autonomia privada e da liberdade negocial, não pode, porém, ir ao ponto de aniquilar esses esteios básicos do direito civil e da liberdade individual” (obra citada, páginas 348 e 349).

Sendo certo que o respeito pela igualdade tem por base constitucional a igual dignidade social de todos os cidadãos, corolário da igual dignidade humana de todas as pessoas (art.º 1.º da CRP, Gomes Canotilho e Vital Moreira, obra citada, pág. 337).
No caso destes autos, constata-se que nem todos os proprietários de imóveis localizados na Herdade (…) celebraram o referido contrato de prestação de serviços e estão, por força desse contrato, obrigados ao pagamento da prestação pecuniária correspondente, apesar de beneficiarem dos mesmos serviços. Ora, o factualismo provado não demonstra que tal diferença decorra de uma atitude discriminatória da C para com os AA., ou que houve, da parte da C, o propósito de destrinçar entre alguns dos adquirentes de imóveis com quem tratou, exigindo de alguns a celebração de contrato de prestação de serviços, e isentando dessa obrigação outros compradores, de forma discricionária. O que seria razoável era que a C quisesse expandir o mais possível o universo de “pagadores” da aludida prestação. Aliás, os próprios apelantes aventam justificação para essa diferença, que seria o facto de alguns dos proprietários que não celebraram o referido contrato terem adquirido os seus imóveis a anteriores proprietários, que não teriam diligenciado pela cessão da sua posição contratual no contrato de prestação de serviços (vide conclusão XVII da apelação).

Improcede, pois, também este argumento dos apelantes tendente à declaração de nulidade integral do contrato.

Já tendo em vista, subsidiariamente, uma declaração de anulação ou de nulidade parcial do contrato, os apelantes aventaram que a sentença recorrida enferma de contradição, na medida em que, apesar de nela se ter dado como provado que “a recolha de lixos domésticos no interior da Herdade (…) é realizada pela edilidade da Câmara Municipal de Almada” (n.º 15 da matéria de facto), não se retirou a conclusão que, segundo os apelantes, daí advinha, que seria a anulação da cláusula primeira do contrato na parte em que consigna um serviço que a 2.ª R. não presta, “com a inerente redução do preço” (conclusão XIII da apelação).

Também aqui se nega razão aos apelantes. Com efeito, não ficou demonstrado que a declaração, contida no contrato de prestação de serviços, de que entre esses serviços se contava a recolha de lixos domésticos, consubstanciou reserva mental (art.º 244.º), erro na declaração (art.º 247.º) ou erro sobre o objeto do negócio (art.º 251.º), isto é, que a declaração quanto à recolha de lixos domésticos não correspondia a uma realidade ou a um propósito por parte do declarante prestador de serviços. Assim, o que se patenteia é um caso de incumprimento parcial do contrato, que não bole com a validade genética do negócio, questão esta que constitui o objeto da causa. Declarar a redução do preço devido, atendendo ao incumprimento parcial do contrato, redundaria numa nulidade, na modalidade de condenação além do pedido (artigos 609.º n.º 1 e 615.º n.º 1 alínea e) do CPC).
Perspetivamos, pois, a declaração de nulidade parcial do contrato tão só nos termos supra expostos.

Terceira questão (abuso de direito):

Na sentença recorrida ajuizou-se que, se se entendesse que as cláusulas contratuais gerais criticadas nestes autos eram nulas, os AA. (os 1.ºs AA.) não poderiam prevalecer-se dessa nulidade, sob pena de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

Tal decorreria do dado como provado sob o n.º 20 da matéria de facto, que é o seguinte:

A ora ré propôs contra os ora 1.ºs autores a ação declarativa de condenação, sob o n.º 132116/09.6YIPRT, do 1.º Juízo Cível de Almada, para pagamento da retribuição pela prestação de serviços constante do documento complementar. Na contestação, os réus, ora 1.ºs autores, excecionaram a ilegitimidade, a ineptidão da petição inicial, a prescrição e a exceção de não cumprimento do contrato. Na douta sentença, os 1.º s autores foram condenados a pagar à ora ré a quantia correspondente a 75% do preço, relativa aos serviços prestados, conforme decorre de fls. 124 e ss..

Segundo a sentença, “é inadmissível que os 1.ºs autores comecem por contestar a prestação de serviços, partindo do pressuposto da validade do contrato e, posteriormente, ataquem a validade do mesmo contrato em acção autónoma, tentando destruir os efeitos da sentença que os condenou.”

Vejamos.

Sob a epígrafe “abuso do direito”, o art.º 334.º do Código Civil estipula que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito.”
Artigo resultante do artigo 281.º do Código Civil grego, positiva um mecanismo geral de correção daquilo que, na formulação de António Menezes Cordeiro, constituirá o “exercício disfuncional de posições jurídicas” (“Tratado de Direito Civil, V, Parte Geral, Exercício Jurídico”, 2.ª edição, 2015, Almedina, pág. 403), ou seja, a “disfuncionalidade de comportamentos jurídico-subjetivos” que, embora consentâneos com normas jurídicas, contrariam o sistema jurídico em que estas se inserem, isto é, o conjunto de normas e princípios de Direito, ordenado em função de um ou mais pontos de vista, que aquele postula, iluminado pela ideia central do respeito pela boa-fé (Menezes Cordeiro, obra citada, páginas 400 e 401, 402 a 407).

A aplicação do abuso do direito tem-se desenvolvido a partir de grandes grupos de casos típicos, avultando, para o caso sub judice, o venire contra factum proprium, que foi invocado na decisão recorrida.

Venire contra factum proprium consiste, em Direito, no exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente (Menezes Cordeiro, obra citada, pág. 305). Aqui, a regra da observância da boa-fé expressa-se enquanto tutela da confiança, que pressuporá, seguindo-se a síntese de Menezes Cordeiro, quatro requisitos, não necessariamente cumulativos:

1.º “Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa-fé subjetiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias”;
2.º “Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objetivos capazes de, em abstrato, provocarem uma crença plausível”;
3.º “Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efetivo de atividades jurídicas sobre a crença consubstanciada”;
4.º “A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela proteção dada ao confiante: tal pessoa, por ação ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao fator objetivo que a tanto conduziu” (Menezes Cordeiro, obra citada, páginas 322 a 324).

No caso dos autos, as condutas contraditórias do agente que constituiriam venire contra factum proprium, na perspetiva do tribunal a quo, são o facto de os 1.ºs AA., ao serem demandados pela 2.ª R. para pagarem prestações em dívida emergentes do contrato de prestação de serviço também objeto destes autos, não terem posto em causa a validade do contrato, tendo centrado a sua defesa na exceção de não cumprimento do contrato (no que, aliás, tiveram parcial sucesso, conseguindo uma redução na quantia reclamada pela aí A. – cfr. sentença a fls 124 a 139 dos autos); posteriormente, intentaram esta ação invocando, como causa de pedir, a nulidade do contrato.

Afigura-se-nos que, no que concerne à estratégia adotada pelos ora 1.ºs AA. na aludida ação intentada pela prestadora de serviços, ela não fundamentou um investimento de confiança por parte da aqui R. que justifique a sua tutela com base no instituto do abuso de direito. Naquela ação os aí RR. negaram a dívida, pelo que não criaram objetivamente na credora base para crer que a situação jurídica emergente do contrato não seria de nenhuma forma, ou por qualquer outra forma, por eles questionada. A opção dos RR. ao nível da sua defesa e a consequente solução judicial do referido litígio poderia eventualmente ter, isso sim, reflexos quanto à definição da situação jurídica futuramente invocável em tribunal pelas mesmas partes em termos de caso julgado (artigos 580.º e 621.º do CPC). De resto, o tribunal a quo debruçou-se sobre a questão do caso julgado, por meio de despacho que não foi impugnado, tendo ficado assente que inexistia a exceção de caso julgado, por serem diversos os pedidos e a causa de pedir.

O abuso de direito poderia equacionar-se, mais corretamente, de uma forma mais abrangente, atinente à globalidade da conduta de todos os AA. (note-se que a sentença recorrida focou-se, mais em concreto, na ação que apenas fora instaurada contra os ora 1.ºs AA.) que, tendo celebrado os contratos de prestação de serviços respetivamente em 1998 e em 2000, apenas quando já haviam decorrido 14 e 12 anos, respetivamente, com os contratos a serem, mal ou bem, executados, vieram questionar a sua validade. Poderá encontrar-se aqui abuso de direito, na modalidade de suppressio, ou seja, a prolongada inação dos aderentes (quanto à invocabilidade da nulidade do contrato) teria criado na prestadora de serviços a legítima confiança de que estes não iriam questionar a validade dos contratos, em cuja execução a prestadora de serviços despendera meios materiais e humanos, devendo, por isso, recusar-se aos aderentes o direito de arguirem a aludida nulidade (vide Menezes Cordeiro, obra citada, páginas 344 a 356, 405).

Contudo, in casu o abuso de direito, a existir, cingir-se-ia à pretensão de invalidação total do contrato, a qual, como se viu supra, é de rejeitar. No que concerne à arguição da nulidade das cláusulas atinentes à perpetuação da vinculação dos aderentes e à indefinição unilateral das prestações devidas, não se vislumbra que existam óbices baseados na tutela da confiança, na medida em que o cumprimento passado e presente das obrigações contratuais não garante que não poderá surgir controvérsia quanto ao devir do negócio e eventuais cláusulas a ele respeitantes, seja no que concerne à sua interpretação, seja quanto à sua legalidade, assim como não obsta a que futuramente se questione a determinação das prestações devidas.

Conclui-se, assim, que o instituto do abuso de direito é inoperacional no caso destes autos.

DECISÃO:

Pelo exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente e consequentemente revoga-se a sentença recorrida e em sua substituição julga-se a ação parcialmente procedente, por provada, e em consequência:

a) Declara-se a nulidade da cláusula consubstanciada no segmento “nos mesmos moldes em que tem vindo a ser efectuada”, contida na “cláusula primeira” dos contratos de prestação de serviços supra referidos nos números 6 e 8 da matéria de facto;
b) Declara-se a nulidade das cláusulas terceira, quinta e sexta do contrato de prestação de serviços referido no número 6 da matéria de facto;
c) Declara-se a nulidade das cláusulas quarta e sétima do contrato de prestação de serviços referido no número 8 da matéria de facto;
d) Absolve-se a 2.ª R. do demais peticionado.

As custas da ação e da apelação correrão a cargo dos AA. e da 2.ª R., na proporção do respetivo decaimento, que se contabiliza em 50% a cargo dos AA. e 50% a cargo da 2.ª R..

Uma vez transitada em julgado esta decisão, deverá ser dado cumprimento ao disposto no art.º 34.º da LCCG.



Lisboa, 01.10.2015


Jorge Leal
Ondina Carmo Alves
Olindo dos Santos Geraldes