Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
186/22.3YRLSB-6
Relator: ANA DE AZEREDO COELHO
Descritores: SENTENÇA ESTRANGEIRA DE DIVÓRCIO
INTELIGIBILIDADE DA DECISÃO
DIVÓRCIO-SANÇÃO
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL PORTUGUESA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):


I)O decree nisi de divórcio, tradicional nos regimes de matriz anglo-saxónica, precede o decree absolute e significa que o tribunal não encontra impedimento à dissolução do casamento, fixando um período de reflexão ou oposição findo o qual a dissolução se efectiva, sendo patente a inteligência da decisão de divórcio que utiliza tal expressão.

II)Inexiste na Convenção de Haia qualquer exigência quanto ao prazo de validade da apostila, limitando-se a mesma a estabelecer as condições da sua validade.

III)Face ao artigo 984.º do CPC, a Relação deve recusar a revisão quando do exame do processo ou de conhecimento oficioso apure estar em falta o requisito da citação; se nada resulta quanto a omissão, não tendo o Requerido alegado que essa notificação não ocorreu, é irrelevante que a menção seja ou não feita na decisão.

IV)Na apreciação da acção de revisão de sentença estrangeira importa avaliar a contrariedade do reconhecimento aos princípios e valores da ordem pública internacional do Estado Português, não os princípios consagrados no sistema jurídico interno de Portugal; a excepção é ainda integrada pelos princípios fundamentais do Estado Português que decorram desta ordem pública internacional na sua concretização no momento histórico da revisão, os quais se encontram sobretudo nas normas de nível constitucional ou que respeitem a direitos fundamentais.

V)A decisão de divórcio com fundamento em justa causa em nada contraria a ordem pública internacional do Estado Português; o afastamento do regime do divórcio-sanção não pode ser erigido em princípio da ordem pública internacional do Estado Português; menos ainda, pode considerar-se que a vigência na ordem jurídica portuguesa de uma decisão estrangeira que a declarasse constituiria uma intolerável ofensa da harmonia jurídico-material interna ou uma contradição flagrante com os princípios fundamentais a enformam.

VI)Nem toda a matéria atinente a relações familiares partilha do relevo atribuído às questões respeitantes à família, sua constituição, nomeadamente pelo vínculo do casamento, ou protecção das crianças.
(AAC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM na 6ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I)–RELATÓRIO


M…, com os sinais dos autos, instaurou a presente acção declarativa especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira, contra P…, pedindo seja revista e confirmada a sentença de divórcio do casamento entre ambos celebrado, transitada em julgado em 4 de Fevereiro de 2020, proferida pelo Tribunal da Comunidade de Massachusetts, Estados Unidos da América.

O Requerido contestou alegando em síntese:
Quando são oferecidos documentos escritos em língua estrangeira, os mesmos devem encontrar-se devidamente traduzidos, sendo que, surgem dúvidas fundadas quanto à inteligência da decisão e ao teor da sentença em causa em resultado da tradução realizada, uma vez que consta que foi proferida uma “sentença de Divórcio Nisi”, sem correspondência com o sistema jurídico português, desconhecendo-se o que é, a que corresponde e que efeitos produz, pelo que se impugna expressamente a tradução em apreço, requerendo-se a junção de tradução idónea.
Devem ainda ser verificadas certas condições de regularidade, tal como o trânsito em julgado ou se o demandado foi citado para a ação, sendo que da sentença em causa nada resulta quanto à citação do Requerido.
Acresce que é mencionada “justa causa”, o que entra em conflito com os valores essenciais do Estado Português, porquanto desde 2008 foi eliminada a norma em que assentava a “justa causa”, pelo que a sentença aqui em apreço ofende princípios ético-jurídicos das normas aplicáveis à dissolução do casamento e aos valores fundamentais que enformam a ordem jurídica Portuguesa.
Afirma ainda que a data da alegada certidão passada nos Estados Unidos da América é 4 de fevereiro de 2020, a tradução em causa data de 24 de setembro de 2020 e a apostila está datada de 10 de março de 2021, tendo a presente ação sido instaurada em 10 de Janeiro de 2022, o que suscita fundadas dúvidas quanto à validade e autenticidade dos documentos em causa, nomeadamente porque no ordenamento jurídico português não seria possível apostilar a certidão em causa, uma vez que a validade da certidão (6 meses) há muito estaria ultrapassada. E não seria igualmente possível instruir a presente ação com um documento dotado de uma apostila com cerca de 1 ano.

A Requerente respondeu pronunciando-se como na inicial e pela improcedência da contestação.

O Ministério Público apresentou alegações defendendo que deve ser julgada procedente a acção e revista a sentença.

A Requerente e o Requerido apresentaram alegações congruentes com as peças anteriormente submetidas.

Corridos os vistos legais cumpre apreciar e decidir.

II)–DO OBJECTO

Tendo em atenção as posições das partes, importa apreciar dos requisitos de procedência do pedido de revisão.

III)–FUNDAMENTAÇÃO

1.–FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Encontram-se assentes nos autos os seguintes factos atentos os documentos juntos:
1.-M e  P contraíram entre si casamento em 4 de Outubro de 1993 (assento de casamento junto).
2.-O Tribunal da Comunidade de Massachusetts, Estados Unidos da América, proferiu decisão de divórcio nisi, por noventa dias, que decorreram em 4 de Fevereiro de 2020, relativa ao casamento celebrado entre os Requerentes como referido em 1. (cópia certificada junta).
3.-Foi certificada pelo Tribunal de Massachusetts a conversão do divórcio nisi em divórcio absolute com efeito a 4 de Fevereiro de 2020 (cópia certificada junta).
4.-A certidão do Tribunal de Massachusetts foi apostilada em 10 de Março de 2021 e traduzida em 24 de Setembro de 2020.
5.-A decisão referida em 2 e 3 foi apostilada constando do documento a menção “apostille” e a referência “Convention de La Haye le 5 Octobre 1961”, a identidade do signatário do documento apostilado como sendo “TARA E. DECRISTOFARO”, a qualidade em que emitiu o documento, “register of court”, a numeração do selo aposto “2267331”, a data da aposição de apostila “10 March, 2021”, a identidade do certificador, “William Francis Calvin, Secretary of the Commonwealth”.

2.–FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1.O Requerido coloca como questões que obstam ao reconhecimento da sentença revidenda as seguintes:
-A certidão utiliza a expressão divórcio “nisi, expressão essa que não foi traduzida, ao contrário do que impõe o artigo 134.º do Código de Processo Civil, o que suscita dúvidas quanto ao teor da sentença.
- Da sentença em causa nada resulta quanto à citação do Requerido.
- A sentença funda-se em justa causa para a declaração do divórcio o que ofende princípios ético-jurídicos das normas aplicáveis à dissolução do casamento e aos valores fundamentais que enformam a ordem jurídica Portuguesa.
- A certidão passada nos Estados Unidos da América é 4 de fevereiro de 2020, a tradução em causa data de 24 de setembro de 2020 e a apostila está datada de 10 de março de 2021, tendo a presente ação sido instaurada em 10 de Janeiro de 2022, o que suscita fundadas dúvidas quanto à validade e autenticidade dos documentos em causa.

2.–Quanto à inteligência e autenticidade da decisão
2.1.-Tem razão o Requerido quanto à utilização da expressão divórcio nisi na tradução para português da decisão proferida em língua inglesa.
O artigo 134.º do Código de Processo Civil estatui:
1-Quando se ofereçam documentos escritos em língua estrangeira que careçam de tradução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes, ordena que o apresentante a junte.
2- Surgindo dúvidas fundadas sobre a idoneidade da tradução, o juiz ordena que o apresentante junte tradução feita por notário ou autenticada por funcionário diplomático ou consular do Estado respetivo; na impossibilidade de obter a tradução ou não sendo a determinação cumprida no prazo fixado, pode o juiz determinar que o documento seja traduzido por perito designado pelo tribunal.

A expressão que não foi traduzida – nisi – é uma expressão latina e não inglesa. A utilização de expressões latinas enquanto definidoras de realidades ou aforismos jurídicos é usual nos sistemas jurídicos ocidentais, que encontram na matriz romana muitas das suas raízes e que se formaram a partir de sistemas estabelecidos, ou herdeiros dos assim estabelecidos, quando o latim era a língua franca internacional.
As expressões latinas não estão sujeitas à tradução a que alude o artigo 134.º do Código de Processo Civil pertencendo, como pertencem, à herança comum das mencionadas culturas jurídicas em que se incluem a de Portugal e a dos Estados Unidos da América.
O decree nisi, tradicional nos regimes de matriz anglo-saxónica, precede o decree absolute e significa que o tribunal não encontra impedimento à dissolução do casamento, fixando um período de reflexão ou oposição findo o qual a dissolução se efectiva[1] [2].
Como resulta dos factos assentes em 2 e 3, foi proferida uma decisão nisi e, decorrido o prazo fixado, foi a mesma convertida em decisão absolute, efectivando a dissolução do casamento.
Consta também da certidão o significado da conversão do decree nisi em decree absolute: General Laws, c. 208, section 24: “After a judgement of divorce has become absolute, either party may marry again as if the other were dead” (após uma decisão de divórcio absoluteas partes podem contrair novo casamento nos mesmos termos em que o poderiam se a outra parte tivesse falecido[3]).
O que exprime claramente a eficácia de dissolução do casamento. Não existe qualquer dúvida sobre a inteligência da decisão.

2.2.-O artigo 440.º, n.º 1, do Código de Processo Civil estatui que sem prejuízo do que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os documentos autênticos passados em país estrangeiro, na conformidade da lei desse país, consideram-se legalizados desde que a assinatura do funcionário público esteja reconhecida por agente diplomático ou consular português no Estado respetivo e a assinatura deste agente esteja autenticada com o selo branco consular respetivo.

Em razão da complexidade do sistema diplomático de certificação de documentos estrangeiros, foi celebrada, em 5 de Outubro de 1961, a Convenção Relativa à Supressão da Exigência da Legalização dos Actos Públicos Estrangeiros (doravante, Convenção), no contexto da Conferência de Direito Internacional Privado de Haia.
Esta Convenção facilita a certificação da autenticidade de documentos para que os mesmos possam circular entre ordens jurídicas, estabelecendo uma tramitação uniforme dessa certificação.
No que ao caso interessa, Portugal assinou a Convenção da Apostila de Haia em 1965, tendo o regime da Convenção entrado em vigor em 4 de Fevereiro de 1969, e os Estados Unidos da América assinaram a Convenção em 1980, tendo o respectivo regime entrado em vigor em 15 de Outubro de 1981[4].
Não é controverso e não oferece dúvidas a aplicação da Convenção no caso dos autos.
Todavia, contrariamente ao que o Requerido defende, inexiste na Convenção de Haia qualquer exigência quanto ao prazo de validade da apostila, limitando-se a mesma a estabelecer as condições da sua validade. Igualmente carece de fundamento legal a invocação da norma de direito português quanto ao prazo de validade das certidões por isso que não é de uma certidão emitida na ordem jurídica portuguesa que se trata.

A legalização de documentos nos termos da Convenção apenas abrange a formalidade pela qual os agentes diplomáticos ou consulares do país sobre cujo território o acto deve produzir os seus efeitos reconhecem a assinatura, a qualidade em que o signatário do acto actuou e, sendo caso disso, a autenticidade do selo ou do carimbo que constam do acto – artigo 2.º da Convenção.
Por seu turno, dispõe o artigo 3.º, I.ª parte, do mesmo diploma, que a única formalidade que pode ser exigida para atestar a veracidade da assinatura, a qualidade em que o signatário do acto actuou e, sendo caso disso, a autenticidade do selo ou do carimbo que constam do acto consiste na aposição da apostila definida no Artigo 4.º, passada pela autoridade competente do Estado donde o documento é originário.
A apostila prevista no artigo 3.º, alínea primeira, será aposta sobre o próprio acto ou numa folha ligada a ele e deve ser conforme ao modelo anexo a esta Convenção. A apostila pode, todavia, ser redigida na língua oficial da autoridade que a passa. As menções que figuram na mesma podem também ser redigidas num segundo idioma. O título «Apostila (Convenção da Haia de 5 de Outubro de 1961)» deverá ser escrito em língua francesa artigo 4.º da Convenção.
O teor do documento apresentado, referido em 5, satisfaz aos requisitos enunciados nas normas transcritas, como resulta do cotejo entre um e outras.
A apostille nada mais é de que um  atestado de autenticidade da assinatura e da função pública exercida pelo signatário do documento e, portanto, aplica-se aos documentos públicos, exarados por uma autoridade com fé pública, delegada ou não (cargo ou função)[5].
Assim, entende-se que se encontra atestada a veracidade da assinatura da emitente da certidão de inteiro teor dos autos em que foi proferida a sentença revidenda, a qualidade de funcionária do cartório judicial em que a passou e a autenticidade do selo, nos termos e para os efeitos do artigo 5.º da Convenção.
Em suma, refere-se a questão ao requisito de autenticidade exigido pela alínea a) do artigo 980.º, do Código de Processo Civil, quanto à certificação do acto revidendo, considerando-se que essa autenticidade se encontra atestada nos termos aplicáveis pelo Direito Internacional que vincula o Estado Português.
Encontra-se igualmente atestado o trânsito em julgado da decisão, com o que temos por verificados os requisitos a que alude o artigo 980.º alíneas a) e b), do Código de Processo Civil.

3.–Quanto à verificação do requisito exigido pelo artigo 980.º, alínea c), do Código de Processo Civil.
Dispõe a norma ser requisito da decisão que a sentença revidenda provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses, o que não foi colocado em causa.
Sempre se diga que nada consta que possa integrar a I.ª parte da norma e que a questão não é de competência exclusiva dos tribunais portugueses ou da União, nem nos termos do Regulamento Bruxelas II bis (que se refere por aplicável em determinadas situações mesmo perante Estados terceiros) nem nos do artigo 63.º do Código de Processo Civil.
Também inexiste notícia de acção em Portugal que possa ser considerada para os efeitos da alínea d) da norma.
Com o que se verificam os requisitos das alíneas c) e d).
4.–Também por via do disposto na alínea e) do artigo 980.º entende o Requerido dever ser recusada a revisão da sentença, a saber, por não constar ter sido o Réu citado.
Advirta-se que o Requerido invoca não constar da sentença ter sido citado para os termos do processo de divórcio, não alega que não tenha sido citado. Configura assim o requisito da citação do Réu como requisito meramente formal a indicar na sentença revidenda e não como requisito substancial dirigido à proibição da indefesa e salvaguarda de contraditório sempre que interesses de uma pessoa sejam apreciados por um tribunal.
Já nessa dimensão se afasta da norma em que se louva da qual é patente que o requisito exigido é o de contraditório prévio e igualdade de partes e não de expressão sacramental de fórmulas em decisões judiciais.
Mas também uma outra retira razão ao que invoca, salvo o devido respeito. Assim, o artigo 984.º do Código de Processo Civil, estatui que o tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 980.º; e também nega oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito.
Anote-se que face a esta norma o tribunal da Relação deve recusar a revisão quando do exame do processo ou de conhecimento oficioso apure estar em falta o requisito da citação.
Ora, do exame do processo nada resulta que permita concluir que se encontra em falta a citação, pese embora quanto ao teor da decisão não conste indicada a respectiva ocorrência. Pelo contrário, o que resulta do exame do processo é que o divórcio por submissão de requerimento nisi, por via do regime aplicável (General Law, c. 208, section 21) compreende a notificação da pretensão à parte contrária. Resultando tal do exame do processo e não tendo o Requerido alegado que essa notificação não ocorreu, é irrelevante que a sua menção seja ou não feita na decisão.
Entendemos verificado o requisito da alínea e).

5.–Defende o Requerido na sua oposição que a sentença, por decretar o divórcio por justa causa, ofende princípios ético-jurídicos das normas aplicáveis à dissolução do casamento e aos valores fundamentais que enformam a ordem jurídica Portuguesa.
Louva-se na abolição na ordem jurídica portuguesa do denominado divórcio-sanção[6] – revogação do artigo 1787.º do Código Civil, pela Lei 61/2008, de 31 de Outubro -, entendendo que a revisão de uma sentença que mencione existir justa causa de divórcio contraria tal ordem jurídica interna enquadrando-se, por isso, na previsão da alínea f) do artigo 980.º.
Não consta que a sentença revidenda tenha declarado um dos cônjuges culpado, como não consta que tenha apreciado a existência de justa causa. Consta tão somente que foi submetido um pedido de divórcio nisi por justa causa (a Judgement of Divorce Nisi was entered by the Court in the above mentioned case for cause wich is fully set forth in the decree of file in the Court).
Embora tal obste desde logo a que proceda a excepção invocada, admitindo similitude entre justa causa e atribuição de culpa, apreciemos a questão por exaustão de razões.
Estabelece a alínea f) do artigo 980.º que para que a sentença seja confirmada é necessário: (…) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
A questão colocada nesta norma constitui excepção ao regime formal a que obedece o regime da revisão de sentenças estrangeiras, introduzindo uma apreciação de mérito, não da sentença, mas do efeito do reconhecimento.
É o reconhecimento, e não a própria decisão, que deve ser compatível com a ordem pública internacional. (…) Por isso, o momento relevante para a concretização da ordem pública internacional é o do reconhecimento, e não o momento em que a decisão é proferida.
(…)
Em suma, o tribunal de reconhecimento tem de limitar-se a averiguar se, à luz dos factos dados como provados pelo tribunal de origem, e da determinação, interpretação e aplicação do Direito aplicável a que procedeu, o reconhecimento implica uma violação manifesta e inaceitável de uma regra essencial vigente na ordem jurídica do foro, ou de um direito reconhecido como fundamental nesta ordem jurídica, no momento do reconhecimento[7].

Voltando ao caso concreto, uma primeira nota sobressai: vem invocada pelo Requerido a violação da ordem jurídica portuguesa quando a norma se refere à ordem pública internacional do Estado Português.
A norma anterior à do artigo 980.º, alínea f), do Código de Processo Civil, a do artigo 1096.º, alínea f), do Código de Processo Civil na redacção do Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro, tinha idêntica redacção. Não assim quanto à primitiva redacção do artigo 1096.º, alínea f) do Código de Processo Civil na redacção anterior à reforma de 95/96 que dispunha como segue:

Para que a sentença seja confirmada é necessário:
(…)
f)- Que não contenha decisões contrárias aos princípios de ordem pública portuguesa; (…).
Não é sem consequências a alteração. Trata-se de avaliar os princípios e valores da ordem pública internacional do Estado Português, não os princípios consagrados no sistema jurídico português interno (a que parece referir-se o Requerido)[8].
O regime actual, mesmo quanto a esta cláusula excepcional que em alguma medida aflora o mérito, é assim mais consentâneo com o sistema vigente em Portugal de recusa de apreciação intrínseca da decisão a rever, remetendo a apreciação face ao acquis do direito comum dos países ocidentais fundado na defesa dos direitos fundamentais da pessoa; mesmo aí, como já referido, a apreciação cinge-se às consequências do reconhecimento, não atingindo o mérito da decisão.
A excepção é ainda integrada pelos princípios fundamentais do Estado Português que decorram desta ordem pública internacional na sua concretização no momento histórico da revisão, os quais se encontram sobretudo nas normas de nível constitucional ou que respeitem a direitos fundamentais.
A atuação da cláusula de ordem pública internacional é justificada, em especial, quando estejam em causa direitos fundamentais. Com efeito, o conteúdo da ordem pública internacional tende hoje a ser determinado à luz dos direitos fundamentais protegidos pela Constituição, pelas Convenções Internacionais e pelo Direito da União Europeia.
(…)
Excecionalmente, poderão existir proposições jurídicas fundamentais estruturantes da ordem jurídica portuguesa que não tenham dignidade constitucional, internacional ou europeia, mas terão de resultar de uma sedimentação e consolidação em sectores importantes da ordem jurídica, mediante uma consagração legislativa ou consuetudinária, facultada pela vontade colectiva manifestada pelos órgãos do poder politico com competência legislativa ou pelo consenso social. Meras soluções particulares, que resultam de opções conjunturais ou pontuais do legislador em matéria de Direito Privado, não se revestem destas características[9].

O enquadramento genérico pretende surpreender os contornos do que deva entender-se por ordem pública internacional do Estado Português, sem escamotear que nos encontramos face a um conceito genérico e indeterminado que exige do intérprete um esforço de concretização apenas possível no confronto com o caso concreto em apreciação[10], conceitos estes carecidos de preenchimento valorativo[11].

Trata-se de saber se a declaração de que o divórcio decretado ocorreu por justa causa contraria a ordem pública internacional do Estado Português. Mesmo concedendo que a declaração de justa causa se equipara à declaração de culpa (de um ou de ambos os cônjuges) como causa do divórcio, antecipe-se que entendemos que não pode o afastamento do divórcio-sanção ser erigido em princípio da ordem pública internacional do Estado Português e, menos ainda, pode considerar-se que a vigência na ordem jurídica portuguesa de uma decisão estrangeira que a declarasse constituiria uma intolerável ofensa da harmonia jurídico-material interna ou uma contradição flagrante com os princípios fundamentais que enformam a sua ordem jurídica[12].

A matéria em causa no caso que nos ocupa é matéria de relevo na organização social da sociedade constituída em Estado, uma vez que respeita à família, sua constituição, nomeadamente pelo vínculo do casamento, ou à dissolução deste e respectivas consequências. Mas o particular relevo da matéria não se estende a todas as questões que a integram. Dir-se-á que a definição de culpa do divórcio exprime uma concepção arredada da ordem jurídica portuguesas. É verdade, dada a revogação da norma respectiva a que já aludimos. Todavia, nem por isso se encontra proscrita na ordem jurídica interna toda e qualquer apreciação de responsabilidade decorrente da ruptura do vínculo contratual que o casamento civil constitui, por via do disposto no artigo 487.º do Código Civil.

Por tudo, entende-se que o facto de a decisão dar provimento a um pedido de divórcio com indicação de que o mesmo se funda em justa causa em nada fere, atinge ou contraria os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, sendo certo que seria ainda necessário que os atingisse manifestamente.

Neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Abril de 2018, proferido no processo 137/17.7YRPRT.S1 (José Rainho) em caso similar, embora ainda mais impressivo por se tratar de efectivas consequências do divórcio decretado com declaração de culpa[13] [14].

Conclui-se inexistir violação manifesta dos princípios de ordem pública internacional do Estado Português.

IV)–DECISÃO

Pelo exposto, ACORDAM em rever e confirmar a referida sentença declaratória de divórcio, proferida pelo Tribunal da Comunidade de Massashutts, Estados Unidos da América, transitada em 4 de Fevereiro de 2020, para produzir efeitos em Portugal.
Fixam à ação o valor de € 30.000,01 – artigos 303.º, n.º 1, e 306.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Custas pelo Requerido – artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Registe, notifique e comunique ao Registo Civil.
*


Data constante das assinaturas electrónicas 


(Ana de Azeredo Coelho)
(Eduardo Petersen Silva)
(Manuel Rodrigues)



[1]Cf. HENRY DIGGS vs. MOCIEL A. DIGGS (Massachusetts): decrees for divorce shall in the first instance be decrees nisi and shall become absolute after the expiration of six months unless the court within that period for sufficient cause upon application of any party interested otherwise orders consultado em https://law.justia.com/cases/massachusetts/supreme-court/volumes/291/291mass399.html .
[2]Cf. BARBARA SILVERSTEIN vs. LOUIS SILVERSTEIN (Massashusetts): The relevant portion of G. L. c. 208, Section 21 (as most recently amended by St. 1934, c. 181), provides that "[d]ecrees of divorce shall in the first instance be decrees nisi, and shall become absolute after the expiration of six months from the entry thereof, unless the court within said period, for sufficient cause, upon application of any party interested, otherwise orders." The libellee submits that the provision "unless the court . . . for sufficient cause . . . otherwise orders" can fairly be interpreted to permit a judge to order the entry of a decree absolute before the six months' period has elapsed. We disagree. We think the construction urged by the libellee strains the ordinary meaning of the words of the statute and that such construction does not comport with the purpose or history of Section 21.
In our opinion the phrase "unless the court . . . for sufficient cause . . . otherwise orders," as used in Section 21, goes no further than to authorize a judge to postpone or to prevent the otherwise automatic transformation of a decree nisi into a decree absolute six months after the entry of a decree nisi.  https://law.justia.com/cases/massachusetts/court-of-appeals/volumes/2/2massappct94.html.
[3]Tradução livre.
[4]Dados recolhidos em https://www.hcch.net/pt/instruments/conventions/status-table/?cid=41
[5]Cf. Gabriel da Silva Barros, Clarissa Moreira dos Santos Schmidt e Natália Bolfarini Tognoli in APOSTILA DE HAIA E A FORMA DOCUMENTAL: uma análise a partir da Diplomática e de seu método, consultado em file:///C:/Users/mj01366/Downloads/38465-Texto%20do%20artigo-105927-1-10-20181226.pdf.
[6]Sobre a questão cf. Maria Margarida Silva Pereira in Direito da Família, AAFDL, 2019, 3.ª edição ver. e act., p. 562-564.
[7]Luís de Lima Pinheiro in Direito Internacional Privado – Reconhecimento de decisões estrangeiras, vol III, tomo II, p. 119-120.
[8]Veja-se acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Dezembro de 2020, proferido no processo 210/19.7YRGMR.S1 (Pedro de Lima Gonçalves): Os princípios de ordem pública referem-se à ordem pública internacional e não à ordem pública interna sendo que tais princípios decorrem de um complexo de normas inspiradas por razões políticas, morais e económicas que são aceites por um determinado número de nações como expressão de uma civilização e cultura idênticas.
Os princípios de ordem pública internacional do Estado Português hão-de estar plasmados a nível internacional na ordem jurídica de um certo número de Estados com os quais Portugal tem afinidades jurídicas e por outro lado hão-de estar em consonância com a Constituição da República Portuguesa não podendo ser contrários aos defendidos na nossa Lei Fundamental.
[9]Idem, p. 118.
[10]É usual indicar como características da ordem pública internacional: i) a imprecisão; (ii) o cariz nacional das suas exigências (que variam de Estado para Estado, segundo os conceitos dominantes em cada um deles); (iii) a excepcionalidade (por ser um limite ao reconhecimento de uma decisão arbitral putativamente estribada no princípio da autonomia privada); (iv) a flutuação e a actualidade (intervém em função das concepções dominantes no tempo do julgamento, no país onde a questão se põe); e (v) a relatividade (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa in Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 2020 reimpressão, p. 429.
[11]Cf. Baptista Machado in Introdução ao Direito e ao discurso legitimador, Almedina, 1983, p. 114.
[12]Baptista Machado in Lições de Direito Internacional Privado, 1974, p. 254-256.
[13]Onde se lê: Ora, o resultado (atribuição de recursos de vida em decorrência do divórcio e atribuição de uma indemnização pelo dano causado) a que estas decisões conduzem, em nada contende com quaisquer princípios da ordem pública internacional do Estado Português, justamente porque em nada representa uma intolerável ofensa da harmonia jurídico-material interna ou uma contradição flagrante com os princípios fundamentais que informam a ordem jurídica portuguesa.
Tal resultado não apenas não contende, como até se identifica, no essencial, com o resultado que se poderia obter a partir de dois triviais institutos jurídico-materiais, admitidos na ordem jurídica portuguesa, quer com referência à data do acórdão revidendo, quer com referência à data atual (é, porém, esta última data que aqui interessa[4]). E esses institutos são o da responsabilidade civil por facto ilícito e culposo (art. 483º e seguintes do CCivil) e o da prestação de alimentos ao ex-cônjuge (art. 2009º, nº 1, alínea a) do CCivil).
Se acaso o direito aplicado pelo tribunal francês não coincide inteiramente (ou seja, se não existe uma correspondência exata), nos seus pressupostos e efeitos, com o direito português, isso nada tem de relevante para o caso, pois que não será essa simples dissonância ou não convergência que provocará um resultado incompatível em termos de ordem pública internacional. E muito menos um resultado manifestamente (flagrantemente, ostensivamente, intoleravelmente) incompatível.
[14]Cf. desta Relação e secção o acórdão de 6 de Maio de 2021, proferido no processo 2247/20.4YRLSB-6 (Gabriela de Fátima Marques).