Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | EDUARDO PETERSEN SILVA | ||
Descritores: | EMBARGOS DE TERCEIRO OPOSIÇÃO À PENHORA DIREITO REAL DE HABITAÇÃO E USO DO RECHEIO UNIÃO DE FACTO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 04/13/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | O direito real de habitação e de uso do recheio que resulta para o sobrevivo duma união de facto, nos termos do artigo 5º nº 1 da Lei de Protecção das Uniões de Facto, e nem a posse dele derivada, são oponíveis, em embargos de terceiro, ao exequente que beneficia de hipoteca anteriormente registada sobre o imóvel relativamente ao qual se exerce o direito do sobrevivo, por dívida de mútuo bancário contraída precisamente para a aquisição do mesmo imóvel pelo unido de facto que entretanto veio a falecer. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os juízes que compõem este colectivo do Tribunal da Relação de Lisboa: I. Relatório[1] A presente execução para pagamento de quantia certa[2] foi instaurada em 20 de Novembro de 2013 pela C…, S.A., contra P… (na qualidade de único sucessor de J…), tendo sido registada em 30 de Abril de 2014 a penhora da fracção … do prédio descrito na … C.R.P. de …. com o nº … Foi habilitada a ..., S.A., para prosseguir na causa no lugar da exequente (apenso C). Repudiando P… a herança, foi habilitado o Estado Português para prosseguir na causa como sucessor do executado (apenso B). Por despacho de 9 de Abril de 2015 foram liminarmente admitidos os embargos de terceiro deduzidos por H…, que invocou que a penhora ofende o seu direito real de habitação e de uso do recheio, originado na união de facto com J…, falecido em 5 de Fevereiro de 2013, nos termos do artigo 5º nº 1 e nº 2 da Lei 7/2001, sendo que o imóvel penhorado era a casa de morada da família, e que a penhora é posterior à aquisição do referido direito. A penhora é incompatível com o direito invocado e, ainda que assim não se entenda, continuando a embargante a residir no imóvel, a penhora ofende a sua posse. Concluiu os embargos de terceiro peticionando, no seu recebimento e procedência, que deve “ser ordenado o levantamento da penhora que incide sobre a fracção (…)”. A exequente contestou, impugnando a existência de união de facto, e invocando que a “proteção da casa de morada de família conferida a um membro sobrevivo de uma união de facto, confere a este último um direito que em nada é beliscado pelo recurso legítimo da Exequente à presente ação executiva para cobrança coerciva de uma dívida decorrente de mútuos garantidos por hipotecas registadas sobre o bem imóvel penhorado”. Alinhou, ainda antes da impugnação, razões de direito que deveriam levar à improcedência dos embargos, a saber: - o direito que resulta do artigo 5º nº 1 e nº 2 da Lei 7/2001 visa atribuir aos ex-membros de uma união de facto direitos similares aos que são atribuídos aos ex-cônjuges por via do disposto no artigo 1793º do Código Civil, sendo que essa atribuição tem “uma única motivação de cariz axiológico: não deixar desamparado o elemento sobrevivo que contribuiu para a financiar a aquisição e/ou manter o bem imóvel que constituía a casa de morada de família, impedindo que o seu prejuízo se traduza num enriquecimento sem causa para os herdeiros do falecido”. - Se “(…) o companheiro sobrevivo encabeçado neste direito de habitação é um legatário, pois sucede num bem certo e determinado” não pode o mesmo suceder a um direito que o próprio falecido não detinha”. O falecido tinha o direito de propriedade, não o direito de habitação. - “não poderá proceder o entendimento de que o ato de afixação do edital de penhora da fração seja ofensivo do seu alegado direito real de habitação”, pois “a única consequência do ato de afixação do edital de penhora foi precisamente o de dar conhecimento aos eventuais interessados de que o imóvel irá ser objeto de venda judicial para pagamento de dívida à ora Exequente”, sendo que a embargante “não foi notificada para abandonar o imóvel em causa, pelo que a sua alegada posse (a qual, não passa de mera detenção e não é sequer apta a ilidir a presunção da titularidade do direito de propriedade validamente registado sobre o bem imóvel em causa, conforme determina o artigo 7º do Código de Registo Predial) não foi ofendida”. - À “Embargante poderá assistir o direito de preferência na venda do imóvel, o qual não colide com o direito que a Exequente tem de fazer pagar através do produto da venda judicial do bem imóvel em causa, nos termos do disposto no artigo 824º do CC”. - O “alegado direito de que se arroga a Embargante não é causa de extinção do registo das hipotecas voluntárias e/ou da penhora dos presentes autos, nem pode restringir, seja a que título for, os direitos que assistem à Exequente de ser paga pelo valor do bem imóvel onerado com as hipotecas e pertencente ao devedor, sob pena de violação grosseira do princípio da legalidade e da confiança em que se baseia o Estado de Direito”. - Os “Embargos de Terceiro, em sede de ação executiva em que se pretende cobrar uma dívida hipotecária, não serão a sede própria para ver reconhecido, por via judicial, o direito real de habitação e/ou de uso do recheio (que não está sequer em causa nos presentes autos) e ou de atribuição de casa de morada de família, uma vez que tal reconhecimento apenas seria oponível aos herdeiros do falecido”. - A “existir o reconhecimento desse direito, o mesmo, à semelhança do direito à habitação de um cônjuge sobrevivo (que fosse o imóvel um bem comum ou um bem próprio do falecido), caducaria com a venda judicial do bem imóvel, nos termos do disposto nos artigos 486º e 824º do CC, não constituindo em qualquer caso fundamento para deduzir embargos, seja de executado, seja de terceiro”. - “A penhora dos autos por sua vez, nos termos do disposto no artigo 735º do CPC, só seria inadmissível se incidisse sobre bens da titularidade de pessoa diversa do devedor, sendo que nos presentes autos atingiu um bem de que o devedor era o único e legítimo proprietário e do qual a Embargante não é proprietária e/ou comproprietária e/ou usufrutuária, mas mera detentora a título precário”. - Traduzir-se-ia “em manifesto abuso de direito atribuir ao eventual direito real de habitação da Embargante uma extensão que se traduza no sacrifício dos direitos constituídos da Exequente e que decorrem das hipotecas voluntárias e/ou da penhora registadas sobre o bem imóvel dos autos”. - Caso “a Embargante fosse casada com o falecido poderia deduzir nos presentes autos todos os mecanismos de defesa que assistissem ao devedor em face do crédito hipotecário, de entre os quais não constaria certamente o direito a continuar a habitar no imóvel que constituía a casa de morada de família do casal”. - Aos “cônjuges sobrevivos, o legislador não atribuiu a extensão do direito a continuar a habitar o imóvel que constituísse a casa de morada de família nos moldes aqui abusivamente configurados pela Embargante em face da Exequente, uma vez que, em face da venda judicial do imóvel, teriam forçosamente de abandonar o imóvel por verem caducado o seu direito à habitação, um direito material e juridicamente subordinado ao seu direito de compropriedade que caducaria inevitavelmente com a mesma venda”. - “não poderá senão ser liminarmente rejeitada a pretensão da Embargante de ver reconhecido um direito real de habitação oponível ao credor hipotecário do bem imóvel em causa, sob pena de tal reconhecimento gerar um enriquecimento sem causa da Embargante, o consequente empobrecimento injustificado do credor e um desaparecimento do Estado de Direito em que a credora fundou a sua confiança para a prestação dos mútuos que permitiram a aquisição do bem imóvel”. - “qualquer outra interpretação decairia pela sua inconstitucionalidade, seja por violação do princípio da legalidade, seja pela violação do princípio da confiança estabelecidos na Constituição da República Portuguesa”. - “Não podem configurar os direitos conferidos aos membros sobrevivos de uma união de facto como superiores aos direitos do que se dão aos cônjuges sobrevivos de um casamento”. * Por despacho de 14 de Junho de 2018 foram os embargos julgados totalmente improcedentes – decisão revogada por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Julho de 2019. Por despacho de 27 de Janeiro de 2022 foi saneada a causa, fixados o objecto do litígio e os temas da prova, e apreciados os requerimentos probatórios. * Procedeu-se a audiência de julgamento, proferindo seguidamente o tribunal sentença que julgou os embargos improcedentes e condenou a embargante em custas. * Inconformada, a embargante de terceiro interpôs o presente recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões: A) O presente recurso divide-se em quatro partes, a saber: A) DA NULIDADE DA SENTENÇA POR VIOLAÇÃO DO DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO – NÃO ESPECIFICAÇÃO DOS FUNDAMENTOS DE DIREITO QUE JUSTIFICAM A DECISÃO; B) DA VIOLAÇÃO DO DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO PELO TRIBUNAL A QUO POR INSUFICIÊNCIA/DEFICIÊNCIA DA FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO; C) DA NULIDADE DA SENTENÇA POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA; D) DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE DIREITO – DO ERRO NO DIREITO APLICÁVEL E DAS ERRADAS CONCLUSÕES RETIRADAS PELO TRIBUNAL RECORRIDO - A DECISÃO DE DIREITO DO ACÓRDÃO RECORRIDO CONSTITUI A VIOLAÇÃO DA LEI SUBSTANTIVA E ERRO DE INTERPRETAÇÃO DO DISPOSTO NO ARTIGO 342º DO CPC B) A decisão recorrida enferma de nulidade por falta de fundamentação, por não terem sido especificados os fundamentos de direito que justificam a decisão, ou sem conceder e subsidiariamente a fundamentação é insuficiente a que acresce ainda o facto do Senhor Juiz não se ter pronunciado sobre questões suscitadas no processo e que devia apreciar, o que também gera nulidade da sentença e a decisão recorrida enferma ainda de um manifesto erro de julgamento de direito consubstanciado no facto de a decisão se alicerçar num errado fundamento e aplicação do direito. C) Assim, entende a ora Recorrente que o Tribunal a quo errou na aplicação que fez do Direito ao caso concreto, razão pela qual a decisão deveria ter sido outra, conforme infra se explicará. D) Nesta conformidade, deve a sentença ser declarada nula, em face das nulidades que a afectam previstas no artigo 615º, n.º 1 alíneas b) e d) e, sem conceder deve a mesma ser revogada por violar o previsto nos artigos 607º, 608º, 342º, 152º, 154º, do Código de Processo Civil (doravante CPC) e nos artigos 1259º, 1305º, 1306º, 1484º, 1485º, 1488º e 1490º do Código Civil (CC). E) Nada há a apontar à decisão recorrida quanto à matéria de facto que decide que “Face à matéria de facto provada, conclui-se pela existência de uma situação de ‘união de facto’ – que confere à ora A. o direito real de habitação sobre a fracção penhorada. “e que “o direito de habitação deve ter a duração equivalente à da união de facto – isto é, por 23 anos a partir de 5-II-13.”. F) A sentença quanto ao Direito, ou quanto à decisão da matéria de direito resume-se a uma parca página cuja transcrição na íntegra consta das motivações de recurso e para a qual se remete. G) Resulta de forma clara e indubitável que a presente sentença é nula por falta de fundamentação da decisão da matéria de direito nos termos e para os efeitos do artigo 615º, n.º 1 al. b) do CPC. H) A sentença recorrida não especifica os fundamentos de direito que justificam a decisão de improcedência dos Embargos, nem se conhece o iter cognitivo do Tribunal a quo para ter decidido da forma como decidiu. I) A primeira observação que, daqui ressalta é a manifesta omissão das normas que constituem fundamento jurídico da decisão, o que, como se sabe, constitui um dos elementos da fundamentação de direito. J) A segunda observação que também, daqui ressalta é a manifesta falta de aplicação e interpretação de normas jurídicas ao caso em concreto. K) Sendo que o Tribunal a quo limita-se a fazer a questão: “saber se a penhora ofende o direito real de habitação” – e a responder: “e a resposta terá de ser negativa”, sem que a explicação seguinte permita jurídica e fundamentadamente perceber porque é que a resposta do Tribunal a quo é negativa. L) Esta omissão constituiu violação do dever de fundamentação das decisões judiciais que se encontra constitucionalmente consagrado, no artigo 205.º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa e, no que concerne às decisões proferidas em processo civil, entre outras, as previstas nos artigos 152º, 154º e 607º, nº 3, do Código de Processo Civil. M) A fundamentação das decisões judiciais (que podem assumir a forma de sentença ou despacho), é hoje, uma exigência legal que, a não ser observada, vicia o acto com a nulidade da decisão, tal como vem expressamente previsto no artigo 615º do CPC. N) O constante na sentença quanto à decisão da matéria de direito constitui falta de fundamentação da sentença por falta de especificação dos fundamentos de direito, constituindo uma verdadeira causa da nulidade da mesma, nos termos da al. b) do nº 1 do art.º 615º do CPC, já citado. O) Assim se não se entender que existe absoluta falta de fundamentação, sempre se estará perante uma situação de insuficiência da fundamentação da decisão de direito. P) Isto porque, o Tribunal a quo violou o dever de fundamentação previsto no artigo 154.º, n.º 1 e 2 do CPC, na sua vertente de fundamentação insuficiente. Q) Sendo certo que “as nulidades ditam a anulação da decisão por ser formalmente irregular, as ilegalidades ditam a revogação da decisão por estar desconforme ao caso (decisão injusta ou destituída de mérito jurídico) (cf. neste sentido acórdão do STJ de 17.10.2017, Procº nº 1204/12.9TVLSB.L1.S1.). R) Consequentemente, esta violação do dever de fundamentação leva à necessidade de revogação da sentença recorrida, inclusive à revogação da decisão da matéria de direito, o que se requer ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa. S) A sentença ora recorrida também é nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC, porquanto o Tribunal recorrido não conheceu de todas as questões que se encontrava obrigado a conhecer. T) Com efeito, aquando da propositura dos Embargos de Terceiro, a Embargante, ora Recorrente, formulou a sua causa de pedir, estando a mesma subdividida em: A. Da Existência de União de Facto; B. Do Direito de Uso e Habitação; C. Da Incompatibilidade da Penhora com o Direito de Uso e Habitação da Embargante; D. Da Ofensa da Posse da Embargante. U) Tendo formulado como pedido o seguinte: “Nestes termos, e nos demais de direito, devem os presentes embargos de terceiro ser recebidos, julgados procedentes por totalmente provados e, em consequência, ser ordenado o levantamento da penhora que incide sobre a fracção «…» (…)” V) Resulta da sentença, no 1º parágrafo da decisão de direito, que: “A única questão a decidir, face ao (único) pedido formulado, é saber se a penhora deve ser levantada (…)” W) Desde logo, andou mal o Tribunal a quo quando na sentença considerou que a única questão a decidir, em face do pedido formulado pela Embargante, era a de saber se a penhora deve ser levantada. X) Assim como andou mal o Tribunal a quo quando considerou que a Embargante apresentou um único pedido: o levantamento da penhora. Y) Pela leitura e análise do pedido formulado pela Embargante depressa se conclui que a esta não formulou um único pedido, aliás, conforme resulta do pedido o levantamento da penhora é a consequência da procedência do demais peticionado pela Embargante na petição inicial. Z) Se o levantamento da penhora é a consequência do peticionado, o Tribunal a quo tem de analisar e decidir todas as questões jurídicas invocadas pela Embargante na sua causa de pedir para que possa decidir se a consequência pedida pela Parte deve ser procedente ou improcedente. AA) As questões jurídicas invocadas na petição inicial são absolutamente essenciais para aferir da procedência, procedência parcial ou improcedência dos Embargos de Terceiros em questão, pelo que há omissão de pronúncia. BB) Resulta da sentença que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre: C. Da Incompatibilidade da Penhora com o Direito de Uso e Habitação da Embargante. CC) De acordo com o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, é nula a sentença quando «o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar». DD) A pronúncia cuja omissão releva incide, assim, sobre problemas e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objeto que é submetido à cognição do tribunal, correspondendo aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir (ou seja, às concretas controvérsias centrais a dirimir) e não aos motivos ou às razões alegadas. EE) Era essencial e determinante para a boa decisão dos autos que a sentença de que se recorre conhecesse e decidisse a questão de saber se existe incompatibilidade entre a penhora e o direito real de habitação da Embargante, o que não fez. FF) Padece, por isso, a sentença em causa do vício de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC, porquanto o tribunal recorrido não conheceu de uma questão que se encontrava obrigado a conhecer. GG) Em face da matéria de facto provada, o Tribunal a quo concluiu, e bem, pela existência de uma situação de ‘união de facto’ e que tal confere à Embargante o direito real de habitação sobre a fracção penhorada e que o “direito de habitação deve ter a duração equivalente à da união de facto – isto é, por 23 anos a partir de 5-II-13.” HH) A penhora da propriedade plena efectuada nos autos principais é incompatível com o direito real em causa e como tal é ofensiva do direito da Recorrente, uma vez que a mesma é titular de um direito de uso e habitação da fração penhorada. II) Nos termos do artigo 342.º do CPC goza de legitimidade para deduzir embargos de terceiro, se a penhora ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa. JJ) Mas inexplicavelmente, o Tribunal a quo não reconheceu a procedência dos Embargos – e nem tampouco justificou porque não o fez – considerando que a penhora do direito de propriedade do imóvel em causa não ofende o direito real de habitação. KK) Quando decorre da lei que os embargos de terceiros existem para que o lesado possa fazer valer qualquer direito que seja incompatível com a penhora ou quando esta ofenda esse direito. LL) A este propósito, escreve MARCO CARVALHO GONÇALVES4 que “sendo penhorado um bem imóvel pertencente ao executado, mas que se encontra onerado com um direito de uso e habitação a favor de outrem, é lícito ao terceiro titular deste direito deduzir embargos de terceiro em relação à penhora quando tal se revele necessário para que o tribunal reconheça que o bem se encontra onerado com esse direito, já que, sendo incompatível com a penhora, a existência de um direito de uso e habitação não se extingue com a venda executiva”. [negrito e sublinhado nosso] MM) Pelo que a penhora entretanto operada, sendo inclusive posterior ao direito de uso e habitação constituído a partir de 5 de Fevereiro de 2013, como resultou provado pelo Tribunal a quo, e que nasceu na esfera jurídica da Recorrente pela morte do unido de facto –, é incompatível com a existência destes direitos. NN) Foi penhorada toda a propriedade do imóvel, sem ter em consideração que o mesmo se encontrava onerado com os direitos de uso e habitação da Recorrente. OO) Devia pois, em consequência, a penhora incidir unicamente sobre a propriedade da raiz desse imóvel. PP) Mas não foi isso que aconteceu, pelo que, sendo a penhora incompatível com a existência do direito real de uso e habitação, deve ser cancelada/levantada. QQ) Na mesma linha, LEBRE DE FREITAS5[3] refere que “é incompatível com a penhora o direito de propriedade plena, que sempre impedirá a venda executiva do bem sobre o qual incide; e também o são os direitos reais menores de gozo – onde se enquadra o direito de uso e habitação da ora Recorrente – que, considerada a extensão da penhora, viriam a extinguir-se com a venda executiva. Seja de quem for que o terceiro tenha derivado o seu direito (do executado ou de outrem), os embargos são-lhe concedidos.” RR) Pelo que, necessariamente os Embargos de Terceiro deveriam ter sido julgados procedentes e em consequência ser levantada a penhora sobre a propriedade plena da fracção em causa nos autos. SS) Conforme resulta do previsto no artigo 1305º do CC com a epígrafe “Conteúdo do direito de propriedade” resulta que “o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem (…).” TT) A propriedade plena pode dividir-se em figuras parcelares como seja designadamente o direito de superfície, propriedade do solo, usufruto, uso e habitação, numa propriedade. UU) Quando é penhorado o direito de propriedade estão também a ser penhoradas todas as figuras parcelares (direitos reais menores) que o integram e como tal está a ser intrinsecamente penhorado o direito real de habitação. VV) Estando assim constituído um “direito de uso e habitação” no sentido da existência de um direito real de gozo oponível “erga omnes”, tal como é previsto nos Artigos 1484.º e ss. do Código Civil. WW) Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1488.º do Código Civil, o direito de uso e habitação não pode ser onerado por qualquer modo, sendo inalienável é impenhorável – cfr., nesse sentido, o Ac. da R.L. de 2/11/1989, BMJ 391, pág. 681, o Ac. da R.L. de22/6/1989 e ainda o Ac. Da Relação de Évora de 7/12/2017 estes dois últimos disponíveis in www.dgsi.pt. XX) No acórdão já proferido neste processo, por este Tribunal da Relação de Lisboa – vide Processo 7172.13.2TBOER-A.L1, o Venerando Juiz Desembargador Rijo Ferreira, na sua declaração de voto, assim o refere expressamente: “Votei no sentido da procedência dos embargos. Concordo com a posição do acórdão segundo a qual a dissolução da união de facto pode ser conhecida nos embargos de terceiro na medida em que é a acção onde se pretende exercer o direito (embora não subscreva, por o ter por desproporcionado e desadequado, o modo como se exprime o juízo de censura à interpretação seguida pelo Mm° juiz a quo na decisão recorrida). Por outro lado, afigura-se haver prova documental bastante (e a Relação pode alterar a matéria de facto oficiosamente desde que se não baseie em prova gravada) relativamente à união de facto e à localização da casa de morada de família, factos dos quais resulta ser a embargante titular do direito real de habitação que invoca. E nessa circunstância a penhora da propriedade plena (e não apenas da propriedade de raiz) do imóvel mostra-se incompatível com aquele direito real de gozo menor (enquanto a embargante não for chamada à execução — art.º 54º do CPC — para aí ser convencida da prevalência do direito real de garantia da exequente sobre o seu direito real de gozo em virtude da sua anterioridade), sendo que o confronto dos direitos reais envolvidos é uma das questões centrais do litígio, sobre cuja pronúncia não só as partes podem contar como esperam, não constituindo a mesma qualquer decisão surpresa.” [negrito nosso] YY) No caso em concreto, a penhora concretizada da propriedade plena ofende o direito incompatível – direito real de uso e habitação – da titularidade da ora Recorrente e como tal a lesada pode fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro. ZZ) Posto isto, se conclui que o Tribunal a quo nesta decisão violou o previsto no artigo 342º do CPC no sentido de considerar que a penhora do direito de propriedade plena não ofende o direito real de habitação, e em consequência ter decidido pela improcedência dos embargos. AAA) Violando também as normas de direito substantivo que decorrem dos artigos 1305º, 1306º, 1484º, 1485º, 1488º e 1490º do Código Civil que, no caso em concreto, têm de ser conjugadas com o artigo 342º do CPC. BBB) Aplicado ao caso em concreto, o Tribunal a quo deveria ter aplicado o artigo 342º do CPC e as normas substantivas mencionadas, no sentido de considerar que a penhora da propriedade plena do imóvel mostra-se incompatível com aquele direito real de gozo menor – direito real de habitação, julgando-se os Embargos procedentes e em consequência ser a penhora registada levantada/cancelada. CCC) Mais se diga que o artigo 342º do CPC não prevê a verificação cumulativa da penhora ofender a posse e simultaneamente a ofensa qualquer direito incompatível. DDD) Mas tão só a verificação de um deles a) que a penhora ofenda a posse OU b) que a penhora ofenda qualquer direito incompatível. EEE) Confirmado que está que a penhora em causa ofende o direito real de uso e habitação, para a aplicação do artigo 342º do CPC não se exige que simultaneamente essa penhora ofenda em concreto a posse da Embargante. FFF) Pelo que não releva in casu a consideração do Tribunal a quo quando afirma que: “não houve apreensão efectiva (CPC 747º) que perturbe a posse da A..”. GGG) Ainda que assim não se entenda, o que por mero dever de patrocínio se admite, a penhora realizada é sempre ofensiva da posse exercida pela Embargante sobre o imóvel penhorado. HHH) Estabelece o artigo 1285.º do Código Civil que o possuidor cuja posse for ofendida por penhora ou diligência ordenada judicialmente pode defender a sua posse mediante embargos de terceiro, nos termos definidos na lei de processo. III) A posse pacífica e de boa-fé é susceptível de fundamentar embargos de terceiro. JJJ) A Embargante reside naquela fracção, conforme resultou provado dos factos 1, 2 e 4 dos factos considerados provados pela sentença recorrida. KKK) Sendo a sua posse titulada, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 1259.º do Código Civil, uma vez que decorre directamente da lei. LLL) O Tribunal a quo entendeu que a simples penhora não perturba a posse da Embargante, ora Recorrente. MMM) O Tribunal a quo deveria ter aplicado o artigo 1285º do Código Civil, e se o tivesse feito não teria considerado, como fez na sentença, que só a apreensão efectiva teria perturbado a posse da A.. NNN) Assim, o Tribunal a quo ao considerar que só a apreensão efectiva é apta a perturbar a posse da Embargante, violou o previsto no artigo 1285º do Código Civil, quando na letra da lei substantiva a simples penhora – e não a apreensão efectiva – é ofensiva da posse. OOO) O Tribunal a quo deveria ter interpretado e aplicado o artigo 1285º do Código Civil no sentido de considerar que a simples penhora é ofensiva da posse da Embargante, ora recorrente. TERMOS EM QUE, (…) DEVENDO A SENTENÇA RECORRIDA SER CONSIDERADA NULA POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO, NOS TERMOS DO ARTIGO 615, N.º 1, AL. B) DO CPC E POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA, NOS TERMOS DO ARTIGO 615º, N.º 1 AL. D) DO CPC. SUBSIDIARIAMENTE E SEM CONCEDER, DEVE A SENTENÇA RECORRIDA SER REVOGADA EM FACE DA INSUFICIÊNCIA DA FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DE DIREITO E EM FACE DOS ERROS EXISTENTES NA DECISÃO DE DIREITO, SUBSTITUINDO-SE ESSA DECISÃO POR OUTRA QUE DECIDA NO SENTIDO DE JULGAR PROCEDENTES OS EMBARGOS DE TERCEIRO POR PROVADOS E EM CONSEQUÊNCIA SEJA A PENHORA EM CAUSA NOS AUTOS LEVANTADA/CANCELADA; COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, (…). * Contra-alegou a exequente formulando a final as seguintes conclusões: “A. Vem a Recorrente interpor Recurso da Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, que determinou os embargos de executado totalmente improcedentes, absolvendo a exequente/Recorrido do pedido contra si formulado. B. Para tanto, impugnam os Recorrentes a decisão da matéria de direito, invocando para tanto que, e passa-se a citar, “A decisão recorrida enferma de nulidade por falta de fundamentação, por não terem sido especificados os fundamentos de direito que justificam a decisão, ou sem conceder e subsidiariamente a fundamentação é insuficiente a que acresce ainda o facto do Senhor Juiz não se ter pronunciado sobre questões suscitadas no processo e que devia apreciar, o que também gera nulidade da sentença e a decisão recorrida enferma ainda de um manifesto erro de julgamento de direito consubstanciado no facto de a decisão se alicerçar num errado fundamento e aplicação do direito”. C. No fundo a Recorrente invoca nulidade da sentença por omissão por falta de fundamentação, sendo que se alicerça de igual modo no facto de existir um registo de penhora que, supostamente, ofende com o seu direito real de habitação. D. No que respeita à suposta nulidade da sentença por violação do dever de fundamentação, importa ressalvar que o Tribunal a quo esclarece e clarifica na Douta Sentença que a questão primordial a decidir se prende, no essencial e bem, na de saber se a penhora deve ser levantada (sendo inclusive esta a matéria invocada pela Recorrente para aferir da falta de fundamentação). E. Ora, para tanto, o Douto Tribunal a quo invoca o disposto do artigo 342.º, número 1 do Código de Processo Civil (doravante CPC), determinando desde logo a possibilidade de invocar tal questão ao lesado, caso se verifique que uma penhora ofenda a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização da diligência. F. Na Douta Sentença, ficou determinada a existência de uma situação de união de facto, questão diversa seria a de saber se o registo de penhora no imóvel ora vertido, objeto de garantia hipotecária a favor do ora Recorrido, colidiria com o direito real de habitação. G. E neste sentido, fundamenta o Douto Tribunal a quo que este direito de habitação se equipara ao direito de usufruto, vertido no disposto do artigo 1490.º do Código Civil (doravante CC), sendo certo que estava registada uma penhora no âmbito do direito de propriedade, que estava sob titularidade do unido de facto da ora Recorrente, e bem assim, que não existiu apreensão efetiva, nos termos e ao abrigo do disposto do artigo 747.º do CPC, não se justificando a invocação de perturbação da posse da Recorrente. H. Mas mais, invoca o Douto Tribunal a quo que in casu não cabe decidir o que aconteceria em caso de futura venda deste bem imóvel, não tendo existido formulação de pedido declarativo que permitisse aferir do levantamento do registo de penhora, ora vertido. I. Assim, não se verifica de que modo a Douta Sentença enferma de nulidade, estando ao invés vertida toda a matéria fundamental que justifica tal decisão. J. A este propósito afigura-se oportuno citar Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, no âmbito do processo n.º 42/14.9TBMDB.G1, no dia 11/02/2017, disponível em consulta no site www.dgsi.pt, através do qual assim se conclui: “I- Só ocorre falta de fundamentação de facto e de direito da decisão judicial, quando exista falta absoluta de motivação ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial.(…) III- A decisão judicial diz-se “obscura” quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível (não se sabe o que o juiz quis dizer) e será “ambígua” quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes (hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos). IV- A não apreciação de algum argumento ou razão jurídica invocada pela parte pode, eventualmente, prejudicar a boa decisão sobre o mérito das questões suscitadas. Porém, daí apenas pode decorrer um, eventual, erro de julgamento ou “error in iudicando”, mas já não um vício (formal) de omissão de pronúncia.(…) VI- Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. (…)” (…) K. Neste sentido, não existe qualquer omissão na Douta Sentença que permita aferir pela sua ininteligibilidade, sendo certo que os destinatários bem compreenderam a fundamentação explanada, bem como o seu alcance, ao invés do que faz crer a Recorrente. L. No entanto, e caso assim não se entenda, importa por outro lado, distinguir a “nulidade da sentença” do “erro do julgamento”, sendo que aquela tem implícito um erro de raciocínio lógico-dedutivo por demais evidente. M. Neste sentido importa citar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, datado de 03/03/2021, consultável no site supra mencionado: “I. Há que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual -nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma- ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma. II. Só a absoluta falta de fundamentação – e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação – integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil. III. A nulidade da sentença prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la. Ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente. IV. Verifica-se tal nulidade quando existe contradição entre os fundamentos e a decisão e não contradição entre os factos provados e a decisão, ou contradições da matéria de facto, que a existirem, configuram eventualmente erro de julgamento.” (…) N. Ora, ao contrário do que faz crer a Recorrente, não é aplicável sequer o disposto do artigo 615.º/1/al. c) do CPC, não sendo evidente que o juiz produziria decisão diversa daquela que foi vertida na douta Sentença, atendendo aos factos invocados. O. Por fim, importa ressalvar que a Recorrente mune-se da invocação de um Acórdão do STJ, no artigo 36.º das suas alegações, citando apenas parte do mesmo, olvidando-se de que nele se negou a revista e confirmou o acórdão recorrido, sendo que no mesmo é referido também o seguinte:“(…) II - Só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade ou erroneidade – integra a previsão da al. b) do n.º 1 do art.º 615.º do NCPC, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento.(…)” P. Citando-se A. Varela, M. Bezerra e S. Nora (Manual de Processo Civil, 2ª ed.,1985, p.670/672), refere-se o seguinte “Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”. Assim, a nulidade apenas pode ser invocada nos casos em que se verifique a uma total ausência dos motivos sob que se fundou a decisão, o que não se verifica in casu. Q. A esta parte, insurge-se à posteriori a Recorrente, sendo invocado que assumindo (hipoteticamente, entenda-se) que ocorreu então mero erro de julgamento, que nem tampouco está vertido in casu, para logo depois voltar a frisar a nulidade da sentença nos termos do artigo 615.º do CPC. R. Neste ínterim, a Recorrente invoca a nulidade da Sentença atendendo a que não se pronunciou sobre determinados pedidos formulados anteriormente, tais como a questão da penhora, o que não se pode conceber, visto que a Douta Sentença faz alusão expressa ao motivo que determinou a não pronúncia sobre o levantamento do registo de penhora, que incide sobre o imóvel objeto de garantia hipotecária a favor do Recorrido. S. Cita-se para tanto o que ficara vertido na Douta sentença: “Questão diversa é a de saber se a penhora ofende o direito real de habitação – e a resposta terá que ser negativa, como seria se existisse um usufruto (CC 1490º), na medida em que o que está penhorado é o direito de propriedade, e não houve apreensão efectiva (CPC 747º) que perturbe a posse da A.. Tanto quanto foi possível verificar no processo principal, não houve constituição de depositário do imóvel – função que caberá, por analogia (CPC 756º/1b)), à ora A., que, assim, exercerá a sua “posse efectiva” (CPC 757º/1). Não cabe no âmbito deste processo decidir se o direito real de habitação caducará com uma futura venda do direito de propriedade sobre a fracção (CC 824º) – e não foi aqui formulado qualquer pedido declarativo (susceptível de ser levado ao registo)”. (…) T. No que respeita ao suposto erro de interpretação do disposto no artigo 342.º do CPC, invoca-se que o Tribunal a quo invocou expressamente que não existia obstaculização ao direito de habitação uma vez que a posse não está impedida pela Recorrente. U. De ressalvar que não existe qualquer registo de uso e habitação na certidão predial do imóvel ora vertido, sendo certo que a penhora registada se afigura como legítima e legalmente correta. V. Ora, tal como referido supra, não se tratando de um pedido declarativo, o Tribunal a quo jamais se poderia manifestar em sede de acção executiva, cancelando sem mais a penhora já ali registada. W. A este propósito veja-se o disposto no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, no âmbito do proc. n.º 1647/11.5TBVRL-B.G1, datado de 12/04/2014, consultável através do site eletrónico supra mencionado, passando-se a citar, por analogia ao caso vertido: “X. (…) Não é correto afirmar que os bens com usufruto não podem ser penhorados. Descoberto estava o modo de pôr os imóveis a coberto das penhoras. (…)” Termos em que (…), deverá o presente Recurso ser julgado improcedente, (…)”. * Corridos os vistos legais, cumpre decidir: II. Direito Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC - as questões a decidir são a nulidade de sentença e a procedência dos embargos. * III. Matéria de facto A decisão do tribunal de primeira instância em matéria de facto, que não foi impugnada, é a seguinte: “1 - A. e J… viveram juntos, como casal, desde cerca de 1990 – vivendo na mesma casa e dormindo juntos. 2 - Em 28-II-08 foi registada a favor de J… (‘divorciado’) a aquisição da fracção penhorada – onde passou a viver com a ora A.. 3 – J… faleceu em 5-II-13, divorciado. 4 - A ora A. é solteira – e vive na fracção penhorada. Factos não provados 5 - A. e J… partilhavam as despesas”. * Por interessar à decisão do presente recurso, e nos termos do artigo 662º nº 1 do CPC, adita-se à matéria de facto, porque não é controverso entre as partes, resulta dos autos, e a partir dos documentos 4, 5 e 6 juntos com o requerimento executivo, que a fracção penhorada referida nos factos nº 2 e 4 supra, é a fração autónoma designada pelas letras “…”, correspondente ao …, para habitação, com dois estacionamentos duplos e arrecadação no piso menos dois, do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, sito na Rua …., em …, descrito na … Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …, freguesia e concelho de … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, e que sobre ela incidem duas hipotecas voluntárias a favor da exequente, registadas a título definitivo pelas inscrições correspondentes à AP. … de 2008/02/28 e AP. … de 2008/02/28, para garantia dos capitais mutuados a J…, dos respetivos juros contratualmente acordados e em caso de mora, de sobretaxa de mora até quatro por cento ao ano a título de cláusula penal, bem como, despesas emergentes dos contratos celebrados entre a exequente e o referido J…, até aos montantes máximos de €351.845,00 e de €56.295,20. * IV. Apreciação 1ª questão: - das nulidades de sentença. Dizer em primeiro lugar que a regra da substituição do tribunal de recurso ao tribunal recorrido no caso da procedência da invocação da nulidade (artigo 665º do CPC), posto que no caso não é atacada a decisão sobre a matéria de facto nem invocada a necessidade de consignar como provados mais factos, revela que a verdadeira questão do recurso que se pretende que o tribunal de recurso aprecie, é a questão de mérito. Em todo o caso, dizer então que vem invocada a nulidade por falta de fundamentação, nos termos do artigo 615º, n.º 1 al. b) do CPC, porque a sentença recorrida não especifica os fundamentos de direito, omitindo aliás as normas pertinentes, e faltando a aplicação e interpretação das normas ao caso concreto, limitando-se o tribunal a responder negativamente à questão de saber se a penhora ofende o direito real de habitação, sem que, do que escreve em seguida, se perceba, em termos jurídicos fundamentados, essa resposta. Ocorre assim “violação do dever de fundamentação das decisões judiciais que se encontra constitucionalmente consagrado, no artigo 205.º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa e, no que concerne às decisões proferidas em processo civil, entre outras, as previstas nos artigos 152º, 154º e 607º, nº 3, do Código de Processo Civil”. A não se entender assim, existe “insuficiência da fundamentação da decisão de direito”, que leva à revogação da decisão recorrida (ao invés da sua anulação). Vem também invocada a nulidade da sentença recorrida, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC, porque, tendo a embargante formulado a sua causa de pedir em quatro partes (“A. Da Existência de União de Facto; B. Do Direito de Uso e Habitação; C. Da Incompatibilidade da Penhora com o Direito de Uso e Habitação da Embargante; D. Da Ofensa da Posse da Embargante”), e formulando a final o pedido de levantamento da penhora, o tribunal considerou que apenas havia uma questão a conhecer (saber se a penhora deve ser levantada), o que fez mal, quando “Y) Pela leitura e análise do pedido formulado pela Embargante depressa se conclui que a esta não formulou um único pedido, aliás, conforme resulta do pedido o levantamento da penhora é a consequência da procedência do demais peticionado pela Embargante na petição inicial”. E, “Z) Se o levantamento da penhora é a consequência do peticionado, o Tribunal a quo tem de analisar e decidir todas as questões jurídicas invocadas pela Embargante na sua causa de pedir para que possa decidir se a consequência pedida pela Parte deve ser procedente ou improcedente”. Tais questões são essenciais, e o tribunal não se pronunciou sobre “C. Da Incompatibilidade da Penhora com o Direito de Uso e Habitação da Embargante”. * A fundamentação da sentença em matéria de direito foi, e transcrevemos: “A única questão a decidir, face ao (único) pedido formulado, é saber se a penhora deve ser levantada – dispondo o nº 1 do artigo 342º do CPC que “Se a penhora, ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.”. Estabelecendo o nº 2 do artigo 1º da Lei 7/00 de 11-V (na redacção da Lei 23/10 de 30-VIII) que “A união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos.”, acrescenta o seu artigo 5º que “1 – Em caso de morte do membro da união de facto proprietário da casa de morada da família e do respectivo recheio, o membro sobrevivo pode permanecer na casa, pelo prazo de cinco anos, como titular de um direito real de habitação e de um direito de uso do recheio. 2 – No caso de a união de facto ter começado há mais de cinco anos antes da morte, os direitos previstos no número anterior são conferidos por tempo igual ao da duração da união. (…)”. Face à matéria de facto provada, conclui-se pela existência de uma situação de ‘união de facto’ – que confere à ora A. o direito real de habitação sobre a fracção penhorada. Embora a lógica legislativa pudesse ser a de conferir o direito supra no caso de habitação contínua na mesma habitação, a lei não distingue – pelo que a duração do direito real pode reportar-se a períodos em que o ‘casal’ vivia noutra habitação; assim, o direito de habitação deve ter a duração equivalente à da união de facto – isto é, por 23 anos a partir de 5-II-13. Questão diversa é a de saber se a penhora ofende o direito real de habitação – e a resposta terá que ser negativa, como seria se existisse um usufruto (CC 1490º), na medida em que o que está penhorado é o direito de propriedade, e não houve apreensão efectiva (CPC 747º) que perturbe a posse da A.. Tanto quanto foi possível verificar no processo principal, não houve constituição de depositário do imóvel – função que caberá, por analogia (CPC 756º/1b)), à ora A., que, assim, exercerá a sua “posse efectiva” (CPC 757º/1). Não cabe no âmbito deste processo decidir se o direito real de habitação caducará com uma futura venda do direito de propriedade sobre a fracção (CC 824º) – e não foi aqui formulado qualquer pedido declarativo (susceptível de ser levado ao registo)”. * É entendimento unânime que a nulidade da sentença por falta de fundamentação só se dá quando há falta absoluta de fundamentação. Ela pode ser segmentada, de tal modo que se falhar totalmente a decisão sobre a matéria de facto, ou a decisão de direito, esse segmento em falta levará à anulação. Mas o conceito de falta absoluta é mesmo estrito, e não se confunde com insuficiência ou brevidade da fundamentação, e nem mesmo a omissão de indicação das normas jurídicas leva à nulidade por falta de fundamentação, se sem essa omissão ainda assim os destinatários da sentença puderem perceber o caminho percorrido pelo julgador. Esta é a exigência mínima, ou chamemos razão funda, que resulta do artigo 205º da Constituição e do artigo 154º do CPC. A transcrição feita da fundamentação jurídica da sentença revela a indicação de normas jurídicas – podem estar erradas, podem não ser cabíveis no caso, o que é irrelevante – e revela porque é que o julgador decidiu não ordenar o levantamento da penhora: - é que, concluindo a partir dos factos provados, que a embargante viveu em união de facto e que dessa união de facto lhe resultou, à morte do companheiro, o direito real de habitação, todavia o que está penhorado é a propriedade plena (não está penhorado o direito real de habitação, está penhorada a propriedade plena, logo a penhora não ofende o direito sobre o qual não incide) e nem mesmo pela invocada (subsidiariamente nos embargos) via da ofensa da posse, não há esta ofensa, porque não houve apreensão efectiva. Não há qualquer ineptidão nesta explicação. Conclui-se que não ocorre a nulidade por falta de fundamentação prevista no artigo 615º, nº 1, al. b) do CPC. Quanto à nulidade por omissão de pronúncia, a recorrente não tem qualquer razão: - o tribunal, relativamente à “Incompatibilidade da Penhora com o Direito de Uso e Habitação da Embargante” respondeu que a penhora feita não era incompatível porque não incidia sobre o direito de uso e habitação da embargante e que mesmo que assim não fosse, como não tinha havido apreensão efectiva, sendo aliás que deveria ser ela, embargante, a ser constituída depositária, a penhora não ofendia a sua posse – e este argumento implicitamente (embora tenha sido invocado de modo subsidiário) responde tanto à simples posse, quanto à posse correspondente ao direito de uso e habitação invocado. Podendo estar o argumento completamento errado, e podendo a fundamentação ser muito sintética, o tribunal não deixou de se pronunciar. Improcede também a arguição desta nulidade. * 2ª questão: - da procedência dos embargos. Adquirido está, porque não foi atacado no recurso, que a embargante e recorrente vivia em união de facto com o proprietário do imóvel penhorado e que à morte deste se lhe constitui, ope legis (artigo 5º da LPUF), o direito real de habitação e de uso do recheio, pelo prazo mencionado na sentença recorrida. Para a incompatibilidade da penhora com o direito referido, que a sentença não reconheceu, a recorrente invoca: - o direito real de habitação onera a propriedade plena, e no caso concreto onera-a desde a morte do unido de facto, sendo a penhora posterior ao falecimento e constituição do direito. - a penhora incidiu sobre a propriedade plena e por via da oneração, devia ter incidido apenas sobre a raiz da propriedade, sob pena da venda executiva daquela propriedade plena extinguir o direito real de habitação, porquanto a penhora do direito de propriedade abrange também a penhora de “todas as figuras parcelares (direitos reais menores) que o integram”. - o direito “(…) de uso e habitação” de que a embargante é titular é um direito “real de gozo oponível “erga omnes”, que nos termos do artigo 1488º do Código Civil “não pode ser onerado por qualquer modo, sendo inalienável é impenhorável – cfr., nesse sentido, o Ac. da R.L. de 2/11/1989, BMJ 391, pág. 681, o Ac. da R.L. de 22/6/1989 e ainda o Ac. Da Relação de Évora de 7/12/2017 estes dois últimos disponíveis in www.dgsi.pt”. - na declaração de voto do Juiz Desembargador Rijo Ferreira no acórdão já proferido nestes autos, refere-se expressamente que: “Votei no sentido da procedência dos embargos. (…) E nessa circunstância a penhora da propriedade plena (e não apenas da propriedade de raiz) do imóvel mostra-se incompatível com aquele direito real de gozo menor (enquanto a embargante não for chamada à execução — art.º 54º do CPC — para aí ser convencida da prevalência do direito real de garantia da exequente sobre o seu direito real de gozo em virtude da sua anterioridade) (…)”. - em consequência da incompatibilidade da penhora com o direito real de uso e habitação, os embargos devem ser julgados procedentes e a penhora “deve ser cancelada/levantada”. Percebe-se que não estão em discussão o conceito, pressupostos, requisitos e termos de aplicação dos embargos de terceiro, nem a sua evolução legislativa, mas apenas, nesta primeira linha de defesa, saber se o direito real de habitação e uso do recheio que se constitui pela dissolução por morte duma união de facto a favor do sobrevivo é um direito que se revela incompatível com a penhora, e na realidade, se é incompatível com a penhora nos termos concretos em que a penhora foi feita. Diga-se, ainda, que não há discussão sobre a natureza de direito real que assiste ao referido direito de habitação sobre o imóvel onde os unidos de facto viviam. É então incompatível este direito com a penhora? Numa primeira perspectiva, sim. Se a penhora se insere na acção executiva como acto de apreensão de determinado bem funcionalmente ligado à possibilidade de efectivação de termos processuais executivos posteriores, seja, na falta de pagamento voluntário da dívida, à adjudicação ou à venda executiva (artigos 735º e 795º ambos do CPC) , aquilo que vai ser adjudicado ou vendido é o imóvel, o que significa que o que se transmite é na verdade o direito de propriedade sobre o imóvel, o qual, se não houver qualquer restrição na penhora, incidirá sobre o pleno desse direito, que integra o direito de habitação (artigos 1302º, 1305º e 1484º, todos do Código Civil), extinguindo este na esfera jurídica do seu titular, e revertendo-o ao conjunto dos poderes do novo proprietário. Tanto bastaria para, convocando a inalienabilidade do direito de habitação que resulta da disciplina do artigo 1488º do Código Civil - “O usuário e o morador usuário não podem trespassar ou locar o seu direito, nem onerá-lo por qualquer modo” (é o que a recorrente qualifica como oponibilidade erga omnes) – demonstrar a incompatibilidade, senão mesmo para afirmar a tese da impenhorabilidade absoluta resultante do artigo 736º al. a) do Código de Processo Civil. Porém, nos termos da parte final do artigo 1305º do Código Civil, todas as faculdades e poderes que o direito de propriedade outorga ao seu titular, não são ilimitadas: - elas contêm-se “dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”. Se o direito de habitação não pode ser onerado, antes, ele mesmo onera, nos termos do parágrafo anterior, o direito de propriedade, esta oneração acontece “nos termos do possível”, isto é, a oneração acontece em concreto, sobre o direito de propriedade que incide concretamente sobre determinado imóvel (no caso), que pode estar já onerado por outras razões. No caso concreto demonstra-se, pelo aditamento oficioso de factos que aliás fizemos, que anteriormente à constituição do direito real de habitação e de uso do recheio que ocorreu com o falecimento do unido de facto com a embargante, o imóvel sobre o qual tal direito incide já estava especialmente afectado à garantia do crédito da exequente através da constituição pelo unido de duas hipotecas voluntárias anteriores e registadas anteriormente ao falecimento do mencionado unido de facto. O artigo 686º do Código Civil estabelece, no seu primeiro número: “1. A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo”, estabelecendo o artigo seguinte que “A hipoteca deve ser registada, sob pena de não produzir efeitos, mesmo em relação às partes”. Quer isto dizer que o direito de propriedade do falecido unido sobre o imóvel relativamente ao qual agora incide o direito real de habitação da embargante, estava já onerado pelo direito real de garantia que a hipoteca constitui, representando a penhora a sequela deste direito (e não, por si, uma nova oneração[4]) – se o credor hipotecário tem o direito de ser pago pelo valor da coisa imóvel, então para que este direito se concretize, precisa de haver uma apreensão formal da coisa para o seu encaminhamento para os meios processuais de obtenção do respectivo valor. A hipoteca, porque incidente sobre coisa imóvel específica, confere ao credor um direito real de garantia e este direito real (de se pagar pelo valor da coisa e portanto de a vender em propriedade plena, que era a que existia ao tempo da constituição da hipoteca, isto é, ao tempo em que mediante o crédito que é garantido pela hipoteca, o unido de facto adquiriu o imóvel) está, perante o direito real de habitação da embargante que se constituiu depois, numa situação de anterioridade, a determinar que o direito real de habitação se exerce sobre um imóvel onerado e com as condicionantes de exercício que essa oneração determina. Dito de uma maneira absolutamente simples mas que elucida com clareza a razão de ser dos termos em que se resolve a incompatibilidade prática entre o direito real de garantia e o direito de habitação: - o sobrevivo tem direito a viver na casa onde vivia com o unido se a casa era do unido. O mesmo sucede para o arrendamento, o sobrevivo tem o direito de prosseguir no arrendamento – artigo 5º nº 10, da Lei de Protecção das Uniões de Facto – conquanto, em termos simples, pague as rendas. Se a casa do unido tinha sido comprada com dinheiro emprestado pelo Banco, e o unido não chegou a pagá-lo, por inteiro, ou há um seguro que paga, ou os herdeiros do unido o pagam, e o sobrevivo opõe a estes herdeiros o seu direito de habitação pelo tempo correspondente à união, ou os herdeiros não pagam e o sobrevivo não pode ficar a viver numa casa que não é dele nem está paga, sem pagar nada, e isto porque este direito de habitação que resulta do artigo 5º nº 1 da Lei de Protecção das Uniões de Facto não é um direito de arrendamento, como resulta do nº 7, 1º parte, do mesmo artigo (7 - Esgotado o prazo em que beneficiou do direito de habitação, o membro sobrevivo tem o direito de permanecer no imóvel na qualidade de arrendatário, nas condições gerais do mercado (…)”, isto é, este direito real de habitação é um direito a habitar gratuitamente. Podemos também, na continuação desta linha simples de pensamento, pensar nesta questão do pagamento da dívida contraída para a aquisição do imóvel e na possibilidade de impor o direito de habitação do unido sobrevivo ao credor hipotecário usando o exemplo do comodato: - se o casal em união de facto vivia gratuitamente numa casa de um amigo do falecido, a LPUF não consagra nenhuma hipótese de conceder ao sobrevivo o direito de continuar a residir gratuitamente nessa casa pelo tempo correspondente ao que durou a união de facto. E aqui já se percebe que a questão não é sequer de equilíbrio de prestação social/económica, não está em causa ponderar a oneração do direito do amigo em reaver a sua casa por mor (isto é, por consideração do legislador de um valor igualmente digno de protecção) duma protecção ao unido de facto que fique só (desamparado da ajuda inclusivamente económica do outro), ou em homenagem à união de facto, ou por alguma preferência abstracta do legislador pela solução da união de facto em vez do casamento. A situação é a mesma no caso do credor hipotecário: - não há nenhum valor na união de facto, eleito pelo legislador como merecedor de favor maior ou protecção maior, que justifique onerar socialmente (isto é, pedir uma contribuição social, neste caso, do Banco) ou economicamente o direito do credor a reaver a quantia mutuada ao falecido para aquisição da casa. Esse nenhum valor decerto não é a protecção da casa da morada da família nem o direito constitucional à habitação, sabendo-se que a primeira não está excluída da penhora e que o segundo se interpela ao Estado. Se não é isto que está sequer em causa, o que se revela é que a protecção concedida à união de facto se faz por uma tendencial equiparação ao cônjuge sobrevivo, partindo da diferença em termos sucessórios e respeitando-a, respeito que obriga o legislador a compensar o sobrevivo face aos sucessores. Veja-se que no caso da casa de morada da família ser arrendada, o unido de facto sobrevivo é equiparado ao cônjuge sobrevivo (artigo 1106º do Código Civil). Se fizermos essa equiparação no caso da casa de morada da família ser própria do falecido, mas onerada com hipoteca por crédito bancário para a sua aquisição, não resulta em lado algum que o cônjuge sobrevivo possa com sucesso opor ao credor hipotecário, na execução, o seu direito de permanecer na casa sem pagar a dívida. Pode dizer-se que o argumento não tem sentido, porque o cônjuge sobrevivo é herdeiro – e portanto é claro que para adquirir por sucessão tem de pagar (adquire activo e passivo) – e o unido de facto não, e portanto o legislador tem de o compensar, só que a compensação relativamente à aquisição por herança só pode ser pensada através de um mecanismo dirigido aos herdeiros. Estamos no fundo a perscrutar o fundamento da lei de protecção do unido de facto sobrevivo, tarefa na qual se conclui que há situações socialmente típicas que são possibilitadas pelo normal funcionamento do direito constituído, e que convocam da sociedade juridicamente organizada uma resposta de reposição de um patamar de justiça social. Repare-se então que nos termos do artigo 5º da LPUF, o prazo do direito de real de habitação até pode ser prolongado pelos motivos socialmente relevantes ou reveladores da ideia de justiça social expressamente consignados no nº 4 do mesmo preceito - “4 - Excepcionalmente, e por motivos de equidade, o tribunal pode prorrogar os prazos previstos nos números anteriores considerando, designadamente, cuidados dispensados pelo membro sobrevivo à pessoa do falecido ou a familiares deste, e a especial carência em que o membro sobrevivo se encontre, por qualquer causa”. Esta ideia de retribuição (a quem “esteve ao lado”, a quem prestou cuidados e que agora precisa de cuidado – e por isso os nº 5 e 6 excluem os casos em que o sobrevivo não habita a casa ou tem casa própria no mesmo concelho) exerce-se claramente contra, ou em face, daqueles que, pelo funcionamento do direito constituído, ficam investidos da qualidade de herdeiros com o falecimento do unido. O caso previsto no nº 3 do mesmo artigo 5º é muito claro – “3 - Se os membros da união de facto eram comproprietários da casa de morada da família e do respectivo recheio, o sobrevivo tem os direitos previstos nos números anteriores, em exclusivo”, isto é, suspende o poder dos herdeiros da metade pertencente ao falecido de habitarem a casa. Em suma, a situação socialmente típica é mesmo a de que os herdeiros do falecido, antes da LPUF, pudessem de imediato descartar a pessoa que tinha estado a partilhar (as dificuldades da) vida com o de cujus, despejá-la de imediato e lançar-se aos bens da herança. Ora, isto nada tem a ver com o credor hipotecário, nem há nenhuma razão para que o credor hipotecário deva ser chamado a contribuir para a protecção daquele que protegeu e agora precisa de ser protegido. Até porque o credor hipotecário não foi desinteressado do falecido, pelo contrário (e ainda que contra remuneração) lhe proporcionou a aquisição da casa. Reforçando a ideia de que o direito real de habitação se exerce contra os herdeiros mas não contra oneração prévia do direito de propriedade sobre o qual se veio a constituir, note-se que o referido artigo 5º no seu nº 9 estabelece: “O membro sobrevivo tem direito de preferência em caso de alienação do imóvel, durante o tempo em que o habitar a qualquer título”. Isto, em primeiro lugar, significa que o direito real de habitação com esta origem legal (e conformado pela lei que o cria) não se transmite no caso da alienação do imóvel. Depois, é patente que a alienação prevista neste nº 9 é em primeira linha a promovida pelos herdeiros do falecido, mas não deixa de ser possível considerar (até porque a lei não distingue) outra forma de alienação, como seja a venda executiva. Assim, resulta com clareza dos termos em que a lei constituiu este direito real de habitação que ele se exerce sobre coisa própria do falecido e contra os herdeiros dele, mas que, se as vicissitudes da coisa (a sua oneração por um crédito hipotecário não pago, a vontade dispositiva dos herdeiros do falecido) a alienarem para outra titularidade, o sobrevivo não tem direito de continuar a habitar a casa, mas apenas o de preferir na sua aquisição. Em suma, não assiste ao direito real de habitação do sobrevivo de uma união de facto o poder de oposição ao credor hipotecário por mútuo celebrado com o falecido para a aquisição do imóvel sobre o qual o direito real de habitação incide, razão pela qual não pode afirmar-se incompatibilidade entre este direito e a penhora que dá sequela a hipoteca. Em segunda linha de argumentação da embargante defende a mesma que a penhora ofende a sua posse. A posse é, nos termos do artigo 1252º do Código Civil, “(…) o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”. Estabelecendo o artigo 1484º do Código Civil que “1. O direito de uso consiste na faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver os respectivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular, quer da sua família. 2. Quando este direito se refere a casas de morada, chama-se direito de habitação”, é indubitável que se trata de um direito real, um desses outros direitos reais além do direito de propriedade. Constituindo-se este direito ope legis com a morte do membro da união de facto proprietário do imóvel casa de morada da família, ele constitui-se originariamente na pessoa do sobrevivo, é um direito próprio e exclusivo do sobrevivo, que se traduz no poder de habitar o imóvel e de usar o recheio contra, isto é, em detrimento de idêntico poder (integrado nos poderes mais gerais do direito de propriedade) dos herdeiros do falecido. Esta especialidade (de razão originária) deste direito não remete para nenhuma continuação do direito de habitar (integrado nos mesmos poderes gerais) do proprietário falecido, não podendo afirmar-se que a posse do sobrevivo é em nome do falecido. Tendemos a considerar que a posse do sobrevivo é uma posse em nome próprio, actuada pela continuação de facto do uso do imóvel como habitação e com o intuito de exercer esse direito que a LPUF lhe concedeu. A penhora (sequela de hipoteca anterior sobre o imóvel penhorado) enquanto acto de apreensão ao menos formal conduzindo à possibilidade de alienação do imóvel a terceiro, tem o potencial de extinção do direito real de habitação com a consequente abolição da correspondente posse. Torna-se assim irrelevante que o agente de execução deva nomear a embargante como depositária do imóvel penhorado, ou que não tenha sido pedida a entrega da casa. Aliás, os embargos de terceiro têm como pressuposto a ofensa da posse por (artigo 342º nº 1 do CPC) penhora ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens o que dispensa a efectiva determinação de entrega como condição exclusiva de ofensa da posse. Pode então esta ofensa da posse levar à procedência dos embargos? Com o devido respeito, não há que autonomizar a defesa da posse da defesa do direito real de habitação a que ela corresponde. Assim, a defesa da posse defronta-se com o mesmo óbice, de inoponibilidade ao credor hipotecário. Nenhum sentido teria procederem os embargos para a defesa da posse que corresponde a um direito que não pode ser invocado contra o credor hipotecário exequente. No sentido da inoponibilidade da defesa da posse à penhora em processo para execução de crédito hipotecário garantido por hipoteca registada anteriormente, veja-se o acórdão proferido em 13.09.2012 no processo nº 1223/05.1TBCSC-B.L1-6 (Rel. Teresa Pardal) em cujo sumário se lê, na parte que aqui interessa: “(…) 2. Mas mesmo que o promitente-comprador exerça uma posse em nome próprio sobre o imóvel penhorado, os embargos de terceiro nunca poderão proceder numa execução hipotecária, pois a hipoteca é um direito real de garantia que tem associado o direito de sequela, por via do qual o credor hipotecário pode perseguir a coisa hipotecada no património de terceiro a quem o mesmo seja transmitido”. No mesmo processo foi proferido acórdão (1223/05.1TBCSC-B.L1.S1) pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 21.03.2013, que confirmou o acórdão da Relação, e que cita variada jurisprudência do STJ no mesmo sentido. No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.06.2007 (processo nº 07A1624), também se lê no nº 3 do seu sumário que: “3) A hipoteca - direito real de garantia - registada antes da transmissão da propriedade das fracções - ou da respectiva posse - é impeditiva da procedência de embargos de terceiro requeridos contra penhora operada em execução hipotecária”. Apesar dos casos não serem exactamente iguais ao dos autos, é igual a conclusão de que o direito real de garantia que é a hipoteca, e o direito de sequela em que a penhora se concretiza, desde que anteriores ao direito que se invoca nos embargos de terceiros ou à posse que lhe corresponde, não admitem esta oposição. Em conclusão final, o direito real de habitação que nasce para o sobrevivo de uma união de facto reportado a imóvel que pertencia ao falecido mas estava onerado por hipoteca por crédito imobiliário, registada anteriormente à constituição do direito, não pode ser oposto ao exequente credor hipotecário, o que do mesmo modo sucede com a posse que de tal direito de habitação resulta para o seu titular. Improcede assim o recurso. Tendo nele decaído é a recorrente responsável pelas custas – artigo 527º nº 1 e 2 do CPC. V. Decisão Nos termos supra expostos, acordam negar provimento ao recurso e em consequência confirmam a sentença recorrida. Custas pela recorrente. Registe e notifique. Lisboa, 13 de Abril de 2023 Eduardo Petersen Silva Nuno Lopes Ribeiro Gabriela de Fátima Marques _______________________________________________________ [1] Com aproveitamento do relatório da sentença recorrida. [2] São os seguintes os termos do requerimento executivo: II – DOS CONTRATOS DE EMPRÉSTIMO COM HIPOTECA: 7. Por Escritura Pública outorgada em trinta de abril de dois mil e oito, J… celebrou com a C…, S.A., ora Exequente, o contrato de empréstimo com hipoteca que se junta como documento nº 4 e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, a que corresponde o empréstimo bancário nº PT…. 8. No âmbito do contrato de mútuo acima celebrado, J… recebeu a título de quantia mutuada o montante de € 228.455,54 (…), que se obrigou a pagar à Exequente em 336 (…) prestações mensais e no prazo de 28 (…) anos a contar da data da escritura, acrescido das taxas então acordadas e nas condições igualmente estipuladas – cfr. documento nº 4. 9. O empréstimo acima referido destinou-se a facultar recursos a J… para o financiamento da aquisição do imóvel para habitação própria permanente – cfr. documento nº 4. 10. Por Escritura Pública outorgada em trinta de abril de dois mil e oito, J… celebrou com a C…, S.A., ora Exequente, o contrato de empréstimo com hipoteca que se junta como documento nº 5 e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, a que corresponde o empréstimo bancário nº PT …. 11. No âmbito do contrato de mútuo acima celebrado, J… recebeu a título de quantia mutuada o montante de €40.000,00 (…), que se obrigou a pagar à Exequente em 336 (…) prestações mensais e no prazo de 28 (…) anos a contar da data da escritura, acrescido das taxas então acordadas e nas condições igualmente estipuladas – cfr. documento nº 5. 12. O empréstimo acima referido destinou-se a facultar recursos a J… para o financiamento de investimentos múltiplos, não especificados, em bens imóveis – cfr. documento nº 5. 13. (…). 14. Para garantia do bom cumprimento dos empréstimos acima contratados, J… constituiu sucessivamente duas hipotecas sobre o imóvel melhor descrito nas escrituras acima referidas, a fração autónoma designada pelas letras “…”, correspondente ao …, para habitação, com dois estacionamentos duplos e arrecadação no piso menos dois, do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, sito na Rua…, em …, descrito na … Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …, freguesia e concelho de … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … – cfr. documentos nºs 4 e 5. 15. As duas hipotecas assim constituídas encontram-se registadas, a favor da Exequente, a título definitivo, pelas inscrições correspondentes à AP. … de 2008/02/28 e AP… de 2008/02/28 – Hipotecas Voluntárias, para garantia dos capitais mutuados, dos respetivos juros contratualmente acordados e em caso de mora, de sobretaxa de mora até quatro por cento ao ano a título de cláusula penal, bem como, despesas emergentes dos contratos celebrados, até aos montantes máximos de €351.845,00 e de €56.295,20, como melhor resulta da Certidão do Registo Predial Permanente com o código de acesso …, a qual se junta como documento nº 6 e se dá por reproduzida para todos os efeitos legais. III – DO INCUMPRIMENTO DOS CONTRATOS DE EMPRÉSTIMO: 16. Verifica-se que não foram efetuados os pagamentos das prestações vencidas desde 28/02/2013 (na operação PT …) e 30/03/2013 (na operação PT …), mantendo-se atualmente tais operações em situação de incumprimento. 17. Pretende a Exequente reaver a totalidade dos capitais mutuados ainda em dívida, acrescidos da totalidade dos juros contratuais e de mora vencidos e vincendos, bem como, demais despesas em que incorreu e incorrerá com a recuperação dos seus créditos, dado que o incumprimento acima aludido tornou vencida a totalidade das obrigações decorrentes dos contratos de empréstimo acima referidos. (…)”. [3] Notas 4 e 5, do seguinte teor: 4 In Embargos de Terceiro na Ação Executiva, 1.ª edição, 2010, Coimbra Editora, p. 191. 5 In A Ação Executiva, 6.ª Edição, 2014, p. 330. [4] O que aliás podia acontecer noutro tipo de dívida não garantida sobre uma coisa, que fosse dada à execução. |