Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1549/12.8IDLSB.L1-5
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: CONTUMÁCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: – O Acórdão do S.T.J. n.º 5/2014, de 26 de Março de 2014, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 97, de 21 de Maio de 2014, fixou jurisprudência no seguinte sentido:
Ainda que seja conhecida a morada de arguido contumaz residente em país estrangeiro, não deve ser expedida carta rogatória dirigida às justiças desse país para ele prestar termo de identidade e residência, porque essa prestação não faz caducar a contumácia.

– Porém, se na fase de julgamento foi declarada a contumácia e foram tomadas diversas iniciativas, aparentemente tendentes, na perspectiva do tribunal, a provocar a caducidade da contumácia - sendo certo que, como já se viu, não se vislumbra que o arguido haja ainda prestado o TIR, afigura-se-nos que o tribunal de julgamento teria previamente de se pronunciar sobre a questão da contumácia e, só depois, uma vez declarada, sendo caso disso, a sua cessação, seria caso de jurisdicionalmente se apreciar e decidir sobre o requerimento de abertura de instrução, com a remessa dos autos ao JIC competente para esse efeito e outra actuação poderá conduzir a entendimentos contraditórios no processo entre Juiz de julgamento e JIC.

– Tendo os autos transitado para o Mm.º JIC, sem que a contumácia tenha sido previamente declarada cessada, não há que revogar o despacho de não admissão do requerimento de abertura de instrução.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


I–Relatório:


1. No processo comum n.º 1549/12.8IDLSB, foi deduzida acusação contra “SN, Unipessoal, Lda” e H., melhor identificados nos autos, imputando-lhes, em concurso real, a prática de dois crimes de fraude fiscal, p. e p. pelos artigos 6.º, n.º1 e 103.º, n.º1, alíneas a) e b), do Regime Geral das Infracções Tributárias (R.G.I.T.), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, sendo a sociedade responsável pelos ditos ilícitos nos termos do artigo 7.º, n.º1, do referido diploma (cfr. fls. 454 e segs.).

Por despacho de 19.12.2014, o arguido H. foi declarado contumaz (cfr. fls. 492), estando documentada nos autos, com a referência 85843755, a emissão de boletim de contumácia (cf. fls. 493). No despacho que decretou a contumácia determinou-se “a proibição de obter passaporte, cartão de cidadão e carta de condução, bem como certidões ou registos junto das competentes autoridades públicas”.

Por requerimento de 13.10.2015, o referido arguido, através de advogado, veio requerer e emissão de carta rogatória para o Brasil, como “acto processual tendente a pôr termo a tal situação de contumácia para que o processo retome a sua normal sequência”, para aí apresentar termo de identidade e residência, alegando residir com a sua família no Brasil há cinco anos e não ter qualquer documento válido, nem de identificação portuguesa, nem de viagem, pelo que não pode sair do país onde reside, nem pode apresentar-se em juízo em território nacional (cfr. fls. 502-503).

O Ministério Público promoveu, em 19.10.2015, fosse expedida carta rogatória às autoridades brasileiras, com o objectivo de ser lavrado termo de identidade e residência, “tendo em conta o requerido e alegado pelo arguido, sendo verdade que não poderá sair do Brasil, com destino a Portugal, dada a sua situação de contumácia” (cfr. fls. 506).

Por despacho de 27.11.2015, o Mm.º Juiz decidiu. “Como se promove” (fls. 507).

Foi, então, expedida carta rogatória, com o teor de fls. 510 e data de 18.07.2016, solicitando-se a notificação do arguido e a prestação por este de termo de identidade e residência.

Em 26.08.2016, o arguido, por intermédio de requerimento subscrito por advogado, veio renovar o pedido de prestação de termo de identidade e residência no Brasil, em ordem a fazer cessar a situação de contumácia e permitir que o processo retome a sua normal sequência (fls. 512).

Por despacho de 22.09.2016, o Mm.º Juiz determinou fosse solicitado “ao consulado competente a notificação do arguido da acusação, da faculdade de requerer abertura de instrução e de contestar, devendo o arguido autorizar, caso assim o deseje, a realização do julgamento na ausência de indicar morada em Portugal para efeitos de notificação.” No mesmo despacho, foi admitida a junção aos autos das procurações juntas e declarada a cessação das funções do defensor oficioso (cfr. Fls. 519).

Cumprido o despacho anterior, o Consulado de Portugal em Belo Horizonte respondeu conforme fls. 521 a 523 (também 546 a 549), dando conta da notificação do arguido, nessa qualidade, onde consta declaração nos seguintes termos:

DECLARAÇÃO.
Em referência ao Processo 1549112.8IDLSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste _ Juízo Local Criminal de Sintra - Juiz 1, H., portador do passaporte n.º… (caducado), data de nascimento 13/08/1973, residente em …, Minas Gerais, CEP …, declaro que fui nesta data notificado, no Consulado de Portugal em Belo Horizonte, na qualidade de Arguido, nos termos e para os efeitos a seguir mencionados:
1.– De todo o conteúdo da acusação proferida nos autos acima referenciados, nos termos do artigo 283.º do Código de Processo Penal, da qual recebi cópia, e que disponho do prazo de VINTE DIAS, contados a partir da presente data e nos termos do disposto no artigo 287º do mesmo diploma, para requerer, caso queira, a abertura de INSTRUÇÃO.
2.– O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, devendo conter, em súmula, as razões, de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação, bem como, sempre que disso for o caso, meios de prova que hão tenham sido considerados no Inquérito e dos factos que através de uns e de outros se espera provar.
3.– De todo o conteúdo do despacho que recebeu a acusação, e do qual recebi também cópia, bem como do douto despacho de fis. 519.
4.– Mais declaro que autorizo que o julgamento tenha lugar na minha ausência, podendo ser notificado através da morada Rua da P. , Lisboa.
5.– Para no prazo de VINTE DIAS apresentar, querendo, a minha contestação, juntamente com o rol de testemunhas até ao máximo de VINTE, identificando-as e discriminando as que devam depor sobre a personalidade e condição pessoal, não podendo estas exceder o número de CINCO, e indicar, querendo, os peritos e consultores técnicos que devam ser notificados para a audiência de julgamento.
6.– De que o rol de testemunhas pode ser adicionado ou alterado, por requerimento, contando que o adicionamento ou alteração possa ser comunicado aos restantes sujeitos processuais até TRÊS DIAS antes da data que vier a ser designada para o julgamento - art. 316° e 283°, nº7 do C.P.P.
7.–Aguardarei os ulteriores termos do processo mediante a seguinte medida de coacção: Termo de Identidade e Residência.
8.–Devo contactar e prestar toda a colaboração ao meu mandatário: Dra. N.Z., com escritório profissional na Rua da P., Lisboa.

Em 9.05.2017, veio o arguido, por si e pela sociedade arguida, requerer a abertura de instrução (cfr. fls. 526 e segs).
Os autos foram ao Ministério Público que, a 28.06. 2017, se pronunciou nos seguintes termos: “Nada mais há a promover, uma vez que o arguido requereu a abertura da fase instrutória conforme fls. 526 e ss.”.
Em 5.07.2017 foi pela secção solicitada (sem precedência de despacho que se mostre documentado nos autos que nos foram remetidos) a devolução imediata e sem cumprimento dos mandados de detenção emitidos “em virtude de apresentação em Tribunal” (cfr. fls. 553 e segs).

Remetidos os autos ao Mm.º JIC, foi proferido o seguinte despacho em 10.07.2017:
Nestes autos o arguido H. foi declarado contumaz conforme despacho de fls. 492.
Conforme disposto no art° 336°, do CPP, a declaração de contumácia caduca logo que o arguido se apresentar ou for detido, implicando o acto de apresentação que, pelo menos, o arguido preste termo de identidade e residência.
Apesar da remessa de requerimento aos autos, certo é que o arguido não se apresentou em juízo nem prestou termo de identidade e residência.
Mantém-se, assim, a situação de contumácia declarada nos autos.
Os autos não poderão prosseguir sendo inválidos os pretensos actos praticados pelo arguido nestes autos, nomeadamente o requerimento para abertura de instrução.

Pelo exposto, por inadmissibilidade legal, não admito o requerimento para abertura de instrução.

Notifique ao Ministério Público e devolva os autos ao juízo local de Sintra, Juiz l.
           
2.– Desse despacho recorre o arguido, formulando as seguintes conclusões que se transcrevem:
I.– O RECORRENTE FOI NOTIFICADO DA INADMISSIBILIDADE DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO POR, PRETENSAMENTE, SER CONTUMAZ;
II.– TODAVIA, TAL NÃO CORRESPONDE À REALIDADE, JUNTANDO-SE PARA O EFEITO O CERTIFICADO DE CONTUMÁCIA DO ARGUIDO, NO QUAL NADA CONSTA;
III.– NÃO SE VERIFICA ASSIM QUALQUER UMA SITUAÇÃO DE CONTUMÁCIA, NEM EXISTINDO QUALQUER OUTRA CAUSA QUE, NOS TERMOS DO ARTIGO 287.S, N.º 3 DO CPP, DETERMINE A REJEIÇÃO DO REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO;
IV.– DEVE POR ISSO SER REVOGADO O DESPACHO EM CRISE E, EM SUA SUBSTITUIÇÃO, SER NOTIFICADA A ABERTURA DA INSTRUÇÃO AO MINISTÉRIO PÚBLICO, AO ARGUIDO E AO SEU DEFENSOR, NOS TERMOS DO ARTIGO 287.º, N.º 5 DO CPP.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO APLICÁVEIS, E SEMPRE COM O MUI DOUTO SUPRIMENTO DE V. EXAS., REQUER-SE SEJA DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA, SEJA REVOGADO O DESPACHO EM CRISE, E EM SUA SUBSTITUIÇÃO, SEJA DECLARADA ABERTA A FASE DE INSTRUÇÃO.
FAZENDO, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA.

3.– Admitido o recurso, após deferimento de reclamação para o Presidente da Relação do despacho que originariamente o não admitira, respondeu o Ministério Público pugnando pelo não provimento do recurso.

4.– Na vista a que se refere o artigo 416.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a referir como C.P.P.), a Exma. Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu visto.

5.– Efectuado exame preliminar, foram colhidos os vistos e os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado.
***

II–Apreciando.

1.– Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Em primeiro lugar, importa salientar que, questionando-se pela via recursiva a subsistência da própria contumácia, o recurso não pode deixar de ser admissível, não sendo curial o entendimento de que, por se manter a situação de contumácia – que é, precisamente, o que o recorrente contesta -, o recurso não poderia ser admitido.
           
2.– Alega o recorrente que não se verifica a situação de contumácia invocada no despacho recorrido.
Trata-se de uma posição que entra em contradição com os requerimentos anteriormente dirigidos aos presentes autos e que tinham em vista desencadear a cessação da contumácia.
Como se disse supra, o arguido H. foi declarado contumaz (cfr. fls. 492), por despacho de 19.12.2014, estando documentada nos autos a existência de despacho, e bem assim, com a referência 85843755, a emissão de boletim de contumácia (cf. fls. 493).
O referido arguido, por requerimento de 13.10.2015, através de advogado, veio requerer e emissão de carta rogatória para o Brasil, como “acto processual tendente a pôr termo a tal situação de contumácia para que o processo retome a sua normal sequência”, para aí apresentar termo de identidade e residência, alegando residir com a sua família no Brasil há cinco anos e não ter qualquer documento válido, nem de identificação portuguesa, nem de viagem, pelo que não pode sair do país onde reside, nem pode apresentar-se em juízo em território nacional (cfr. fls. 502-503).

Quer isto dizer que o arguido reconheceu encontrar-se na situação de contumácia e alegou não poder apresentar-se em Portugal por falta de documentos que, entretanto, teriam caducado, impedindo-o de viajar.

A alegada impossibilidade de renovar documentos só se compreende por ter sido decretada nos autos a proibição de obter passaporte e cartão de cidadão, pois não se vislumbra nem se alega outra razão.

Em 26.08.2016, o arguido, por intermédio de requerimento subscrito por advogado, veio renovar o pedido de prestação de termo de identidade e residência no Brasil, em ordem a fazer cessar a situação de contumácia e permitir que o processo retome a sua normal sequência (fls. 512). Mais uma vez o arguido alegou ter os seus documentos caducados “e por estar contumaz, não consegue assim fazer a renovação dos mesmos, estando gravemente prejudicado em seu trabalho (…)”, não possuindo “qualquer documento válido, nem de identificação portuguesa, nem de viagem, pelo que não pode sair do país onde reside (Brasil), nem pode apresentar-se em juízo em território nacional”.
No presente recurso, porém, o discurso muda: o arguido descobriu que, afinal, não é contumaz, pois, segundo alega, nada consta do certificado de contumácia.

Como não consta no processo qualquer decisão de cessação da contumácia, não se vislumbra que, com origem nos presentes autos, tenha sido levado ao registo qualquer despacho nesse sentido.

Então, ocorre perguntar: se o arguido não está, afinal, na situação de contumácia, não existindo impedimento legal à abertura de instrução, o que é que tem obstado, ao longo do tempo, a que o arguido renove os seus documentos, possa viajar e apresentar-se em território nacional? Por que ainda não o fez se a referida contumácia não se verifica?
Não se percebe.
É de há muito pacífico, na doutrina e na jurisprudência, o entendimento de que os recursos estão configurados no nosso sistema processual penal como remédios jurídicos, visam apenas modificar as decisões recorridas e não criar novas decisões sobre matérias ou questões novas que não foram, nem podiam ter sido, suscitadas ou conhecidas pelo tribunal recorrido. O objecto do recurso é a decisão proferida, pelo que, para apreciar se esta foi justa ou injusta, não interessa senão comparar a decisão com os dados que o juiz decidente possuía.

O presente recurso foi utilizado para introduzir, pela primeira vez, uma questão nunca antes suscitada no processo: a alegada falta de inscrição no respectivo registo de contumazes e a consequência que o recorrente pretende extrair desse alegado facto.

Ora, não cabe ao tribunal de recurso conhecer e decidir questões que não foram submetidas à apreciação e decisão da 1.ª instância, nem apreciar elementos de prova que o tribunal recorrido não apreciou.

Aliás, mesmo que se seguisse a linha do raciocínio do recurso, como o certificado de contumácia junto com a motivação tem data de emissão de 25.08.2017 e o despacho recorrido é de 10.07.2017, não se vê como poderia tal documento servir para colocar em crise o dito despacho, pois não serviria para comprovar a situação do registo existente à data em que o despacho foi proferido (registo que se destina a publicitar a situação de contumácia e viabilizar os efeitos da declaração, nomeadamente, no plano da anulabilidade dos negócios jurídicos).

Em todo o que caso, o que pretendemos ressaltar é que o recurso não pode servir para introduzir uma questão inteiramente nova que, como tal, não foi considerada na decisão recorrida.

3.– O Acórdão do S.T.J. n.º 5/2014, de 26 de Março de 2014, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 97, de 21 de Maio de 2014, fixou jurisprudência no seguinte sentido:
Ainda que seja conhecida a morada de arguido contumaz residente em país estrangeiro, não deve ser expedida carta rogatória dirigida às justiças desse país para ele prestar termo de identidade e residência, porque essa prestação não faz caducar a contumácia”.

Da leitura da fundamentação do referido acórdão resulta que à pergunta, sobre se a prestação de TIR faz caducar a contumácia, a resposta dada foi negativa. Isto por se entender que a emissão de carta rogatória para prestação de TIR pelo arguido residente no estrangeiro não seria idónea para fazer cessar a contumácia, porque, segundo se argumentou, só a apresentação pessoal do arguido ou a sua detenção asseguram a sua efectiva disponibilidade para os posteriores termos do processo.

Certo é que o Ministério Público promoveu nos autos, em 19.10.2015, fosse expedida carta rogatória às autoridades brasileiras, com o objectivo de ser lavrado termo de identidade e residência, “tendo em conta o requerido e alegado pelo arguido, sendo verdade que não poderá sair do Brasil, com destino a Portugal, dada a sua situação de contumácia” (cfr. fls. 506).

Na sequência, por despacho de 27.11.2015, o Mm.º Juiz decidiu. “Como se promove” (fls.507), tendo sido expedida carta rogatória, com o teor de fls. 510 e data de 18.07.2016, solicitando-se a notificação do arguido e a prestação por este de termo de identidade e residência.

Tudo isto já depois da publicação da Fixação de Jurisprudência supra citada.

Mais tarde, por despacho de 22.09.2016, o Mm.º Juiz determinou fosse solicitado “ao consulado competente a notificação do arguido da acusação, da faculdade de requerer abertura de instrução e de contestar, devendo o arguido autorizar, caso assim o deseje, a realização do julgamento na ausência de indicar morada em Portugal para efeitos de notificação.” No mesmo despacho, foi admitida a junção aos autos das procurações juntas e declarada a cessação das funções do defensor oficioso (cfr. Fls. 519).

A nosso ver, as descritas iniciativas processuais revelam que o Ministério Público e o Mm.º Juiz, na fase de julgamento, partiram do pressuposto de que, por via da prestação de TIR e das notificações solicitadas, seria possível fazer cessar a contumácia, pois, a não ser assim, não se compreende o porquê da carta rogatória e da solicitação ao “consulado competente”, sabido que não é legalmente admitida a prática de actos inúteis.

E, das duas uma: ou o mencionado Acórdão de Fixação de Jurisprudência foi ignorado ou se entendeu que a situação do arguido não assumia os mesmos contornos da pressuposta  pelo S.T.J.

Porventura entendeu-se que, estando o arguido impossibilitado de proceder, voluntariamente, a qualquer tipo de contacto pessoal com o tribunal, a fim de fazer cessar a contumácia, atento o facto de, alegadamente, já não dispor de quaisquer documentos válidos que lhe permitissem viajar do Brasil para Portugal – por estarem caducados e a contumácia obstar à sua renovação –, a prestação de TIR e eventual autorização para realização da audiência na sua ausência seriam instrumentos adequados para fazer cessar a contumácia. No pressuposto de que, as concretas circunstâncias em que o arguido contumaz se encontre, o impeçam totalmente de proceder, voluntariamente, a qualquer tipo de contacto pessoal com o tribunal, a prestação de TIR, notificações efectuadas e a autorização da realização do julgamento na sua ausência, no uso do direito que o artigo 334.º, n.º 2 do C.P.P. lhe concede, poderão constituir a sua única forma de apresentação possível em juízo para fazer cessar a contumácia. A não ser assim, a menos que se recorresse ao mecanismo extradicional, o arguido/contumaz em tais condições e o próprio processo ficariam remetidos a um verdadeiro beco sem saída de cariz kafkiano; impedido de se apresentar por ser contumaz; impedido de fazer cessar a contumácia por não se poder voluntariamente apresentar.

Julgamos ter sido este o entendimento subjacente aos despachos de 27.11.2015 e de 22.09.2016 - que fora desta explicação seriam actos processuais inúteis -, e bem assim do próprio despacho recorrido, que expressamente refere implicar o acto de apresentação “que, pelo menos, o arguido preste termo de identidade e residência”.

Atente-se que foi o tribunal de julgamento a tomar a iniciativa da expedição de carta rogatória, e bem assim a solicitar às autoridades consulares “a notificação do arguido da acusação, da faculdade de requerer abertura de instrução e de contestar, devendo o arguido autorizar, caso assim o deseje, a realização do julgamento na ausência de indicar morada em Portugal para efeitos de notificação.”

Não se afigura curial que se dê agora o dito por não dito e se pretenda retirar às notificações efectuadas qualquer efeito.

Porém, mesmo que se entenda que a notificação efectuada no Consulado de Portugal em Belo Horizonte, com a declaração que consta de fls. 521 a 523, foi a forma de apresentação possível do arguido em juízo, no concreto circunstancialismo em que se encontra – impeditiva de qualquer outra forma de apresentação voluntária em juízo -, certo é que não se mostra prestado o termo de identidade e residência para cuja prestação foi determinada a expedição de carta rogatória, ainda não cumprida à data do despacho recorrido, termo que constitui elemento fulcral de ligação do arguido ao processo, permitindo a sua tramitação até final, e simultaneamente facultando ao arguido o exercício efectivo dos seus direitos de defesa.

Mas há mais: a declaração de contumácia implica “a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido”, conforme dispõe o artigo 335.º, n.º 3, do C.P.P.

Ora, não se percebe que tenha sido solicitada pela secção em 5.07.2017, a devolução imediata e sem cumprimento dos mandados de detenção emitidos “em virtude de apresentação em Tribunal” (cfr. fls. 553 e segs), e que os autos tenham sido remetidos ao Mm.º JIC sem precedência de despacho a pronunciar-se sobre a contumácia.

A nosso ver, foi na fase de julgamento que a contumácia foi declarada e, uma vez suspensos os ulteriores termos do processo nessa fase, o Mm.º Juiz de julgamento deveria ter apreciado a questão da subsistência ou caducidade da contumácia, sem o que os autos continuariam suspensos e não deveriam transitar para o Mm.º JIC.

Da forma como se actuou, com a solicitação da devolução imediata e sem cumprimento dos mandados de detenção emitidos, parece pressupor-se uma posição (implícita) sobre a contumácia que não foi explicitada nos autos.

Se na fase de julgamento foi declarada a contumácia e foram tomadas diversas iniciativas, aparentemente tendentes, na perspectiva do tribunal, a provocar a caducidade da contumácia - sendo certo que, como já se viu, não se vislumbra que o arguido haja ainda prestado o TIR (a solicitação ao Consulado não continha o pedido de prestação de termo de identidade e residência e a carta rogatória expedida também não se mostra cumprida, não tendo sido tomada qualquer iniciativa a esse respeito) -, afigura-se-nos que o tribunal de julgamento teria de se pronunciar sobre a questão da contumácia e só depois, uma vez declarada, sendo caso disso, a sua cessação, seria de jurisdicionalmente apreciar e decidir sobre o requerimento de abertura de instrução, com a remessa dos autos ao JIC competente para esse efeito. Outra actuação poderá conduzir a entendimentos contraditórios no processo entre Juiz de julgamento e JIC.

Os autos transitaram para o Mm.º JIC sem que a contumácia tenha sido previamente declarada cessada, pelo que se compreende o despacho recorrido de não admissão do requerimento de abertura de instrução.

Por conseguinte, o recurso não merece provimento, devendo os autos serem devolvidos, como ordenado, ao tribunal de julgamento, para que aprecie a situação da contumácia e tome as iniciativas que entenda convenientes a esse respeito, decidindo em conformidade.                       
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III–Dispositivo.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso.
           
Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 Ucs a taxa de justiça.


           
Lisboa, 5 Junho de 2018
                   

(Jorge Gonçalves)                              
(Maria José Machado)