Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9911/2006-7
Relator: ISABEL SALGADO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
DESPESA HOSPITALAR
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/23/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: O tribunal comum é o competente em razão da matéria para apreciar e conhecer acção em que Hospital demanda o Estado Português  para pagamento do custo de assistência hospitalar em consequência de acidente de viação, atenta a responsabilização do Estado por beneficiar o agente de autoridade de subsistema de saúde

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.  
I – RELATÓRIO

O Hospital S.Francisco Xavier intentou contra o Estado Português acção declarativa de condenação com processo sumaríssimo, pedindo a condenação do Réu no pagamento da quantia de Euros 525,09 e juros de mora vincendos, alegadamente devida pelo remanescente do custo da assistência hospitalar prestada ao guarda da Polícia de Segurança Pública, P.[…], em consequência de um acidente de viação ocorrido no dia 26/9/02.

O Réu, através do Magistrado do Mº Público deduziu contestação, invocando a excepção da incompetência absoluta do Tribunal para o litígio, em virtude de a relação material controvertida dizer respeito ao subsistema de saúde relativo a agente da PSP e, portanto, ser o Tribunal Administrativo o competente em razão da matéria, pugnando procedência da excepção com todas as consequências legais.  

Seguidamente, o Tribunal julgou improcedente a excepção dilatória, e no demais, declarou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide em consequência do requerimento do Autor informando do recebimento da quantia peticionada.    

Com fundamento na violação das regras da competência, interpôs recurso de tal decisão o Réu que foi admitido como de agravo e efeito suspensivo, de subida imediata, o que nesta instância se manteve.  

Em remate das suas alegações, o recorrente apresenta as seguintes conclusões que a seguir se transcrevem:

1 – Por sentença proferida a fls. 28 a 31 foi julgada improcedente a excepção dilatória de incompetência absoluta deste Tribunal, arguida pelo réu, declarando o mesmo competente para conhecer do objecto destes autos e extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do disposto no art.º 287º, alínea e) do Cód. Proc. Civil, com custas a cargo do réu.

2 - Considerou o Tribunal recorrido que estando em causa uma acção para cobrança de dívida hospitalar em que foi demandado o subsistema de saúde, a causa de pedir não emerge da responsabilidade civil extracontratual do Estado, nos termos do art.º 4º, nº 1, alínea g) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, mas outrossim, da prestação de cuidados de saúde ao beneficiário dos Serviços de Assistência na Doença da P.S.P. – S.A.D., a quem pode ser exigido o pagamento da dívida resultante dos cuidados de saúde prestados.

3 – Discordando de tal posição, sustentamos que o Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa, não é competente, em razão da matéria, para apreciar o pleito, por pertencer tal competência à jurisdição administrativa.

4 – De acordo com o art.º 212º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

5 – A doutrina tem vindo a entender a referida expressão no sentido tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão das relações de direito privado em que a Administração pode intervir.

6 - Pertencerão ao domínio da justiça administrativa as relações jurídicas públicas, ou seja, aquelas em que um dos sujeitos seja uma entidade pública no exercício de um poder igualmente público, buscando a realização de um interesse público, definido como tal.

7 – No entanto, não é correcto afirmar que os tribunais administrativos só podem julgar questões de direito administrativas e de que, por outro lado, só eles podem julgar tais questões, verificando-se, assim, uma reserva material absoluta de jurisdição.

8 – O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais – aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro –, delimitando o âmbito da jurisdição administrativa, enumerou no artigo 4º os litígios nela incluídos e excluídos – cfr. nºs 1 e 2.

9 - Optou o legislador por atribuir expressamente aos tribunais administrativos a resolução de litígios não incluídos na cláusula geral do artigo 212º, nº 3 da C.R.P. e excluir do seu conhecimento questões substancialmente administrativas.

10 - Está proibida a descaracterização da jurisdição administrativa, enquanto jurisdição própria ou principal nesta matéria, mas não fica proibida a atribuição pontual a outros tribunais do julgamento de questões substancialmente administrativas.

11 - O nº 1 da alínea g) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais inclui na competência da justiça administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício da função política e legislativa, nos termos da lei, bem como a resultante do funcionamento da administração da justiça. 

12 - O Estado – no caso concreto, os Serviços de Assistência na Doença da P.S.P. – S.A.D., enquanto subsistema de saúde – responde directamente pelos encargos resultantes da prestação de cuidados de saúde prestados no quadro do Serviço Nacional de Saúde, conforme deflui do art.º 4º do Dec. Lei nº 218/99, de 15 de Junho e do art.º 23º, nº 1, alínea b) do Dec. Lei nº 11/93, de 15 de Janeiro que aprovou o Estatuto do Serviço Nacional de Saúde.

13 - A sua responsabilidade, ou seja, a obrigação de suportar a despesa ou encargo, assume, por isso, natureza extracontratual.

14 - Sustentamos, assim, que o caso concreto se subsume na alínea g) do nº 1 do art.º 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

15 - Mesmo que assim não se entenda, atento o estatuído no artigo 1º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais – que reproduz o normativo constitucional – a apreciação do conflito desenhado sempre pertencerá à jurisdição administrativa.

16 - Com efeito o comando constitucional funcionará sempre como a cláusula geral que não pode ser derrogada.

17 - Está desenhado nos autos, uma perfeita relação jurídica administrativa, cumprindo o réu Estado um interesse tipicamente público e exercitando, em consequência, uma função materialmente administrativa.

18 - Temos, assim, situado um litígio emergente de relação jurídica administrativa, pelo que a sua apreciação competirá à jurisdição administrativa.

19 - O Tribunal recorrido ao chamar a si a competência, em razão da matéria, para conhecer o objecto dos autos e, em consequência julgar inútil a lide, atento o pagamento efectuado, condenando o réu nas custas do processo, violou o art.º 212º, nº 3 da C.R.P., art.º 1º e 4º, nº 1, alínea g) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, art.º 4º do Decreto-Lei nº 218/99, de 15 de Junho e art.º 23º, nº 1, alínea b) do Decreto-Lei nº 11/93, de 15 de Janeiro, que Aprovou o Estatuto do Serviço Nacional de Saúde.
   
No final pede a revogação do despacho e a consideração da competência do Tribunal Administrativo.
 
O Sr.Juiz sustentou tabelarmente a decisão.
 
Corridos os vistos, nada obsta ao conhecimento de mérito.

II-FACTOS
A matéria de facto a considerar reconduz-se ao já constante do relatório para o qual se remete.

III-ENQUADRAMENTO JURÍDICO

O thema decidendum é, nunca é demais frisar, delimitado pelo teor das conclusões, à margem das situações de conhecimento oficioso e outras de excepção expressa no texto legal, que do caso em apreço estão arredadas.  

Donde, de acordo com as conclusões do recurso em apreciação, a única questão a apreciar é a da competência (ou incompetência) material dos Tribunais Comuns (Tribunais Cíveis) ou dos Tribunais Administrativos para o julgamento de uma acção intentada, por um hospital para liquidação de dívida por assistência a sinistrado e por virtude do subsistema de protecção na saúde aos agentes de segurança pública.

Passando à apreciação da questão.

A competência judiciária em razão da matéria é questão de ordem pública e apenas decorre da lei.

A sua fixação apreciar-se-á em função da natureza da matéria a decidir, sendo que, no limite, o critério do legislador teve como padrão a atribuição da causa ao tribunal que mais vocacionado (idoneidade do juiz (1)) estiver para conhecer do objecto do pleito em concreto, buscando-se afinal a eficiência da organização judiciária.

Quanto aos tribunais da organização judiciária comum, divide a lei em tribunais de competência genérica e tribunais de competência especializada, de acordo com o disposto nos artº72 a 77 da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, seguindo-se o estabelecido a propósito no artº211 da Constituição da República Portuguesa.
 
É ponto incontroverso, que a regra geral relativa à competência material é atribuída globalmente, por via negativa, aos Tribunais Judiciais. 

Como é consabido,"a competência do foro comum só pode afirmar-se com segurança depois de se ter percorrido o quadro dos tribunais especiais e de se ter verificado que nenhuma disposição de lei submete a acção em vista à jurisdição de qualquer tribunal especial" (2).

É o princípio da competência genérica ou residual dos tribunais comuns, com consagração na lei fundamental e na lei ordinária (art.º 211º, nº 1 da CRP, artº66 do CPC e artº18, nº 1da LOTJ).

Assim, a jurisdição comum é definida por exclusão de partes, ou seja, a atribuição de competência ao tribunal de jurisdição comum pressupõe a inexistência de norma específica que atribua essa competência a uma jurisdição especial para dirimir determinado litígio, tal como o autor o configura.

Por seu turno, “…para efeitos de determinação da competência material dos tribunais administrativos, é decisivo o critério constitucional plasmado no art.º 212 nº 3 da Lei Fundamental, nos termos do qual compete aos tribunais dessa jurisdição especial o "julgamento de acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas" (3).

De outro lado, fundando-nos no critério de aplicação generalizado, pertencerão ao domínio da justiça administrativa as relações jurídicas públicas, intervindo o Estado e suas entidades no exercício de um poder público e na prossecução de um interesse público

Para efeitos da apreciação/avaliação de um certo acto, ou facto, causador de prejuízos a terceiros (particulares) numa ou noutra das categorias (gestão privada/ gestão pública) o essencial reside em saber se as concretas condutas alegadamente ilícitas e danosas se enquadram numa actividade regulada por normas comuns de direito privado (civil ou comercial) ou antes numa actividade especificamente disciplinada por normas de direito público administrativo.

 A especificidade do caso.

No caso sub judice, está em causa uma típica acção para cobrança de dívida hospitalar, por virtude de cuidados de saúde ministrados a um sinistrado em consequência de um acidente de viação que o vitimou, sendo autor, um hospital, que actualmente tem um estatuto jurídico paralelo a uma sociedade anónima, e Réu, o Estado.

Actuará no caso investido e nas vestes de ente público e as normas substantivas aplicáveis ao litígio, são de direito público ou de privado?  

De acordo com o Decreto-Lei nº 218/99, de 15 de Junho, neste tipo de acções intentadas pelos hospitais incumbe ao credor a alegação e prova do facto gerador da responsabilidade pelos encargos – cf. seu art. 5º –, podendo ser exigido das seguradoras e outras entidades, o pagamento dos encargos decorrentes dos cuidados prestados a vítimas de acidentes de viação (artº9).

Todavia, nos autos o hospital não demanda o Estado em função do acidente de viação e seus responsáveis, que outrossim, importaria a assunção de responsabilidade extracontratual, pretendendo apenas cobrar um serviço que está a coberto do sistema de segurança na saúde de que o sinistrado usufrui e que é assegurado pelo Estado.  

Está-se, pois, perante uma acção que respeita ao cumprimento de obrigações, que tem por objecto somente a satisfação de uma prestação pecuniária, no domínio da responsabilidade contratual estabelecida entre o utente do serviço e o Estado vinculado à sua satisfação.

Isto é, a acção, cuja causa de pedir pretende obter o custo da prestação de cuidados de saúde, destina-se a efectivar o cumprimento de uma obrigação e tem por objecto uma prestação pecuniária de que é credor o demandante hospital, em razão de o sinistrado ser beneficiário do subsistema de saúde assegurado pelo Réu.

Desta forma dissecada a acção, os sujeitos, a causa de pedir e as normas de direito privatístico aplicáveis, somos a concluir, que não merece então enquadramento na competência atribuída aos Tribunais Administrativos no art.º 4 do ETAF.

Em conclusão.

- Do que resulta, que não sendo visível no caso em apreço qualquer conexão com outra jurisdição, a demanda na base da responsabilidade extracontratual do Réu Estado, mas apenas, que o devedor, é-o em resultado do sistema de saúde de que beneficia o sinistrado, a jurisdição comum mostra-se apta a conhecer do litígio.  

- A competência material, em questão, pela natureza da relação em conflito, cabe ao Tribunal Cível.

IV-DECISÃO
 
Do que vem exposto decide-se, negar provimento ao agravo, mantendo a decisão recorrida nesse domínio.
   
Sem custas.

 Lisboa, 23 de Janeiro de 2007  

Isabel Salgado
Roque Nogueira
Pimentel Marcos



______________________________
1.-Alberto dos Reis, in Comentário ao CPC, I, Pag.106

2.-Alberto dos Reis in CPC anotado, I, pag.147.

3.-Ac.STJ de 7/10/04 in www.dsj.jstj