Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
213/18.9YUSTR.L1-3
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: MERCADO IMOBILIÁRIO
CONTRAORDENAÇÃO
DEVER DE COMUNICAR AS TRANSACÇÕES
SANÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/13/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO TRIBUNAL DA CONCORRÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: A Lei configura a omissão de comunicação pela sociedade mediadora de transacções imobiliárias como infracção de natureza contra-ordenacional, sem cuidar de saber das consequências dessa conduta para uma concreta investigação das actividades criminosas de branqueamento de capitais e de terrorismo.
Em sede de preenchimento do tipo de ilícito contra-ordenacional, também não releva a primariedade ou a ausência de benefício para a sociedade arguida: A Lei pretende tutelar interesses do Estado e da comunidade na recolha de informações importantes para o conhecimento e investigação de actividades ilícitas de branqueamento de capitais e não sancionar benefícios indevidos das entidades obrigadas a comunicações.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Lisboa,

1. Na decisão administrativa de 10 de Julho de 2018, o Instituto dos Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção (IMPIC) aplicou à sociedade Predial V. Soc. Mediação Mobiliária Ldª três coimas de dois mil e quinhentos euros e, em cúmulo jurídico, a coima única de três mil euros, pela prática de três contra-ordenações, na forma negligente, previstas e punidas pelo artigo 53.º, alínea ae), da Lei n.º 25/2008, de 5 de Junho.
A arguida impugnou judicialmente a decisão da autoridade administrativa.
Por sentença de 3 de Outubro de 2018, depositada em 4 de Outubro de 2018, o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão negou provimento ao recurso e confirmou na íntegra a decisão administrativa.
Novamente inconformada, a sociedade Predial V. Soc. Mediação Mobiliária Ldª interpôs recurso em 18 de Outubro de 2018, agora da sentença judicial, com as seguintes conclusões (transcrição):
“I) O presente recurso tem como objeto a matéria de direito da sentença proferida nos presentes autos, a qual condenou a arguida na coima única de 3.000,00 €
II) O tribunal a quo deu como provado a violação do dever de comunicação por parte da arguida de 3 transações comerciais.
III) Assim para que se justifique a aplicação de uma coima é necessária averiguar da culpa do agente, a gravidada de da contraordenação, a situação económica da arguida e o beneficio retirado da contraordenação.
IV) No caso concreto  quer a culpa do agente quer a gravidade da contraordenação, foram diminutos.
V) A arguida não retirou qualquer beneficio da contraordenação
VI) A arguida não tem antecedentes criminais
VII) A Arguida  em  2017 não apresentou volume de negócios, demonstrando não ter atividade.
VIII) Não se justifica assim a sanção aplicada.
IX) Na verdade os bens jurídicos que a lei visa acautelar, pela exigência do dever de comunicação, nunca foram de alguma forma beliscados, pelo incumprimento desse dever por parte da arguida.
X) A arguida apenas demonstrou falta de cuidado porque não procedeu à comunicação a que estava obrigada.
XI) O dever de comunicação não tem relevância superior aos outros deveres a que a Lei obriga.
XII) Sem prescindir sempre se diga, que face à matéria dada como provada, a coima aplicada é excessiva.
XIII) A sua determinação deve ter por base as circunstâncias do caso concreto, a culpa do agente a as exigências de prevenção.
XIV) Ora para além dos factos referidos a arguida não exerce neste momento atividade, pelo que não existe a possibilidade de voltar a incorrer em incumprimento do dever de comunicação.
XV) Por outro lado as exigências de prevenção geral e especial também não justificam a aplicação da coima.
XVI) Pelo exposto o tribunal a quo violou entre outros o artigo 71º do Código Penal
Q. Denote-se igualmente o passado impoluto da recorrente, a qual nunca foi objecto de condenação pela prática deste tipo contra-ordenacional;
R. Os factos remontam a 2014. Já decorreram mais de quatro anos e a recorrente nunca mais foi condenada por qualquer contra-ordenação.”
O Ministério Público apresentou resposta ao recurso concluindo nos seguintes termos (transcrição parcial):
“(…) a douta sentença recorrida não enferma de qualquer vício, fez uma correta apreciação dos factos, bem interpretou o direito, tendo fixado reações sancionatórias adequadas e proporcionais às finalidades de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir.
Nesta sequência, deverá o recurso interposto pela arguida ser julgado totalmente improcedente e manter-se integralmente a douta sentença recorrida.”
Em 14 de Novembro de 2018, o Instituto dos Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção formulou igualmente resposta, concluindo pela improcedência do recurso da arguida.
Os autos deram entrada neste TRL no dia 13 de Dezembro de 2018 e foram distribuídos ao relator no dia 7 de Janeiro de 2019.
No momento processual a que alude o artigo 416º do Código de Processo Penal, o Ministério Público, por intermédio do Exmº Procurador-geral Adjunto exarou parecer no sentido da improcedência do recurso e da confirmação da decisão recorrida.
Recolhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
2. Objecto do recurso e questões a decidir
O recurso da sentença judicial em processo de impugnação por contra ordenação abrange apenas matéria de direito (artigo 75º nº 1 do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro).
O Tribunal da Relação pode conhecer ainda de facto nas hipóteses que constam do artigo 410º nºs 2 e 3 do Código de Processo Penal, aplicável ex-vi dos art. 41º nº 1 e 74º nº 4 do citado Decreto-Lei nº 433/82, ou seja, desde que, do texto da decisão recorrida resulte insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou erro notório na apreciação da prova.
Como é dado assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso.
Tendo em conta os elementos já enunciados, a questão suscitada consiste em saber se se deve manter a sentença judicial quanto às consequências jurídicas dos factos: aplicação de admoestação e, em caso negativo, determinação da medida da medida concreta de cada uma das três coimas parcelares e da coima única.
3. Para apreciação dos problemas suscitados, impõe-se transcrever parcialmente a sentença do tribunal de primeira instância. 
A matéria de facto provada na decisão recorrida é a seguinte (transcrição):
A. No dia 22 de abril de 2013, PREDIAL V. – SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA, interveio, na qualidade de mediadora imobiliária, na compra e venda das frações autónomas designadas pelas letras “KY” e “GY”, correspondentes, respetivamente ao segundo andar e arrecadação, e garagem, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua da .., números 1…/1…, e Rua Professor …, números 5../6.., na freguesia do Bonfim, do concelho do Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número … e três, pelo valor de 141.300,00€ e 8.700,00€.
B. (…) Cujos elementos deveriam ser comunicados ao IMPIC - Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção, I.P. até 31 de agosto de 2013.
C. No dia 29 de abril de 2014, PREDIAL V. – SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA, interveio, na qualidade de mediadora imobiliária, na compra e venda da fração autónoma designada pela letra “BQ”, correspondente ao oitavo andar direito, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, números 1../2.., na freguesia do Bonfim, do concelho do Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número … e trinta e um, pelo valor de 220.000,00€.
D.        (…) Cujos elementos deveriam ser comunicados ao IMPIC - Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção, I.P. até 31 de agosto de 2014.
E. No dia 1 de abril de 2015, PREDIAL V. – SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA, interveio, na qualidade de mediadora imobiliária, na compra e venda da fração autónoma designada pela letra “DR”, correspondente ao sétimo andar, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, números 3./1.. e Rua Professor …, números 1../1.., na freguesia do Bonfim, do concelho do Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número … e três, pelo valor de 47.570,00€.
F. (…) Cujos elementos deveriam ser comunicados ao IMPIC - Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção, I.P. até 31 de agosto de 2015.
G. Até à data, a Arguida não comunicou os elementos sobre qualquer uma das transações em causa.
H. PREDIAL V. – SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA, devido ao seu objeto social e a atividade a que se dedica de mediação imobiliária, sabia estar obrigada a comunicar ao atual IMPIC - Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção, I.P., semestralmente, em modelo próprio e nos prazos regulamentados, sobre cada transação efetuada, os elementos constantes das normas legais em apreço.
I. (…) E, não o fazendo, violou os deveres de cuidado que lhe incumbiam e de que era capaz, porquanto não procedeu à comunicação obrigatória dos elementos da transação aqui em causa, sem que se tenha certificado das exigências legais e não se dotando das valências e das competências necessárias para as cumprir.
J. (…) Sabendo que a sua conduta constituía ilícito de mera ordenação social.
K. PREDIAL V. – SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA não tem registo de antecedentes contraordenacionais.
L. (…) Não obteve benefício económico.
M. (…) No ano de 2017, não apresentou volume de negócios, demonstrando não ter atividade.
4. Como se escreveu na sentença recorrida, a matéria de facto provada leva a concluir que por incumprimento em Agosto de 2013, Agosto de 2014 e Agosto de 2015 do dever de comunicar as transacções em que esteva envolvida como mediadora imobiliária, a sociedade arguida incorreu na prática de três contra-ordenações, na forma negligente, previstas e punidas pelo disposto no artigo 53.º, alínea ae), da Lei n.º 25/2008, de 5 de Junho.
No regime legal hoje vigente, os factos provados integram igualmente o cometimento de três contra-ordenações, na forma negligente, por ausência de comunicações imobiliárias, mas agora previstas e punidas pela conjugação dos artigos 4º, nº 1, alínea d), 46º nº 1, alínea b), 164º, nº 2, 169º, nº 1, alínea ee) e 170º, alínea d) i), todos da Lei nº 83/2017, de 18 de Agosto.   
Quer no regime legal vigente na data das infracções, quer na Lei nova, cada uma das contra-ordenações é abstractamente punível com coima numa moldura legal com o mínimo de 2500 € e o máximo de 50000 €.
Não existe benefício para a arguida na aplicação de normas hoje vigentes, pelo que se deve aplicar o regime vigente na data da prática dos factos.
Em face da argumentação exposta no recurso, interessa notar que a Lei configura a omissão de comunicação pela sociedade mediadora de transacções imobiliárias como infracção de natureza contra-ordenacional, sem cuidar de saber das consequências dessa conduta para uma concreta investigação das actividades criminosas de branqueamento de capitais e de terrorismo.
Em sede de preenchimento do tipo de ilícito contra-ordenacional, também não releva a primariedade ou a ausência de benefício para a sociedade arguida: A Lei pretende tutelar interesses do Estado e da comunidade na recolha de informações importantes para o conhecimento e investigação de actividades ilícitas de branqueamento de capitais e não sancionar benefícios indevidos das entidades obrigadas a comunicações.
5. Estabelece o artigo 18.º do RGCO que a determinação da medida da coima se faz em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e dos benefícios obtidos com a prática do facto
Na situação vertente, haverá fundamentalmente de ter em conta a natureza reiterada do comportamento ilícito, a mediana gravidade da omissão do dever de cuidado, o elevado valor das fracções objecto das transacções não comunicadas e que ainda não há notícia de ter sido cumprido o dever de comunicação, apesar de todo o tempo já decorrido.
No mais, impõe-se ter presente, com peso atenuativo, que a sociedade arguida não tem registo de antecedentes contra-ordenacionais, não obteve benefício económico e no ano de 2017, não apresentou volume de negócios, demonstrando não ter actividade.
Em nossa apreciação dos elementos relevantes, não estamos manifestamente perante comportamentos de reduzida gravidade que permitam a aplicação de uma mera admoestação  e deve manter-se em dois mil e quinhentos euros o valor da coima para cada uma das três contra-ordenações. Sendo de notar que esse é o valor do limite mínimo da moldura prevista na Lei.
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Sopesando em conjunto os factos provados referentes às três contra-ordenações, nos termos do artigo 19º do RGCO, afastada liminarmente a viabilidade de aplicação de uma simples admoestação, entende-se justo e equitativo manter igualmente a coima única no valor de três mil euros.
 Tendo em conta as intensas exigências de prevenção geral e a gravidade dos factos decorrente de um comportamento repetido no tempo, não ocorre fundamento para a suspensão de execução da coima única, hoje prevista no artigo 175º da Lei nº 83/2017, de 18 de Agosto.  
6. Em caso de decaimento ou improcedência total do recurso, há lugar ainda a condenação do arguido nas custas pela actividade processual a que deu causa, compreendendo a taxa de justiça e os encargos (artigos 92º nº 1 e 94º, ambos do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro e artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal).
De acordo com o disposto no artigo 8º nº 5 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais, a taxa de justiça a fixar, a final, varia entre três e seis UC.
Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em três UC.
7. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso da arguida sociedade Predial V. Soc. Mediação Mobiliária Ldª e em confirmar na íntegra a sentença recorrida.
Por ter decaído no recurso, vai a arguida condenada em três UC de taxa de justiça.

Lisboa, 13 de Fevereiro de 2019.
Texto elaborado em computador e revisto pelos juízes desembargadores que o subscrevem.

João Lee Ferreira
Nuno Coelho