Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
17500/18.9T8LSB.L1-2
Relator: NELSON BORGES CARNEIRO
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
ININTELIGIBILIDADE DA CAUSA DE PEDIR
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – Causa de pedir é o ato ou facto jurídico em que o autor se baseia para formular o seu pedido.
II – A causa de pedir é ininteligível quando há impossibilidade de compreensão da causa de pedir, isto é, dos fundamentos de facto da ação, leva a que não se perceba onde radica, afinal, a pretensão formulada.
III – A falta de formulação do pedido ou de indicação da causa de pedir, traduzindo-se na falta do objeto do processo, constitui nulidade de todo ele por ineptidão da petição inicial.                     
IV – O convite ao aperfeiçoamento procura completar o que é insuficiente ou corrigir o que é impreciso, na certeza de que a causa de pedir existe (na petição) e é percetível (inteligível).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 2ª secção (cível) do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. RELATÓRIO
DJ… intentou ação declarativa sob a forma de processo comum contra MJ… e, ME… pedindo que:
I. Seja anulado o contrato de compra e venda dos três quadros identificados;
II. Serem as rés condenadas, solidariamente, a restituir ao autor o preço atualizado dos dois quadros não genuínos, atribuídos a Amadeo de Souza Cardoso, correspondente ao respetivo valor atual, no montante de € 200 000,00, acrescido de juros contados à taxa legal desde a data da citação, bem como no pagamento do valor que for atribuído, em sede pericial, ao identificado quadro de Almada Negreiros, em virtude da anulação total do sobredito contrato de compra e venda;
III. Serem as rés condenadas, solidariamente, a restituir ao autor o preço pago pelas identificadas três obras de arte, no montante de € 74 819,68 (setenta e quatro mil, oitocentos e dezanove euros e sessenta e oito cêntimos), atualizado através das regras aplicáveis à desvalorização monetária desde 27-10-1997 até à presente data, acrescido de juros de mora vencidos, contados à taxa legal desde 27-10-1997 até à presente data, no montante de € 77 750,98 (setenta e sete mil, setecentos e cinquenta euros e noventa e oito cêntimos), bem assim como nos juros vincendos até integral pagamento;
IV. Em qualquer dos casos, deverão as rés ser condenadas, solidariamente, no pagamento ao autor dos custos suportados com a realização do estudo pericial realizado pelo Departamento de Conservação e Restauro da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa.
Foi proferido saneador/sentença que absolveu as rés da instância, por ser nulo todo o processado por ineptidão da petição inicial.
Inconformado, veio o autor apelar do saneador-sentença, tendo extraído das alegações[1],[2] que apresentou as seguintes
CONCLUSÕES[3]:
A. O Autor não se conforma com a douta sentença sub judice, que decidiu julgar nulo todo o processado por ineptidão da petição inicial e em consequência absolver as Ré da instância;
B. A Mmª Juíza “a quo” incorre em manifesto erro de apreciação e interpretação da peça processual e da posição na mesma vertida pelo Autor ao considerar que “(…) para sustentar esse pedido [de nulidade do negócio] o Autor alega simultaneamente que a
1ª Ré lhe vendeu os 3 (três) quadros e quem lhe vendeu esses quadros foi a 2ª Ré.”
(pág. 19, 2º parágrafo).
C. Tal erro viria a determinar a conclusão (igualmente carecida de fundamento e, portanto, errada) tirada adiante, na mesma douta sentença, quando a Mmª Juíza “a quo” afirma que “(…) No caso em análise a narrativa fáctica do autor é dubitativa e contradiz-se dado que que o mesmo afirma factos que não podem coexistir em simultâneo – a celebração do mesmo contrato de compra e venda com 2 (duas) pessoas distintas – formulando em consequência o pedido de anulação desse contrato com fundamento de um vício da vontade contra essas duas pessoas.”
D. Não tem, portanto, qualquer fundamento a afirmação, do Douto Tribunal “a quo” segundo a qual “a narrativa fáctica do autor é dubitativa e contradiz-se”.
E. Ao invés do concluído pela Mmª Juíza “a quo” não existe qualquer contradição.
F. Na petição inicial o autor apresentou e descreveu um negócio de compra e venda de coisa móvel, celebrado entre Autor e Rés, estas como mandante e mandatária, em regime de mandato sem representação (art 1180º e ss CC) (cfr. nomeadamente, artºs 110º a 112º da p.i.
G. Em tais artigos, o Autor afirma, nomeadamente, que “Intervenientes no negócio jurídico foram, única e exclusivamente, a 1.ª e a 2.ª Rés, (…)”
H. Bem assim com afirma que “a 1.ª e 2.ª Rés intervieram no negócio jurídico em apreço estando ambas numa relação de mandato sem representação, em que pese embora a 1ª Ré tivesse atuado “nomine próprio”, fazia-o em colaboração com esta última, 2ª Ré, que a incumbiu de comercializar os quadros em apreço (…)”
I. A que acrescentou que “não obstante o processo negocial ter sido integralmente conduzido pela 1.ª Ré – junto da qual, quer por intermédio de ER…, quer diretamente, o Autor questionou a autenticidade dos três quadros, a qual esta confirmou – a 2.ª Ré também participou do mesmo, estando ao corrente das respetivas condições, tendo rececionado o respetivo pagamento e emitindo, a final, a concludente declaração de venda,”
J. Concluindo que “é manifesto que ambas as Rés sabiam ou, pelo menos, não podiam ignorar que, não fosse a autenticidade dos quadros em questão, o Autor nunca os teria
adquirido.”
K. Assim como fundamentou a solidariedade da obrigação das Rés, afirmando que conforme ensinamento dos “(…) Prof.s Pires de Lima e Antunes Varela, às relações entre mandante e mandatário, inclusive no âmbito do mandato sem representação, devem presidir as regras da responsabilidade solidária.”;
L. No mandato sem representação o mandatário é parte no contrato que celebra, age em nome próprio ainda que por conta do mandante, e cabe-lhe depois na execução do contrato de mandato, transferir para a esfera jurídica do mandante os direitos adquiridos;
M. Ao invés do decidido pela mmª Juíza “a quo” o Autor alegou que o negócio jurídico foi celebrado com a 1ª ré, tendo sido os pagamentos entregues a esta; no entanto, e uma vez que aquela 1ª ré afirmou que os quadros seriam pertença de sua mãe, os cheques deveriam ser (e foram) passados a esta.
N. A situação descrita (aliás de forma clara) nos autos, configura manifestamente um caso de mandato sem representação.
O. Ao invés do erradamente interpretado pela Mmª Juíza “a quo”, a figura do mandato sem representação não se confunde, nem pode confundir-se, com a alegada celebração de contrato com duas pessoas.
P. Ao invés do inferido pela Mmª Juíza “a quo” (pág. 19, 2º parágrafo, da douta sentença) – o Autor não alegou “(…) simultaneamente que a 1ª Ré lhe vendeu os 3 (três) quadros e quem lhe vendeu esses quadros foi a 2ª Ré.”
Q. Tal leitura e interpretação – efetuadas na douta sentença – não tem qualquer correspondência com o que o Autor expôs na sua petição inicial.
R. A forma como se desenvolveu o negócio foi devida, correta e preceptivamente descrito pelo Autor.
S. Mesmo que (sem conceder) a petição inicial apresentasse insuficiências ou imprecisões
na exposição da matéria de facto, deveria a Mmª Juiz “a quo” ter convidado o autor ao aperfeiçoamento. O que não fez.
T. Porém não o fez. Na audiência prévia, como bem consta da respetiva Ata, limitou-se a dar ao Autor a palavra para apresentar defesa relativamente às exceções deduzidas pelas Rés na Contestação.
U. Da leitura da contestação apresentada pelas Rés, podemos afirmar que as mesmas interpretaram a convenientemente a petição inicial, pois defenderam-se quer por exceção, quer por impugnação, sendo que neste particular manifestaram ter compreendido na íntegra a factualidade exposta pelo Autor, que sustentaram a causa de pedir, demonstrando claramente ter compreendido a pretensão e os pedidos do Autor.
V. Tendo as Rés contestado e impugnado os factos alegados pelo autor e tendo demonstrando terem interpretado a petição inicial convenientemente, o eventual vício de ineptidão (sem conceder) ficou sanado (nos termos do disposto no nº 3 do artº 186º do CPC).
W. Na petição apresentada pelo Autor não falta, nem é ininteligível, a indicação do pedido ou da causa de pedir.
X. A Mmª Juíza “a quo” confundiu os factos alegados pelo Autor, misturando-os e não os interpretando devidamente.
Y. É manifesto que o Autor identificou cristalinamente qual a intervenção de cada uma das Rés no negócio, subsumiu-o a uma situação de mandato sem representação e, consequentemente, fundamentou contra ambas os pedidos que formulou.
Z. Também o pedido não está em contradição com a causa de pedir, nem o Tribunal “a quo” tal afirmou.
AA. Ao contestarem nos termos em que o fizeram – tendo, inclusive, suscitado o chamamento de terceira pessoa, também ela referida na p.i. – nunca poderia a exceção (arguida pelas Rés na contestação) ser julgada procedente.
BB. Ao decidir nos termos em que decidiu, violou a Mmª Juíza “a quo”, entre outras do Mui Douto suprimento desse Venerando Tribunal, as normas do artº 186º, nºs 1, 2 e 3 e do artº 577º, b) do Código de Processo Civil.
Nestes termos e nos demais do Mui Douto suprimento de Vossas Excelências, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser revogada a decisão recorrida, e a mesma substituída por Acórdão que determine a realização dos demais atos e procedimentos previstos no Artº 591, alíneas c) a g), do Código de Processo Civil, nomeadamente a prolação de despacho saneador e proceder à programação dos atos a realizar na audiência final, estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e designar as respetivas datas, prosseguindo os autos os seus termos até final, como é de JUSTIÇA
As rés contra-alegaram, pugnando pela improcedência da apelação do autor.
Colhidos os vistos[4], cumpre decidir.
OBJETO DO RECURSO[5],[6]
Emerge das conclusões de recurso apresentadas por DJ…, ora apelante, que o seu objeto está circunscrito à seguinte questão:
1.) Ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade da causa de pedir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. O DIREITO
Delimitada a matéria de facto, que não vem impugnada[7], importa conhecer o objeto do recurso, circunscrito pelas respetivas conclusões, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e as que sejam de conhecimento oficioso[8].          
1.) INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL POR ININTELIGIBILIDADE DA CAUSA DE PEDIR.
O apelante alega que “o negócio jurídico foi celebrado com a 1ª ré, tendo sido os pagamentos entregues a esta; no entanto, e uma vez que aquela 1ª ré afirmou que os quadros seriam pertença de sua mãe, os cheques deveriam ser (e foram) passados a esta. A situação descrita (aliás de forma clara) nos autos, configura manifestamente um caso de mandato sem representação”.
Alega ainda que “a figura do mandato sem representação não se confunde, nem pode confundir-se, com a alegada celebração de contrato com duas pessoas”.
Ora, o tribunal a quo entendeu que “No âmbito dos presentes autos o autor pretende a anulação do contrato de compra e venda de três quadros pretensamente da autoria de Amadeu de Sousa Cardoso com o fundamento em erro sobre o objeto do negócio por os referidos quadros não serem genuínos. No entanto para sustentar esse pedido o Autor alega simultaneamente que a 1ª ré lhe vendeu os 3 (três) quadros e quem lhe vendeu esses quadros foi a 2ª ré. No caso em análise a narrativa fáctica do autor é dubitativa e contradiz-se dado que que o mesmo afirma factos que não podem coexistir em simultâneo - a celebração do mesmo contrato de compra e venda com 2 (duas) pessoas distintas – formulando em consequência o pedido de anulação desse contrato com fundamento de um vício da vontade contra essas duas pessoas”.
Vejamos a questão.
É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial – art. 186º, nº 1, do CPCivil.
Diz-se inepta a petição, quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir – art. 186º, nº 1, al. a), do CPCivil.
Causa de pedir é o ato ou facto jurídico em que o autor se baseia para formular o seu pedido[9].
Na petição inicial deve o autor indicar a causa de pedir (arts. 552-1-d e 581-4), isto é, alegar o facto constitutivo da situação jurídica material que quer fazer valer – ou, no caso da ação de simples apreciação da existência dum facto (art.10-3-a), os elementos que o integram, tratando-se do facto concreto que o autor diz ter constituído o efeito pretendido[10].   
A causa de pedir, além de existir e de ser inteligível, deve estar em conformidade como o pedido, formando com a qualificação jurídica as premissas que constituem o corolário da pretensão formulada[11].
A causa de pedir constitui um dos elementos indispensáveis da petição inicial. Representando o fundamento da pretensão de tutela jurisdicional formulada, a causa de pedir tem de ser invocada na petição, sem o que faltará a base, isto é, o suporte da ação. E acrescente-se que não basta uma menção genérica da situação factual, é necessário o relato concreto e específico dos factos cuja verificação terá feito nascer o direito invocado pelo autor[12].
A causa de pedir é ininteligível quando há impossibilidade de compreensão da causa de pedir, isto é, dos fundamentos de facto da ação, leva a que não se perceba onde radica, afinal, a pretensão formulada[13].
A falta de formulação do pedido ou de indicação da causa de pedir, traduzindo-se na falta do objeto do processo, constitui nulidade de todo ele por ineptidão da petição inicial[14].
O mesmo acontecendo quando, embora aparentemente existente, o pedido é formulado ou a causa de pedir é indicada de modo tão obscuro que não se entende qual seja ou a causa de pedir é referida em termos tão genéricos que não constituem a alegação de factos concretos[15].
Verifica-se esta causa de nulidade (no caso de faltar ou ser ininteligível a indicação da causa de pedir) quando, por falta, omissão, ambiguidade ou obscuridade (ininteligibilidade) na indicação da causa de pedir, não possa saber-se qual o ato ou facto jurídico (negócio jurídico, conduta ilícita, vicio invalidante, direito sobre uma coisa, etc.) em que ao autor se baseia para enunciar o seu pedido[16].
A omissão da causa de pedir conducente à ineptidão verifica-se quando falte totalmente a indicação dos factos que constituem o núcleo essencial dos factos integrantes da previsão das normas de direito substantivo concedentes do direito em causa[17].
A ineptidão da petição inicial é de conhecimento oficioso (art. 196º), deve ser arguida até à contestação ou nesta peça (art. 198º, nº 1), deve ser conhecida no despacho saneador ou até à sentença final, quando não houver despacho saneador (art. 200º, nº 2) [18].
A ineptidão, sendo uma exceção dilatória (art. 577º, al. b)), gera a absolvição da instância (art. 278º, nº 1, al. b)), isto é, um julgamento formal da lide, não vedando a instauração de outra ação sobre o mesmo objeto (art. 279º, nº 1)[19].
Está alegado que “no dia 27 de outubro de 1997, contra a entrega dos três quadros, o Autor efetuou o pagamento do respetivo preço, o que fez, em parte mediante a emissão e entrega de cheques pós-datados, no valor 2 500 00$00 (dois milhões e quinhentos mil escudos) cada um, e outra parte em dinheiro” (factos nºs 34 a 36, da petição inicial).
Mais alegou o apelante/autor que “os pagamentos foram todos entregues à 1ª Ré, sendo que todos os cheques foram emitidos à ordem da mesma beneficiária, ME…, aqui 2.ª Ré, porquanto, de acordo com o afirmado pela 1ª Ré, os quadros vendidos seriam de pertença da sua Mãe, a aqui 2ª Ré, ME…” (factos nºs 37 a 39, da petição inicial).
Assim, “contra a entrega do pagamento do valor acordado a 1.ª Ré, a pedido do Autor, entregou-lhe uma “declaração de venda”, assinada pela sua Mãe, 2.ª Ré,  comportando-se como verdadeira e efetiva vendedora dos três quadros, recebendo os cheques, para pagamento do preço, emitidos em seu nome e tendo emitido e assinado, pelo seu próprio punho, a declaração de venda” (factos nºs 40 a 42, da petição inicial).
Temos, pois, como causa de pedir da ação, a celebração de um contrato de compra e venda entre o autor e a 2ª ré, e tendo como objeto três quadros, dos quais, dois de Amadeo de Souza Cardoso e, um de Almada Negreiros, pelo preço global de escudos 15 000 000$00.
Da alegação do apelante/autor resulta que celebrou um contrato de compra e venda com a 2ª ré, e não, como entendeu o tribunal a quo, que “o Autor alegou simultaneamente que a 1ª ré lhe vendeu os 3 (três) quadros e quem lhe vendeu esses quadros foi a 2ª ré”.
Ora, o apelante/autor nunca alegou que “a 1ª ré lhe vendeu os três quadros e, quem lhe vendeu esses quadros foi a 2ª ré”, como entendeu o tribunal a quo.
A alegação do apelante/autor é clara ao referir que celebrou um contrato de compra e venda com a 2ª ré, mas tendo todos os pagamentos sido entregues à 1ª ré, que era quem estava a comercializar os quadros.
Pelo facto de ser a 1ª ré quem estava a comercializar os quadros, por via de algum contrato de mandato, não se retira, que esta os tenha vendido ao apelante/autor, mas sim que terá agido em nome próprio no contrato de compra e venda.
Como resulta das alegações do apelante, com o que se concorda “o negócio jurídico foi celebrado com a 1ª ré, tendo sido os pagamentos entregues a esta. No entanto, e uma vez que a 1ª ré afirmou que os quadros seriam pertença de sua mãe, os cheques deveriam ser (e foram) passados a esta. Ora tal situação configura manifestamente um mandato. No caso, sem representação.”[20],[21],[22],[23],[24],[25],[26],[27].
E, que as apeladas/rés entenderam que a causa de pedir era relativa a um contrato de compra e venda, resulta do alegado na contestação: “Em primeiro lugar, cumpre referir que o Contrato de compra e venda dos referidos três quadros, dois de Amadeo de Souza-Cardoso e um de Almada Negreiros, identificados no artigo 9.º da petição inicial, não foi celebrado com as Rés (art. 9º, da contestação); As Rés nunca celebraram com o Autor qualquer contrato de compra e venda tendo por objeto os referidos quadros, nem qualquer outro tipo de contrato relativo aos mesmos (art. 10º, da contestação); Esses quadros pertenciam, tanto quanto sabem as Rés, à sua então proprietária, ML… (art. 9º, da contestação); Dado que as Rés nunca foram proprietárias dos quadros (art. 12º, da contestação); As Rés apenas intervieram na compra e venda em causa nos presentes autos como intermediárias ou auxiliares do negócio, do lado da vendedora, a então proprietária, ML…, repita-se (art. 14º, da contestação); E enquanto auxiliares/intermediárias, agiam sempre em nome e por conta da então proprietária, nos termos por si estipulados (art. 15º, da contestação)”.
Assim sendo, não se verifica a nulidade do processado por ininteligibilidade da causa de pedir, pois sabe-se qual o ato ou facto jurídico em que o autor se baseia para enunciar o seu pedido.
Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido – art. 590º, nº 4, do CPCivil.
O convite ao aperfeiçoamento procura completar o que é insuficiente ou corrigir o que é impreciso, na certeza de que a causa de pedir existe (na petição) e é percetível (inteligível); apenas sucede que não foram alegados todos os elementos fácticos que a integram, ou foram-no em termos pouco precisos. Daí o convite ao aperfeiçoamento, destinado a completar ou a corrigir um quadro fáctico já traçado nos autos[28].
O aperfeiçoamento, é, pois, o remédio para casos em que os factos alegados por autor ou réu (os que integram a causa de pedir e os que fundam as exceções) são insuficientes ou não se apresentam suficientemente concretizados[29].
Assim, caso houvesse insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto, e uma vez que estava individualizada a causa de pedir, sempre o tribunal a quo poderia convidar a parte a aperfeiçoar o articulado, nos termos estatuídos no art. 590º, nº 4, do CPCivil.
Concluindo, a causa de pedir não é ininteligível pois estando alegados os fundamentos de facto da ação, percebe-se onde radica a pretensão formulada pelo apelante/autor, no caso, um contrato celebrado com a 2ª ré, de compra e venda de três quadros.
Destarte, procedendo o recurso de apelação, há que revogar o saneador/sentença proferido pelo tribunal a quo, que absolveu as rés da instância, e declarou nulo todo o processado por ininteligibilidade da causa de pedir, devendo os autos prosseguir os seus termos com a realização dos atos e procedimentos previstos no art. 591º, do CPCivil.
3. DISPOSITIVO
3.1. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível (2ª) do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso de apelação e, consequentemente, em revogar a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir os seus termos com a realização dos atos e procedimentos previstos no art. 591º, do CPCivil.
3.2. REGIME DE CUSTAS
Custas pelas apeladas (na vertente de custas de parte, por outras não haver[30]), porquanto a elas deram causa por terem ficado vencidas[31].
                           
Lisboa, 2020-09-10[32],[33]
Nelson Borges Carneiro
Pedro Martins
Inês Moura
_______________________________________________________
[1] Para além do dever de apresentar a sua alegação, impende sobre o recorrente o ónus de nela concluir, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão – ónus de formular conclusões (art. 639º, nº 1) – FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Processual Civil, volume II, 2ª edição, p. 503.
[2] As conclusões exercem ainda a importante função de delimitação do objeto do recurso, como clara e inequivocamente resulta do art. 639º, nº 3. Conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que o recorrente pretende obter do tribunal superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo tribunal a quo – ABRANTES GERALDES – PAULO PIMENTA – PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, volume 1º, 2ª ed., p. 795.
[3] O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão. Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar, as normas jurídicas violadas; o sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas, e invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada – art. 639º, nºs 1 e 2, do CPCivil.
[4] Na sessão anterior ao julgamento do recurso, o processo, acompanhado com o projeto de acórdão, vai com vista simultânea, por meios eletrónicos, aos dois juízes-adjuntos, pelo prazo de cinco dias, ou, quando tal não for tecnicamente possível, o relator ordena a extração de cópias do projeto de acórdão e das peças processuais relevantes para a apreciação do objeto da apelação – art. 657º, n.º 2, do CPCivil.
[5] Todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas, não podendo de elas conhecer o tribunal de recurso.
[6] Vem sendo entendido que o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir.
[7] Quando não tenha sido impugnada, nem haja lugar a qualquer alteração da matéria de facto, o acórdão limita-se a remeter para os termos da decisão da 1.ª instância que decidiu aquela matéria – art. 663º, nº 6, do CPCivil.
[8] Relativamente a questões de conhecimento oficioso e que, por isso mesmo, não foram suscitadas anteriormente, a Relação deve assegurar o contraditório, nos termos gerais do art. 3º, nº 3. A Relação não pode surpreender as partes com uma decisão que venha contra a corrente do processo, impondo-se que as ouça previamente – ABRANTES GERALDES – PAULO PIMENTA – PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, volume 1º, 2ª ed., p. 829.
[9] ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, 2º volume, p. 369.
[10] LEBRE DE FREITAS – ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, volume 1º, 4ª edição, p. 374.
[11] ABRANTES GERALDES – PAULO PIMENTA – PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, volume 1º, 2ª ed., p. 232.
[12] MONTALVÃO MACHADO – PAULO PIMENTA, O Novo Processo Civil, 11ª edição, p. 109.
[13] ABRANTES GERALDES – PAULO PIMENTA – PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, volume 1º, 2ª ed., p. 233.
[14] LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa Comum, Á Luz do Código de Processo Civil de 2013, 4ª edição, p. 56.
[15] LEBRE DE FREITAS – ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, volume 1º, 4ª edição, p. 374.
[16] FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Processual Civil, volume II, 2ª edição, p. 104.
[17] Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 2007-01-31, Relator: JOÃO CAMILO, http://www.dgsi.pt/ jstj.
[18] ABRANTES GERALDES – PAULO PIMENTA – PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, volume 1º, 2ª ed., p. 235.
[19] ABRANTES GERALDES – PAULO PIMENTA – PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, volume 1º, 2ª ed., p. 234.
[20] No mandato sem representação o mandante age em nome próprio. O efeito típico de agir em nome próprio é que os efeitos dos atos que celebrar se produzem imediatamente na sua própria esfera jurídica. O mandatário pode licitamente ocultar o mandato aos terceiros com quem negoceia ou pratica atos jurídicos simples. Mais, nos termos do próprio mandato, pode estar obrigado a ocultar a relação de mandato aos terceiros – ANA PRATA (Coord.), Código Civil Anotado, 2ª Edição Revista e Atualizada, volume I, p. 1517.
[21] Importa, no entanto, ter presente a distinção entre «procuração», negócio jurídico unilateral que confere poderes de representação (cf. art. 262.º e ss., do CC) e «mandato», modalidade de contrato de prestação de serviço que impõe a obrigação de praticar atos jurídicos por consta de outrem, haja ou não representação. Se o mandato estiver associado à representação, “o que ocorre sempre que o mandatário tenha recebido poderes representativos (procuração)”, o negócio jurídico celebrado pelo mandatário produz (imediata e automaticamente) os seus efeitos na esfera jurídica do representado, na medida em que o mandatário, munido de poderes de representação, age ao mesmo tempo por conta e em nome do mandante (mandato com representação – art. 1178.º, n.ºs 1 e 2, CC). Não sendo outorgada procuração, o simples mandatário age por conta do mandante, mas em nome próprio (mandato sem representação – art. 1180.º, do CC) – MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, III vol., 6ª edição, p. 456.
[22] Os atos praticados por um representante sem poderes ou «falsus procurator» (com falta total de poderes representativos ou com excedência dos poderes que lhe foram atribuídos) são ineficazes em relação à pessoa em nome da qual se celebrou o negócio, salvo se tiver lugar a ratificação (art. 268.º, n.º 1) – MOTA PINTO, Teoria Geral de Direito Civil, 4.ª edição, p. 549,
[23] Verificámos que negócio jurídico celebrado pelo representante sem poderes "é ineficaz" de modo absoluto, e, por isso, também para este. Mas isso não significa que a atuação do representante, enquanto e porque falsus procurator, não lhe traga consequências, maxime, obrigação de indemnizar. Em primeiro lugar, afigura-se-nos possível que o procurador aparente responda perante o terceiro contraente pelos danos que este sofreu por ter confiado na normal eficácia do negócio, responsabilidade prevista neste artigo, coisa que se revelou não suceder. Tal situação não será, sequer, inovadora pois encontra, um lugar paralelo no regime da venda de bens alheios, no seu artº 898º, o qual reza: "Se um dos contraentes houver procedido de boa fé e o outro dolosamente, o primeiro tem direito a ser indemnizado, nos termos gerais, de todos os prejuízos que não teria sofrido se o contrato fosse válido desde o começo, ou não houvesse sido celebrado, conforma venha ou não a ser sanada a nulidade". Parece-nos, portanto, que também na situação de representação aparente o falsus procurator poderá indemnizar a contraparte de boa fé, mesmo que sobrevenha a ratificação, pondo fim à ineficácia – RUI PINTO, Falta e Abuso de Poderes na Representação Voluntária, AAFDL, 1994, pp. 94/97.
[24] A figura do mandato distingue-se da procuração, porquanto no mandato há um contrato, o que pressupõe a existência de, pelo menos, duas manifestações de vontade “contrapostas, mas perfeitamente harmonizáveis entre si, que visam estabelecer uma regulamentação unitária de interesses” – ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, 6ª edição, I, p. 219.
[25] O mandato pode ser exercido sem representação – art. 1180º do Código Civil – ou com representação, neste, “o mandatário realiza o negócio em nome do mandante e com os necessários poderes de representação” – PESSOA JORGE, Mandato Sem Representação, p. 20.
[26] Mandato sem representação “é aquele pelo qual uma pessoa – mandante – confia a outra – mandatário – a realização em nome desta, mas no interesse e por conta daquela, de um ato jurídico relativo a interesses pertencentes à primeira, assumindo a segunda a obrigação de praticar esse ato” – PESSOA JORGE, O Mandato Sem Representação, p. 411.
[27] No mandato sem representação há interposição, num contrato a celebrar, de uma pessoa que atua em nome próprio e não do mandante, embora aja por conta e no interesse deste. Como resulta do art. 1180º do Código Civil, os direitos e obrigações decorrentes do negócio produzem-se na esfera jurídica do mandatário, que fica com a obrigação de os transferir para a pessoa por conta de quem age, ou seja, o mandante. No mandato sem representação o mandatário age por conta do mandante, mas em nome próprio, não se podendo falar em formalidade de mandato ou em mandato verbal ferido de nulidade, já que aqui vigora o princípio da liberdade formal – Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 22-02-2002, BMJ, 494, p. 320.
[28] ABRANTES GERALDES – PAULO PIMENTA – PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, volume 1º, 2ª ed., p. 704.
[29] LEBRE DE FREITAS – ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 4ª edição, p. 634.
[30] Como o conceito de custas stricto sensu é polissémico, porque é suscetível de envolver, nos termos do nº 1 do artigo 529º, além da taxa de justiça, que, em regra, não é objeto de condenação – os encargos e as custas de parte, importa que o juiz, ou o coletivo de juízes, nos segmentos condenatórios das partes no pagamento de custas, expressem as vertentes a que a condenação se reporta – SALVADOR DA COSTA, As Custas Processuais, Análise e Comentário, 7ª ed., p. 8.
[31] A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito – art. 527º, nº 1, do CPCivil.
[32] A assinatura eletrónica substitui e dispensa para todos os efeitos a assinatura autógrafa em suporte de papel dos atos processuais – art. 19º, nº 2, da Portaria n.º 280/2013, de 26/08, com as alterações introduzidas pela Portaria n.º 267/2018, de 20/09.
[33] Acórdão assinado digitalmente.