Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | PAULO RAMOS DE FARIA | ||
Descritores: | CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARTE COMUM USO EXCLUSIVO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 06/17/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1. Para que o arrendatário possa usar as partes comuns do edifício, não é necessário que esta faculdade conste do clausulado do contrato de arrendamento nem, muito menos, que conste de tal clausulado que os espaços (partes) comuns também são dados de arrendamento. 2. Os condóminos podem, por regra, por meio do regulamento do condomínio, acordar que o uso de uma área de uma “parte comum” caberá exclusivamente a um condómino, desde que o uso dessa área não se encontre já disciplinado pela lei nem pelo título constitutivo da propriedade horizontal. 3. O condómino não pode arrendar uma parte comum do prédio (parte especificada de uma coisa/parte de que é comproprietário), ainda que dela tenha o uso exclusivo; apenas pode arrendar o que é seu (a sua fração ou uma sua parte), sendo a faculdade do arrendatário de usar essa parte comum (nos mesmos termos permitidos ao condómino senhorio) uma mera decorrência do direito pessoal de gozo adquirido sobre a fração autónoma (ou parte dela). | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa A. Relatório A.A. Identificação das partes e indicação do objeto do litígio Dom Turismo – Actividades Turísticas e Hoteleiras, S.A., e Saudades de Portugal – Actividades Turísticas e Hoteleiras, L.da, instauraram a presente ação declarativa, com processo comum, contra AAA, pedindo ao tribunal para: “1. Condenar o réu a restituir, imediatamente, às autoras todo o espaço contiguo aos lugares de estacionamento n.ºs 5 e 6 (…). 2. Condenar o réu a reconstruir e instalar, no mesmo local, a câmara frigorífica, o armazém e a garrafeira, com as mesmas caraterísticas estruturais e técnicas das que o mesmo desmontou, destruiu e/ou demoliu. 3. Em alternativa ao pedido formulado no número anterior, a pagar, no mesmo prazo, às autoras o valor das mesmas, no montante de € 24.500,00 (…). 4. Condenar o réu a reconhecer o direito das autoras a usufruir do espaço aonde estão instalados os aparelhos de ar condicionado e de sistema de frio, bem como as respetivas tubagens, e a servir-se dos mesmos (…). 5. Condenar o réu a pagar à 1.ª autora a quantia mensal de € 500,00 (…) correspondente ao valor mensal da renda que a 2.ª autora lhe devia ter pago e que, desde outubro de 2019, deixou de fazer, em virtude de não poder, explorar o restaurante “Sítio dos MMM” motivado, exclusivamente, pelos mencionados comportamentos do réu, das quais se venceram 11 no montante global de € 7.380,00 (…) até à efetiva restituição dos referidos espaços (…). 6. Condenar o réu a pagar às autoras, a título de danos causados ao bom nome e à imagem comercial das mesmas, (…) a quantia de € 10.000,00 (…), a cada uma delas. 7. Condenar o réu a pagar à 2.ª autora a quantia de € 165.000,00 (…) a título de lucros cessantes, (…) bem como do que se vencerem até concretização da requerida restituição. 8. Condenar o réu a pagar à 2.ª autora a título de danos materiais a quantia de € 4.067,50 (…). 9. Quantias que devem, todas elas, ser acrescidas dos juros de mora (…). 10. Condenar o réu a suportar, cumulativamente, a sanção pecuniária compulsória prevista no artigo 829.º n.º 4 do Código Civil, após a prolação da douta sentença e até integral cumprimento da mesma. 11. Condenar o réu a pagar à 2.ª autora a título de prejuízos a quantia de € 2.942,50 (…). Para tanto, alegaram que a primeira autora cedeu à segunda a exploração de um restaurante. A primeira havia tomado de arrendamento a fração onde o restaurante é explorado. Este arrendamento compreendeu um espaço situado na cave do edifício, adjacente a dois lugares de estacionamento, no qual se encontravam construídos um armazém frigorífico e uma garrafeira. O réu, condómino no mesmo edifício, destruiu estas estruturas e o seu conteúdo, para além de ter danificado o sistema de ar-condicionado do restaurante. Citada a contraparte, ofereceu esta a sua contestação, alegando que a escritura de constituição da propriedade horizontal não contempla o uso exclusivo do espaço contíguo aos dois estacionamentos (pelo condómino titular da fração onde funciona o restaurante) e que, em função das áreas e da localização destes lugares, os referidos equipamentos inviabilizavam o aparcamento de viaturas num deles. Referiu ainda que, na sequência da demolição, à qual anuiu o proprietário à data da fração arrendada, os bens encontrados foram a este entregues. Após realização da audiência final, o tribunal a quo decidiu: “julgo a ação improcedente por não provada e, em consequência, absolvo o réu AAA dos pedidos contra ele formulados pelas autoras “Dom Turismo – Actividades Turísticas e Hoteleiras, S.A.” e “Saudades de Portugal – Actividades Turísticas e Hoteleiras, L.da”. Inconformadas, as autoras apelaram desta decisão, concluindo (após aperfeiçoamento), no essencial: “X – A sentença é nula, por existir oposição entre a decisão proferida e os fundamentos de facto e de direito constantes da mesma, dado que o tribunal a quo dá como provada a responsabilidade civil extracontratual do réu pelos atos praticados, mas depois absolve o mesmo do pedido indemnizatório contra ele deduzido; assim como em relação ao pedido de reposição da situação pré-existente (…). Y – Ocorreu uma incorreta apreciação da prova e dos factos, (…) devendo (…) concluir-se e dar como provados que: . e) BBB cedeu à autora Dom Turismo (…) o uso do espaço contíguo aos estacionamentos situado na cave do prédio da rua XXX 12 (alínea a) dos factos não provados); . f) A Dom Turismo (…) explorou no rés do chão esquerdo do prédio da rua Dr. XXX 12, um estabelecimento de restauração e bebidas denominado “Restaurante Sítio dos MMM”, entre 1 de dezembro de 2008 e 1 de dezembro de 2014, usando os equipamentos e espaço na cave; e desde essa data, a autora Saudades de Portugal (…) passou a fazê-lo (alínea c) dos factos não provados); . g) O réu danificou os cabos do ar condicionado que serve o restaurante, e os cabos que ligam os motores de frio ao frigorífico que se encontra no interior do restaurante (alínea d) dos factos não provados); . h) A substituição da câmara frigorífica que existia na cave tem um custo que não foi possível apurar, mas não inferior a € 17.000; e o armazém com garrafeira, incluindo as garrafas, que aí se encontravam, cujo valor não foi possível apurar, mas não inferior a 20.000 €, dado incluir garrafas de vinho de marcas conceituadas, garrafas de champagne, de whisky, aguardente e outras bebidas espirituosas; . i) Na camara frigorífica referida no ponto n.º 4 dos factos assentes/provados, a autora Saudades de Portugal (…) tinha carne, peixe e outros alimentos, em montante que não foi possível apurar em concreto; . j) Em virtude dos factos praticados pelo réu em outubro de 2019, o restaurante não tinha condições para trabalhar e não mais reabriu (alínea j) dos factos não provados), muito embora as obras que tinha feito no ano anterior; . k) Em virtude da impossibilidade de abertura do restaurante, a autora Saudades de Portugal (…) deixou de pagar à autora Dom Turismo (…) a retribuição devida pela cedência de exploração (alínea k) dos factos não provados); . l) Em virtude dos factos referidos no ponto n.º 9 e nas alíneas d) e e) dos factos provados, a autora Saudades de Portugal (…) deixou de auferir, pela exploração do restaurante, um lucro mensal cujo valor não foi apurado (alínea l) dos factos não provados). Z – (…) [H]ouve uma incorreta aplicação do direito, assim como do enquadramento jurídico dos factos, isto porquanto estão demonstrados todos os pressupostos que acarretam a responsabilidade civil extracontratual do réu (…). (…) BB – (…) [A]s autoras têm direito a ser ressarcidas por todos os prejuízos que sofreram (…), em consequência do comportamento de destruição do réu; assim como a que lhes seja restituída a utilização de todo o espaço contiguo aos lugares de estacionamento n.ºs 5 e 6, assim como que o réu seja condenado a reconstruir e instalar, no mesmo local, a câmara frigorífica, o armazém e a garrafeira (…). CC – As autoras têm direito a ver reconhecido o seu direito a usufruir do espaço situado no terraço do prédio – parte comum correspondente à cobertura do restaurante, onde se encontra a claraboia – local onde sempre estiveram instalados os aparelhos de ar condicionado e de sistema de frio, bem como as respetivas tubagens, e a servir-se dos mesmos, necessários ao funcionamento do restaurante; assim como a ver fixada uma sanção pecuniária compulsória até cumprimento de tal obrigação”. O apelado contra-alegou, pugnando pela manutenção de decisão do tribunal a quo recorrida. A.B. Questões que ao tribunal cumpre solucionar Pelas razões adiante desenvolvidas, não se enfrentarão as nulidades arguidas. As questões de facto a decidir são as identificadas na alínea Y das conclusões, acima transcritas. As questões de direito a tratar – em torno da verificação dos pressupostos da tutela possessória pedida pelas autoras – serão mais desenvolvidamente enunciadas no início do capítulo dedicado à análise dos factos e à aplicação da lei. * B. Fundamentação B.A. Factos provados 1. Objeto do direito ao arrendamento 1 – Por escritura pública lavrada no dia 21 de abril de 1993, intitulada “Propriedade Horizontal”, FFF e GGG “em representação da sociedade comercial por quotas denominada FFF – Sociedade de Investimentos Imobiliários, Limitada”, declararam: “(…) Que a sociedade que representam é titular legítima do prédio urbano, de construção recente, situado na Rua Doutor XXX, freguesia de Alvalade, desta cidade de Lisboa, composto de cave, rés-da-chão e cinco andares, o último recuado (…). Que pela presente escritura e na referida qualidade, instituem no identificado prédio o regime de propriedade horizontal, tudo nos termos e conforme o mesmo documento complementar arquivado. 2 – O documento complementar referido no ponto 1 – factos provados – tem, além do mais que aqui se dá por transcrito, o seguinte teor: DOCUMENTO COMPLEMENTAR (…) CONSTITUIÇÃO DA PROPRIEDADE HORIZONTAL (…) FRACÇÕES AUTÓNOMAS FRACÇÃO “A” – Rés-do-chão, lado esquerdo, com portas para a via pública, destinada a qualquer ramo de actividade comercial ou industrial incluindo restaurante (…) FRACÇÃO “B” – Primeiro andar, destinado exclusivamente a habitação (…) FRACÇÃO “C” – Segundo andar (…) FRACÇÃO “D” – Terceiro andar (…) FRACÇÃO “E” – Quarto andar (…) FRACÇÃO “F” – Quinto andar, lado direito (…) FRACÇÃO “G” – Quinto andar, lado esquerdo (…) RESTANTE COMPOSIÇÃO DO PRÉDIO 1 – No rés-do-chão, lado direito, está localizada a porta que dá acesso ao monta-carros, que serve o estacionamento de veículos automóveis existente na cave. 2 – A cave destina-se a garagem para recolha de veículos automóveis em estacionamento coletivo, servidos pelo monta-carros, e com os lugares em regime de uso exclusivo. 3 – A cave, que é parte comum do edifício, tem mais três arrecadações, também em regime de uso exclusivo, e a casa das máquinas do monta-carros. 4 – O terraço cobertura da loja é do uso exclusivo da fracção “B”, sem prejuízo da sua utilização pelos restantes condóminos, em situações de perigo ou de emergência. (…) 6 – Os seis lugares de que a cave dispõe para estacionamento de viaturas em lugar certo, ficam sendo de uso exclusivo das seguintes fracções, pela forma que segue: FRACÇÃO “B” – Lugares n.os 5 e 6 (cinco e seis) FRACÇÃO “C” – Lugar n.º 4 (…) FRACÇÃO “D” – Lugar n.º 3 (…) FRACÇÃO “E” – Lugar n.º 1 (…) FRACÇÃO “F” – Lugar n.º 2 (…) 7 – As três arrecadações existentes na cave ficam sendo do uso exclusivo das seguintes fracções: FRACÇÃO “E” – Arrecadação com a letra “A” FRACÇÃO “C” – Arrecadação com a letra “B” FRACÇÃO “D” – Arrecadação com a letra “C” (…)”. 3 – No regulamento do condomínio do edifício referido no ponto 1 – factos provados –, exarou-se: “(…) 1.1. A cave, embora parte comum do edifício, é de acordo com o título constitutivo da propriedade horizontal e com referência à respetiva planta, usada nos termos seguintes: A fração “B”, correspondente ao 1º andar, tem direito ao uso exclusivo dos lugares nºs 5 e 6. 1.2. Os estacionamentos e arrecadações serão identificados pelos seus números e letras e também com a indicação dos andares a que correspondem. 1.3 O espaço de manobra junto aos lugares de estacionamento n.os 1, 2, 3 e 4 é utilizável apenas pelos titulares do uso desses estacionamentos, que não podem ultrapassar com as suas viaturas estacionadas as linhas de demarcação do respectivo lugar. 1.4. O uso exclusivo do espaço contíguo aos lugares nºs 5 e 6 fica, por este regulamento, a pertencer ao proprietário da fração “A”, correspondente ao rés-do-chão. 1.5. Todos os condóminos têm acesso a toda a área da cave, com excepção das arrecadações e dos estacionamentos 5 e 6 e espaço a eles contíguo, para poderem acionar sistemas de segurança de água, gás e eletricidade ou verificar ruturas de canalizações. Se, em caso de emergência, não for possível o acesso aos estacionamentos 5 e 6 e espaço a eles contíguo, por razões exclusivamente imputáveis aos condóminos das fracções “A” e “B”, todas as consequências daí resultantes serão suportadas solidariamente pelos proprietários desses fracções (…) 1.7. Os lugares de estacionamento só podem ser usados por quem usar as fracções correspondentes, não podendo o seu uso ser cedido separadamente ou facultado a outras pessoas, salvo tratando-se de familiares ou visitas dos utentes. (…) 2.1. Como estabelecido no título constitutivo da propriedade horizontal, o condómino da fração “B” tem direito ao uso exclusivo do terraço de cobertura do rés-do-chão, sem prejuízo da sua utilização pelos restantes condóminos, em situações de perigo ou de emergência. 2.2. Não podem ser feitas nesse terraço quaisquer alterações ou construções, não se opondo os outros condóminos às obras já efectuadas, de acordo com desenho rubricado pelos condóminos e que fica anexo a este regulamento, para efeitos de obtenção do respectivo licenciamento municipal. 3.5. Nenhum condómino se opõe à manutenção, pelo proprietário da fração “A”, correspondente ao rés-do-chão, (…) da câmara frigorífica construída no espaço contíguo aos estacionamentos n.os 5 e 6, de acordo com desenho rubricado e anexo, podendo o referido espaço ser utilizado como garrafeira. 4. As alterações referidas neste regulamento e outras que possam vir a ser autorizadas são feitas sob inteira e exclusiva responsabilidade dos respetivos condóminos, desde já expressamente se responsabilizando cada um deles pela reparação de todos os danos (…) resultantes das alterações por si efetuadas (…). (…) 8.2 Cada condómino fica com uma chave de acesso a todas as partes comuns, designadamente às casas das máquinas dos elevadores e do monta-carros, ficando também com cópia das instruções de segurança dos elevadores. Mas só os respetivos condóminos ficam com as chaves de acesso às arrecadações, estacionamentos 5 e 6 e espaço contíguo referido em 1.5. e aos espaços fechados referidos em 3.1 e 3.2. (…) 11. Este regulamento foi aprovado por unanimidade em assembleia de todos os condóminos e só pode ser alterado por deliberação aprovada por maioria de três quartos do valor total do prédio. 12. Ficam vinculados às disposições deste regulamento todos os condóminos atuais e futuros, que devem, no caso de transmissão ou arrendamento da sua fração, fazer assumir pelos adquirentes ou arrendatários as obrigações resultantes deste regulamento (…). (…) Os condóminos: Da fracção “A”: BBB. [assinatura autógrafa] Da fracção “B”: (…) assumindo desde já o promitente comprador desta fração, BBB, a posição de condómino a ela relativa. [assinatura autógrafa] (…)”. 4 – BBB foi proprietário das frações autónomas [A e B] referidas no escrito parcialmente reproduzido no ponto 1 – factos provados. 5 – BBB instalou um armazém com garrafeira e uma câmara frigorífica no espaço contíguo aos estacionamentos n.os 5 e 6 aludidos no escrito parcialmente reproduzido no ponto 2 – factos provados – e colocou dois aparelhos exteriores de ar condicionado, uma máquina de frio e uma estrutura em tijolo no terraço referido no mesmo escrito. 6 – Em escrito encimado pela expressão “Contrato de Arrendamento para Fins Não Habitacionais”, BBB e a autora Dom Turismo – Actividades Turísticas e Hoteleiras, S.A., aí identificados, respetivamente, como “Senhorio ou Primeiro Outorgante” e “Arrendatário ou Segunda Outorgante”, declararam: “(…) É celebrado o presente contrato de arrendamento para fins não habitacionais com prazo certo que se regerá pelas cláusulas seguintes Cláusula Primeira O Primeiro Outorgante é dono e legítimo proprietário e possuidor da fracção autónoma designada pela letra “A” que corresponde ao rés-do-chão esquerdo para comércio do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua Dr. XXX número 12 e 12 C (…) Cláusula Segunda 1. O presente contrato é celebrado com prazo certo. 2. O arrendamento é celebrado pelo prazo de 10 anos, com início em 1 de Janeiro de 2008 e fim em 31 de Dezembro de 2018. 3. O presente contrato considera-se automática e sucessivamente renovado por períodos de 10 anos (…) Cláusula Terceira 1. A renda mensal é de € 200 (…). (…) Cláusula Quarta 1. A fracção autónoma objeto do presente contrato destina-se ao exercício da actividade da ARRENDATÁRIA, não lhe podendo ser dado outro fim sem prévio acordo do SENHORIO (…)”. 7 – Em escrito encimado pelos dizeres “Cessão de Exploração de Estabelecimento Comercial”, a autora Dom Turismo e a autora Saudades de Portugal – Actividades Turísticas e Hoteleiras, L.da, aí identificadas, respetivamente, como “Cedente” e “Cessionária”, declararam: “(…) Entre os outorgantes é livremente e de boa fé acordado o seguinte contrato de cessão de exploração de “Estabelecimento comercial” Cláusula primeira (Estabelecimento) Um – A CEDENTE e dona e legítima possuidora de um estabelecimento comercial de restaurante e bebidas denominado “Restaurante MMM”, instalado na fracção autónoma designada pela letra “A”, que corresponde ao rés-do-chão esquerdo para comercio do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua XXX. n.º 12 e 12 C. (…) Dois – A CEDENTE ocupa e utiliza a fracção autónoma aonde está instalado o referido estabelecimento em virtude de ser sua arrendatária. Cláusula segunda (Cedência da exploração) Um – Pelo presente contrato a CEDENTE, a partir do dia 01 de Dezembro de 2014, cede a CESSIONÁRIA, que a aceita, a exploração do estabelecimento comercial identificado na cláusula anterior. Dois – Tal cedência inclui o direito à utilização, em exclusividade, da referida fracção autónoma incluindo as construções e infra estruturas existentes na mesma, ou afectas à mesma, nomeadamente, as que se encontram na cave. no espaço contíguo aos estacionamentos 5 e 6 e no terraço do 1.º andar. Cláusula Terceira (Prazo) Um – A presente cessão de exploração é feita pelo prazo de cinco anos, renovando-se por iguais períodos, desde que nenhuma dos outorgantes a não denuncie. Cláusula Quarta (Renda) Um – A CESSIONÁRIA pagara à CEDENTE: a renda anual de (6.000.00 (…). a que acrescera IVA a taxa legal. Dois – O pagamento da renda será feito em duodécimos de € 500,00 (…) cada, a que acrescerá IVA à taxa em vigor. (…)”. 2. Uso das partes comuns e conduta do réu 8 – As autoras utilizaram a câmara frigorífica e armazém com garrafeira e espaço na cave referidos no ponto 5 – factos provados. 9 – O réu adquiriu a fração autónoma designada pela letra “B” e identificada no ponto 1 – factos provados. 10 – O réu procedeu à demolição da câmara frigorífica e do armazém com garrafeira referidas no ponto 5 – factos provados – e retirou-os do local onde se encontravam. 11 – O réu arrombou a porta de emergência que liga o restaurante à cave e ao terraço e retirou a fechadura. 12 – A instalação e a existência, no terraço referido no ponto 2 – factos provados –, de duas máquinas exteriores de ar-condicionado, de buracos na laje e de uma claraboia leva a que o reconvinte supervisione as suas filhas quando elas ali estão. B.B. Arguição de nulidades (vícios processuais) Conforme se refere no Ac. do TRP de 25-03-2021 (59/21.7T8VCD.P1), “[p]or força da regra da substituição ao tribunal recorrido (artigo 665.º do Cód. Proc. Civil), quando a nulidade da sentença recorrida é apenas um dos vários fundamentos de impugnação dessa decisão, a arguição da nulidade é um ato inútil e não necessita sequer de ser apreciada pela Relação se a sentença puder ser confirmada ou revogada por outras razões”. Devendo o tribunal da Relação julgar o restante objeto da apelação (art. 665.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil), abrangendo este julgamento todo o objeto da causa alegadamente afetado pela nulidade da sentença reclamada, o conhecimento desta é um ato inútil. Procurando contrariar esta conclusão, não vale aqui invocar o disposto no n.º 1 do art. 665.º do Cód. Proc. Civil: “Ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação”. Com efeito, não se deve extrair deste enunciado uma norma inversa à que no mesmo se estabelece, não se podendo concluir que, “ainda que conheça do objeto da apelação, por estar em condições de o fazer, o tribunal de recurso deve ainda declarar nula a decisão que põe termo ao processo, quando a sua arguição seja fundada”. Diferentemente, deve entender-se que a decisão sobre a utilidade do conhecimento da arguição de nulidade da sentença se situa a montante do campo de aplicação da norma enunciada no n.º 1 do art. 665.º do Cód. Proc. Civil, nada tendo com esta a ver. Não constitui um ónus do intérprete julgador identificar em que outros (eventuais) casos a atividade processual prevista na norma tem utilidade, mas tão-só verificar se a tem no caso concreto. Não cabe, pois, aqui descobrir em que casos é útil declarar “nula a decisão que põe termo ao processo”, apesar de poder (e dever) ser imediatamente conhecido o objeto da apelação. De todo o modo, sempre se dirá que, logicamente, terão de ser casos em que possa ser afirmada a utilidade das duas pronúncias (em simultâneo), isto é, em que possam conviver com utilidade – o que significa que terão de ser casos em que o conhecimento “do objeto da apelação” não é possível relativamente a todo o objeto da decisão impugnada (tertium non datur). Em suma, a norma enunciada no n.º 1 do art. 665.º do Cód. Proc. Civil não tem por escopo afirmar a necessidade nem a utilidade do conhecimento da (arguida) nulidade da decisão recorrida, mas sim afirmar a utilidade e a necessidade do conhecimento do mérito desta (quando seja possível). Trata-se de uma norma que, prestando tributo ao princípio da economia processual e à instrumentalidade da lei adjetiva, visa combater uma eventual indesejável (embora natural) tendência para a adoção de uma solução (legal) que resulte na rápida e simples extinção da instância de recurso, mas com sacrifício da economia e da celeridade processuais, quando estas são vistas à luz da justa composição de todo o litígio – isto é, da instância principal. Compreendida a ratio do preceito deste modo, bem se percebe que seria incoerente a sua invocação (isto é, de uma norma que tutela a economia e a celeridade processuais) na defesa de uma solução que estas ofende – isto é, na defesa do inútil (despropositado) conhecimento da nulidade da decisão impugnada. Em face do exposto, não se tomará conhecimento da alegada nulidade da decisão recorrida, por constituir uma pronúncia inútil (art. 130.º do Cód. Proc. Civil). B.C. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto Consta dos fundamentos de facto da sentença impugnada, acima transcrita, a seguinte factualidade dada por provada (por decisão não impugnada): 5 – BBB instalou um armazém com garrafeira e uma câmara frigorífica no espaço contíguo aos estacionamentos n.os 5 e 6 aludidos no escrito parcialmente reproduzido no ponto 2 – factos provados – e colocou dois aparelhos exteriores de ar condicionado, uma máquina de frio e uma estrutura em tijolo no terraço referido no mesmo escrito. Ora, este enunciado da decisão de facto é parcialmente contrariado pela prova produzida. Com efeito, e para além do depoimento contrário das testemunhas sobre a dimensão dos equipamentos instalados por BBB, foi junta aos autos prova documental que revela a sua incorreção – registos fotográficos e plantas da cave do imóvel onde se encontra a fração alegadamente arrendada. Esta factualidade é da maior relevância, pois, para além identificar os equipamentos destruídos pelo réu, permite interpretar o teor dos testemunhos prestados – isto é, compreender o seu sentido e o alcance. Considerando a relevância contextualizadora desta matéria, e antes de enfrentarmos a impugnação da decisão de facto, começaremos por, oficiosamente, rever o seu julgamento, quer ao abrigo da norma enunciada no n.º 1 do art. 662.º do Cód. Proc. Civil, quer por força do disposto na al. c) do n.º 2 do art. 662.º do Cód. Proc. Civil, alterar a decisão de facto – sobre a admissibilidade da alteração oficiosa, cfr. o Ac. do STJ de 17-10-2019 (3901/15.8T8AVR.P1.S1), bem como António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2022, pp. 357 e 358. 1. Alteração oficiosa da decisão respeitante à matéria de facto Para melhor se compreender o julgamento de facto, é útil reproduzir aqui, nos seus elementos essenciais, a planta correspondente às “telas finais” do edifício onde se situam as frações (que instruem o processo camarário de edificação), à qual se entende que se refere o título constitutivo da propriedade horizontal. Nela se encontram assinalados os lugares de estacionamento n.os 5 e 6. Sobre esta planta assinalaremos (com listas vermelhas paralelas horizontais) o “espaço contíguo” e a área sobre a qual BBB instalou um armazém com garrafeira e uma câmara frigorífica.
Conforme se pode observar, o “espaço contíguo” aos lugares de estacionamento n.os 5 e 6 é uma pequena área quadrangular encravada, com não mais de um metro de lado – ou seja, sensivelmente, com a área de 1 m2 –, assinalada na planta da esquerda, junto à caixa de visita de águas residuais – estando esta caixa assinalada com a letra C dentro de um círculo . Compreende-se bem que tal espaço tenha sido completamente desprezado no título constitutivo da propriedade horizontal, não sendo o seu uso regulado. Também se compreende que não tenha sido aproveitado, nas plantas e na edificação, para a construção de espaços de arrumos. Ora, a área cuja detenção as autoras pretendem recuperar não corresponde a este espaço com a área de 1 m2. Corresponde, sim, aos lugares de estacionamento n.os 5 e 6. Esta ocupação impede, pois, o titular do uso exclusivo destes lugares (o réu, titular da fração B) de neles parquear a sua viatura, obrigando-o a estaciona-la no espaço de circulação entre tais lugares e o monta-carros. A caixa de visita de águas residuais situada no lugar de estacionamento n.º 6 permite-nos perceber – nas fotografias juntas pelas partes – a posição relativa dos equipamentos contruídos por BBB, já que, aparentemente, foi aproveitada a proximidade desta caixa para se colocar uma grelha em pedra para drenagem de águas:
Ainda é perfeitamente visível a degradação das paredes da cave provocada pela ocupação do seu espaço com os equipamentos contruídos por BBB – sendo por nós assinalado (a vermelho pálido) o “espaço contíguo”, ao fundo ao centro, e os limites dos dois lugares de estacionamento (a amarelo), conforme consta das telas finais: Legenda: Imagem da parte da cave onde se situam os lugares de estacionamento n.os 5 e 6. Foram por nós apostas as linhas amarelas e preenchido o “espaço contíguo” (para além da numeração dos lugares)), em conformidade com as telas finais da construção do prédio. Toda esta realidade resulta provada do teor dos registos e das plantas juntos, sendo estes documentos totalmente concordantes com o teor dos testemunhos prestados na audiência final. Refira-se, por último, que as regras sobre o uso da cave estabelecidas no título constitutivo da propriedade horizontal foram levadas ao Registo Predial, pela apresentação n.º 3, de 23 de abril de 1993, nos seguintes termos: “DIREITO DOS COMPROPRIETÁRIOS: A fracção “B” tem direito ao uso exclusivo do terraço de cobertura da loja e a 2 lugares na cave (n.os 5 e 6) para estacionamento de automóveis; cada uma das “C”, “D” e “E” tem o direito ao uso exclusivo de uma arrecadação na cave (letras “B”, “C” e “A”) e a um lugar de estacionamento (n.os 4, 3 e 1, respetivamente) e a “F” tem direito ao uso de um lugar de estacionamento (n.º 2) “. Em face do exposto, e já tendo sido ouvidas as partes sobre a alteração oficiosa deste facto, impõe-se alterar e desdobrar o ponto 5 – factos provados –, passando este a ter o seguinte teor: 5 – BBB instalou um armazém com garrafeira e uma câmara frigorífica nos lugares de estacionamentos n.os 5 e 6, aludidos no escrito parcialmente reproduzido no ponto 2 – factos provados –, bem como no espaço aos mesmos contíguo, e colocou dois aparelhos exteriores de ar condicionado, uma máquina de frio e uma estrutura em tijolo no terraço referido no mesmo escrito. 13 – Na cave do prédio referido no ponto 1 – factos provados –, existe um espaço contíguo aos lugares de estacionamento n.os 5 e 6, não integrante dos espaços expressamente nomeados no título constitutivo da propriedade horizontal, designadamente, dos lugares de estacionamento e dos espaços de circulação, com cerca de 1 m2. Ainda no âmbito da intervenção oficiosa deste tribunal, de modo a melhor se compreender a relação material controvertida, justifica-se operar uma maior concretização do facto descrito no ponto 4 – factos provados –, esclarecendo-se que a aquisição da fração B esteve inscrita em nome de BBB entre “1995/02/03” e “2016/02/18”, e a aquisição da fração A entre “1993/12/03” e “2017/09/02”. 2. Alínea a) dos factos não provados O tribunal a quo deu por não provado o seguinte facto: “a) BBB cedeu à autora Dom Turismo o uso do espaço contíguo aos estacionamentos referidos no ponto n.º 1 [acima ponto n.º 2]”. Entendem as apelantes que esta alínea deve, simplesmente, transitar para o leque dos factos provados. Tal pretensão é insustentável, dado encerrar este enunciado um juízo puramente conclusivo (e de direito). O tribunal pode dar por provado o teor das declarações dos sujeitos (facto externo) e a sua intenção ou vontade (facto interno). São estas realidades de facto. Já não pode dar por provado, como se fosse um facto, o efeito jurídico destas declarações – isto é, a atribuição do direito ao uso do espaço ou “cedência”. O que as partes no contrato de arrendamento efetivamente declaram já consta dos factos provados, encontrando-se descrito no ponto 6 – fundamentação de facto. Quanto às suas vontades, resulta do depoimento de BBB, da natureza dos equipamentos em causa e do facto de estes, efetivamente, terem sido depois, aparentemente, utilizados pela dita arrendatária Dom Turismo, gerida de facto pelo senhorio, que os contraentes entendiam que os termos do contrato abrangiam os equipamentos referido no ponto 5 – factos provados. Devemos, no entanto ter presente que todos os dados de facto sugerem fortemente que a vontade de BBB era a vontade das autoras, servindo estas como mero instrumento para dificultar a possibilidade de os credores daquele venderem a fração A para a satisfação dos seus créditos. Desde o ano 2001, e até à venda em processo executivo, esta fração foi objeto de sete penhoras, uma hipoteca judicial e quatro registos provisórios de aquisição (ulteriormente cancelados) por sociedades controladas por BBB. Em face do exposto, impõe-se a alteração do julgamento sobre o teor da al. a) dos factos não provados, sendo esta alínea eliminada e passando a constar do leque dos factos provados o seguinte ponto: 14 – Ao emitirem as declarações constantes do documento referido no ponto 6 – factos provados –, os contraentes entendiam que os termos do contrato abrangiam os equipamentos referido no ponto 5 – factos provados. 3. Alíneas b) e c) dos factos não provados O tribunal a quo deu por não provados os seguintes factos: “b) A Dom Turismo instalou, na fração autónoma referida no ponto n.º 5 [acima ponto n.º 6] um estabelecimento de restauração e bebidas denominado “Restaurante Sítio dos MMM”, que passou a explorar. c) Entre 1 de dezembro de 2008 e 1 de dezembro de 2014, a autora Dom Turismo usou os equipamentos e espaço na cave referidos no ponto 4 [acima ponto n.º 5] e, desde essa data, a autora Saudades de Portugal passou a fazê-lo”. O tribunal a quo motivou esta a sua decisão nestes termos: “Não foi produzida qualquer prova que evidenciasse que o [restaurante] (…) foi instalado pela autora Dom Turismo (…), defluindo, ao invés, do depoimento (…) [de BBB] que tal estabelecimento foi ali por ele instalado em 1992. Mediante a valoração dos depoimentos (…) não foi possível apurar os momentos temporais em que (…) as autoras terão, sequencialmente, explorado o referido restaurante, sendo aqueles os únicos meios de prova que, vagamente, aludiram à exploração por sociedades comerciais, ainda que centrada na pessoa do respetivo gerente de facto. Acrescente-se que essa centralidade inviabiliza que, para aquele efeito, tomemos como ponto referencial as datas apostas nos escritos parcialmente reproduzidos nos pontos n.os 5 e 6 do elenco supra”. Entendem as apelantes, no essencial, que os factos transcritos devem ser dados por provados. Para tanto, apoiam-se nos testemunhos de BBB (gestor das autoras: gerente comercial), TTT.1 (antigo empregado da autora Saudades de Portugal, ou seja, de BBB), TTT.2, TTT.3, TTT.4 (amigo de BBB) e TTT.5. Sem qualquer fundamento. Antes de avançarmos, e porque este alerta serve para a apreciação de toda a impugnação da decisão de facto, importa sublinhar que o depoimento da testemunha BBB deve ser tomado com os maiores cuidados. Não só revela este interesse direto na causa – sendo o gerente de facto das autoras (gerente comercial) –, como, ao longo dos anos, a sua conduta se tem revelado menos proba e contrária ao direito. São da sua autoria as obras que ofendem o título constitutivo da propriedade horizontal, designadamente, edificando sobre partes comuns – aliás, o regulamento do condomínio sugere fortemente que, indiferente ao direito, terá realizado estas obras sem qualquer autorização prévia dos restantes condóminos nem da edilidade. As sucessivas sociedades que exploraram o restaurante tiveram-no por gerente ou gerente de facto, o que indicia fortemente que esta sucessão de sociedades se destinou a evitar o concurso de credores – note-se que as duas frações de que BBB era proprietário (A e B) foram vendidas em processo executivo. Bem reveladora desta atuação pouco séria é a circunstância de BBB, em 7 de junho de 2018, ter comparecido numa assembleia de condóminos, arrogando-se da qualidade de proprietário da fração A, quando esta fração não lhe pertencia (nem a uma das sociedades por si controladas de facto) – cfr. a inscrição de propriedade no Registo Predial a favor do Banco Espírito Santo, S.A., realizada pela apresentação n.º 2002, de 9 de fevereiro de 2017. A atuação das pessoas coletivas tem sempre lugar por meio de pessoas físicas, pelo que não basta a uma testemunha dizer que o restaurante era explorado por uma sociedade – dado que os seus sentidos (o seu testemunho) só percecionam pessoas físicas em atividade –; tem de explicar a razão da sua ciência, sendo certo que, no caso, o “patrão de facto” foi sempre o mesmo (BBB). Certo é que a exploração de um estabelecimento comercial deixa um poderoso rasto documental – por exemplo, faturas, notas de encomenda, declarações de IES (Informação Empresarial Simplificada) ou equivalentes. Ora, nenhum documento revelador de tal exploração foi junto, pelo que ficamos sem saber em que períodos BBB explorou o restaurante em nome próprio e em que períodos o fez (aparentemente) por conta das autoras, ao menos formalmente – dizemos formalmente, pois, efetivamente, parece ter agido sempre no interesse próprio. A propósito da cessação do funcionamento do restaurante, verifica-se que as autoras juntaram aos autos um documento que contradiz a sua versão dos factos – uma participação criminal à Polícia Judiciária. Nesta comunicação, a autora Saudades de Portugal, relativamente ao restaurante, afirma que “nesse local funcionou e funcionará, após a paragem para obras de melhoramento, o estabelecimento comercial de restauração designado ‘Restaurante MMM”, explorado pela denunciante” – sublinhado nosso. Este enunciado sugere fortemente que o estabelecimento, à data dos factos imputados ao réu e da participação, estava “parado”, por força de uma “paragem para obras de melhoramento” – de melhoramento e não de reparação, note-se –, sendo sintomático o tempo verbal empregue – “nesse local funcionou (…) o estabelecimento”. À face deste documento, a alegação contrária das autoras roça a litigância de má-fé. A este respeito, e conforme é sinalizado pelo tribunal a quo, a testemunha “BBB referiu (…) que o restaurante deixara de laborar em 2018, não tendo associado aqueles factos [praticados pelo réu] à circunstância de não ter reaberto, mas antes a um negócio que não se concretizou”. Também as testemunhas TTT.4, TTT.5 e TTT.6 associaram o encerramento do restaurante a outras causas – como a crise pandémica ou a degradação do rés-do-chão –, e não à atuação do réu. No mesmo sentido foram os depoimentos de TTT.7, TTT.8, TTT.9 e TTT.10. O tribunal a quo não delimitou temporalmente a atuação das autoras (uso dos equipamentos instalados na cave), entendendo não serem precisos os depoimentos, quanto a este ponto, e não merecer credibilidade a datação dos contratos de arrendamento e de cedência de exploração. O contrato de arrendamento dispõe que tem o seu início em 1 de janeiro de 2008, tendo aposto um carimbo com a data de 19 de agosto de 2010 (supostamente referente à sua participação fiscal). O contrato de cessão de exploração dispõe que tem o seu início em 1 de dezembro de 2014, sendo datado do mesmo dia. Afigura-se-nos que podemos ir ou pouco mais longe, dado existir um elemento objetivo que sustenta aquela datação. Referimo-nos aos registos de aquisição (provisórios e ulteriormente cancelados) da fração A por parte da autora Dom Turismo, datados de 31 de março de 2005, 22 de novembro de 2005 e de 21 de setembro de 2009. Podemos, pois, concluir, com a necessária segurança, que a partir de 19 de agosto de 2010, e até ao ano de 2018, a câmara frigorífica e o armazém com garrafeira na cave foram utilizados no âmbito da exploração do restaurante pelas autoras. Em face do exposto, impõe-se a alteração do julgamento sobre o ponto 8 – factos provados –, bem como a alteração do julgamento sobre os factos descritos nas als. b) e c) dos factos não provados, sendo estas alíneas eliminadas e passando a constar do leque dos factos provados o seguinte ponto: 8 – Desde data não ulterior a 19 de agosto de 2010, e até ao ano de 2018, BBB geriu o restaurante “Sítio dos MMM”, sob a exploração, primeiro, da Dom Turismo e, depois, da Saudades de Portugal, tendo neste contexto sido utilizada a câmara frigorífica e o armazém com garrafeira na cave, referidos no ponto 4 – factos provados. 4. Alínea d) dos factos não provados O tribunal a quo deu por não provado o seguinte facto: “d) O réu cortou os cabos do ar condicionado que serve o restaurante e os cabos que ligam os motores de frio ao frigorífico que se encontra no interior do restaurante”. Entendem as apelantes que deve constar do leque dos factos provados o seguinte enunciado: “O réu danificou os cabos do ar condicionado que serve o restaurante, e os cabos que ligam os motores de frio ao frigorífico que se encontra no interior do restaurante”. No entanto, como judiciosamente é sublinhado na sentença apelada, antes do apuramento da autoria (imputada ao réu), estavam as autoras oneradas com a prova do facto (o corte dos cabos elétricos). Ora nenhuma testemunha afirmou (concludentemente) que os cabos dos aparelhos de ar-condicionado estejam (ou tenham estado) cortados. Improcede neste ponto a impugnação da decisão sobre a questão de facto. 5. Alíneas f) a i) dos factos não provados O tribunal a quo deu por não provados os seguintes factos: “f) A câmara frigorífica referida no ponto n.º 4 [acima ponto n.º 5] tem o valor de € 20.000 e o armazém com garrafeira ali mencionado tem o valor de € 4.500; g) Na garrafeira referida no ponto n.º 4 [acima ponto n.º 5], a autora Saudades de Portugal tinha 60 garrafas de vinho de marcas variadas no valor estimado de € 600,00, 25 garrafas de champagne no valor estimado de €1.000,00, 20 garrafas de whisky, no valor estimado de € 800,00, 5 garrafas de licor no valor estimado de € 287,50, 5 garrafas de aguardente velha/Brandy no valor estimado de €180,00; h) O réu fez seus os bens referidos na alínea g); i) Na camara frigorífica referida no ponto n.º 4 [acima ponto n.º 5], a autora Saudades de Portugal tinha carne, peixe, marisco no valor global estimado de € 1.200,00”. Entendem as apelantes que devem constar do leque dos factos provados os seguintes enunciados: “A substituição da câmara frigorífica que existia na cave tem o custo não inferior a € 17.000; e o armazém com garrafeira, incluindo as garrafas, que aí se encontravam, tinham um valor não inferior a 20.000 €, dado incluir garrafas de vinho de marcas conceituadas, garrafas de champagne, de whisky, aguardente e outras bebidas espirituosas” e “Na camara frigorífica referida no ponto n.º 4 dos factos assentes/provados, a autora Saudades de Portugal tinha carne, peixe e outros alimentos, em montante que não foi possível apurar em concreto”. Mais uma vez, as recorrentes apelam ao depoimento de testemunhas comprometidas com a sorte da lide, sem credibilidade – caso de BBB –, ou que nada viram. Não bastam palpites sobre o valor da câmara frigorífica, sem qualquer indicação das suas características, por parte de quem não é especialista na matéria, para que se possa dar por provado um valor. Não foi requerido nenhum parecer pericial sobre o valor de um equipamento com características (desconhecidas) semelhantes nem foram juntos aos autos orçamentos respeitantes ao fornecimento e instalação de um equipamento semelhante. Não foi junto aos autos nenhum inventário – por exemplo, descrevendo a quantidade e a qualidade das garrafas alegadamente existentes –, assim como não foram juntas faturas nem notas de encomenda pertinentes. Não foi feita nenhuma prova convincente de que, no momento da atuação do réu, na cave existissem quaisquer bens para consumo perecíveis. Aliás, muito estranho seria se assim fosse, dado que, como já vimos, o restaurante encontrava-se encerrado, pelo menos desde o ano 2018, alegadamente para “obras de melhoramento”, sem previsão de reabertura – e, ainda que existissem bens refrigerados, dificilmente estariam próprios para consumo. Apenas se poderá considerar demonstrada a existência de algumas garrafas de bebidas alcoólicas, mas já não que tenham estas sido destruídas ou subtraídas. Como bem se refere na sentença apelada, “o réu, nas declarações de parte que prestou, referiu que entregou as garrafas a BBB e, perante a indisponibilidade por este revelada para as receber, as entregou a uma empresa indicada pela atual proprietária da fração autónoma em que se localiza o restaurante” Improcede neste ponto a impugnação da decisão sobre a questão de facto. 6. Alínea j) dos factos não provados O tribunal a quo deu por não provado o seguinte facto: “j) Em virtude dos factos referidos no ponto n.º 9 [acima ponto n.º 10] e nas alíneas d) e e), o restaurante referido no escrito parcialmente reproduzido no ponto n.º 6 [acima ponto n.º 7] não reabriu em Outubro de 2019”. Entendem as apelantes que deve constar do leque dos factos provados o seguinte enunciado: “Em virtude dos factos praticados pelo réu em outubro de 2019, o restaurante não tinha condições para trabalhar e não mais reabriu, muito embora as obras que tinha feito no ano anterior”. Conforme resulta da análise da prova realizada nos pontos anteriores – que aqui se dá por reproduzida –, não resultou provado que tenha sido a atuação do réu a impedir o normal funcionamento do restaurante, quer porque este já se encontrava encerrado por outras causas, quer porque não é minimamente seguro que a exploração não pudesse ser feita com recurso a outros dispositivos de refrigeração dos alimentos – regularmente instalados no rés-do-chão. Improcede neste ponto a impugnação da decisão sobre a questão de facto. 7. Alíneas k) e l) dos factos não provados O tribunal a quo deu por não provados os seguintes factos: “k) Em virtude dos factos referidos no ponto n.º 9 [acima ponto n.º 10] e nas alíneas d) e e), a autora Saudades de Portugal deixou de pagar à autora Dom Turismo a retribuição aludida no escrito parcialmente reproduzido no ponto n.º 6 [acima ponto n.º 7]; l) Em virtude dos factos referidos no ponto n.º 9 [acima ponto n.º 10] e nas alíneas d) e e), a autora Saudades de Portugal deixou de auferir, pela exploração do restaurante referido no escrito parcialmente reproduzido no ponto n.º 6 [acima ponto n.º 7], um lucro líquido mensal de € 500”. Entendem as apelantes que devem constar do leque dos factos provados os seguintes enunciados: “Em virtude da impossibilidade de abertura do restaurante, a autora Saudades de Portugal deixou de pagar à autora Dom Turismo a retribuição devida pela cedência de exploração” e “Em virtude dos factos referidos no ponto n.º 9 [acima ponto n.º 10] e nas alíneas d) e e) dos factos provados, a autora Saudades de Portugal deixou de auferir, pela exploração do restaurante, um lucro mensal cujo valor não foi apurado”. Novamente, as recorrentes apelam ao depoimento de testemunhas comprometidas com a sorte do caso, sem credibilidade – caso de BBB –, ou que nada sabem, efetivamente. Já vimos que não resultou provado que tenha sido a atuação do réu a impedir o normal funcionamento do restaurante. Encontra-se, pois, prejudicado o julgamento da factualidade descrita nestas alíneas. De todo o modo, e tal como já foi sublinhado, a atividade das sociedades comerciais deixa um poderoso rasto documental – por exemplo, faturas, recibos, notas de encomenda, declarações de IES ou equivalentes. Ora nenhum documento revelador de tal atividade (e seus proveitos) foi junto. O mesmo é dizer que não apenas ficou por demonstrar o valor do prejuízo: a existência do próprio dano ficou por provar. Não é com palpites de testemunhas – muito menos comprometidas com a sorte do caso ou relacionamentos pessoais próximos com estas – que esta matéria pode ser demonstrada com segurança. Improcede neste ponto a impugnação da decisão sobre a questão de facto. 8. Conclusão sobre a impugnação da decisão de facto e de conhecimento oficioso Em resultado da reapreciação da prova produzida, altera-se e desdobra-se o ponto 5 – factos provados –, passando este a ter o seguinte teor: 5 – BBB instalou um armazém com garrafeira e uma câmara frigorífica nos lugares de estacionamentos n.os 5 e 6, aludidos no escrito parcialmente reproduzido no ponto 2 – factos provados –, bem como no espaço aos mesmos contíguo, e colocou dois aparelhos exteriores de ar condicionado, uma máquina de frio e uma estrutura em tijolo no terraço referido no mesmo escrito. 13 – Na cave do prédio referido no ponto 1 – factos provados –, existe um espaço contíguo aos lugares de estacionamento n.os 5 e 6, não integrante dos espaços expressamente nomeados no título constitutivo da propriedade horizontal, designadamente, dos lugares de estacionamento e dos espaços de circulação, com cerca de 1 m2. Altera-se o ponto 8 – factos provados – e as als. b) e c) dos factos não provados (que se eliminam) passando aquele ponto a ter o seguinte teor: 8 – Desde data não ulterior a 19 de agosto de 2010, e até ao ano de 2018, BBB geriu o restaurante “Sítio dos MMM”, sob a exploração, primeiro, da Dom Turismo e, depois, da Saudades de Portugal, tendo neste contexto sido utilizada a câmara frigorífica e o armazém com garrafeira na cave, referidos no ponto 4 – factos provados. Elimina-se a al. a) dos factos não provados, passando a constar do leque dos factos provados o seguinte ponto: 14 – Ao emitirem as declarações constantes do documento referido no ponto 6 – factos provados –, os contraentes entendiam que os termos do contrato abrangiam os equipamentos referido no ponto 5 – factos provados. Concretiza-se facto descrito no ponto 4 – factos provados – nos seguintes termos: 4 – BBB foi proprietário das frações autónomas A e B referidas no escrito parcialmente reproduzido no ponto 2 – factos provados –, tendo estado a aquisição da fração B inscrita em seu nome entre “1995/02/03” e “2016/02/18”, e a aquisição da fração A entre “1993/12/03” e “2017/09/02”. No mais, deve ser mantida a decisão de facto do tribunal a quo, improcedendo a sua impugnação. Esta decisão original é acima reproduzida, embora com mais extensa transcrição do teor de documentos já considerados assentes. B.D. Análise dos factos e aplicação da lei São as seguintes as questões de direito parcelares a abordar: 1. Gozo das partes comuns pelo locatário 2. Tutela do gozo das partes comuns ocupadas pelas autoras 2.1. Gozo do “espaço contíguo aos lugares de estacionamento n.os 5 e 6” 2.2. Gozo dos lugares de estacionamento n.os 5 e 6” 2.3. Gozo dos concretos espaços comuns ocupados: conclusão 3. Indemnização fundada em responsabilidade civil 4. Responsabilidade pelas custas 1. Gozo das partes comuns pelo locatário Reclamam as autoras duas modalidades de tutela da sua invocada posição jurídica: uma possessória (pedidos 1 e 4), outra ressarcitória (pedidos 2, 3, 5 a 8 e 11): “1. Condenar o réu a restituir, imediatamente, às autoras todo o espaço contiguo aos lugares de estacionamento n.os 5 e 6, (…). (…) 4. Condenar o réu a reconhecer o direito das autoras a usufruir do espaço onde estão instalados os aparelhos de ar condicionado e de sistema de frio, bem como as respetivas tubagens, e a servir-se dos mesmos (…)”. * “2. Condenar o réu a reconstruir (…) a câmara frigorífica, o armazém e a garrafeira (…). 3. Em alternativa ao pedido formulado no número anterior, a pagar, no mesmo prazo, às autoras o valor das mesmas, no montante de € 24.500,00 (…). (…) 5. Condenar o réu a pagar à 1.ª autora a quantia (…) correspondente ao valor mensal da renda que a 2.ª autora lhe devia ter pago e que (…) deixou de fazer (…). 6. Condenar o réu a pagar às autoras, a título de danos causados ao bom nome e à imagem (…), a quantia de € 10.000,00 (…), a cada uma delas. 7. Condenar o réu a pagar à 2.ª autora a quantia de € 165.000,00 (…) a título de lucros cessantes (…). 8. Condenar o réu a pagar à 2.ª autora a título de danos materiais a quantia de € 4.067,50 (…). (…) 11. Condenar o réu a pagar à 2.ª autora a título de prejuízos a quantia de € 2.942,50 (…)”. Começaremos a apreciação do recurso em matéria de direito pela tutela possessória, seguindo-se o conhecimento dos pedidos de indemnização – por restauração natural e por equivalente em dinheiro. Entendeu o tribunal a quo que “o contrato de arrendamento para fim não habitacional ajustado entre BBB e a autora Dom Turismo (…) não contemplava o espaço contíguo aos lugares de estacionamento n.os 5 e 6 do prédio a que se refere o ponto n.º 1 do mesmo elenco”. Assente neste pressuposto, na sentença apelada conclui-se “que a ocupação do referido espaço pelas autoras não se fundava em título legítimo”. Afigura-se-nos que o tribunal a quo se enredou num equívoco. Efetivamente, o arrendamento acordado “não contemplava o espaço contíguo aos lugares de estacionamento n.os 5 e 6”, isto é, no texto do contrato de arrendamento não é feita nenhuma referência ao mencionado “espaço contíguo”. Mas, na verdade, nunca poderia validamente identificar tal “espaço contíguo” como constituindo, especificadamente, parte da coisa locada. É que o referido “espaço contíguo” é uma parte comum do edifício. Por assim ser, o dono de uma fração autónoma nunca teria legitimidade para o arrendar especificadamente – isto é, nunca pode declarar “dou de arrendamento aquela parte comum”. Isto não significa, no entanto, que, em geral, o inquilino não tenha um direito próprio de usar as partes comuns. Como é evidente, o arrendatário de uma fração autónoma tem o direito de usar o elevador que serve essa fração, por exemplo. No entanto, tal direito decorre do direito pessoal de gozo que tem sobre a fração autónoma, sem necessidade de nenhuma especificação no enunciado contratual. O direito do condómino (senhorio) ao uso das partes comuns é exercido por intermédio do locatário – cfr. os arts. 1031.º, al. b), 1406.º, 1420.º e 1421.º do Cód. Civil. Em suma, para que o arrendatário possa usar as partes comuns do edifício, não é necessário que esta faculdade conste do clausulado contratual nem, muito menos, que conste de tal clausulado que os espaços (partes) comuns também são dados de arrendamento. 2. Tutela do gozo das partes comuns ocupadas pelas autoras No caso dos autos, consta do título constitutivo da propriedade horizontal que o prédio identificado na fundamentação de facto é constituído por sete frações autónomas – frações A a G. Também consta deste título que toda a cave tem a natureza de “parte comum”. Contém ela cinco lugares de estacionamento e três arrecadações. Estes espaços são de uso exclusivo pelos donos das frações identificadas no mesmo documento. O regulamento do condomínio “autonomiza” um espaço não identificado no título constitutivo da propriedade horizontal: o “espaço contíguo aos lugares de estacionamento n.os 5 e 6” (ponto 1.4 do regulamento). Ora, tal como resulta do leque dos factos provados – cfr. o facto 13 –, este espaço tem apenas cerca de 1 m2 de área. Trata-se de um espaço encravado, confinante com os lugares de estacionamento referidos, sem acesso direto a outro espaço (parte) comum – conforme se depreende do título de constituição da propriedade horizontal. A ocupação descrita no ponto 8 – factos provados – desenvolve-se, pelo menos, sobre dois espaços distintos: o “espaço contíguo” e os lugares de estacionamento n.os 5 e 6. Embora sejam todos eles partes comuns do prédio, a sua afetação é distinta, pelo que dividiremos a análise da posição jurídica das autoras, em função do espaço ocupado. 2.1. Gozo do “espaço contíguo aos lugares de estacionamento n.os 5 e 6” Insurge-se o réu contra a adjudicação do “espaço contíguo” ao uso exclusivo do titular da fração A, por meio do regulamento do condomínio. Afirma que tal regulação é ilegal, por não ter adesão ao título constitutivo da propriedade horizontal. Contrariamente ao sustentado pelo réu, os condóminos podem, efetivamente, por regra, por meio do regulamento do condomínio, acordar que o uso de uma área de uma “parte comum” será feito exclusivamente por um condómino. Como comproprietários das partes comuns que são, têm o poder de acordar sobre os moldes em que será feito o seu uso – 1406.º, 1407.º, 1420.º, n.º 1, e 1429.º-A, n.º 1, do Cód. Civil –, desde que esta disciplina não se encontre já pré-ocupada pela lei nem pelo título constitutivo da propriedade horizontal. Como é evidente, este acordo não pode ser contrário à lei – por exemplo, não pode contrariar a natureza da propriedade horizontal, limitando o acesso entre a via pública e as frações autónomas (afetando espaços que necessariamente são de uso comum). Do mesmo modo, o uso exclusivo acordado não deve atentar contra o equilíbrio na fruição das partes comuns. Como também é evidente, esta prerrogativa pode ser alterada a qualquer momento por maioria simples (da permilagem), nos termos do n.º 5 do art. 1432.º do Cód. Civil, não estando a alteração sujeita à unanimidade prevista no n.º 1 do art. 1419.º do Cód. Civil. Poder-se-ia, pois, concluir que nada obsta a que o uso exclusivo do “espaço contíguo” – com a área de cerca de 1 m2, recorde-se – seja atribuído ao titular da fração A pelo regulamento do condomínio. A admitir-se esta possibilidade, e se o réu pretender ver cessado o direito de uso exclusivo do “espaço contíguo” pelo titular da fração A, terá de promover uma revisão do regulamento do condomínio. No entanto, num ponto o regulamento exorbita, efetivamente, o objeto previsto no n.º 1 do art. 1429.º-A do Cód. Civil. Ao onerar os lugares de estacionamento n.os 5 e 6 (usados pela fração B) com uma espécie de “servidão de passagem” (hoc sensu) a favor do “espaço contíguo” (usado pela fração A), o regulamento do condomínio contraria o uso exclusivo (desonerado) daqueles lugares de estacionamento atribuído ao titular da fração B pelo título constitutivo da propriedade horizontal, onerando-os com outro uso (como que um “direito” de passagem). Aliás, tendo em consideração a configuração do espaço, o respeito por este “direito” de passagem impede o titular da fração B de usar totalmente um dos lugares de garagem com o parqueamento de uma viatura. Esta norma do regulamento do condomínio viola, pois, a tutela legal concedida ao título constitutivo da propriedade horizontal (arts. 280.º, n.º 1, 186.º e 1418.º do Cód. Civil). É ela nula – cfr. o Ac. do TRL de 22-10-2019 (1945/18.7T8LSB.L1-7). Isto significa que nenhum dos condóminos do prédio referido no ponto 1 – factos provados – tem o uso exclusivo do “espaço contíguo” nos moldes pretendidos pelas autoras. Sendo certo que o gozo dos espaços (partes) comuns pelo locatário tem como limite (quantitativo e qualitativo) o gozo permitido ao condómino senhorio, certo é que, por força do contrato de arrendamento invocado, a autora Dom Turismo não adquiriu o direito ao uso exclusivo do “espaço contíguo”, mediante o atravessamento dos lugares de estacionamento n.os 5 e 6 – e o mesmo vale, por consequência, quando à autora Saudades de Portugal. 2.2. Gozo dos lugares de estacionamento n.os 5 e 6” Consta do ponto 14 – factos provados – que “Ao emitirem as declarações constantes do documento referido no ponto 6 – factos provados –, os contraentes entendiam que os termos do contrato abrangiam os equipamentos referido no ponto 5 – factos provados.” Este último ponto tem o seguinte teor: “BBB instalou um armazém com garrafeira e uma câmara frigorífica nos lugares de estacionamentos n.os 5 e 6, aludidos no escrito parcialmente reproduzido no ponto 2 – factos provados –, bem como no espaço aos mesmos contíguo (…)”. O uso exclusivo destes lugares de estacionamento foi atribuído ao titular da fração B, por força do título constitutivo da propriedade horizontal. Ora, como na data da celebração do contrato de arrendamento da fração A, o senhorio era também proprietário da fração B, poder-se-ia pensar que não lhe falece legitimidade para incluir no âmbito do arrendamento o uso destes lugares de estacionamento. É este, no entanto, um raciocínio circular e falacioso. Como vimos, e agora se repisa, o gozo das partes comuns pelo inquilino decorre do seu direito pessoal de gozo sobre a fração locada. Ora, a fração que foi locada à autora Dom Turismo não foi a fração B, pelo que nunca adquiriu, por decorrência do arrendamento da fração A – única identificada nas cláusulas primeira e quarta do contrato de arrendamento –, o uso exclusivo dos lugares de estacionamentos n.os 5 e 6. A aceitar-se que o contrato de arrendamento referido no ponto 6 – factos provados – abrange, por vontade das partes, os lugares de estacionamentos n.os 5 e 6, tal significaria que o condómino (titular da fração B) arrendou especificada e autonomamente – desgarrado do arrendamento da fração (B) que consente o uso desse espaço – uma parte comum do prédio. Trata-se, pois, de um absolutamente ineficaz – designadamente, perante o réu – arrendamento de coisa (parcialmente) alheia (arts. 1408.º, n.º 2, e 1420.º, n.º 1, do Cód. Civil), proibido, de resto, pelo regulamento do condomínio (cfr. a cláusula 1.7). O condómino não pode arrendar uma parte comum do prédio (parte especificada de uma coisa/parte de que é comproprietário), ainda que dela tenha o uso exclusivo; apenas pode arrendar o que é exclusivamente seu (a sua fração ou uma sua parte), sendo a faculdade do arrendatário de usar essa parte comum (nos mesmos termos permitidos ao condómino senhorio) uma mera decorrência do direito pessoal de gozo adquirido sobre a fração autónoma (ou parte dela). 2.3. Gozo dos concretos espaços comuns ocupados: conclusão À luz do raciocínio expendido, rapidamente se conclui que as autoras não têm e nunca tiveram qualquer título válido e eficaz – oponível ao réu – que legitime a ocupação descrita no ponto 8 – factos provados –, isto é, sobre o “espaço contíguo” e sobre os lugares de estacionamento n.os 5 e 6. Não gozam, pois, da tutela possessória atribuída ao arrendatário. Em conformidade, improcedem os pedidos de fundados na (inexistente) tutela possessória (pedidos 1 e 4). 3. Indemnização fundada em responsabilidade civil Pelo que respeita aos pedidos de indemnização formulados, nada há a acrescentar ao que já consta da sentença recorrida. Não resulta dos factos provados a ofensa a direito absoluto ou relativo das autoras. (Note-se, entre parênteses, que não se discute nesta ação a eventual responsabilidade do réu perante o atual proprietário da fração A (à luz da cláusula 3.5 do regulamento do condomínio) nem perante os restantes condóminos, todos comproprietários da parte comum sobre a qual foi implantada a câmara frigorífica). No que toca aos bens móveis alegadamente existentes nas estruturas implantadas no “espaço contíguo” e nos lugares de estacionamento n.os 5 e 6 – bens de consumo, incluindo bebidas alcoólicas –, não lograram as autoras a prova da sua destruição nem da sua apropriação pelo réu. Inexiste dano, pressuposto da obrigação de indemnização de verificação indispensável. No que respeita à violação do alegado direito pessoal de gozo das autoras, é certo que, por força do disposto no n.º 2 do art. 1037.º do Cód. Civil, o locatário que for privado da coisa ou perturbado no exercício dos seus direitos tem direito a ser indemnizado do prejuízo que haja sofrido em consequência desta privação ou perturbação (art. 1284.º, n.º 1, do Cód. Civil). No entanto, no caso dos autos, por um lado, não se pode concluir que as autoras tivessem um direito pessoal de gozo do “espaço contíguo” e dos lugares de estacionamento n.os 5 e 6, sobre os quais se encontravam edificadas as estruturas. Por outro lado, nenhuns concretos danos sofridos constam dos factos provados. Na verdade, não consta sequer da fundamentação de facto que, na data em que ocorre a atividade descrita no ponto 10 – factos provados –, as autoras ainda exercessem qualquer atividade no locado e usassem o “espaço contíguo”. No mesmo sentido, não resultou provado que as autoras tenham deixado de explorar o restaurante por causa da demolição protagonizada pelo réu nem que não o fazem atualmente por inexistência das estruturas demolidas. Pela mesma razão – inexistência de danos provados – não há que configurar a hipótese de estarmos perante um caso de “danos puramente económicos”. Em casos especiais (outros excecionais), a lei prescinde da prova (e mesmo da verificação) de alguns dos pressupostos que fundam a responsabilidade civil (contratual ou extracontratual) – da culpa ou da ilicitude, por exemplo. No entanto, há um pressuposto que tem sempre de ser alegado e provado: o dano – não provado, no caso. 4. Responsabilidade pelas custas A responsabilidade pelas custas cabe às apelantes (art. 527.º do Cód. Proc. Civil), por terem ficado vencidas. C. Dispositivo C.A. Do mérito do recurso Em face do exposto, na improcedência da apelação, acorda-se em manter a decisão recorrida. C.B. Das custas Custas a cargo das apelantes. * Notifique. Lisboa, 17-06-2025 Paulo Ramos de Faria Edgar Taborda Lopes Cristina Silva Maximiano |