Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
959/13.8TBALQ-A.L1­7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: HABILITAÇÃO DE CESSIONÁRIO
INDEFERIMENTO LIMINAR
CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. A prolação de despacho de indeferimento liminar do requerimento inicial no âmbito de um incidente de habilitação do cessionário não representa violação dos arts. 3.º, n.º 3 e 356.º do C.P.C., pois da al. a) do n.º 1 deste artigo não pode inferir-se que o juiz tem necessariamente de ordenar a notificação dos requeridos, antes tendo plena aplicação a regra geral do art. 590.º, n.º 1, o que significa que havendo motivo para indeferimento in limine, o juiz, em vez de mandar notificar os outros interessados, deve proferir despacho em conformidade com este dispositivo legal.
2. O n.º 3 do art. 3.º do C.P.C., consagra o chamado contraditório dinâmico, garantindo a participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, facultando-lhes a possibilidade de influírem em todos os elementos processuais (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que apareçam como potencialmente relevantes para a decisão, pois o escopo principal do princípio do contraditório deixou de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo do direito à incidência ativa no desenvolvimento e no êxito do processo.
3. A decisão-surpresa de que trata aquele dispositivo, é uma decisão que transporta consigo uma solução jurídica que a parte interessada não podia prever, que não tinha obrigação de prever, ocorrendo uma decisão dessa natureza quando lhe é inexigível que a tivesse perspetivado como possível no processo.
4. Não assume tal natureza um despacho de indeferimento liminar da petição ou requerimento inicial, subespécie no contexto da rejeição liminar da lide, nas situações taxativamente previstas no art. 590.º, n.º 1, entre elas, a manifesta improcedência do pedido, não sendo, portanto, exigível ao juiz ouça previamente o autor ou o requerente.
5. Até porque uma situação de indeferimento liminar da petição ou requerimento inicial por manifesta improcedência do pedido acarreta a imediata inutilidade da prática de qualquer posterior ato de instrução ou de discussão, pelo que a audição prévia do autor ou requerente constituiria a prática de um ato inútil, logo proibido por lei, além de que, em tal situação, a lei permite ao autor ou requerente a apresentação novo articulado no prazo de 10 dias.
6. Num incidente de habilitação de cessionário em que a cessão de créditos, necessariamente objeto de documentação, ocorreu fora do processo, deve o título de cessão, documento essencial à prova de um pressuposto da situação jurídica que se pretende fazer valer, ser junto com o requerimento inicial.
7. Tal incidente não deve prosseguir termos no caso de o juiz considerar que a cessão não se encontra devidamente documentada, situação que, no entanto, não lhe pode dar azo, sem mais, à drástica decisão de indeferimento liminar do requerimento inicial e consequente rejeição do incidente por manifesta improcedência do pedido, antes lhe sendo imposta prolação de despacho pré-saneador a convidar o requerente a juntar tal documento, em prazo que tiver como razoável para o efeito.
8. É que um despacho de indeferimento liminar da petição ou do requerimento inicial, por manifesta improcedência do pedido, só pode ser proferido se não houver interpretação possível ou desenvolvimento possível da factualidade articulada que viabilize ou possa viabilizar o pedido, ou seja, se a evidência da improcedência tiver um caráter absoluto e objetivo, para poder sê-lo, se nenhuma outra construção jurídica for possível, além da expressa no despacho de indeferimento liminar.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO:
H STC, S.A., deduziu, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo de Execução de Loures - Juiz 1, o presente incidente de habilitação de cessionário contra Banco ST, S.A., CP e PJ, alegando que «por contrato de cessão de créditos, celebrado em 11 de Dezembro de 2015, Banco ST, S.A, com sede na ____, registada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o nº ____ cedeu o(s) crédito(s) que detinha sobre o(s) requerido(s) e todas as garantias acessórias a ele inerentes, à AG LIMITED, sociedade devidamente constituída de acordo com as leis do Reino Unido, registada sob o nº 5606545, com sede em 20-22 Bedford Rowm London WC1R 4JS.
Por contrato particular celebrado em 27 de abril de 2016, a AG LIMITED cedeu à sociedade H STC,SA o(s) crédito(s) decorrentes da Operação/Contrato acima referido(s), celebrado (s) com V. Exa..
A referida cessão foi efetuada ao abrigo do Decreto-Lei n.º 453/99, de 5 de Novembro (conforme alterado), que estabelece o regime das cessões de crédito para efeitos de titularização e incluiu, nos termos do disposto no art. 582.º do Código Civil, a transmissão para a H STC, SA de todos os direitos e garantias acessórias ao(s) créditos(s), designadamente, o direito de obter o cumprimento, judicial ou extrajudicialmente, das referidas obrigações.
A referida cessão incluiu a transmissão de todos os direitos, garantias e acessórios inerentes ao(s) crédito (s) cedido(s), designadamente, mas não só, garantias pessoais, tais como avales, aceites e fianças.
O que faz com que, presentemente, a Habilitante seja a actual titular do(s) crédito(s) sub judice.
Em conformidade, é a Requerente a actual titular do(s) crédito(s) cujo pagamento é exigido na Execução.»
Conclui assim o requerimento inicial:
«Nestes termos, e nos demais de direito, deve o presente Incidente ser julgado procedente, por provado e, consequentemente, ser a Habilitante julgada habilitada no lugar de Banco ST, S.A., para prosseguir a execução, como Exequente, com as respectivas consequências legais.»
Na primeira vez que os autos foram conclusos à senhora juíza a quo, pela mesma foi proferido o despacho de fls. 49-49vº, datado de 4 de julho de 2016, com o seguinte teor:
«I - RELATÓRIO
H STC,S.A. deduziu incidente de habilitação de cessionário requerendo a respectiva habilitação em lugar do primitivo exequente. Para tanto invocou a cessão a seu favor do crédito que o primitivo exequente detinha sobre a executada. 
II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
2.1. A Requerente juntou documento intitulado “Contrato de cessão de carteira de créditos não garantidos“, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
O artigo 577º, nº 1, do C.C., admite a cessão de crédito a terceiro, a qual não exige o consentimento do devedor, produzindo efeitos contra esse devedor desde notificada, mesmo extrajudicialmente (art. 583º do C.C.).
Ora a cessão de créditos importa a transmissão para o cessionário das garantias e outros acessórios do direito transmitido (art. 582º, nº 1, do C.C.).
Sucede que o documento particular junto aos autos não comprova a transmissão do crédito detido sobre a executada para a requerente da habilitação.
Com efeito dele não consta a identificação dos créditos cedidos, nem o anexo em que tal alegadamente ocorre integra o contrato designadamente mostrando-se assinado pelos respectivos outorgantes ou dele constando essa menção.
Na verdade, do referido anexo não consta o reconhecimento por parte dos outorgantes de que esses créditos enunciados estão compreendidos na cessão, não constituindo meio idóneo para comprovar a cedência do crédito objecto da execução.
Com efeito, o elenco dos créditos cedidos tem de ser materializado da mesma forma utilizada para o resto do contrato, e subscrito de modo a evidenciar que integra a declaração negocial invocada para fundamentar a habilitação, ou respeitando as normas legais que disciplinam o reconhecimento jurídico das assinaturas digitais dos documentos electrónicos, o que não sucedeu no caso em análise.    
IV – DECISÃO
Em face do exposto e sendo manifesta a respectiva improcedência rejeita-se o presente incidente de habilitação.
Custas pela Requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs. Registe e notifique.»
*
A requerente do incidente não se conformou com assim decidido, pelo que interpôs o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações:
«1. A 11 de Dezembro de 2015 foi celebrado contrato de cessão de créditos entre o Banco ST, S.A. e AG Limited.
2. Aquela última (AG Limited), a 27 de Abril de 2016, cedeu todos os créditos à H STC, S.A.
3. A Recorrente intentou o competente Incidente de Habilitação de Cessionário a 9 de Junho de 2016 devidamente instruído com a respectiva documentação do contrato de cessão e anexos.
4. De entre a documentação, foi junta a página na qual consta a identificação do(s) crédito(s) a que os presentes autos respeitam.
5. Nos textos do(s) contrato(s) de cessão, quer no índice, quer nos considerandos (ex. alíneas E) e H)) e em diversas cláusulas, existe expressa referência e remessa para os respectivos anexos, dos quais fazem parte a página com a identificação concreta do crédito peticionado nos presentes autos, expressamente na página 83/84 do incidente de habilitação de cessionário, mais propriamente nas linhas 26833 e 26834.
6. Quanto à assinatura dos anexos, estamos na presença de contrato(s) inter partes relativamente aos quais e salvo melhor opinião, não existe obrigação legal de rubricar todas as páginas de eventuais anexos ao(s) contrato(s) de cessão.
7. E, mesmo verificando-se a inexistência de rubrica dos anexos ou mesmo do(s) contrato(s) de cessão, daí não poderá resultar qualquer desvalor jurídico que impeça o reconhecimento da existência e validade do negócio jurídico, mormente, cessão de créditos.
8. Antes do proferimento de sentença não foi dado cumprimento ao disposto no n.º 1 do artigo 356º CPC, isto é, não foi dado conhecimento ou sequer possibilidade de pronúncia a qualquer dos requeridos (devedores e Banco ST, S.A. – entidade cedente), em detrimento da tramitação legalmente prevista na referida norma legal.
9. Respeitando o normativo legal, o Julgador teria oportunidade de obter esclarecimentos quanto a(s) contrato(s) de cessão, mormente com a notificação do Requerente para o aperfeiçoamento do articulado inicial do incidente de habilitação, não o tendo feito.
10. Pelo que, a rejeição liminar do incidente de habilitação de cessionário consubstancia uma situação objectiva de violação dos princípios basilares do processo civil, tais como o princípio de aproveitamento dos actos jurídicos, da economia processual e dever de gestão processual.
11. Por tudo o supra exposto e salvo melhor opinião, deveria ser dado cumprimento ao procedimento previsto no artigo 356º do Código de Processo Civil, dando às partes oportunidade de se pronunciarem, cumprindo o princípio do contraditório (n.º 3 do artigo 3º CPC).
12. A douta sentença violou o disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 356º e do n.º 3 do artigo 3º, todos do Código de Processo Civil.»
*
Após interposição do recurso, a senhora juíza a quo proferiu o seguinte despacho:
«Nos termos do disposto pelos artigos 853º, nº 1, 590º, nº 1, 356º, nº 1, 641º, 647º, nº 3, c), do C.PC., admite-se o recurso interposto, que é de apelação, com efeito suspensivo da decisão, ordena-se a citação dos requeridos nos termos do artigo 641º, nº 7 , do C.P.C. para os termos do recurso e da habilitação,  e ordena-se a oportuna subida do recurso.»
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Os requeridos não deduziram oposição ao incidente, nem contra-alegaram.
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II - ÂMBITO DO RECURSO:
Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil[i], é pelas conclusões recorrente que se define o objeto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.
Assim, perante as conclusões da alegação do apelante, a única questão que se coloca consiste em saber se o despacho recorrido deve ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento do incidente de habilitação do cessionário.
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III - FUNDAMENTOS:
3.1 - Fundamentação de facto:
A decisão recorrida considerou provado que:
«A Requerente juntou documento intitulado “Contrato de cessão de carteira de créditos não garantidos“, que aqui se dá por integralmente reproduzido.»
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3.2 - Enquadramento jurídico:
Uma primeira nota para referir que, salvo o devido respeito, o mínimo que se pode dizer é que aquele não é, seguramente, o modo de fundamentar, em termos de facto, uma decisão judicial.
O modo como, à revelia do que lhe é legalmente imposto, (art. 607.º, n.ºs 3 a 5), o tribunal a quo fundamentou, em termos de facto, a decisão ora sob recurso, é, no entanto, uma questão que não merece considerandos adicionais, tendo em conta o que seguidamente se decidirá.
Aquilo que se retira do despacho recorrido é que a senhora juíza a quo, logo na primeira intervenção que teve no processo, ou seja, em sede de despacho liminar, indeferiu liminarmente o requerimento inicial, por entender ser manifesta a improcedência do pedido, em razão do que decidiu: «(...) rejeita-se o presente incidente de habilitação.».
Fê-lo por considerar, segundo se retira do despacho impugnado, que «o documento particular junto aos autos [com o requerimento inicial] não comprova a transmissão do crédito detido sobre a executada para a requerente da habilitação.»
Nos termos do art. 590.º, n.º 1, «nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente (...).»
Dispõe, por sua vez, o art. 356.º do mesmo Código:
«1 - A habilitação do adquirente ou cessionário da coisa ou direito em litígio, para com ele seguir a causa, faz-se nos termos seguintes:
a) Lavrado no processo o termo da cessão ou junto ao requerimento de habilitação, que é autuado por apenso, o título da aquisição ou da cessão, é notificada a parte contrária para contestar; na contestação pode o notificado impugnar a validade do ato ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo;
b) Se houver contestação, o requerente pode responder-lhe e em seguida, produzidas as provas necessárias, é proferida decisão; na falta de contestação, verifica-se se o documento prova a aquisição ou a cessão e, no caso afirmativo, declara-se habilitado o adquirente ou cessionário.
2 - A habilitação pode ser promovida pelo transmitente ou cedente, pelo adquirente ou cessionário, ou pela parte contrária; neste caso, aplica-se o disposto no número anterior, com as adaptações necessárias.»
Importa que se diga, antes de mais, que a prolação de despacho de indeferimento liminar do requerimento inicial no âmbito de um incidente de habilitação do cessionário, de forma alguma representa violação dos arts. 356.º e 3.º, n.º 3.
Não obstante o teor da al. a) do n.º 1 do art. 356.º, onde, como se vê, se afirma que «(...) junto ao requerimento de habilitação, que é autuado por apenso, o título da aquisição ou da cessão, é notificada a parte contrária para contestar», a notificação dos sujeitos processuais passivos do incidente para deduzirem oposição não assume caráter de obrigatoriedade, não constitui uma inevitabilidade.
Na verdade, daquela alínea a) não pode inferir-se que o juiz tem necessariamente de ordenar a notificação dos requeridos; o art. 590.º, n.º 1, tem aqui plena aplicação, como regra geral que é, o que significa que havendo motivo para indeferimento in limine, o juiz, em vez de mandar notificar os outros interessados, deve proferir despacho em conformidade com este último dispositivo legal[ii].
Conforme refere Salvador da Costa, «concluso o requerimento inicial ao juiz, este afere da sua regularidade, proferindo, se for caso disso, despacho liminar de indeferimento.»[iii].
Nos termos do art. 3.º, n.º 3, «o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.»
Trata-se da consagração expressa do princípio do contraditório na vertente da proibição da prolação de decisões surpresa, garantindo aquele preceito às partes a sua efetiva intervenção no desenvolvimento de todo o litigio, sob pena de nulidade da decisão que o não respeite: é o que se chama de contraditório dinâmico.
No entanto, no caso de prolação de despacho de indeferimento liminar da petição inicial ou requerimento inicial, não é de exigir ao juiz a audição do autor ou requerente.
Mediante a apresentação em juízo da petição inicial ou requerimento inicial, o autor ou requerente exerce o direito de ação consagrado no art. 20.º da CRP e art. 2º, do C.P.C..
Nesse momento inicia-se a instância, a relação jurídico-processual, ou seja, a ação considera-se proposta, intentada ou pendente; no entanto, esse ato de proposição da ação não produz desde logo efeitos em relação ao réu ou ao requerido, o que só sucede a partir do momento em que a este é dado conhecimento daquela instauração, através citação, ou, em determinados casos, de notificação.
Só a partir do momento em que o réu ou requerido é chamado à demanda, se inicia a chamada estrutura dialética do processo.
O despacho de indeferimento liminar da petição inicial ou requerimento inicial é uma subespécie no contexto da rejeição liminar da lide, podendo ocorrer, como referido nas situações taxativamente previstas no art. 590.º, n.º 1, entre elas, a manifesta improcedência do pedido.
Tal como decidido no Ac. do S.T.J. de 24.02.2015, Proc. n.º 116/14.6YLSB (Ana Paula Boularot) in www.dgsi.pt, «a imposição de um despacho liminar prévio a um despacho liminar constitui uma decisão em si contraditória, porque se o despacho liminar está legalmente previsto como podendo ser de rejeição liminar (...), não faz qualquer sentido a parte ser ouvida preliminarmente».
Por outro lado, não há, em rigor, que falar de uma decisão surpresa em caso de prolação de despacho de indeferimento liminar por manifesta improcedência do pedido, quando a própria lei, no citado art. 590.º, n.º 1, prevê expressamente essa possibilidade.
Perante uma situação de indeferimento liminar da petição ou requerimento inicial por manifesta improcedência do pedido, torna-se evidentemente inútil a prática de qualquer posterior ato de instrução ou de discussão, pelo que se torna inútil a audição prévia, pelo juiz, ao autor ou requerente, a dar-lhe conhecimento do seu propósito de indeferir liminarmente a petição ou requerimento inicial.
A tudo acresce a possibilidade que a lei, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 560.º e 591.º, concede ao autor ou requerente em caso de indeferimento liminar da petição ou requerimento inicial, de apresentar novo articulado no prazo de 10 dias.
Isto, claro está, além da possibilidade que lhe é concedida nos termos dos arts. 629.º, n.º 3, al. c), e 641.º, n.º 7, de interposição de recurso para a Relação, independentemente do valor da causa ou da sucumbência. Foi o que sucedeu no caso concreto, em que a requerente, notificada do despacho de indeferimento liminar do requerimento inicial, que rejeitou o presente incidente de habilitação do cessionário, interpôs o presente recurso de apelação, tendo os requeridos sido notificados, tanto para os efeitos do incidente como do recurso.
A decisão-surpresa a que alude o art. 3.º, nº 3, é uma decisão que transporta consigo uma solução jurídica que a parte interessada não podia prever, que não tinha obrigação de prever; ou seja, estamos perante uma decisão dessa natureza quando é inexigível à parte interessada que a tivesse perspetivado como possível no processo.
No entanto, tal como referido no Ac. do S.T.J. de 1706.2014, Proc. n.º 233/2000.C2.S1 (Maria Clara Sottomayor), in www.dgsi.pt, «deve esclarecer-se, em primeiro lugar, que se tem entendido que o art. 3.º do CPC não introduz no nosso sistema o instituto da proibição de decisões surpresa tal como foi configurado na Alemanha, país donde dimanou e tem longo historial, verificando-se importantes diferenças de regime entre o Código de Processo Civil português e o alemão.»
O que o art. 3.º, n.º 3, consagra, afirma-se naquele aresto, em sintonia, aliás, com o entendimento de Lebre de Freitas, é a garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, facultando-lhes a possibilidade de influírem em todos os elementos processuais (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que apareçam como potencialmente relevantes para a decisão; ou seja, o escopo principal do princípio do contraditório deixou de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo[iv].
Em suma: nem o art. 356.º, nem o art. 3.º, n.º 3, eram impeditivos de prolação de despacho de indeferimento liminar do requerimento inicial, com a consequente rejeição do incidente de habilitação do cessionário.
Questão diferente é saber se, no caso concreto, havia fundamento para a senhora juíza a quo indeferir liminarmente o requerimento inicial e rejeitar o incidente de habilitação do cessionário nos termos em que o fez no despacho recorrido.
E a resposta, desde já o adiantamos, é negativa.
Estamos em presença de um caso em que a cessão de créditos ocorreu fora do processo.
Uma tal cessão necessita, sempre, de ser objeto de documentação, seja por força do disposto no art. 578.º, seja por força do disposto no art. 7.º do Dec. Lei n.º 453/99, de 5 de novembro, que estabelece o regime da titularização de créditos e regula a constituição e a atividade dos fundos de titularização de créditos, das respetivas sociedades gestoras e das sociedades de titularização de créditos[v].
O título de cessão, documento essencial à prova de um pressuposto da situação jurídica que se pretende fazer valer[vi], deve ser junto com o requerimento inicial, nos termos do art. 356.º, n.º 1; o mesmo, aliás, já decorria da normal geral contida no art. 293.º, n.º 1.
Resulta assim evidente que num caso como o presente, o incidente de habilitação do cessionário não deve prosseguir termos no caso de o juiz considerar que a cessão não se encontra devidamente documentada.
No entanto, isso não pode dar azo, sem mais, à drástica decisão de indeferimento liminar do requerimento inicial e consequente rejeição do incidente.
Há normas expressas que impedem um tal procedimento.
Desde logo, o art. 6.º, n.º 1, estatui que «cumpre ao juiz (...) dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação (...), adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.»
Por outro lado, o art. 590.º, n.ºs 2, al. c), e 3, aplicável, obviamente, aos incidentes da instância, impõe ao juiz a prolação de despacho pré-saneador destinado a determinar a junção de documentos essenciais ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.
A este propósito, já Castro Mendes afirmava «no caso de petição irregular (...) cremos que o poder do juiz é vinculado: tem de usar do despacho de aperfeiçoamento.
E se a parte nada fizer ou se recusar a completar ou corrigir a petição inicial, entendemos que o juiz deve indeferir liminarmente.»[vii].
Retornando ao caso concreto, considerando a senhora juíza a quo que «o documento particular junto aos autos não comprova a transmissão do crédito detido sobre a executada para a requerente da habilitação», impunha-se-lhe determinar a notificação da requerente para, no prazo que tivesse por conveniente, juntar a documentação em falta, em vez de adotar, desde logo, a medida drástica de indeferimento liminar do requerimento inicial, rejeitando, consequentemente, o incidente de habilitação do cessionário, por manifesta improcedência, medida que, reitera-se, apenas deve ser tomada em situações limite e de absoluta certeza jurídica, em que inexista qualquer possibilidade do autor ou requerente de obter merecimento do pedido formulado[viii].
Tal como consta do Ac. da R.E. de 02/10/1986, C.J., XI, 4º, 283, o indeferimento liminar por manifesta improcedência só será de proferir se «não houver interpretação possível ou desenvolvimento possível da factualidade articulada que viabilize ou possa viabilizar o pedido», se a evidência da improcedência tiver um «caráter absoluto e objectivo, para poder sê-lo», se nenhuma outra construção jurídica for possível, além da expressa no despacho de indeferimento liminar.
No Ac. do S. T. J. de 05.03.1987, BMJ 365º, 562, decidiu-se que só será possível o indeferimento «quando a pretensão não tiver quem a defenda, nos tribunais, ou na doutrina, isto é, quando for evidente que a tese do autor não tem condições para vingar nos tribunais.».
No Ac. do S.T.A. de 17.102018, Proc. n.º 646/17.8BEAVR 0121/18 (Casimiro Gonçalves), in www.dgsi.pt, decidiu-se que «o indeferimento liminar, por manifesta improcedência, só deve decretar-se quando tal improcedência for evidente em termos de o seguimento do respectivo processo carecer, em absoluto, de razão de ser.»
Impõe-se, por isso, julgar procedente o recurso e revogar o despacho proferido, o qual deve ser substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos - tendo-se presente que os requeridos foram notificados para os termos do recurso e do incidente -, se necessário, com a prolação de despacho a convidar a requerente a juntar documentação considerada em falta.
***
III - DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação procedente, revogando, em consequência, o despacho proferido, e determinando que o mesmo seja substituído por outro que determine o prosseguimento do incidente de habilitação do cessionário, se necessário, com a prolação de despacho a convidar a requerente a juntar aos autos documentação eventualmente considerada em falta.
Sem custas.

Lisboa, 4 de fevereiro de 2020
José Capacete
Carlos Oliveira
Diogo Ravara
_______________________________________________________
[i][i] Pertencem a este código todas as disposições que vierem a ser citadas sem indicação da respetiva fonte.
[ii] Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição - Reimpressão, Coimbra Editora, 1982, p. 592.
[iii] Os Incidentes da Instancia, 9.ª Edição, Almedina, 2017, pp. 200-201 e 224.
[iv] Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2013, pp. 124-125.
[v] Este diploma foi recentemente republicado pela Lei n.º 69/2019, de 28 de agosto e com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 144/2019, de 23 de setembro
[vi] Cfr. a este propósito, Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum, À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª Edição. Coimbra Editora, 2013, p. 162, nota 17, cujos exemplos têm plena aplicação ao caso sub judice.
[vii] Direito Processual Civil, III, Edição da AAFDL, 1980, pp. 66-67.
[viii] Cfr. o Ac. desta Relação de 14.06.2012, Proc. nº 26879/11.2YYLSB-A.L1-6 (Tomé Ramião), in www.dgsi.pt.