Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6180/11.2TDLSB.L1-5
Relator: FILOMENA CLEMENTE LIMA
Descritores: NEGLIGÊNCIA MÉDICA
DANOS
DANOS PREVISÍVEIS
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/07/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I - As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as legis artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física

II - Como elementos estruturantes do tipo de crime do artigo 150.º do Código Penal, há que ter como indiciada a existência de comportamentos que tenham contrariado as boas práticas da medicina, e de que não basta para tanto que exista um possível nexo causal entre as intervenções e as sequelas mas sim que se determine que esse nexo será um nexo de causalidade adequada.

III - Entre os deveres médicos avultam o de tratar em conformidade com as legis artis, isto é, respeitando as regras técnicas adequadas ao procedimento exigível. Contudo, em regra, as sequelas desta actuação técnica não têm de forçosamente conduzir ao resultado pretendido, o diagnóstico pode não ser atingido, a terapia pode falhar. Ao médico basta-lhe medicar. Exige-se-lhe que empregue os meios correctos para a finalidade, incluindo neste processo a ponderação de alternativas, dos riscos e dos efeitos em ordem a obter a prevenção e o diagnostico a diminuição ou extinção de um sofrimento ou perturbação física ou mental ou de um estado doentio.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

No processo supra referido, no seguimento da instrução, realizada a requerimento do assistente, após despacho de arquivamento pelo MºPº, foi proferido despacho de pronúncia contra o arguido Z..., pela prática dos factos que constam da acusação formulada pelo assistente nos pontos 1 ° a 17°, 19° a 21°, os quais no entender da Ma. Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, consubstancia a prática de um crime previsto e punido pelo artigo 150°, n° 2, do C. Penal.

Findo o inquérito, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento.

1.2.

Vem interpor recurso, o arguido, alegando em síntese:

1- O Arguido é cirurgião plástico, e o Assistente procurou-o para lhe aumentar o volume peniano, com injecções de gorduras retirada do seu corpo.

2- A última intervenção cirúrgica para correcção ocorreu em 13.05.2011.

3- Após essa data o Assistente não mais compareceu às consultas de acompanhamento pós-operatório para regularização morfológica, nem usou o extensor que lhe foi recomendado pelo Arguido.
4- Em Setembro de 2011 apresentou queixa-crime contra o Arguido, alegando a morfologia irregular do seu pénis.

5- Findo o inquérito o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, tendo concluído, em síntese, que durante o mesmo não foram apurados factos donde se concluísse ter o Arguido violado qualquer norma da legis artis, outrossim tendo-se apurado além do mais, que o Assistente após a última intervenção cirúrgica não mais compareceu nas consultas de vigilância pósoperatórias, sabendo, por ter dado o seu consentimento, que todas as cirurgias comportam riscos.

6- Inconformado com tal despacho, o Assistente solicitou a abertura da instrução.

7- Da prova produzida, nada mais se acrescentou aos factos recolhidos em sede de inquérito, como expressamente reconhece a Sa. Juiz do Tribunal de Instrução — vide fls. 7 da decisão instrutória.

8- Porém, a Ma. Juiz fundamenta que não obstante essa circunstância, o Arguido deve ser submetido a julgamento, porquanto o relatório do IML a que foi sujeito, em sede de inquérito, em 14.02.2013, conclui existir nexo de causalidade entre as sequelas alegadas pelo Arguido e a intervenção cirúrgica, a que foi sujeito, mas não diz quais as causas dessas sequelas, mormente se elas são resultado de acto médico violador da legis artis.

9- Entendemos que tal conclusão do IML é absolutamente insuficiente, tal como se considerou no despacho de arquivamento para conduzir o Arguido a julgamento porquanto, o Assistente se recusou a um acompanhamento pós-operatório, como está demonstrado. Aliás, o médico urologista autor do relatório que instruiu o do IML, ouvido em sede de instrução, conforme a M. Juiz reproduziu na decisão instrutória — fls. 5, disse não ser possível afirmar qual a causa da deformação.
10- Sendo a obrigação de um médico uma obrigação de meios como tem vindo a ser aceite pela maioria da nossa jurisprudência, só as intervenções e os tratamentos médico-cirúrgicos levados a cabo violando a legis artis, são penalmente consideráveis artigo 150° C. Penal.
11- Ora, quer em sede de inquérito, quer em sede de instrução, não foram recolhidos indícios suficientes de que o Arguido tenha violado a legis artis, e como tal o mesmo não deveria ter sido pronunciado, antes deveria ter sido proferido despacho de não pronuncia, em consonância com o disposto no artigo 308° do C. P. Penal, que a decisão recorrida viola.
Termos em que se requer a substituição da decisão instrutória por outra que não pronuncie o Arguido.

1.3.

Respondeu o M°P°, concluindo:

1) - Resulta dos autos que o assistente, com vista aos tratamentos efectuados na clínica onde o arguido trabalha subscreveu um termo de autorização donde constava o seguinte: "declaro que consinto nas intervenções cirúrgicas a realizar (com a anestesia considerada necessária pelo cirurgião), e que aceito como bons os resultados obtidos pelas mesmas. Tomei conhecimento, por me terem sido devidamente explicados, todos os riscos inerentes a estes actos terapêuticos (,.)"

2) - Pese embora ter prestado consentimento para a intervenção cirúrgica a que foi sujeito, ter aceite os resultados que seriam obtidos, e o conhecimento dos riscos inerentes a tal acto médico, o assistente não compareceu no consultório do arguido na data previamente designada a fim de retirar os pontos e ser observado, nem fez qualquer revisão cirúrgica (a marcar 2, 4 e 6 meses após a data da cirurgia), deixando de comparecer na referida clínica a partir de 13 de maio de 2011.
3) -Ou seja, o assistente após a última intervenção cirúrgica não mais compareceu nas consultas de vigilância pós-operatórias, sabendo, por ter dado o seu conhecimento, que todas as cirurgias comportam riscos, e largou os tratamentos sem justificação aparente, abandonando as prescrições médicas necessárias.
4) - Resulta ainda dos autos que para além de não ter comparecido às consultas de acompanhamento pós-operatório para regularização morfológica, o assistente não usou o extensor que lhe foi recomendado pelo arguida

5) - O assistente pretendia um aumento do perímetro peniano, o que se concretizou através de uma lipoplastia do pénis, sendo porém discutível que tenha sido essa cirurgia a causa adequada e real da complicação surgida, e que tenha sido eventual violação de legis artis que esteja na base de eventual deformação peniana.
6)- Em medicina, os actos cirúrgicos estão sujeitos a um elevado grau de aleatoriedade, não sendo necessário que haja um erro técnico para que as coisas corram mal.
7) - Um médico cirurgião não pode controlar o improvável. A própria natureza da actividade do médico implica uma série de riscos, e nem tudo é susceptível de previsão, só podendo ser considerada como falta do médico a não previsibilidade do risco previsível, e não a do risco imprevisível.
8) - Como o enxerto aplicado no corpo do arguido está sujeito a grande aleatoriedade podem ter ocorrido circunstâncias exteriores não controláveis pelo arguido, designadamente rejeição do mesmo, relações sexuais precoces ou falta de cuidado no tratamento pós-operatório, que aliadas às supra referidas, não equivalem à existência de erro médico, não se podendo sem mais concluir que o procedimento levado a cabo pelo arguido não tenha estado dentro da legis artis
9) - As complicações morfológicas de que o assistente se queixa e que atribui ao acto médico de cirurgia plástica que o arguido realizou no seu corpo podem não ter resultado em termos de causalidade adequada, da intervenção cirúrgica e do tratamento médico ministrados pelo arguido, podendo ficar a dever-se a actos de indisciplina do assistente no pós-operatório, sendo impossível ao arguido, enquanto cirurgião, - sem a colaboração estreita do paciente aqui assistente -, manter o controlo clínico da situação.
10)  - Como já se referiu, consta dos autos que, encontrando-se o assistente numa fase de regularização morfológica, e sendo do seu interesse contribuir para o sucesso dos tratamentos efectuados, abandonou os tratamentos pós-cirúrgicos de correcção, não compareceu a uma consulta pós operatória, o que dificultou necessariamente o controlo da situação por parte do arguido.
11)  - Dúvidas não existem que para o assistente resultaram as sequelas descritas no douto despacho recorrido por referência ao relatório da perícia médico-legal.
12) - E para o que ao presente recurso interessa são relevantes as conclusões tecidas nos seguintes documentos:
a) -Perícia médico-legal: (..)"os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre as intervenções cirúrgicas constantes da informação e as sequelas urológicas resultantes. Do evento resultaram as sequelas urológicas atrás descritas, que terão resultado das intervenções cirúrgicas descritas. As sequelas urológicas são as seguintes:

Aumento irregular do volume peniano nos seus dois terços proximais, com múltiplos nódulos subcutâneos, endurecidos, de dimensões variáveis e pele peniana com múltiplas pequenas cicatrizes lineares.

Do ponto de vista funcional, tais sequelas são passíveis de interferir com a cópula"(..)

b)-Do relatório médico de fls. 110 consta que o assistente sofria de: deformação grave do corpo do pénis nos seus dois terços proximais, com irregularidade de contorno do órgão,' Presença de múltiplos nódulos subcutâneos de dimensões variáveis, duros, móveis, que produzem aumento muito relevante do diâmetro do pénis nos dois terços proximais,' cicatrizes do corpo do pénis, terço médio. A situação observada é compatível com acto cirúrgico anterior referido pelo doente. A deformação descrita é passível de perturbar, de forma grave, o desempenho sexual do doente, nomeadamente no momento da penetração."

13) - E se é certo que de acordo com o disposto no art° 127 do CPP, "salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente"; no caso dos autos, e tratando-se o relatório do INML de prova pericial, a Mm° JIC está limitada ao que dispõe o art°163 do CPP, que, no que concerne ao valor da prova pericial preceitua no seu " n°1- que " o juízo técnico, científico ou artístico inerente á prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador'; e no seu n°2- que "sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência

14) - Sem embargo, e salvo o elevado e devido respeito por opinião contrária, afigura-se-nos que apesar do relatório do IML concluir no sentido da existência de nexo de causalidade entre as sequelas alegadas pelo assistente e a intervenção cirúrgica efectuada pelo arguido, impõe-se salientar que, quer o mencionado relatório do INML, quer o relatório médico de fls. 110 não esclarecem se essas sequelas, são resultado de acto médico praticado pelo arguido que tenha sido violador da legis adis

15) - Com a factualidade indiciada, face ao abandono pelo assistente dos tratamentos nos termos descritos, eventual não observação pelo mesmo das recomendações médicas prescritas, ­(designadamente a utilização do extensor por forma a manter o tecido adiposo distribuído de modo uniforme, e cuja não utilização pôde dar azo a uma acumulação inadequada desse tecido e sua concentração numa determinada zona do pénis em detrimento de outros), - que seriam essenciais para se aquilatar da evolução do seu estado clínico e da terapia a aplicar não é possível imputar ao  arguido uma eventual violação das boas práticas médicas padronizadas ou da legis artis que  estivesse na base da deformarão peniana do assistente.
16) - Por sua vez, o relatório médico de fls. 110 apenas parece referir uma mera compatibilidade ou possibilidade entre essas sequelas e a actuação do arguido quando refere que " a situação observada é compatível com acto cirúrgico anterior referido pelo doente" Ou seja, a testemunha AP… que elaborou o referido relatório estabeleceu apenas a correspondência desse relatório com a realidade por ele analisada e frisou a existência de uma mera compatibilidade da situação observada com o acto cirúrgico realizado pelo arguido.
17) - Do confronto entre os depoimentos prestados nos autos, documentos e relatório médico juntos e relatório da perícia médico-legal não se nos afigura possível afirmar qual a efectiva causa da deformação alegada pelo assistente.

18) - Não se indiciou que tenha sido em virtude da intervenção cirúrgica e tratamento médico ministrados pelo arguido que o assistente tivesse começado a sentir que o seu pénis não apresentava a elasticidade que até àquela data detinha e que o seu órgão sexual estava morfologicamente defeituoso.
19) - Nem se indicia que tenha sido em virtude da intervenção cirúrgica e tratamento médico ministrados pelo arguido que o pénis do assistente apresentava os mencionados nódulos ("papos') em todo o seu comprimento, impedindo a penetração na cavidade vaginal.

20) - Também não se nos afigura indiciada conduta negligente por parte do cirurgião plástico aqui arguido.

21) - Como bem se refere no douto despacho recorrido, o artigo 150° do Código Penal estabelece uma relação directa entre a violação da " legis artis" e a criação de um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde. Pelo que elemento estruturante do tipo deste crime é a existência de um nexo de causalidade entre o acto que consubstancia a violação da " legis artis" e a criação do perigo, sendo essencial esse nexo causal entre a acção violadora da "legis artis" e a criação dos mencionados perigos.

22) - No caso dos autos não se indicia que o arguido tenha violado a "legis artis", criando os mencionados perigos, sendo que só as intervenções e os tratamentos médico-cirúrgicos levados a cabo violando a "legis artis", são penalmente consideráveis no artigo 150° n° 2 do C.Penal.

23) - Inexistindo nos autos indícios suficientes de que o arguido tenha violado as legis artis e de harmonia com o disposto nos artigos 150 n° 1 do CP e 308° do C. P. Penal, deveria ter sido proferido despacho de não pronúncia.

Pelos expostos fundamentos, deverão V.as Exas dar provimento ao recurso interposto pelo arguido Z..., e, em consequência, determinar que seja o douto despacho recorrido substituído por outro que não pronuncie o arguido pela prática do crime previsto no n° 2 do art° 150° do CP

1.4.

Respondeu o assistente alegando em síntese:

Certo é que os indícios se mostram suficientes quando deles resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança.
Dos elementos recolhidos no inquérito e instrução, conjugados entre si, entende-se haver indícios suficientes para submeter o arguido a julgamento.

Fundamental se revela o relatório do IMDL do qual consta expressamente a possibilidade de as sequelas visíveis no corpo do doente terem como nexo de causalidade as cirurgias a que foi submetido.
Acresce que inegável é que o Assistente foi sujeito a quatro intervenções cirúrgicas, todas com a finalidade de aumentar/corrigir o volume.

E à data da realização do referenciado exame de medicina legal as sequelas e lesões eram evidentes,

Sequelas e lesões cujo nexo de causalidade é admitido no relatório médico-legal.

Acresce que, dos demais elementos do processo, quer documentação clínica, quer prova testemunhal se extraem indícios suficientes para a prossecução dos presentes autos para julgamento. Termos em que V Exas., negando provimento ao recurso e mantendo a decisão recorrida, farão

INTEIRA JUSTIÇA.

1.5.

O M°P° no Tribunal da Relação de Lisboa apôs visto.

2.

2. O objecto de recurso, tal como decorre das conclusões da motivação, reporta-se à apreciação da existência de indícios da prática pelo arguido do crime que lhes é imputado pelo assistente na participação e pelos quais entendia deverem ser pronunciado o arguido, por terem, no seu entender, a necessária consistência para o submeter a julgamento pelo crime p.p pelo art.° 150°, n.°2 CR

2.1.

Resulta da decisão recorrida que:
(..)Passando à análise do caso concreto, vejamos então qual é a decisão a proferir. Estabelece o artigo 150°, do Código penal que:

"1. As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as legis artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física. "
2. As pessoas indicadas no número anterior que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos violando as legis artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhes não couber por força de outra disponibilidade legal. "

Estabelece-se neste artigo uma relação directa entre a violação da "legis artis" e a criação de um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde. Desde logo, como elemento estruturante do tipo de crime aqui em causa, exige-se um nexo de causalidade entre o acto que consubstancia a violação da "legis artis" e a criação do perigo.
É pois essencial a existência desse nexo causal entre a acção violadora da legis artis e a criação dos mencionados perigos.

No caso concreto, o assistente foi submetido tratamentos e intervenções cirúrgicas ao pénis com o propósito de aumentar o seu tamanho.

Após tais tratamentos verificou-se que o assistente apresentava um aumento irregular do volume peniano nos seus dois terços proximais, com múltiplos nódulos subcutâneos, endurecidos, de dimensões variáveis e pele peniana com múltiplas pequenas cicatrizes lineares (..) passíveis de interferir com a cópula.

      No caso concreto, foram ouvidas em sede de instrução várias testemunhas.

A testemunha AP… disse ter visto o assistente apenas em 2009 e 2013. Em 2009 ele pretendia fazer uma correção no tamanho do pénis tendo-lhe dito " que não se metesse nisso". Apareceu em 2013 apresentando, o pénis, uma deformação que não apresentava em 2009 e foi submetido a intervenção cirurgia no Hospital da Arrábida. O estado em que se encontrava o pénis podia ser compatível com a injecção de material debaixo da pele do pénis. Mas não pode afirmar qual foi a causa da deformação.

A testemunha JR diz que viu o doente um vez e lembra-se de ele lhe ter perguntado se havia alguém indicado para lhe fazer uma cirurgia de aumento do pénis. Falou-lhe no Dr. Z… porque era público que ele fazia tal tipo de operações. Disse ainda que o doente tinha um complexo psicológico gravíssimo.
Analisando os autos, verifica-se que do relatório de perícia médico legal de fls. 107 e seguintes consta que "Os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre as intervenções cirúrgicas constantes da informação e as sequelas urológicas resultantes. Do evento resultaram as sequelas urológicas atrás descritas, que terão resultado das intervenções cirúrgicas descritas.

As sequelas urológicas são as seguintes:

Aumento irregular do volume peniano nos seus dois terços proximais, com múltiplos nódulos subcutâneos, endurecidos, de dimensões variáveis e pele peniana com múltiplas pequenas cicatrizes lineares.

Do ponto de vista funcional, tais sequelas são passíveis de interferir com a cópula."

 De fls. 110 consta relatório médico do qual consta que o assistente sofria de:

"Deformação grave do corpo do pénis nos seus dois terços proximais, com irregularidade de contorno do órgão;

Presença de múltiplos nódulos subcutâneos de dimensões variáveis, duros, móveis, que produzem aumento muito relevante do diâmetro do pénis nos dois terços proximais;

Cicatrizes do corpo do pénis, terço médio.

A situação observada é compatível com acto cirúrgico anterior referido pelo doente.

A deformação descrita é passível de perturbar, de forma grave, o desempenho sexual do doente, nomeadamente no momento da penetração."

Também foram analisados os documentos juntos a fls. 141 a 159.
Em Outubro de 2010 consta que o assistente não compareceu à consulta do pós-operatório. (cfr fls. 144).

Em 08.11 consta anotação de que o "sr. J… está muito bem". Em 22.11.2010 não compareceu à consulta. Em 28.12.210 consta anotação de "boa evolução está contente. Feita demonstração do uso do extensor. Não quis pagar o extensor." Em Fevereiro de 2011 consta anotação de que o assistente "continua a insistir em aumentar o volume o que clinicamente não é adequado. Programada correcção para 13 de Maio 11".
O primeiro tratamento do doente foi feito em 02.07.210 em regime ambulatório e com anestesia local. O segundo, foi realizado em 17.09.2010 e o terceiro em 05.11.2010. Em 03.02.2011 e 13.05.2011 foi feita uma regularização morfológica.

Foram analisadas as declarações do arguido de fls. 181 a 183.

As declarações das testemunha M…, médica na clínica do arguido( cfr. fls. 184), G… (cfr. fls. 193) enfermeira na clínica do arguido, C…, auxiliar de acção médica ( fls. 195), S… secretária na clinica do arguido ( cfr. fls. 197).

Da documentação clinica junta aos autos resulta que ao assistente foram feitas pelo arguido quatro intervenções cirúrgicas com a finalidade de aumentar/corrigir o volume peniano.

O arguido, nega que o assistente tivesse ficado, após as cirurgias, no estado em que está descrito no relatório do IML.

As testemunhas supra referidas, pouco vieram esclarecer à excepção dos riscos que tais cirurgias poderiam acarretar.

No entanto, fazendo a análise critica e conjugada do relatório do IML e das anotações clinicas constantes do diário clinico do paciente, permitem que se tire a conclusão diversa da do Ministério Público.
Em primeiro lugar, nas supra referidas anotações nada é referido quanto ao agravamento do estado do doente em virtude de não ter comparecido a umas consultas sendo certo que, após a falta a uma delas até consta, referindo-se ao doente "boa evolução está contente. Feita demonstração do uso do extensor. Não quis pagar o extensor."
O relatório do IML é elaborado de acordo com os elementos clínicos constantes nos autos e observação do doente. Do mesmo consta expressamente a possibilidade de as sequelas visíveis no corpo do doente terem como nexo de causalidade as cirurgias a que foi submetido.
Ora, o assistente foi submetido a tratamentos e cirurgias várias que se estenderam no tempo. Ao verificar que o problema não estava eficazmente resolvido qual a razão de se ter insistido no mesmo?! Certamente que a opinião do médico nestas circunstâncias deverá ser soberana e não pode ceder a insistências do doente.
Nesta fase processual avaliam-se indícios e dos elementos de prova recolhidos no inquérito e instrução, conjugados entre si, entende-se haver indícios suficientes para submeter o arguido a julgamento. Efectivamente havendo um relatório do IML e um relatório médico que alertam para o possível nexo de causalidade existente entre as cirurgias efectuadas e o estado do doente, conjugado com o relato do assistente, entende-se que, nesta fase processual, a decisão terá de ser de pronúncia.

Como se decidiu no Ac. do STJ de 18/05/2006, "Se depois de uma intervenção cirúrgica simples as condições do paciente são piores do que as anteriores, presume-se que houve uma terapia inadequada ou negligente execução profissional. "

Assim, entende-se ser de proferir despacho de pronúncia.

Pelo exposto, o Tribunal pronuncia, para julgamento em processo comum singular, o arguido Z..., pela prática dos factos que constam da acusação formulada pelo assistente nos pontos 1° a 17°, 19° a 21 °, os quais consubstanciam a prática de um crime previsto e punido pelo artigo 150°, n° 2, do Código Penal. (...)

3.
Face aos fins da instrução previstos no art.° 286° CPP, coloca-se a questão de saber se terão os elementos probatórios realizados em fase de instrução confirmado a decisão de arquivamento ou se deverá ser proferida decisão de pronúncia, em ordem a submeter a causa a julgamento.
Nesta fase processual, o que importa é definir quais os juízos indiciários que se podem, desde já, formular sendo certo que, para esse efeito, bastarão juízos de avaliação diferentes dos necessários em sede de julgamento.
Tendo por referência os elementos probatórios recolhidos ao longo do inquérito e da instrução, será que tal avaliação permite, desde já, concluir que existe o grau de "possibilidade razoável" de aplicação de uma sanção penal em sede de julgamento, perspectiva configurada pela actual versão do Cód. Proc. Penal para a apreciação da suficiência de indícios (art.° 283° do C.P.P.) ?.

À decisão recorrida competia, perante o objecto da instrução definido pelo requerimento de abertura da instrução verificar se da investigação realizada resultavam, ou não, indícios suficientes com vista a submeter a julgamento o arguido, por ser essa a actividade concreta requerida ao juiz de instrução.
São os termos referidos no requerimento de abertura de instrução, acerca das razões de facto e de direito da discordância relativamente à não acusação, que definem os exactos termos do objecto de discussão da instrução.
No caso dos autos refere-se ela ao pedido da assistente, no sentido de ser pronunciado o arguido pela prática do crime p.p. pelo art.° 150°,n.°2 CP para o que requereu fossem realizadas certas diligências de prova, em sede de instrução .
Tendo sido, efectivamente, proferido despacho de arquivamento do inquérito, visará a instrução ponderar se do inquérito resultavam já ou se a instrução irá fornecer elementos probatórios indiciários adicionais de forma a que deva ser proferida decisão instrutória comprovativa da decisão de arquivamento ou se, pelo contrário, não pode esta ser confirmada, devendo então ser proferida uma decisão de pronúncia.

A abertura de instrução, com a referida finalidade, pode ser requerida pelo assistente relativamente a factos pelos quais o M°P° não tiver deduzido acusação e deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito da discordância relativamente à não acusação, com indicação das provas a produzir e actos a realizar nessa fase e dos factos que, através de uns e de outros, se visa apurar (art.° 287°, n.°2CPP e 283°, n.°3 b) e c) CPP).

Nessa perspectiva e com a dita finalidade, nos casos em que o M°P° se absteve de acusar, deve o requerimento de abertura de instrução obedecer aos requisitos enunciados no art.° 287°, n.ºs 1 e 2 e 288°, n°4 CPP, nomeadamente indicando as provas que pretende ver realizadas e os factos que pretende ver provados, delimitando assim o objecto da instrução. Este requerimento deve assumir a estrutura de uma verdadeira acusação (art.° 283°, n.°3 b) ex vi do art.° 297°, n.°2) com todas as menções referidas no art.° 283°, n.°3 b) e c) por forma a permitir ao juiz de instrução que profira um despacho de pronúncia, uma vez que não compete ao juiz procurar nos meios de prova do inquérito e da instrução quais os factos indiciados com vista a proferir o suporte fáctico em que deve assentar um despacho de pronúncia.

Trata-se de garantir que a instrução tenha um determinado objecto ou "thema decidendum".

Não se está já em fase de inquérito. em que se procura investigar a existência de factos ilícitos culposos e a sua autoria, nem a instrução é um segundo inquérito.

Há que individualizar comportamentos e responsabilidades com vista a infirmar uma decisão de arquivamento, visando produzir uma verdadeira acusação alternativa de determinados indivíduos por factos concretos e individualizados, susceptíveis de conduzirem à imputação aos mesmos de crimes definidos, o que deve ser feito no requerimento de abertura de instrução para que o juiz, realizadas as diligências com vista a apurar indícios eventualmente em falta, possa no fim da mesma limitar-se a transformar tal "acusação" no despacho de pronúncia, se tais indícios se vierem a apurar.

É que "o requerimento para abertura de instrução formulada pelo assistente constitui substancialmente uma acusação alternativa (ao arquivamento ou à acusação deduzida pelo M°P°) que, dada a divergência com a posição assumida pelo M°P° vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial " (Prof. Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, 264) .

Nessa perspectiva, foi feito o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo ora recorrente em que este, ao longo dos artigos em que expõe as razões de facto e de direito para a sua discordância relativamente ao despacho de arquivamento, enuncia factos que entende poder provar e perante cuja verificação se mostrarão, no seu entender, preenchidos os elementos típicos do crime imputado ao arguido.

No seu requerimento, o recorrente expôs os factos que entende indiciariamente apurados e que poderiam ter servido de suporte a uma acusação, apresentando uma peça que pode servir de base a uma decisão de pronúncia.

Compete à decisão de pronúncia verificar se, perante os factos investigados, existem indícios dos factos descritos na referida acusação alternativa e se estes são susceptíveis de integrar o crime imputado no requerimento de abertura de instrução por forma a submeter o arguido a julgamento.

Compete a esta instância, face ao objecto do recurso, verificar se, perante as diligências realizadas em sede de instrução e inquérito, existem os indícios do crime em causa e com a necessária consistência legalmente exigida, por forma a substituir a decisão de não pronúncia por outra que pronuncie o arguido em causa, conforme requereu o assistente.

Este o objecto de apreciação deste Tribunal, definido da forma referida.

Nos termos do art. 308°, n.° 1, do C.P.P., "Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficiente  de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia".

Por sua vez, o art.283, n.° 2, do mesmo diploma — aplicável "ex vi" do disposto no n.° 2 do predito art. 308° - estatui que "Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança".

"Indiciação suficiente" é, no dizer do acórdão do S.T.J. de 10/12/92, no processo n.° 427747, a verificação suficiente de um conjunto de factos que, relacionados e conjugados, componham a convicção de que, com a discussão ampla em julgamento, se poderão vir a provar - com um juízo de certeza e não de mera probabilidade - os elementos constitutivos da infracção por que os agentes virão a responder.

Ou como refere Figueiredo Dias, in "Direito Processual Penal", pág. 133, "os indícios só são suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente possível a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a sua absolvição".

Como a própria decisão recorrida refere, as testemunhas ouvidas em instrução pouco vieram esclarecer à excepção dos riscos que tais cirúrgias poderiam acarretar.

          Resta apreciar a suficiência de indícios que permitam a sua sujeição a julgamento pela prática do crime do arguido Z….

           A decisão recorrida concluiu pela existência de tais indícios. Refere a mesma que :

No entanto, fazendo a análise critica e conjugada do relatório do IML e das anotações clinicas constantes do diário clinico do paciente, permitem que se tire a conclusão diversa da do Ministério Público.

Em primeiro lugar, nas supra referidas anotações nada é referido quanto ao agravamento do estado do doente em virtude de não ter comparecido a umas consultas sendo certo que, após a falta a uma delas até consta, referindo-se ao doente "boa evolução está contente. Feita demonstração do uso do extensor. Não quis pagar o extensor."

O relatório do IML é elaborado de acordo com os elementos clínicos constantes nos autos e observação do doente. Do mesmo consta expressamente a possibilidade de as sequelas visíveis no corpo do doente terem como nexo de causalidade as cirurgias a que foi submetido.

Ora, o assistente foi submetido a tratamentos e cirurgias várias que se estenderam no tempo. Ao verificar que o problema não estava eficazmente resolvido qual a razão de se ter insistido no mesmo?! Certamente que a opinião do médico nestas circunstâncias deverá ser soberana e não pode ceder a insistências do doente.

Nesta fase processual avaliam-se indícios e dos elementos de prova recolhidos no inquérito e instrução, conjugados entre si, entende-se haver indícios suficientes para submeter o arguido a julgamento. Efectivamente havendo um relatório do IML e um relatório médico que alertam para o possível nexo de causalidade existente entre as cirurgias efectuadas e o estado do doente, conjugado com o relato do assistente, entende-se que, nesta fase processual, a decisão terá de ser de pronúncia.

Como se decidiu no Ac. do STJ de 18/05/2006, "Se depois de uma intervenção cirúrgica simples as condições do paciente são piores do que as anteriores, presume-se que houve uma terapia inadequada ou negligente execução profissional. "

A apreciação da eventual existência de um perigo criado para a vida ou perigo de integridade física, indícios de negligência por parte dos médicos relativamente às intervenções e tratamentos com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental há-de ser apreciada em função das legis artis, em função do conhecimento e da experiência da medicina.

A decisão recorrida concluiu existirem indícios, suficientemente fortes para endereçar o arguido para julgamento, de que existia nexo de causalidade entre as intervenções cirúrgicas levadas a cabo pelo arguido e as sequelas verificadas no assistente após as mesmas intervenções, concluindo que:

" Efectivamente havendo um relatório do IML e um relatório médico que alertam para o possível nexo de causalidade existente entre as cirurgias efectuadas e o estado do doente, conjugado com o relato do assistente, entende-se que, nesta fase processual, a decisão terá de ser de pronúncia."

A decisão recorrida esquece que, para preenchimento deste tipo legal de crime, há que ter como indiciada a existência de comportamentos que tenham contrariado as boas práticas da medicina, e de que não basta para tanto que exista um possível nexo causal entre as intervenções e as sequelas mas sim que se determine indiciariamente que esse nexo será um nexo de causalidade adequada.

Como a mesma refere:

Estabelece o artigo 150°, do Código penal que:

"1. As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as legis artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física. "

2. As pessoas indicadas no número anterior que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos violando as legis anis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhes não couber por força de outra disponibilidade legal. "

Estabelece-se neste artigo uma relação directa entre a violação da "legis artis" e a criação de um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde. Desde logo, como elemento estruturaste do tipo de crime aqui em causa, exige-se um nexo de causalidade entre o acto que consubstancia a violação da "legis anis" e a criação do perigo.

É pois essencial a existência desse nexo causal entre a acção violadora da legis artis e a criação dos mencionados perigos.

O que há que determinar é se, no caso, o arguido agiu com a diligência normal e compatível com a situação e ditada pelas respectivas legis artis ou se, pelo contrário, omitiu o dever objectivo de cuidado, exigível e adequado à situação e que teria evitado o resultado.

Como refere o M°P° na sua resposta : " a decisão clinica é marcada por um risco de incerteza profunda e, numa abordagem da definição de risco (que existe em todos os contextos da actividade médica- e que se define como a probabilidade que o caso cause em qualquer dano a um doente) há que encarar directamente, para o poder comunicar, medir e por último gerir.

E é essa incerteza que faz parte da actuação médica sendo que o erro conforme o definiu o Dr. João Vaz Rodrigues, em intervenção pública no âmbito do I Congresso Sobre negligência Médica, organizado pela Ordem dos Advogados "....consiste na desconformidade entre o conhecimento e a acção, ou omissão, com as eventuais consequências" ..

Mais referindo que 1..Entre os deveres médicos avultam o de tratar em conformidade com as legis artis, isto é, respeitando as regras técnicas adequadas ao procedimento exigível. Contudo, em regra, as sequelas desta actuação técnica não têm de forçosamente conduzir ao resultado pretendido, o diagnóstico pode não ser atingido, a terapia pode falhar. Ao médico basta-lhe medicar. Exige-se-lhe que empregue os meios correctos para a finalidade, incluindo neste processo a ponderação de alternativas, dos riscos e dos efeitos em ordem a obter a prevenção e o diagnostico a diminuição ou extinção de um sofrimento ou perturbação física ou mental ou de um estado doentio..."

Encontrando-nos assim perante uma obrigação de meios e não de resultados, cruzada que se encontra com a inerente incerteza somos levados a concluir que é apenas fora do campo das más opções viáveis, técnico cientificamente determinadas, que o erro médico revelará juridicamente, até essa fronteira terá meramente o médico de responder perante a sua consciência ou os seus pares.

Conclusão essa também extraída, entre outros, nos AC. do STJ de 5 de Julho e no Ac. de 27 de Outubro de 1998 da Relação de Lisboa onde se concluiu que .." se um médico actuou segundo a normalidade da prática clínica a circunstância dos resultados dessa actuação terem sido nocivos para o paciente não determina a existência de um erro que configure caso de negligência médica..."

Sabido como é que a prática da Medicina envolve riscos e, no caso concreto, tal como afirmado pela testemunha V…, referenciado na decisão cível que indeferiu o pedido de arbitramento de indemnização provisória, médico cirurgião plástico, está-se perante uma intervenção de natureza plástica e não urológica, o que, aliás, decorre do processo e dos relatórios médicos e documentação clínica junta ao mesmo.

Conforme resulta de toda a informação constante dos autos, a intervenção era de lipoplastia do pénis para aumento do perímetro peniano e o excerto, a cirurgia em si mesma, está sujeita a grande aleatoriedade, sendo impossível ao cirurgião assegurar o resultado mas apenas os meios necessários. tendo o assistente sido informado de todos os riscos envolvidos.

De acordo com o que resulta da respectiva documentação clínica, nomeadamente registos de consultas e de tratamentos e das fotografias juntas a fls 40 e ss., não resulta indiciado que o procedimento seguido pelo arguido não tenha observado o comportamento padronizado para o efeito pretendido.

O que fortemente se indicia, face à documentação clínica existente, é que houve abandono dos tratamentos e conselhos médicos no pós-operatório, na data de 13 de Maio de 2011, o que impossibilitou o controlo clinico da situação por parte do arguido, facto que se apurou no inquérito e que não foi infirmado em sede de instrução.

Como refere o M°P° : "Conforme decorre e fls 150, os tratamentos efectuados surtiram efeitos existindo o desejado aumento peniano e que nessa fase existiu uma total aderência do queixoso ao tratamento, conclusão bem expressa nos fotogramas de fls 150 que evidenciam os resultados obtidos sem observação de nódulos ou deformidades,

Por outro lado, e não obstante se pudessem em abstracto suscitar reservas quanto aos posteriores resultados a nível estético advindos da intervenção do arguido, a verdade é que não se pode de alguma forma concluir pela violação de uma qualquer norma ou procedimento que possa estar na base do ocorrido (deformações) fazem parte dos riscos inerentes à intervenção levada a cabo, sendo passíveis de correcção como é bem expresso nos autos.

Não merece assim credibilidade a versão do ofendido por não ter enquadramento dentro da prova documental, e testemunhal recolhida."

Não existe qualquer indício nos autos de que o procedimento usado tenha sido negligente ou menos diligente e correcto ou sequer que tenha existido algum desvio das legis artis.

A ter-se apurado qualquer desvio desse tipo é que se poderia falar, sem grande margem de atropelo dos princípios gerais do Direito, de uma presunção de que as sequelas verificadas teriam resultado causalmente de tal violação.

Já estabelecer um nexo causal, entre uma cirurgia e sequelas depois dela verificadas e relacionadas com o acto médico permitiria, salvo o devido respeito, estabelecer urna presunção entre as sequelas e a intervenção cirúrgica mas não quanto ao duplo nexo causal, também exigível entre a sequela e uma eventual violação das legis artis.

Além de que afirmá-lo fora deste específico contexto seria confundir perigosamente o que seja causa adequada com causa sine qua non.

Não resulta indiciariamente provada uma relação de causalidade adequada e directa entre a intervenção cirúrgica feita pelo arguido e as lesões do assistente.

A ocorrência de reacções pós-operatórias, não implica que tenha sofrido uma conduta negligente por parte do Arguido. Aliás, o que indiciariamente se verifica é que foram adoptados por parte do médico todos os comportamentos médicos adequados sem que se tenha alegado ou verificado, sequer numa perspectiva de indícios ainda que de pouca consistência, indícios que apontem no sentido de qualquer violação nesse sentido ou de qualquer conduta menos diligente.

O que se apurou indiciariamente foi que o assistente, depois de se ter mostrado satisfeito com os primeiros tratamentos, estando indiciariamente provado ainda que os resultados estavam de acordo com as previsões normais ( vide registo de consultas e fotografias ), abandonou o acompanhamento pós-operatório, impossibilitando o controlo clinico da situação em essencial do tratamento com extensor e regularização de possíveis alterações morfológicas, tal como é referido na ficha clinica do mesmo.

Como salienta o M°P° e ao contrário do afirmado pela a decisão recorrida " da ficha clinica constam as consequências do abandono dos tratamentos, de forma absolutamente clara na anotação datada de 25.05.2011."

Assim, discordando da decisão recorrida pelas razões expostas, resulta da análise feita da prova recolhida, em sede de inquérito e de instrução, que não existem suficientes indícios, na perspectiva atrás apontada, de que o arguido não tenha actuado com a diligência de que era capaz e que poderia ter tido no caso, não havendo indícios de que fosse exigível ao arguido outra conduta, perante a situação e os conhecimentos concretos que possuía, nem que lhe seja imputável qualquer falta de conhecimento indispensável a outra avaliação mais adequada da mesma, nem que o resultado ou o perigo deste ocorrer fosse de prever naquele quadro e que tivesse sido causalmente determinado pelas condutas adoptadas ou omitidas.

Nessa perspectiva, os indicios recolhidos nos autos não são de molde a fazer esperar uma condenação do arguido como mais provável do que a sua absolvição, pelo que não é consentido com tão pouca prova e convicção indiciária, uma decisão de pronúncia.

4.

Pelo exposto, acordam os juízes em dar provimento ao recurso, revogando a decisão de pronúncia que substituem por uma decisão de não pronúncia do arguido pelo crime que lhe era atribuído na denúncia e que foi investigado em inquérito que culminou com decisão de arquivamento não suficientemente contrariada pela instrução realizada. Custas pelo assistente com tj fixada em 4 UC.

Lisboa, 07.10.2014

Filomena Lima

Ana Sebastião

Texto elaborado e revisto pela relatora Filomena Lima e assinado pela Desembargada Adjunta Ana Sebastião, em conformidade com a conferência.