Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
17355/15.5T8LSB.L1-4
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: CONVENÇÃO COLECTIVA
REGULAMENTO
REGRAS DE INTERPRETAÇÃO
SUCESSÃO NO TEMPO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: 1–Aos regulamentos que sejam uma emanação de um instrumento de regulamentação coletiva de trabalho aplicam-se as regras de interpretação e sucessão no tempo também aplicáveis às normas de pendor regulativo destes.
2–Se, no momento da ocorrência de um facto, o regulamento associa a tal facto um determinado efeito, é o regulamento então vigente que tem aplicação à situação jurídica subsequentemente desencadeada.

(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


CCC, Réu, com sede na Rua de ... ..., n.º ..., ...-... Lisboa, notificado da sentença e não se podendo com ela conformar, vem da mesma interpor recurso.

Pede a revogação da sentença com improcedência da ação.

Formula as seguintes conclusões:

1-Não se provou que a recorrida mulher tivesse renunciado à ADSE, mas tão só que cessou os descontos para a ADSE, em novembro de 2013.
2-A sentença considerou a cessação de descontos equiparável à renúncia, porem não existe no processo qualquer elemento que permita extrair tal conclusão, ocorrendo assim erro de julgamento.
3-Independentemente desta questão, na data em que os recorridos formularem junto do recorrente o pedido para a recorrida mulher ser beneficiária plena do seu SAMS, por ter cessado os descontos para a ADSE já não existia norma que possibilitasse que ela tivesse tal qualidade.
4-Com efeito, embora a recorrida mulher tivesse cessado os descontos para a ADSE em 30.11.13 apenas em 05.05.14 o beneficiário titular - o recorrido marido - veio exercer junto do recorrente o direito que a mulher passasse a ser beneficiária plena (deixando de estar em regime de complementaridade que é o regime aplicável ao beneficiário familiar que é simultaneamente beneficiário da ADSE).
5-Ora, em 27.03.14, o artigo 9º do Regulamento do SAMS sobre o assunto foi alterado passando a resultar do seu nº 2 que quem voluntariamente perdesse a qualidade de beneficiária da ADSE (ou seja, que deixasse voluntariamente de estar abrangido por outro subsistema de saúde), como foi o caso da recorrida mulher, continuava no regime de complementaridade, isto é, não passava a beneficiário pleno, como acontecia antes da alteração.
6-A data relevante para apreciar o pedido para a recorrido mulher ser beneficiária plena do SAMS, não é a data em que a mesma deixou de efetuar descontos para a ADSE – como mal considerou a sentença recorrida – mas, sim, a data em que o pedido foi formulado junto do recorrente, ou seja, 05.05.14.
7-E, em 05.05.14, já não existia norma que permitisse que a recorrida mulher fosse beneficiária plena do SAMS, dada a ocorrida alteração do nº 2 do artº 9º do Regulamento aplicável. Ocorreu, assim, erro de julgamento.
8-E a sentença recorrida mal interpretou e aplicou o artigo 12º do Código Civil no que respeita à sucessão das leis no tempo, no caso o mencionado no nº 2 do artigo 9º do Regulamento em questão.

AAA e mulher BBB,  contra-alegaram concluindo que a sentença não merece censura.

O MINISTÉRIO PÚBLICO emitiu parecer no sentido de a sentença não merecer reparo.

O Recrte. respondeu.
*

Os autos resumem-se como segue:

AAA e mulher BBB, intentaram a presente ação declarativa comum contra CCC, pedindo que:
a.-Seja reconhecido que a autora mulher é beneficiária de pleno direito de todas as prestações concedidas pelos Serviços de Assistência Médico-Social do Sindicato réu à generalidade dos seus beneficiários familiares;
b.-Seja reconhecido, como consequência, que a autora mulher não se encontra circunscrita ao regime de complementaridade estabelecido no n.º 2 do artigo 9º e no artigo 16º, ambos do Regulamento da Prestação de Saúde e Beneficiários (Regime Geral), aprovado em 19 de Novembro de 2003, pelos Conselhos Gerais dos Sindicatos do Centro do Norte e do Sul e Ilhas, revisto pela última vez em 27 de Março de 2014;
c.-Seja eliminada pelo Sindicato réu, através dos Serviços de Assistência Médico-Social por si geridos, qualquer referência no processo individual da mulher que pressuponha a inscrição desta noutro subsistema de saúde, nomeadamente na ADSE (Assistência na Doença aos Servidores do Estado).

Fundamenta a sua pretensão alegando que tendo a autora mulher renunciado à sua inscrição na ADSE em 30.11.2003 deve ser considerada beneficiária de pleno direito de todas as prestações concedidas pelos serviços de assistência médico-social do Sindicato réu.

Realizada a audiência de partes e frustrada a conciliação, a contestou por exceção a forma de processo, a caducidade do direito dos autores e por impugnação os factos e conclusões articuladas pelos autores.

Notificados responderam os autores às exceções.

Realizou-se audiência de discussão e julgamento, finda a qual foi proferida sentença que julgou a ação procedente, e, em consequência decidiu reconhecer que desde 09 de Outubro de 2014 a autora mulher BBB é beneficiária de pleno direito de todas as prestações concedidas pelos Serviços de Assistência Médico-Social do Sindicato réu à generalidade dos beneficiários familiares com as consequências inerentes (que a autora mulher não se encontra circunscrita ao regime de complementaridade assim como a eliminação a qualquer referência no processo individual da autora que pressuponha a inscrição noutro subsistema de saúde, nomeadamente a ADSE).
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As conclusões delimitam o objeto do recurso, o que decorre do que vem disposto nos Art.º 608º/2 e 635º/4 do CPC. Apenas se exceciona desta regra a apreciação das questões que sejam de conhecimento oficioso.
Nestes termos, considerando a natureza jurídica da matéria visada, são as seguintes as questões a decidir, extraídas das conclusões:
1ª–Ocorre erro de julgamento derivado do facto de não se ter provado que a Recrdª mulher tivesse renunciado à ADSE?
2ª–A data relevante para apreciar o pedido para a recorrido mulher ser beneficiária plena do SAMS é a data em que o pedido foi formulado junto do recorrente, ou seja, 05.05.14, altura em que já não existia norma que permitisse que a recorrida mulher fosse beneficiária plena do SAMS?
***

Comecemos pelo erro de julgamento, relativamente ao qual apenas se invoca que não se provou que a recorrida mulher tivesse renunciado à ADSE, mas tão só que cessou os descontos para a ADSE, em novembro de 2013. A sentença considerou a cessação de descontos equiparável à renúncia, porem não existe no processo qualquer elemento que permita extrair tal conclusão, ocorrendo assim erro de julgamento.

A impugnação da decisão relativa à matéria de facto obedece a um mecanismo próprio, especificado no Artº 640º do CPC.

O Recrte. não cumpre nenhum dos ónus dali emergentes, a saber, a especificação do concreto ponto de facto que considera incorretamente julgado, os concretos meios probatórios em causa e a decisão a proferir sobre a questão de facto impugnada.

Contudo, olhando para a sentença, percebe-se que está em causa um único ponto de facto – o 15º -, relativamente ao qual se alega que a sentença se funda numa declaração da qual não emerge a renúncia.

Compulsada a sentença, deu-se como provado que em 30 de Novembro de 2013 a autora/mulher renunciou à inscrição na ADSE, esclarecendo-se na fundamentação:

No que concerne aos factos enunciados sob os n.ºs 2.1.11. e 2.1.15. o tribunal considerou os documentos juntos a fls. 40 e 83 que consubstanciam as declarações emitidas em 10.09.2014 e 08.10.2014 dos autos e cujas declarações aí contidas não foram contraditadas. Argumenta o réu que tais declarações não fazem prova da renúncia da autora mulher à inscrição na ADSE, apresentando como argumento que tal documento deveria ser emitido por aquela entidade. Pese embora, se reconheça alguma pertinência na argumentação da ré no sentido que poderiam os autor ter sido mais rigorosos nessa prova tal não invalida o que inequivocamente se pode retirar das declarações contidas no documento emitido pelo IAPMEI. E deste de forma inequívoca se retira, que a autora iniciou os descontos para a ADSE em 01 de Janeiro de 2009 e cessou em 30.11.2003. Tudo isto sem olvidar a declaração aí contida e deve ser contextualizada com as datas ali referidas que “de acordo com esta inovação legislativa a inscrição dos trabalhadores na ADSE depende da respetiva vontade individual, assim como a suspensão da qualidade de beneficiária da ADSE”. Donde resulta sem dúvida para o Tribunal que tais descontos cessaram por vontade manifestada pela autora o que equivale à renúncia. Considerando tudo isto se considerou provada a matéria em causa.

Nada temos a censurar quanto à fundamentação assim exarada, afigurando-se-nos que o juízo de provado que foi efetuado se deve manter.
***

FUNDAMENTAÇÃO:

DE FACTO:

Com relevância para a discussão da causa estão provados os seguintes factos:
1.-O autor marido é trabalhador do Banco de Portugal, com a categoria profissional de técnico assessor, instituição onde exerce funções desde 01 de Agosto de 1985.
2.-O local de trabalho do autor marido situa-se atualmente na Av. Almirante Reis, n.º 71, Lisboa.
3.-O autor marido não é filiado em qualquer sindicato.
4.-O autor é beneficiário do SAMS do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas com o n.º 2983724.
5.-Os autores são casados entre si.
6.-Em 19 de Novembro de 2003, os Conselhos Gerais dos Sindicatos do Centro, Norte e do Sul e Ilhas aprovaram o Regulamento da Prestação de Serviços de Saúde e Beneficiários (regime geral), junto a fls. 41/51 e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
7.-O regulamento referido no número anterior foi revisto pela última vez em 27 de Março de 2014 nos termos que constam do documento junto a fls. 28/38 e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
8.-A autora/mulher é beneficiária dos SAMS geridos pelo sindicato/réu com o número 3705376.
9.-A autora/mulher é funcionária do IAPMEI - Agência para a Competitividade e Inovação, IP, organismo onde exerce funções desde 3 de Janeiro de 1990, em regime de contrato individual de
trabalho.
10.-O IAPMEI - Agência para a Competitividade e Inovação, IP é um instituto público.
11.-Em 01 de Janeiro de 2009 a autora/mulher optou pela inscrição como beneficiária titular da ADSE.
12.-A partir de 01 de Janeiro de 2009 a autora/mulher tinha direito à comparticipação dos SAMS em despesas que não fossem comparticipadas pela ADSE ou na parte em que o não fossem, ou seja, no denominado “regime de complementaridade”.
13.-O artigo 9º do Regulamento foi alterado em 27 de Março de 2014, por deliberação do Conselho Geral do Sindicato réu, de acordo com a proposta que lhe foi apresentada pela Direcção junta a fls. 52 e s. e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzida.
14.-A proposta era no sentido do regime de complementaridade passar a abranger não só os beneficiários familiares que efetivamente dispusessem de outro subsistema de saúde, mas também os que dele pudessem dispor ainda que, por opção, ao mesmo não aderissem ou a ele renunciassem.
15.-Em 30 de Novembro de 2013 a autora/mulher renunciou à inscrição na ADSE.
16.-Em 05 de Maio de 2014 o autor/marido remeteu ao sindicato/réu o email junto a fls. 58 e s. e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
17.-Por email de 07 de Maio de 2014, junto a fls. 60/61 dos autos, o SAMS, através do seu funcionário (…), informou o autor que “Com base na nova redação ao n.º 2 do artigo 9º do Regulamento de Prestação de Serviços de Saúde e Beneficiários, aprovado pelo Conselho Geral no dia 27 de Março de 2014, não podemos efetuar a alteração solicitada no mail.”
18.-Em 19 de Maio de 2014, por email junto a fls. 62/63, o Sindicato réu, através da funcionária (…) da secção de inscrição de sócios e beneficiários da unidade de serviços partilhados do SBSI/SAMS, solicitou identificação do organismo onde a beneficiária presta atividade.
19.-Por email de 22 de Maio, junto a fls. 66/67 dos autos, respondeu o marido informando, “a minha mulher trabalha no IAPMEI - Agência de Inovação, é um instituto público mas na administração indireta do Estado.
Já solicitei ao organismo em questão, a documentação que comprova a voluntariedade dos empregados do IAPMEI em aderir ou não à ADSE e poder sair quando assim o entenderem, uma vez que todos eles têm contrato individual de trabalho e que nunca houve obrigatoriedade de descontos para a ADSE.
Logo que tiver em meu poder esse documento enviá-lo-ei.”
20.-Por e-mail de 28 de Maio de 2014, junto a fls. 70 dos autos, o autor marido enviou a (…) informação sobre a natureza jurídica do IAPMEI e cópias de três documentos, “ficha doutrinária”, “alterações ao decreto-lei n.º 118/83 de 26 de Fevereiro” e “comunicado n.º 4/2009” do IAPMEI, juntos a fls. 72 a 77 e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
21.-Em 27 de Junho de 2014, por e-mail junto a fls. 78 e s. dos autos, o autor marido foi informado, por correio eletrónico, que o SAMS não iria proceder à alteração solicitada na situação da autora mulher perante aqueles serviços “pelo facto de a mesma não se enquadrar”.
22.-Em 09 de Outubro de 2014 o autor marido remeteu ao Presidente do Conselho de Gerência dos Serviços de Assistência Médico- Social do (…), o escrito junto a fls. 80/82 dos autos e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
23.-A Direcção do (…) ré respondeu ao autor por carta de 12 de Novembro de 2014, junta a fls. 85 e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
24.-Dá-se por integralmente reproduzido o documento designado por “normas complementares do regulamento da prestação de serviços de saúde a beneficiários (regime geral) ”, junto a fls. 86/103.
25.-Até à presente data, o  réu e o SAMS pelo mesmo gerido mantêm o enquadramento da autora mulher como beneficiária em regime de complementaridade, não aceitando suportar as despesas de saúde por esta efetuadas, que entende serem da responsabilidade da ADSE, nem lhe permitindo aceder gratuitamente aos cuidados de saúde administrados nos serviços do SAMS.
26.-O autor marido só remeteu com a comunicação de 09.10.2014 referida no ponto em 2.1.22. a declaração emitida pelo IAPMEI junta a fls. 83 e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
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O DIREITO:

A questão que elencámos em 2º lugar revela-se fulcral na apreciação da matéria em discussão:
-A data relevante para apreciar o pedido para a recorrido mulher ser beneficiária plena do SAMS é a data em que o pedido foi formulado junto do recorrente, ou seja, 05.05.14, altura em que já não existia norma que permitisse que a recorrida mulher fosse beneficiária plena do SAMS?

Transcrevemos de seguida um excerto da sentença que nos elucida sobre o regime legal aplicável ao pedido formulado nesta ação:

De acordo com a cláusula 130º do Acordo de Empresa celebrado entre o Banco de Portugal e a Federação do Sector Financeiro, publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 46, de 15 de Setembro de 2009,
“1.-Aos trabalhadores abrangidos por este acordo é assegurada a assistência médico-social nos termos dos n.ºs 2 e 3.
2.- Os serviços de assistência médico-social - SAMS – constituem entidades autónomas, dotadas das verbas referidas na cláusula 132ª, e são geridos pelo Sindicato dos Bancários do Centro, Sindicato dos Bancários do Norte, Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, Sindicato Nacional dos Quadros e Técnicos Bancários e Sindicato Independente da Banca.
3-Os SAMS proporcionam aos seus beneficiários serviços e compartições em despesas no domínio da assistência médica, meios auxiliares de diagnóstico, medicamentos, internamentos hospitalares e intervenções cirúrgicas, de acordo com as suas disponibilidades financeiras e regulamentação interna. (…).”
Por seu turno estabelece a cláusula 131º, n.ºs 1 e 2 do Acordo de Empresa supra identificado que “1 - São beneficiários do SAMS os titulares das prestações, em relação às quais o Banco é obrigado a contribuir, nos termos do n.º 1 da cláusula seguinte, independentemente de filiação sindical, sendo beneficiários dos SAMS do Sindicato Nacional dos Quadros e Técnicos Bancários os sócios desse Sindicato Independente da Banca os sócios deste Sindicato. Os demais trabalhadores bancários beneficiarão dos SAMS dos Sindicatos dos Bancários do Centro, do Norte ou do Sul e Ilhas, conforme o seu local de trabalho se situe na área geográfica de um ou outro dos referidos três Sindicatos, mantendo-se nessa situação após a passagem à reforma.
2-São igualmente beneficiários os familiares dos titulares das prestações referidas no n.º 1 da cláusula seguinte, nos termos dos regulamentos internos adotados pelos SAMS.”

De acordo com o disposto no artigo 3º, n.º 1, alínea a) do Regulamento SAMS, “(S)ão, ainda, beneficiários dos SAMS, os elementos do agregado familiar dos beneficiários titulares referidos nas alíneas a) b) e c) do n.º 2 do artigo anterior, a seguir designados:

a)Cônjuge, sem disposto no número 4;”
De acordo com o disposto no artigo 9º, n.º 2 do Regulamento do SAMS, “(O)s beneficiários familiares referidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 3º, que sejam simultaneamente beneficiários titulares de outro subsistema de saúde, terão apenas direito à atribuição de benefícios em regime de complementaridade.”
Com a alteração de 27 de Março de 2014, o preceito legal em causa passou a ter a seguinte redação “(O)s beneficiários familiares referidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 3º, que sejam ou possam ser beneficiários titulares de outro subsistema de saúde, associação e/ou similar que prossiga os mesmos fins, terão apenas direito à atribuição de benefícios em regime de complementaridade.”

O artigo 9º, n.º 4, do Regulamento estabelece que “(O) direito aos benefícios previstos no presente Regulamento, adquire-se após o efetivo reconhecimento da qualidade de beneficiário, sem quaisquer efeitos retractivos.”
O artigo 16º, n.º 1 da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro,
“(P)odem inscrever-se como beneficiários titulares da ADSE todos os trabalhadores que exerçam funções públicas, independentemente da modalidade de constituição da sua relação jurídica de emprego público”.
O artigo 12º do Decreto-Lei n.º 118/83 de 25.02, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 234/2005, de 30.02., “1 - Podem inscrever - se como beneficiários titulares da ADSE todos os trabalhadores que exerçam funções públicas, independentemente da modalidade de constituição da sua relação jurídica de emprego público, com exceção dos que hajam anteriormente renunciado à qualidade de beneficiário. 2 - A faculdade prevista no número anterior deve ser exercida pelo interessado no prazo de seis meses a contar da data de constituição da primeira relação jurídica de emprego público, mediante pedido de inscrição confirmado pela entidade processadora de remunerações. 3 - Considera -se que renunciam definitivamente à inscrição na ADSE os beneficiários titulares que o requeiram, a todo o tempo, ou que não exerçam, atempadamente, a faculdade prevista no n.º 1. (…).”

O artigo 6º das “Normas Complementares do Regulamento da Prestação de Serviços de Saúde e Beneficiários (regime Geral)” do SAMS dispõe o seguinte:
“1.-Os SAMS podem exigir, a qualquer tempo, a confirmação dos elementos de prova da qualidade de beneficiário.
2.-Todas as alterações verificadas no processo de inscrição e de revalidação da qualidade de beneficiário serão obrigatoriamente comunicadas aos SAMS, no prazo máximo de 22 dias úteis.
3.-O não cumprimento do disposto no número anterior, por parte dos beneficiários, suspende a atribuição de benefícios.”

Em causa neste recurso está uma questão de aplicação no tempo dos regulamentos internos mencionados nas Clª 130º e 131º do Acordo de Empresa acima mencionado, mais concretamente o Artº 9º/2.

Alega o Recrte. que na redação primitiva, o beneficiário familiar que renunciasse à ADSE deixava de estar abrangido pelo regime de complementaridade, desde que lhe fosse reconhecida a qualidade de beneficiário. Na redação revista, que é a redação atual, o beneficiário familiar que renuncia à ADSE mantém-se, na mesma, no regime de complementaridade. 

A sentença reconheceu que a A. mulher é, desde 9/10/2014, beneficiária de pleno direito de todas as prestações concedidas pelos SAMS, não se encontrando circunscrita ao regime de complementaridade. Parece, pois, ter-se fundado na norma contida no Artº 9º/2 do regulamento acima referido, na redação de 2003, da qual constava que os beneficiários familiares referidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 3º (entre os quais o cônjuge), que sejam simultaneamente beneficiários titulares de outro subsistema de saúde, terão apenas direito à atribuição de benefícios em regime de complementaridade. Dali se extraía que aqueles que não sejam simultaneamente beneficiários de outro subsistema de saúde teriam direito aos benefícios totais do SAMS.
Com a alteração de 27 de Março de 2014, o preceito em causa passou a ter a seguinte redação “(O)s beneficiários familiares referidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 3º, que sejam ou possam ser beneficiários titulares de outro subsistema de saúde, associação e/ou similar que prossiga os mesmos fins, terão apenas direito à atribuição de benefícios em regime de complementaridade.”

O Apelante funda-se na circunstância de, à data em que o pedido de inscrição da A. mulher foi formulado, - 5/05/2014 – já a nova redação estar em vigor.

Resulta do acervo fático que em 19 de Novembro de 2003, os Conselhos Gerais dos Sindicatos do Centro, Norte e do Sul e Ilhas aprovaram o Regulamento da Prestação de Serviços de Saúde e Beneficiários (regime geral), junto a fls. 41/51, regulamento esse que foi revisto pela última vez em 27 de Março de 2014.

Mais resulta que em 30 de Novembro de 2013 a autora/mulher renunciou à inscrição na ADSE. E em 05 de Maio de 2014 o autor/marido remeteu ao sindicato/réu o email junto a fls. 58 e ss., do qual consta, entre outros, o pedido formulado pelo A. para que a sua mulher pudesse voltar a beneficiar de todos os serviços associados ao cartão do SAMS.

Aos regulamentos acima mencionados, enquanto emanação de um instrumento de regulamentação coletiva de trabalho aplicam-se as regras de interpretação e sucessão no tempo também aplicáveis às normas de pendor regulativo destes.

No caso, trata-se de uma típica norma de cariz regulativo, pelo que, conforme ensina Pedro Romano Martinez, “partindo do pressuposto de que as convenções coletivas de trabalho, na parte regulativa, como produzem efeitos em relação a terceiros, se aproximam da lei, quanto á sua interpretação deve recorrer-se ao Artº 9º do CC” (Direito do Trabalho, 5ª Edição, Almedina, 1222). Contudo, sempre tendo presente a especificidade desta fonte e, muito concretamente, que “das negociações havidas podem, nalguns casos, retirar-se elementos importantes para a interpretação das regras constantes da convenção coletiva de trabalho” (idem). Extrapolando, confrontando-se o intérprete com um problema de aplicação no tempo de normas daquele teor, regem os princípios consagrados no Código Civil.

Isto mesmo se pode extrair do que vem decidindo o STJ que, no Ac. proferido em 12/05/2016, no âmbito do Procº 1607/14.4TTLSB, decidiu que é “inquestionável que, na respetiva interpretação, se deverá aplicar os critérios estabelecidos nos arts. 9º e 10º do CC, sem todavia perder de vista as “circunstâncias em que as partes fundamentaram a decisão de contratar”, como estipulado no art. 520º, nº 2 do CT e, bem assim, que se trata de um instrumento que é decorrente de negociações entre as partes e, nessa medida, se distingue da lei, fornecendo aquelas negociações elementos relevantes para a interpretação nas respetivas cláusulas” consignando:
“Como se refere no acórdão nº 7/2010, proc. 3976/06.0TTLSB.L1.S1 (Cons. Vasques Dinis), publicado no DR, Iª série de 9/07/2010, “na interpretação das cláusulas das convenções coletivas de trabalho de conteúdo normativo, ou regulativo – como é o caso -, há que ter presente, por um lado, que elas consubstanciam verdadeiras normas jurídicas e, por outro, que provêm de acordo de vontades de sujeitos privados”, havendo, por conseguinte, que obedecer às regras próprias de interpretação da lei (cfr. no mesmo sentido o acórdão do STJ de 28/09/2005 – Cons. Sousa Peixoto – publicado no DR, Iª série de 10/11/2005) e de 30/04/2014, proc.3230/11.6TTLSB.S1 (Cons. Melo Lima).
Também a doutrina assim o entende, ainda que, porventura, de uma forma mitigada, tendo em conta o vertente negociável das convenções coletivas.
Refere Maria do Rosário Palma Ramalho: “A doutrina nacional tem esgrimido vários argumentos nesta matéria, para concluir ou no sentido da sujeição da convenção coletiva às regras de interpretação da lei, ou para sustentar uma interpretação dualista, sujeitando as cláusulas obrigacionais da convenção às regras do art. 236º do CC e as cláusulas normativas às regras do art. 9º do CC. Por seu turno, a jurisprudência tem-se inclinado preferencialmente, mas não de forma unânime para a sujeição das convenções coletivas às regras da interpretação da lei… A interpretação da convenção coletiva e a integração das suas lacunas deve sujeitar-se globalmente aos critérios de interpretação e de integração da lei (arts. 9º e 10º do CC), pela seguinte ordem de razões: razões de coerência interna das duas parcelas do conteúdo deste instrumento; razões de substancialidade; razões formais e de segurança jurídica; e razões de harmonia intra-sistemática… Além disso, é a natureza parcialmente (mas predominantemente) normativa da convenção coletiva que justifica a sua interpretação de acordo com os parâmetros de interpretação da lei… E, obviamente, é ainda esta natureza normativa que justifica a admissibilidade do controlo da constitucionalidade das cláusulas das convenções, recentemente sufragada pelo Tribunal Constitucional, em inflexão acertada da tendência jurisprudencial anterior”[1] (www.dgsi.pt).
Também António Menezes Cordeiro defende que “a interpretação e a integração das convenções coletivas seguem as regras próprias de interpretação e de integração da lei, com cedências subjetivistas quando estejam em causa aspetos que apenas respeitem às partes que as hajam celebrado”[2].”

A questão a que temos que dar resposta é, mais propriamente, qual o facto relevante para a aplicação da norma regulamentar: a apresentação do pedido ou a renúncia à ADSE?

Consignou-se na sentença que “releva para aferir do efetivo direito da autora mulher as normas que se encontravam em vigor à data em que aquela renunciou ao benefício da ADSE”, considerando-se “inequívoco que a pretensão dos autores deve ser apreciada à luz da versão do Regulamento do SAMS vigente à data, ou seja, na redação de 23 de Novembro de 2013…”.

Defende o Recrte. que à data em que o pedido foi formulado pela A. mulher para ser beneficiária plena já o Artº 9º/2 tinha nova redação, pelo que é essa a aplicável.

Contrapõem os Recrdºs. que aquele confunde a existência do facto com o seu conhecimento e que para que tal tese tivesse algum cabimento seria necessário que o regulamento em discussão erigisse como facto constitutivo da qualidade de beneficiário, não o preenchimento dos respetivos pressupostos, mas o conhecimento pelo SAMS da existência desses pressupostos, o que claramente não é opção do mesmo.

Afigura-se-nos que a razão está do lado dos Apelados.

Em primeiro lugar porque a regra é a da não retroatividade da lei.
Assim, se no momento em que vigorava a redação do Artº 9º/2 decorrente do clausulado em 2003, a A. mulher preencheu os respetivos pressupostos de aplicação, sem que esta estivesse condicionada à formulação de requerimento no momento de ocorrência do facto legitimador, é esta que se aplica, independentemente de o pedido vir a ser formulado apenas subsequentemente.

Em segundo lugar porque de acordo com o nº 2 do Artº 12º do CC (1ª parte) quando a lei dispõe sobre os efeitos de factos entende-se que só visa os factos novos. Ora, o facto aqui em presença é o decorrente da renúncia à ADSE, facto que não é novo quando entra em vigor a nova redação do Artº 9º do regulamento. É um facto passado, com efeitos já produzidos. Como ensina João Baptista Machado, relativamente às leis que dispõem sobre efeitos de quaisquer factos, as mesmas “só se aplicam a factos novos” (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 233).

A nova redação dada ao Artº 9º do Regulamento teve como escopo que o regime de complementaridade passasse a abranger não só os beneficiários familiares que efetivamente dispusessem de outro subsistema de saúde, mas também os que dele pudessem dispor ainda que, por opção, ao mesmo não aderissem ou a ele renunciassem.

Donde, tendo a A. mulher preenchido os pressupostos que permitiram o seu acesso ao regime pleno antes da entrada em vigor desta nova redação, é a redação que vigorava no momento de preenchimento desses pressupostos que se aplica.

Ou, como dizem os Apelados, tendo sido dado como provado que foi em 3/11/2013 que a A. mulher renunciou à qualidade beneficiária da ADSE, é nessa data que se terão de aferir as consequências jurídicas de tal ato, independentemente da data em que o mesmo seja levado ao conhecimento de outros interessados, no caso, o SAMS ou o R..

Tal como alegam, a sustentação da tese do Recrte. feriria o princípio da não retroatividade, pois que na versão do Regulamento em vigor em 30 de Novembro de 2013, data em que decidiu renunciar à ADSE, a liberdade de vinculação ou desvinculação a outros subsistemas de saúde era total, resultando automaticamente da cessação dessa outra vinculação o acesso integral aos benefícios do SAMS, a partir do momento em que tal desvinculação fosse levada ao seu conhecimento (e até retroativamente, desde que a comunicação fosse efetuada nos 22 dias úteis seguintes – cfr. nº 2 do art. 6º, das Normas Complementares do Regulamento dos SAMS, a fls. 86 do autos).
A aplicação da nova redação aprovada coartar-lhe-ia o direito a beneficiar dum subsistema de saúde, pois já não poderia retomar o da ADSE, por a renúncia ser definitiva e irrevogável, nem aceder ao do SAMS, por se considerar ter existido renúncia relevante a outro subsistema, consequência que não se pode ter como legítima.
Nesta medida, bem decidiu a sentença.
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Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a sentença.
Custas pelo Apelante.
Notifique.
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LISBOA,2017.02.08


 
MANUELA BENTO FIALHO
SÉRGIO ALMEIDA
CELINA NÓBREGA

 
[1]Tratado de Direito do Trabalho, Parte III, 2ª edição, pág. 286 a 287 e 350
[2]Manual de Direito do Trabalho, pág. 307