Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
119/17.9GTSTB.L1-9
Relator: FILIPA COSTA LOURENÇO
Descritores: HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I- Verificando-se uma alteração da qualificação jurídica, relativamente ao crime imputado ao arguido na acusação pública e no desenrolar de um julgamento, deverá o Tribunal “a quo” dar cumprimento ao estipulado no art° 358° n° 1/3 do CPP, seguindo-se os demais termos processuais;
II- Ao não proceder à comunicação da alteração da qualificação jurídica e ao não pronunciar-se sobre a mesma, incorreu o Tribunal “a quo” numa omissão de pronúncia vertida nos termos do art° 379° n° 1 al. c) do CPP, relativamente e apenas à efectiva incriminação que é imputada ao arguido, uma vez até, que esta incriminação está formulada de forma imperfeita na acusação pública, ao ali se acusar o arguido pela pratica de um crime p.p. pelo artº 137º do Código Penal, sem se referir especificamente ao nº 1 ou ao nº 2 deste dispositivo legal, comprimindo assim de forma patente os direitos do arguido;
III-Assim, a omissão da comunicação da alteração da qualificação jurídica ao abrigo do disposto no artº 358 nº 1 e 3, do Código de Processo Penal, configura uma omissão de pronúncia, e a não notificação do arguido da referida alteração da qualificação jurídica antes da prolação da sentença, consubstancia uma nulidade da sentença.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

Relatório
No âmbito do Processo Comum Singular nº119/17.9GTSTB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo local Criminal do Seixal- juiz 1, contra o arguido AA, devidamente identificado nos presentes autos, foi proferida acusação pelo Ministério Público a fls. 247 até 252, através da qual o mesmo foi acusado da pratica como autor material e sob a forma consumada de um crime de homicídio por negligência p.p. pelos  artigos 137º e 69º do Código Penal.
A folhas 294 e 294 v., foi proferido despacho a receber a acusação e a designar dia para julgamento nos termos do artº 311º do C.P.P. , recebendo a acusação pública pela exacta qualificação jurídica ali contida.

No âmbito destes autos, o arguido AA alvo da seguinte decisão emanada de sentença proferida a folhas 321 até 342 (a qual foi rectificada a folhas 345 através de despacho judicial) e seguintes, tendo o mesmo sido condenado a final nos seguintes termos seguintes:
- Pelo exposto, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas:
a) Condeno o arguido AA, como autor material de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à razão diária de € 7,00 (sete euros), num total de € 1750,00 (mil, setecentos e cinquenta euros).
b) Condeno o arguido AA na pena de proibição de conduzir veículos com motor por um período de 8 (oito) meses, nos termos do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.

Inconformado com esta decisão proferida pelo Tribunal “ a quo”, o Ministério Público, a folhas 346 e seguintes interpôs o presente recurso, que termina com as seguintes:
Conclusões
1. O Recorrente Ministério Público vem interpor Recurso da douta Sentença proferida pela Meritíssima Juiz do Tribunal a quo no dia 18 de Fevereiro de 2018 de fls. 321 a 342 em virtude de discordar da supracitada Sentença que decidiu:
“ (...) a) Condeno o arguido AA, como autor material de um de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à razão diária de € 7,00 (sete euros), num total de € 1750,00 (mil setecentos e cinquenta euros).
b) Condeno o arguido AA na pena de proibição de conduzir veículos com motor por um período de 8 (oito) meses, nos termos do disposto no artigo 69º, n.º 1, alínea a), do Código Penal. (...)
2.      O objeto do presente Recurso consiste em demonstrar que a qualificação jurídica dos factos é incorreta – o Arguido/Recorrido AA deveria ter sido condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência grosseira em vez de ter sido condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência simples - e ao mesmo tempo que a medida da pena aplicada é desedificante por reporte à gravidade e à censurabilidade da conduta levada a cabo pelo referido Arguido/Recorrido, ao seu grau de ilicitude, à sua culpa e às consequências humanas que advieram desse sinistro rodoviário que implicou a perda de uma vida humana, ainda jovem, que em nada contribuiu para a ocorrência do supracitado sinistro rodoviário.
3. A definição legal do conceito de negligência está consagrada no artigo 15º do Código Penal.
4. A negligência funda-se na suscetibilidade do agente evitar a prática de um certo facto ilícito sob a condição desse facto ilícito poder ser previsto pelo seu Agente, ou seja, na possibilidade do Agente se abster de uma determinada conduta.
5. A negligência consiste na omissão de um dever de cuidado adequado a evitar a realização de um tipo legal de crime, que se traduz num dever de previsão ou de justa previsão daquela realização e que o Agente, à luz das circunstâncias do caso concreto e das suas capacidades pessoais podia ter observado.
6. A imputação a título de culpa fundamenta-se na violação voluntária de regras de cuidado impostas por normas legais ou regulamentares destinadas precisamente a prevenir a violação de bens jurídicos tutelados pelo ordenamento jurídico português.
7. No caso concreto, o bem jurídico tutelado pelo ordenamento jurídico português é a segurança do tráfego rodoviário.
8. O artigo 146º, alínea h), do Código da Estrada, estatui que o desrespeito das regras e sinais relativos a distâncias entre veículos, cedência de passagem, ultrapassagem, mudança de direção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha, início de marcha, posição de marcha, marcha atrás e atravessamento de passagem de nível, quando praticadas numa autoestrada ou via equiparada, consubstanciam uma contra-ordenação muito grave ao Código da Estrada.
9. O artigo 18º, nº 1, do Código da Estrada, regula que o condutor de um veículo em marcha deve manter entre o seu veículo e o que o precede a distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste, tendo em especial consideração os utilizadores vulneráveis.
10.   Por seu turno, o artigo 24º, nº 1, do Código da Estrada reza que o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veiculo no espaço livre e visível à sua frente.
11.   O condutor do automóvel com a marca Opel, o modelo Corsa, a matrícula …………… e a cor cinzenta, BB sofreu em consequência do supracitado sinistro rodoviário graves lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, raqui medulares, torácicas e abdominais referenciadas no Relatório de Autópsia de fls. 54 a 56 e 67 que direta e necessariamente determinaram a sua morte, conforme deflui do retromencionado Relatório de Autópsia.
12.   O artigo 137º, nº 2, do Código Penal, estatui que em caso de negligência grosseira o agente é punido com pena de prisão até 5 anos.
13. Na douta Sentença proferida pela Meritíssima Juiz do Tribunal a quo datada de 18 de Fevereiro de 2019 de fls. 321 a 345 é dito que “ (...) Esta tutela estabelecida pela lei criminal resulta claramente do dever de respeito absoluto pela dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa, o qual consiste na defesa intransigente da vida humana e é o primeiro imperativo de qualquer ordem jurídica, quer no plano internacional (artigos 3º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e 2º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) quer no plano interno (artigos 24.º, n.º 1 e 16.º, n.º 2, ambos da Constituição da República Portuguesa).
O direito à vida encontra-se, assim, intimamente ligado à defesa da pessoa enquanto tal, o que justifica a forma enfática utilizada pela Constituição da Republica Portuguesa (“... é inviolável ”) e a protecção absoluta que esta lhe confere – vide Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, I, Coimbra, pág. 177.
Ao conferir-lhe uma protecção absoluta, não admitindo qualquer excepção, a Constituição erigiu o direito à vida em direito fundamental qualificado. Ora, conforme esclarecem aqueles Ilustres Professores, o direito à vida significa, primeiro e acima de tudo, o direito de não ser morto, de não ser privado da vida, sendo expressão desse direito a punição do homicídio (artigos 131.º e ss. do Código Penal). (...) ”.
14. Em adição, sustenta outrossim que “ (...) Encontrando-se provado que BB sofreu, como resultado directo e necessário da conduta do arguido, as lesões mencionadas no relatório de autópsia e vertidas nos factos provados, as quais foram a causa directa e determinante da sua morte, dúvidas não existem quanto ao preenchimento deste elemento do tipo.
Ademais, dúvidas não subsistem de que existe um nexo de causalidade entre o resultado morte verificado e que se visa tutelar na norma que incrimina o homicídio por negligência e a actuação do arguido. (...) ”.
15.   A douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo sufraga ainda que “ (...) Era obrigação geral do arguido, em geral como a de qualquer cidadão que actua de modo a poder afectar a vida de outras pessoas e, especialmente, no exercício de uma actividade perigosa, como é a condução, fazê-lo com atenção e cuidado.
Verifica-se assim a violação do cuidado externo, objectivamente devido, e do cuidado interno subjectivamente possível, sendo que o normal dos cidadãos podia prever, segundo as regras de experiência geral, que assim actuando, daí poderia resultar um acidente, designadamente um embate, como ocorreu e daí poderiam resultar lesões físicas e mesmo a morte para as pessoas que transportava e para outros condutores. (...) ”.
16. A primeira questão que se coloca é a de saber se a factualidade julgada como provada nos presentes autos, que é incontroversa, consubstancia ou não uma situação de negligência grosseira.
17.   Na opinião do Recorrente, a factualidade julgada procedente por provada nos presentes autos é subsumível ao conceito de negligência grosseira e por conseguinte a pena aplicável ao Arguido/Recorrido AA terá, na mundividência do Recorrente, que ser uma pena de prisão na medida em que o homicídio por negligência grosseiro não comporta, em alternativa à pena de prisão, a pena de multa.
18. A colisão entre os dois veículos ocorreu em virtude do Arguido/Recorrido AA não ter mantido a distância de segurança que é imposta pelo artigo 18º, nº 1, do Código da Estrada, relativamente ao automóvel conduzido pela vítima BB que o precedia, por um lado, e ao excesso de velocidade que imprimia à viatura que pilotava por reporte à supracitada distância de segurança que não foi por ele observada, ao arrepio do artigo 24º, nº 1, do Código da Estrada, o que provocou que o veículo ligeiro de passageiros com a marca Golf, modelo Volkswagen, a matrícula 86-46--- e a cor prata conduzida pelo Arguido/Recorrido acima identificado abalroasse a viatura com a marca Opel, o modelo Corsa, a matrícula ---38-17 e a cor cinzenta conduzida pelo BB mediante um embate na parte de trás desta viatura cujo condutor, após ter sido tocada, perdeu o controle do retromencionado veículo, que se veio a despistar com violência ficando imobilizado, após ter galgado o talude, no terreno baldio localizado junto à vala de água.
19. A negligência grosseira prevista no artigo 137º, nº 2, do Código Penal, implica não só a agravação ao nível da culpa mas também ao nível do tipo de ilícito.
20. A negligência grosseira implica o cometimento de uma contra-ordenação grave ou muito grave.
21.   Para que possa ser imputada à conduta de um Arguido que conduz um veículo a motor negligência grosseira é necessário que o referido condutor tenha violado por omissão deveres de cuidado de uma forma indesculpável, palmar, crassa, inadmissível.
22.   O recentíssimo Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa no pretérito dia 23 de Janeiro de 2019 no Processo nº 3110/15.6T9ALM cujos termos correram por este mesmo Tribunal e que pode ser consultado integralmente no site www.dgsi.pt pronunciou-se sobre a negligência grosseira definindo-a como sendo aquela em que o comportamento do Arguido “ (...) ultrapassou claramente a simples falta de cuidado, que segundo as circunstâncias estava obrigado, evidenciando uma conduta insensata, irreflectida, esquecendo elementares precauções exigidas pela prudência e ignorando que além de si, iam no carro que conduzia, as duas vítimas do sinistro. (...) ”.
23. O facto do Arguido/Recorrido AA não ter observado a distância de segurança que estava obrigado a respeitar relativamente ao veículo conduzido pelo falecido BB cotejado com o excesso de velocidade imprimido à viatura que guiava, com integral desrespeito pelas mais elementares regras de segurança rodoviária impostas pelos artigo 18º, nº 1, e 24º, nº 1, ambos do Código da Estrada, revelam que o Arguido acima identificado conduzia o seu automóvel com uma profunda indiferença, um desedificante descuido, um total desprezo pelas consequências que pudessem advir fruto dessas violações, designadamente pela morte ou pelas lesões físicas que pudesse vir a provocar junto do condutor ou de um passageiro de um qualquer outro veículo, factualidade que não pode em circunstância alguma ser branqueada, desvalorizada, minimizada como foi, pela douta Sentença proferida pela Meritíssima Juiz do Tribunal a quo que de uma forma olímpica se limitou a subsumir os factos acima descritos ao conceito de negligência simples e a afastar expressamente do caso sub iudice a aplicação do conceito de negligência grosseira.
24.   O Arguido/Recorrido AA violou regras rodoviárias que são absolutamente essenciais para a segurança da circulação rodoviária.
25.   A possibilidade de vir a ocorrer um acidente de viação grave em consequência do desrespeito pelo Arguido/Recorrido AA no que tange à manutenção da distância de segurança e bem assim no que concerne à circulação da viatura que conduzia a uma velocidade superior à recomendável atendendo ao tráfego rodoviário na autoestrada por onde seguia, às características da via, ao estado de conservação da faixa de rodagem e do próprio automóvel que guiava e ao período do dia em que a colisão se verificou, ainda antes do alvor do dia, contribuíram indiscutivelmente para o embate da parte dianteira do automóvel com a marca Volkswagen, o modelo Golf, a matrícula ………… e a cor prata na parte traseira do veículo ligeiro de passageiros com a marca Opel, o modelo Corsa, a matrícula ……………e a cor cinzenta.
26.   É elevada a predisposição para a ocorrência de um sinistro rodoviário quando não são observadas as distâncias de segurança entre veículos e ao mesmo tempo uma velocidade adequada aos diversos circunstancialismos que são indissociáveis da marcha de qualquer viatura por parte de um condutor de um veículo.
27.   A falta de conformação com a produção de um acidente de viação por parte de um condutor que desrespeita as distâncias de segurança que está obrigado a manter no que concerne a todos os outros veículos que circulam atrás do seu e de todos os outros que o antecedem prosseguindo com estultícia e indiferença a sua marcha consubstancia uma conduta que viola grosseiramente os mais elementares deveres de cuidado no que tange ao tráfego rodoviário e não pode deixar de ser punida à luz do artigo 137º, nº 2, do Código Penal.
28. A falta de representação da produção de um sinistro rodoviário encarnada por um condutor que nem sequer equaciona essa possibilidade é ainda mais grave.
29.   O grau de antijuridicidade da conduta do Arguido/Recorrido AA é muito significativo.
30. O grau de censurabilidade da conduta levada a cabo pelo referido Arguido/Recorrido, olhando para o desfecho da sua imprevidência, do seu desleixo, da sua incúria, da sua displicência, é elevadíssimo.
31. Os acidentes de viação constituem em Portugal uma das principais causas de morte entre os nossos cidadãos sobretudo na faixa etária compreendida entre os 5 e os 44 anos.
32. O Arguido/Recorrido AA, agindo da forma descrita desrespeitou a certificação de que deve com a sua marcha manter uma distância de segurança optando por não o fazer, não obstante pudesse e devesse fazê-lo, sendo o único responsável pela colisão entre a viatura por si conduzida e o veículo ligeiro de passageiros com a marca Opel, o modelo Corsa, a matrícula …………. e a cor cinzenta.
33.   O Arguido/Recorrido AA ao aproximar-se excessivamente do automóvel ligeiro de passageiros com a marca Opel, o modelo Corsa, a matrícula …………. e a cor cinzenta a uma velocidade superior àquela que era imprimida à viatura conduzida pela falecido BB violou grosseiramente as regras estradais cujo escopo consiste na segurança da circulação rodoviária.
34.   O referido Arguido/Recorrido representou como possível que viesse a colidir com um outro veículo que seguisse à sua frente mas a uma velocidade inferior à da viatura que conduzia colocando dessa forma em risco a vida, a integridade física e bens patrimoniais de valor elevado de outros condutores, passageiros e peões que com ele se cruzassem acidentalmente e manteve a sua marcha apesar de não se conformar com essa possibilidade.
35.   O Arguido/Recorrido AA cometeu, em autoria material, nos termos configurados pelo artigo 26º do Código Penal, um crime de homicídio com negligência grosseira previsto e punido pelo artigo 137º, nºs 1, e 2, do Código Penal, e não apenas um crime de homicídio por negligência simples, previsto e punido pelo artigo 137º, nº 1, do Código Penal.
36.   Para que o Arguido/Recorrido AA possa ser responsabilizado criminalmente terá de ser demonstrada a sua culpa efetiva no acidente, o seu contributo material e psicológico para o facto danoso que não pode deixar de ser uma consequência direta e necessária da ação culposa mesmo que para o acidente tenham contribuído, com culpa, outro ou outros intervenientes, o que no caso concreto não se verificou.
37.   Para que haja culpa é necessário que, no mínimo, não tendo o Agente sequer representado a possibilidade da realização do facto, não tivesse procedido com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e era capaz - é este o conceito de negligência inconsciente.
38.   Todavia, a negligência já será consciente, logo, mais grave, quando o Agente prevê como possível a realização do resultado típico, mas confia, podendo e devendo não confiar em que o mesmo se não realiza - não se conforma porém com a realização desse resultado – no caso de se conformar haveria lugar para o dolo eventual e esta não é seguramente a relação psicológica que se verificou entre o Arguido/Recorrido e o facto no caso sub judice.
39. Os factos provados demonstram amplamente que o Arguido/Recorrido AA não agiu com a atenção e o cuidado do condutor prudente e normalmente avisado que, atentas todas as circunstâncias de facto, podia e era capaz de ter.
40. Não existiu mais nenhuma causa que tenha contribuído decisivamente para a produção daquele sinistro rodoviário sendo o resultado do referido acidente de viação exclusivamente imputável ao supracitado Arguido/Recorrido por estar ligado ao concreto domínio da sua vontade - e não a nenhum processo causal a ela alheio.
41.   Para que possa ser imputada à conduta de um Arguido que conduz um veículo a motor negligência grosseira é necessário que o referido condutor tenha violado por omissão regras de circulação rodoviária e/ou sinais rodoviários de uma forma indesculpável, fora dos cânones minimamente aceitáveis, palmar, crassa, evidente, inadmissível.
42. O facto do Arguido/Recorrido AA não ter representado a possibilidade de vir a embater na viatura conduzida pelo falecido BB enquanto conduzia o seu automóvel com integral desrespeito pela distância de segurança que estava obrigado a manter relativamente ao veículo que o precedia na mesma faixa de rodagem e ainda por cima circulando a uma velocidade superior à velocidade imprimida ao veículo que seguia à sua frente é sintomático, é revelador de uma atitude pautada por um grau de indiferença, de descuido, de desprezo, de insensibilidade pelas consequências que pudessem advir fruto dessa violação, designadamente pela morte ou pelas lesões físicas que pudesse vir a provocar que não pode em circunstância alguma ser branqueada.
43.   O Arguido/Recorrido AA violou regras rodoviárias que são absolutamente essenciais para a segurança da circulação rodoviária – Vide artigo 18º, nº 1, e 24º, nº 1, do Código da Estrada.
44.   A possibilidade de vir a ocorrer um acidente de viação grave em consequência do desrespeito por um condutor pela manutenção da distância de segurança entre veículos conjugado com a circulação de um veículo automóvel a uma velocidade desadequada no que tange à referida distância de segurança é bastante elevada.
45.   A inevitabilidade, a predisposição para a ocorrência de um sinistro rodoviário resultante da violação da distância de segurança por um condutor e da circulação da viatura por si conduzida a uma velocidade superior à velocidade imprimida pelo automóvel que o precede é indiscutível.
46. A falta de conformação com a produção de um acidente de viação por parte de um condutor que desrespeita a distância de segurança por reporte ao automóvel que o precede e que circula pela mesma faixa de rodagem a uma velocidade superior à do veículo que está posicionado à sua frente viola grosseiramente os mais elementares deveres de cuidado no que tange ao tráfego rodoviário e não pode deixar de ser punida à luz do artigo 137º, nº 2, do Código Penal.
47. O grau de antijuridicidade da conduta do Arguido/Recorrido AA é elevadíssimo na medida em que o referido Arguido colocou em risco através da sua conduta a vida, a integridade física e bens patrimoniais de valor elevado de outros condutores, passageiros e peões que com ele se cruzassem acidentalmente apesar de não se conformar com essa possibilidade.
48. O grau de censurabilidade da conduta levada a cabo pelo referido Arguido, olhando para o desfecho da sua imprevidência, do seu desleixo, da sua incúria, da sua displicência, é elevadíssimo.
49. Durante o ano de 2018 registaram-se nas estradas portuguesas 132378 sinistros rodoviários dos quais resultou a morte de 518 pessoas e ferimentos graves em 2093 pessoas.
50.   O Arguido/Recorrido AA, agindo da forma descrita é o único responsável pela colisão entre a viatura por si conduzida e o veículo ligeiro de passageiros com a marca Opel, o modelo Corsa, a matrícula ……… e a cor cinzenta e bem assim pela morte do Ofendido BB.
51.   O Arguido/Recorrido AA cometeu, em autoria material, nos termos configurados pelo artigo 26º do Código Penal, um crime de homicídio com negligência grosseira previsto e punido pelo artigo 137º, nºs 1, e 2, do Código Penal, e não apenas um crime de homicídio por negligência simples, previsto e punido pelo artigo 137º, nº 1, do Código Penal.
52.   Importa analisar se, perante a factualidade julgada provada, é ou não de aplicar uma pena privativa da liberdade ao Arguido/Recorrido AA.
53.   Nos termos do artigo 137º, nº 2, do Código Penal, o crime de homicídio por negligência grosseira é punido com pena de prisão até cinco anos.
54.   O crime de homicídio por negligência grosseira não comporta, em alternativa à pena de prisão, a pena de multa.
55. A determinação da medida concreta da pena tem a culpa como suporte axiológico-normativo.
56.   O artigo 40º, nº 1, do Código Penal, preconiza que o escopo das penas e das medidas de segurança é a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
57.   O crime de homicídio por negligência grosseira tutela o bem jurídico vida que está no topo do catálogo dos direitos liberdades e garantias constitucionais.
58.   O bem jurídico tutelado pelo artigo 137º, nºs 1, e 2, do Código Penal, está agregado ao primogénito da Constituição da República Portuguesa ao qual alude o seu artigo 1º: a dignidade da pessoa humana.
59.   O fim último da Lei Fundamental, a sua razão de existir está precisamente relacionado com a proteção da dignidade da pessoa humana.
60.   Integram o conceito de dignidade da pessoa humana diversos direitos fundamentais que constituem o núcleo inexpugnável de direitos de personalidade da Constituição da República Portuguesa, que são direitos gerais, porque a titularidade desses direitos é de todos os indivíduos, de todos os seres humanos, direitos absolutos porque a todos são oponíveis, direitos extrapatrimoniais em virtude de não poderem ser quantificados pecuniariamente, direitos inalienáveis na medida em que não é possível realizar qualquer tipo de transação que envolva tais direitos e, por último, são direitos irrenunciáveis na medida em que são direitos indisponíveis.
61.   Tais direitos são, no que respeita ao crime de homicídio por negligência grosseira, o direito à vida, estatuído no artigo 24º, nº 1, da Lei Fundamental.
62.   A Constituição da República Portuguesa consagra no artigo 24º, nº 1, a inviolabilidade do direito à vida – que é, aliás, do ponto de vista sistemático, o primeiro dos direitos elencados no Capitulo I cuja epígrafe é Direitos, liberdades e garantias pessoais.
63.   A Lei Fundamental confere uma proteção absoluta ao direito à vida consubstanciada, designadamente, no facto de não poder ser afetado, cerceado, diminuído, limitado ou reduzido mesmo no caso de suspensão dos direitos fundamentais na vigência do estado de sítio ou do estado de emergência, em conformidade com o disposto no artigo 19º, nº 6, da Constituição da República Portuguesa.
64. A importância atribuída pelo Legislador Constitucional à dignidade da pessoa humana, maxime na sua expressão de direito à vida pode inclusivamente ser percecionada através do artigo 16º nº 2, da Lei Fundamental, nos termos do qual está determinado que os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
65.   No que concerne à prevenção especial, o que se pretende alcançar com a pena é a socialização, a advertência individual, a segurança e a inocuização.
66.   Subjacente ao tipo subjetivo está uma conduta negligente, imputável ao Agente, independentemente da modalidade de negligência regulada pelo artigo 15º do Código Penal.
67.   O Arguido/Recorrido AA agiu com negligência consciente, densificada nos termos previstos no artigo 15º, alínea a), do Código Penal.
68.   Apesar de ser primário, os factos suscetíveis de preencher os elementos objetivos e subjetivos do tipo do crime de homicídio por negligência grosseira são de elevada gravidade porque colocam em crise um bem jurídico que está situado no topo do catálogo de direitos, liberdades e garantias do ordenamento jurídico-constitucional e do ordenamento jurídico-penal português.
69. A intensidade da negligência e o grau de ilicitude são elevados.
70. Embora o Legislador tenha consagrado o princípio da subsidiariedade da pena de prisão em relação à pena de multa, conforme se desprende objetivamente dos artigos 18º, nº 2, 27º, nºs 1 e 2, e 28º, nº 2 (ainda que esta última norma seja aplicável à prisão preventiva) da Constituição da República Portuguesa, e bem assim do artigo 70º do Código Penal, em virtude de subscrever a ideia de que as penas detentivas da liberdade têm um carácter nocivo para a natureza humana, também não deixa de ser verdade que consagrou a pena de prisão para punir os crimes mais graves ou certas formas de vida.
71. A aplicação da pena de prisão só é adequada quando estiverem esgotadas as potencialidades de todas as outras penas para a proteção dos bens jurídicos tutelados pelo ordenamento-jurídico penal, por um lado, e a ressocialização do Arguido, por outro lado.
72. O Arguido/Recorrido AA carece de um forte impulso ressocializador sendo a pena de prisão a única com potencialidades para serem alcançados os fins das penas.
73. A determinação da medida concreta da pena tem, como plataforma axiológico-normativa, uma culpa concreta, como resulta dos artigos 13º, 40º, nº 2, e 71º, nº 1, todos do Código Penal.
74.   O Código Penal consagra, na opinião do Recorrente, a teoria da margem da liberdade, nos termos da qual a culpa desempenha o papel de estabelecer o limite mínimo e o limite máximo da pena aplicável ao caso concreto, encontrando-se tais limites contidos na moldura penal abstratamente aplicável.
75.   Os fins das penas, maxime as exigências de prevenção geral e de prevenção especial, atuam dentro dos limites fixados pela culpa.
76.   No caso sub iudice, as necessidades de prevenção geral são de elevada intensidade, uma vez que a conduta em causa se enquadra num tipo de criminalidade que colide com o direito à vida – durante o ano de 2018 faleceram nas estradas portuguesas 518 pessoas em consequência de acidentes de viação.
77. As necessidades de prevenção especial são igualmente de grau elevado.
78. O Arguido/Recorrido AA carece de sentir o peso de uma forte punição para que, no futuro, não volte a colocar em risco a vida e a integridade física de terceiros.
79. O referido Arguido/Recorrido confessou parcialmente os factos constantes do Libelo Acusatório e expressou no decurso da Audiência de Discussão e Julgamento a sua mágoa pelo sucedido de cuja sinceridade não duvidamos.
80.   O supracitado Arguido é primário.
81.   Está inserido familiarmente, socialmente e profissionalmente.
82.   Pelo exposto, reputa-se como adequada, no que respeita ao crime de homicídio por negligência grosseira, nos termos dos artigos 40º, nºs 1, e 2, 50º nºs 1, 2, e 5, 53º, nºs 1, e 2, e 71º, todos do Código Penal, a aplicação de uma pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova consubstanciado num Plano de Reinserção Social executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, levado a cabo pelos Serviços de Reinserção Social.
83.   O Arguido/Recorrido AA foi condenado por douta Sentença proferida pela Meritíssima Juiz do Tribunal de 1ª Instância no dia 18 de Fevereiro de 2018 de fls. 321 a 342 “ (...) na pena de proibição de conduzir veículos com motor por um período de 8 (oito) meses, nos termos do disposto no artigo 69º, nº. 1, alínea a), do Código Penal. (...) ”.
84. Apesar do Legislador ter atribuído à pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor uma natureza ancilar, a supracitada sanção acessória, no que tange à introspeção que se pretende que o Arguido/Recorrido AA realize e à interiorização da gravidade da sua conduta comporta um potencial de eficácia que, em múltiplas circunstâncias, se revela bastante superior à eficácia da própria pena principal.
85. A privação do referido Arguido/Recorrido durante um período considerável de tempo de conduzir qualquer veículo com motor irá certamente causar-lhe dificuldades, embaraços, constrangimentos, perturbações e alterações à dinâmica da sua vida, às suas rotinas diárias, aos seus compromissos laborais, aos seus períodos de lazer, à sua mobilidade física, que é precisamente o que se pretende mediante a aplicação desta sanção acessória, contendo por essa razão a virtualidade de poder vir a contribuir decisivamente para que no futuro o supracitado Arguido/Recorrido, ciente das consequências que lhe podem advir da proibição de conduzir um veículo com motor, se comporte com um sentido de responsabilidade cívica, de probidade e de respeito pelas regras rodoviárias completamente diferentes.
86.   A pena acessória aplicada ao Arguido/Recorrido AA pela Meritíssima Juiz do Tribunal de 1ª Instância cominada pelo artigo 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal, é manifestamente insuficiente perante a gravidade das consequências emergentes da condução imprudente e temerária do Arguido/Recorrido acima identificado cuja resolução criminosa se consubstancia na morte de uma pessoa.
87. O Recorrente reputa como adequada a aplicação ao Arguido/Recorrido AA da sanção acessória de inibição do direito de conduzir veículos com motor de 18 meses em consequência da prática do crime de homicídio por negligência grosseira previsto e punido pelo artigo 137º, nºs 1, e 2, do Código Penal.
88. A douta Sentença proferida pela Meritíssima Juiz do Tribunal a quo violou os artigos 71º e 137º, nº 2, do Código Penal, devendo ser substituída por outra que condene o Arguido/Recorrido AA na pena de 3 anos de prisão suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova consubstanciado num Plano de Reinserção Social executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, levado a cabo pelos Serviços de Reinserção Social e na sanção acessória de inibição do direito de conduzir veículos com motor cominada pelo artigo 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal, de 18 meses.

Nestes termos, deve o presente Recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência disso, revogada e substituída a douta Sentença proferida pela Meritíssima Juiz do Tribunal a quo por outra que determine a condenação do Arguido/Recorrido AA, como autor material, em conformidade com o disposto no artigo 26º do Código Penal, pela prática de um crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punido pelo artigo 137º, nºs 1, e 2, do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova consubstanciado num Plano de Reinserção Social executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, levado a cabo pelos Serviços de Reinserção Social e na pena acessória de inibição do direito de conduzir cominada pelo artigo 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal, de 18 meses assim se fazendo serena, sã e objetiva Justiça.

Este recurso foi admitido, através de despacho judicial.
O arguido apresentou resposta a fls. 381 e seguintes
A digna Procuradora Geral Adjunta, junto deste Tribunal nele apôs os seu visto.
Cumpre agora apreciar e decidir.

Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo do conhecimento oficioso de nulidades ou vícios expressamente previstos por lei.

As questões a apreciar pelo recorrente, MºPº no presente recurso são as seguintes:
- Discorda da qualificação jurídica operada pelo Tribunal “ a quo” quanto à condenação, devendo o Arguido/Recorrido AA ser condenado, em autoria material, nos termos configurados pelo artigo 26º do Código Penal, pela pratica de um crime de homicídio com negligência grosseira previsto e punido pelo artigo 137º, nºs 1, e 2, do Código Penal, e não apenas um crime de homicídio por negligência simples, previsto e punido pelo artigo 137º, nº 1, do Código Penal;
-E assim sendo deverá ser condenado numa pena de  três anos de prisão suspensa por igual período sujeita a regime de prova e levado a cabo pelos Serviços de Reinserção Social e na pena acessória de inibição do direito de conduzir cominada pelo artigo 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal, de 18 meses , por ser manifestamente insuficiente  a medida desta pena acessória aplicada.

Tem o seguinte teor a sentença recorrida, proferida na primeira instância:
I – RELATÓRIO
Para julgamento, em Processo Comum e perante Tribunal Singular, o
MINISTÉRIO PÚBLICO acusou
AA, solteiro, barman, nascido a ……….. em Paio Pires, filho de CC e de DD e residente na Rua …………………………..Paio Pires;
imputando-lhe um crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelo artigo 137.º e 69.º, do Código Penal;
pelos factos descritos na acusação de fls. 130 e ss. dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
*
Não foi deduzido pedido cível de indemnização.
*O arguido não apresentou contestação escrita, mas arrolou testemunhas.
*Procedeu-se a julgamento com a observância de todas as formalidades legais, conforme se alcança da respectiva acta.
*Mantêm-se os pressupostos de validade e regularidade da instância, inexistindo quaisquer excepções, nulidades, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
*
II – FUNDAMENTAÇÃO
II.1 FACTOS PROVADOS
Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 17 de outubro de 2017, pelas 06h00, o arguido AA, conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de marca Volkswagewn, modelo Golf e matricula ………., pela Auto-Estrada A2 e pela via de trânsito central e no sentido de marcha Norte/Sul.
2. Na mesma ocasião, também por aquela via de trânsito central, no mesmo sentido de marcha Norte/Sul e imediatamente à frente do arguido, circulava BB, ao volante e na condução do veículo ligeiro de passageiros de marca Opel e modelo Corsa e matricula …………..
3. Ambos os veículos se encontravam em movimento e tinham os dispositivos de iluminação ligados.
4. O pavimento era betuminoso, em recta, encontrava-se em estado regular de conservação, sendo a visibilidade boa, não obstante ainda ser noite e chovia ligeiramente.
5. O veículo de matrícula …….., conduzido pelo arguido seguia a uma velocidade não apurada, mas certamente superior à do veículo de Matricula …………….
6. Ambos os condutores estavam devidamente habilitados a conduzir e não tinham consumido quaisquer bebidas alcoólicas ou consumido quaisquer substâncias que pudessem influenciar a condução.
7. Àquela hora e naquele lugar concreto encontravam-se a circular outros veículos automóveis, pese embora o fluxo de trânsito não fosse intenso.
8. Ao Km 12,700 da referida A2, zona do Fogueteiro e imediatamente a seguir à estação de Serviço da Galp, o arguido, porque seguia com o seu veículo demasiado próximo do veículo que o precedia e a uma velocidade superior à deste, fez embater violentamente a frente do seu veículo na traseira do veículo ………… conduzido pelo BB.
9. Aquele embate entre os dois veículos ocorreu dentro da referida via de trânsito central relativamente à respectiva marcha por que ambos circulavam.
10. Após a colisão, o veículo conduzido pelo arguido embateu por duas vezes no separador central em betão, ficando imobilizado a sensivelmente 130 metros do ponto de conflito e na via de trânsito da esquerda.
11. O veículo de matrícula …………, após a colisão, saiu da faixa de rodagem pela berma direita, entrando em rotação e subindo o talude, ficando imobilizado a sensivelmente 130 metros do ponto de conflito, no terreno baldio junto à vala de água.
12. Em consequência destes embates, o condutor BB sofreu graves lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, raqui medulares, torácicas e abdominais, melhor descritas no relatório de autópsia de fls. 54 a 56 e 67, que directa e necessariamente determinaram a sua morte, conforme se alcança daquele relatório de autópsia que aqui se dá por reproduzidos para todos os efeitos.
13. Agindo da forma descrita, o arguido AA conduziu desatento ao trânsito e aos demais utentes da via e com falta de cuidado, de modo que não se apercebeu de que o veículo de matrícula ……….. se encontrava na sua via de trânsito, o que sabia poder acontecer face às características da via, não obstante dispor de visibilidade para o avistar.
14. O arguido não adoptou manobra defensiva com vista a evitar o embate, pois que não travou nem guinou.
15. Ao actuar da forma descrita, não regulando a velocidade do veículo de modo a que, atendendo às características da via e do trânsito, pudesse imobilizar o veículo de forma a evitar o embate, o arguido violou uma regra de trânsito elementar, a cujo respeito estava obrigado e que, nas concretas circunstâncias em que actuou, era capaz de observar, revelando a sua conduta elevado grau de imprudência e de imperícia.
16. O arguido podia e devia ter previsto que não abrandando a velocidade, não travando ou não guinando a sua viatura poderia embater no veículo que seguia à sua frente, tendo previsto como possível que tal embate ocorresse, confiando, contudo, que a colisão não aconteceria.
17. Bem sabia, além do mais, que tal conduta era proibida e punida por lei.
18. Acresce que, por conduzir nos termos e nas condições supra referidas, o arguido acabou efectivamente por provocar, com a sua descrita conduta inconsiderada, imprevidente e violadora das regras de circulação rodoviária, o acidente com o veículo ………….. do qual veio a resultar a morte de BB.
*Apuraram-se, ainda, os seguintes factos:
19. O arguido trabalha como barman, no mesmo estabelecimento comercial há mais de 3 anos, auferindo € 850,00 mensalmente.
20. Mora com os pais.
21. Como habilitações literárias possui o 12.º ano de escolaridade.
22.      É trabalhador e responsável.
23.      É calmo.
24.      O arguido não tem antecedentes criminais registados.
***
II.2 FACTOS NÃO PROVADOS
Inexistem.
***
II.3 – CONVICÇÃO DO TRIBUNAL
Para formar a nossa convicção sobre a matéria de facto provada e não provada baseámo-nos na análise ponderada e crítica do conjunto da prova produzida, em ordem à reconstituição da dinâmica do acontecido.
O tribunal formou a sua convicção, quanto aos factos constantes da acusação, nas declarações prestadas pelo arguido, que de forma que nos pareceu sincera disse que não se recordava do acidente. Explicou a noite de trabalho que teve e o trajecto que fez de regresso a casa, que é o que normalmente faz, mas disse que teve uma branca pouco antes do acidente e que apenas se recorda de acordar já com o embate.
Mais levámos em consideração o depoimento de SS, que apesar de não saber porque é que se deu o acidente, apercebeu-se de que o arguido passou por si, a mais de 90/Km mas dentro da velocidade máxima permitida para o local e descreveu o trafego que existia, o estado do piso, o tempo que fazia e o estado em que ficaram as viaturas.
Prestou um depoimento desinteressado e credível, bem se recordando de todo o sucedido, por ter sido uma situação traumática na sua vida.
Desta forma, para apurar da dinâmica e consequências do acidente teve-se em consideração a análise crítica e ponderada dos documentos juntos aos autos, nomeadamente, do relatório de autópsia de fls. 54 e seguintes e 67, do relatório de análise à pesquisa de álcool no sangue e outras substâncias de fls. 62, 117 e 118, no auto de noticia de fls. 9 a 11, na verificação de óbito de fls. 52 e 57, na inspecção judiciária de fls. 101 a 102, no auto de avaliação de danos aos veículos de fls. 103 a 104, na participação de acidente de fls. 107 a 112, nas imagens de videovigilância de fls. 114 a 115, no relatório de filmagens de fls. 122 a 127, no croqui do acidente de fls. 128 a 129, na informação do IMTT de fls. 168 a 169, na ficha de inspecção de veículos de fls. 170 a 172, no relatório fotográfico de fls. 174 a 216, na reconstituição de acidente de fls. 232 a 233, em conjugação com as regras de experiência e senso comum que nos dizem que o que ocorreu foi que por causa do trabalho, atendendo às horas em que ocorreu o acidente, depois de uma noite de trabalho, no regresso a casa, quando se preparava para descansar, o arguido sentiu-se cansado e por causa disso não se apercebeu que se estava a aproximar do veículo da frente, embatendo-lhe, o arguido fechou os olhos por instantes, não guardou a distância de segurança para com o veículo da frente e bateu-lhe, sem que tivesse feito qualquer manobra para se desviar do veículo, e sem que tivesse travado imediatamente antes do embate, na tentativa de o evitar.
Apesar do arguido ter dito que não se encontrava cansado, o que foi reforçado pela testemunha por si arrolada, HH, que nessa noite esteve com o mesmo, nenhuma outra explicação existe para o sucedido, não sendo crível que mesmo tivesse perdido os sentidos, até porque nada nos autos nos aponta nesse sentido, não tendo o arguido apresentado qualquer doença de que pudesse padecer, nem constando dos autos qualquer má indisposição que tivesse sido detectada pelos elementos que o socorreram, sendo que o arguido declarou na participação que fez que adormeceu ao volante.
Quanto à situação económica, social e familiar do arguido, o Tribunal fundou-se nas declarações do mesmo, por inexistirem elementos que as pudessem pôr em crise, em conjugação com os esclarecimentos prestados por HH, colega de trabalho do arguido e por FF, patrão do arguido, os quais, de forma que nos pareceu sincera mostraram grande estima e consideração pelo arguido, dizendo que o mesmo é uma pessoa calma, trabalhadora e responsável.
Relativamente aos antecedentes criminais, no Certificado de Registo Criminal junto aos autos a fls. 312.
II.4 DA APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS
II.4.1 Do Crime
A primeira tarefa que se impõe passa por determinar se a conduta descrita e imputada ao arguido, e agora dada como provada, coincide com a descrição jurídico-penal legalmente prevista, de modo a que o arguido possa ser responsabilizado pela sua infracção.
Para tanto, dever-se-ão ter em conta os respectivos normativos, aos quais está subjacente a tutela de um determinado bem jurídico. Como afirma MUÑOZ CONDE,
in Teoria General del Delito” (1984), pág. 9, “a norma jurídico-penal pretende a regulação de condutas humanas e tem por base a conduta humana que pretende regular”, acrescentando ainda que “a norma selecciona uma parte que valora negativamente e que comina com uma pena”.
*II.4.1.1 Do crime de homicídio por negligência
O arguido vem acusado da prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, do Código Penal, o qual dispõe que:
“1 - Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2 – Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos.”.
*Esta tutela estabelecida pela lei criminal resulta claramente do dever de respeito absoluto pela dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa, o qual consiste na defesa intransigente da vida humana e é o primeiro imperativo de qualquer ordem jurídica, quer no plano internacional (artigos 3.° da Declaração Universal dos Direitos do Homem e 2.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) quer no plano interno (artigos 24.°, n.° 1 e 16.°, n.° 2, ambos da Constituição da Republica Portuguesa).
O direito à vida encontra-se, assim, intimamente ligado à defesa da pessoa enquanto tal, o que justifica a forma enfática utilizada pela Constituição da Republica Portuguesa (“... é inviolável”) e a protecção absoluta que esta lhe confere – vide Gomes Canotinho e Vital Moreira, in Constituição da Republica Portuguesa anotada, I, Coimbra, pág. 177.
Ao conferir-lhe uma protecção absoluta, não admitindo qualquer excepção, a
Constituição erigiu o direito à vida em direito fundamental qualificado. Ora, conforme esclarecem aqueles ilustres Professores, o direito à vida significa, primeiro e acima de tudo, o direito de não ser morto, de não ser privado da vida, sendo expressão desse direito a punição do homicídio (artigos 131.º e ss. do Código Penal).
**
Desta forma, o crime de homicídio negligente previsto e punido pelo artigo 137.º do Código Penal, que visa proteger, em primeiro lugar, o direito à vida, constitui um crime material ou de resultado, uma vez que a responsabilidade e correspondente punibilidade dependem da efectiva produção da morte de outrem como consequência da conduta negligente.
O preenchimento do tipo negligente, independentemente da produção do resultado, apenas poderá verificar-se naqueles casos específicos em que o legislador decida punir autonomamente a violação negligente do dever de cuidado. Uma vez que ao actuar negligentemente o agente não quer a produção do resultado lesivo, a sua conduta só será punida se o comportamento negligente obtiver a sua concretização nessa mesma lesão do bem jurídico protegido.
Encontrando-se provado que BB sofreu, como resultado directo e necessário da conduta do arguido, as lesões mencionadas no relatório de autópsia e vertidas nos factos provados, as quais foram a causa directa e determinante da sua morte, dúvidas não existem quanto ao preenchimento deste elemento do tipo.
Ademais, dúvidas não subsistem de que existe um nexo de causalidade entre o resultado morte verificado e que se visa tutelar na norma que incrimina o homicídio por negligência e a actuação do arguido.
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Conforme vimos supra, não se encontra provado, nem resultava já da acusação, que o arguido tenha querido atentar directamente contra a vida da vítima, que tenha previsto a sua morte como consequência necessária da conduta, nem tão pouco que tenha prefigurado a hipótese de ela se verificar e se haja conformado com a sua ocorrência.
Não se encontra demonstrado, por isso, que o arguido tenha actuado dolosamente.
Porém, refere o artigo 13.º do Código Penal que a negligência também é punida nos casos em que a lei preveja e estabeleça sanção penal para tal conduta.
Aparentemente o legislador relega para segundo plano os crimes negligentes em relação aos dolosos, todavia não será assim na realidade, pois estes tendem a assumir maior relevância face à necessidade de prevenir os riscos das actividades humanas. Na verdade, o crescimento da população e a necessidade de meios de transporte rápidos conduziram a uma intensificação massiva da circulação; a grande parte dos acidentes, frequentemente mortais, tem na sua origem comportamentos negligentes. Para que o progresso técnico e industrial não se converta num autêntico inferno na terra, deve o direito penal prevenir, em cumprimento da sua função preventiva, as possíveis violações dos bens jurídicos ameaçados, de entre os quais se destaca a vida humana.
Partindo do pressuposto que a negligência constitui a categoria normativa que mais se adequa à hipercomplexidade das sociedades actuais, um dos deveres que impende sobre todo e qualquer membro da ordem jurídica na sua inter-relação com os demais traduz-se na consciencialização das precauções a tomar para que se não façam perigar bens jurídicos fundamentais, como a vida humana.
Importa, pois, averiguar se a negligência se verificou no caso em análise.
A este respeito esclarece o artigo 15.º do Código Penal que age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização (negligência consciente); ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto (negligência inconsciente).
Por outras palavras: para que se possa imputar a alguém uma actuação negligente é necessário que essa pessoa, não se conformando ou não prevendo determinado resultado, ainda assim tenha violado, em simultâneo, dois deveres:
O dever objectivo de cuidado: Este dever objectivo de cuidado ou diligência pode reconduzir-se aos usos e normas jurídicas associadas ao exercício de um certo ofício ou actividade, às normas ou regulamentos que visam prevenir perigos - como justamente sucede com as disposições do Código da Estrada - e, finalmente, aos usos e à experiência comum com vista à adopção de determinadas cautelas e cuidados a fim de evitar a produção do resultado (cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal I, 1971, pág. 425 e ss.).
O dever subjectivo de cuidado: Que se traduz na capacidade de, na circunstância concreta, o agente ser capaz de prestar a diligência devida.
E, o critério a adoptar para aferir da capacidade do agente para observar o cuidado objectivamente devido é precisamente o critério do homem diligente colocado na mesma situação do autor da infracção. A capacidade inferior do agente pode excluir e diminuir a culpa, mas tal não supõe que o ilícito fique excluído. “Se cada pessoa estivesse obrigada unicamente a prestar o cuidado que, segundo as suas capacidades, lhe fosse possível, manifestar-se-ia um grande relaxamento na protecção dos bens jurídicos.” (Maria Joana de Castro Oliveira, A imputação Objectiva na Perspectiva do Homicídio Negligente, Coimbra Editora, 2004, pág. 107). Quem não tem as capacidades necessárias ao exercício de determinada actividade deve abster-se de a realizar.
Assim, o dever de cuidado consiste numa obrigação que impende sobre o autor, que deve colocar-se numa posição que lhe permita respeitar a norma, no nosso caso, a norma que proíbe matar. O grau de advertência requerido dependerá não só da proximidade do perigo mas também do bem jurídico a proteger, que no caso em análise é a vida humana.
Mas, conforme adverte Maria Joana de Castro Oliveira (ob. cit., pág. 76), “para que seja dado cumprimento a esta exigência, deverá o autor de um comportamento advir ou prever o perigo que dele eventualmente decorra para a vida humana e assim tomar todas as precauções tendentes a evitar a correspondente lesão (...). A morte da vítima há-de constituir uma consequência previsível e normal da conduta descuidada do agente, a determinar-se através de um juízo ex ante ou de prognose póstuma, referido ao momento em que a acção se realiza.”.
Desta forma, o agente só poderá ser responsabilizado pelo crime do artigo 137.º do Código Penal quando se conclua, utilizando a expressão proferida no Acórdão do Tribunal de Évora, de 25 de Fevereiro de 1992, “que tal resultado é consequência directa, necessária, típica e previsível da conduta daquele”.
Reportando-se ao conceito de negligência, ensina ainda o Prof. Germano Marques da Silva (Direito Penal Português, Parte Penal II, pág. 175), que “A imputação a título de culpa fundamenta-se na violação voluntária de regras de cautela impostas pela experiência ou por normas legais ou regulamentares destinadas precisamente a prevenir a violação de bens jurídicos (diligência objectiva). E, mais à frente, “A voluntariedade na negligência não é directa, não é dirigida à prática do facto ilícito, consiste antes na violação do dever de diligência, na omissão das cautelas necessárias para que o facto ilícito não ocorra”.
A conduta negligente (acção-omissão) é uma conduta voluntária que realiza um facto antijurídico não querido pelo agente, mas que foi por ele previsto ou era previsível e que podia ser evitado se o agente actuasse com o devido cuidado, com a devida diligência”.
"A negligência refere-se ao desvalor da conduta e ao desvalor do resultado, no círculo da evitabilidade da realização do tipo" (Wessels).
Existe, com efeito, um dever de diligência que, por assim dizer, vincula a acção e a vontade. E o mesmo desdobra-se numa diligência objectiva - "prudência exigível pelo direito para evitar o mal dos crimes puníveis como culposos" - e uma diligência subjectiva - "prudência de que é capaz cada qual" (Cavaleiro de Ferreira, citado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Maio de 1998, disponível em www.dgsi.pt).
O fundamento da punibilidade da negligência prende-se, deste modo, com a censurabilidade dirigida ao agente pela produção do resultado, quando lhe era possível evitá-lo caso tivesse observado o dever que lhe incumbia e preparado as suas capacidades para o evitar.
Na verdade:
Resulta do artigo 24.º, n.º 1 do Código da Estrada que “O condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.”.
Mais dispõe o art. 3.º, n.º 2, do Código da Estrada que “as pessoas devem abster-se de actos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança ou comodidade dos utentes da via.”.
O artigo 18.º, n.º2 do Código da Estrada, dispõe ainda que, “O condutor de um veículo em marcha deve manter entre o seu veículo e o que o precede a distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste.”.
Ora, ficou provado que Ao Km 12,700 da referida A2, zona do Fogueteiro e imediatamente a seguir à estação de Serviço da Galp, o arguido, porque seguia com o seu veículo demasiado próximo do veículo que o precedia e a uma velocidade superior à deste, fez embater violentamente a frente do seu veículo na traseira do veículo ………….. conduzido pelo BB. Agindo da forma descrita, o arguido AA conduziu desatento ao trânsito e aos demais utentes da via e com falta de cuidado, de modo que não se apercebeu de que o veículo de matrícula ……… se encontrava na sua via de trânsito, o que sabia poder acontecer face às características da via, não obstante dispor de visibilidade para o avistar. O arguido não adoptou manobra defensiva com vista a evitar o embate, pois que não travou nem guinou. Ao actuar da forma descrita, não regulando a velocidade do veículo de modo a que, atendendo às características da via e do trânsito, pudesse imobilizar o veículo de forma a evitar o embate, o arguido violou uma regra de trânsito elementar, a cujo respeito estava obrigado e que, nas concretas circunstâncias em que actuou, era capaz de observar, revelando a sua conduta elevado grau de imprudência e de imperícia. O arguido podia e devia ter previsto que não abrandando a velocidade, não travando ou não guinando a sua viatura poderia embater no veículo que seguia à sua frente, tendo previsto como possível que tal embate ocorresse, confiando, contudo, que a colisão não aconteceria. Bem sabia, além do mais, que tal conduta era proibida e punida por lei.
Era obrigação geral do arguido, em geral como a de qualquer cidadão que actua de modo a poder afectar a vida de outras pessoas e, especialmente, no exercício de uma actividade perigosa, como é a condução, fazê-lo com atenção e cuidado.
Verifica-se assim a violação do cuidado externo, objectivamente devido, e do cuidado interno subjectivamente possível, sendo que o normal dos cidadãos podia prever, segundo as regras de experiência geral, que assim actuando, daí poderia resultar um acidente, designadamente um embate, como ocorreu e dai poderiam resultar lesões físicas e mesmo a morte para as pessoas que transportava e para outros condutores.
*Para além do mais, o dever de cuidado omitido pelo agente era adequado a evitar a realização do tipo legal de crime.
A este propósito esclarece Claus Roxin (Problemas Fundamentais de Direito Penal, Colecção Veja Universidade, 3.ª edição, pág. 256 a 258), defensor da “teoria do risco”, também conhecida como “moderna teoria da imputação subjectiva”, que “não basta que a conduta negligente tenha sido a causa da morte” porquanto (entende) “causalidade e imputação objectiva são conceitos distintos”. No dizer de Roxin, “apesar de se verificar a causalidade, o resultado só pode ser imputado a alguém quando esse alguém cria, aumenta ou não diminui um risco de lesão de bens jurídicos”.
Assim sendo, e aplicando tal conceito aos autos, importa ainda responder a esta pergunta: o resultado ocorreria mesmo que o agente tivesse actuado com diligência, com um comportamento lícito alternativo?
E a resposta é clara – a conduta negligente do arguido foi a causa da morte de Pedro Nunes, e a morte não ocorreria se o arguido tivesse cumprido o dever de cuidado a que se encontrava obrigado e de que era capaz, conforme já explicado supra.
O arguido não poderia circular da forma como o fazia, nomeadamente, deveria ter adoptado a velocidade a que seguia à via onde circulava e guardar a distância necessária do veículo que seguia à sua frente, de tal forma que pudesse imobilizar o seu veículo em segurança. Assim, atendendo a que circulava numa auto estrada, cansado, o arguido deveria ainda ter reduzido a velocidade que imprimia na sua viatura, de forma a permitir imobilizar o seu veículo no espaço livre e visível à sua frente, quando se deparasse com um obstáculo, conforme aconteceu.
No entanto, e para os efeitos da lei, quem conduz como o fez o arguido não o faz em segurança, porquanto incrementa um risco não comportado pela norma que, como aqui, acabou por se materializar num dano para terceiros.
Face ao exposto, dúvidas não subsistem de que o arguido cometeu um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo artigo 137.°, n.° 1 do Código Penal.
**
II.4.2 Das Consequências Jurídicas do Crime
II.4.2.1 A determinação Legal da Pena
A todo o crime corresponde uma reacção penal, pela qual a comunidade expressa o seu juízo de desvalor sobre os factos e a conduta realizada pela arguida.
A moldura penal do tipo legal de homicídio por negligência (previsto e punido pelo artigo 137.° n.° 1 do Código Penal) é de prisão até 3 anos ou pena de multa.
Estipula o artigo 41.°, n.° 1 do Código Penal, que a pena de prisão tem a duração mínima de um mês. Por outro lado dispõe o artigo 47.°, n.° 1 do Código Penal que o limite mínimo da pena de multa é de 10 dias e o máximo de 360 dias.
Inexistindo quaisquer circunstâncias modificativas comuns, agravantes ou atenuantes, o arguido deverá ser punido com uma pena a fixar entre um mês a três anos de pena de prisão ou de 10 a 360 dias de multa.
*II.4.2.2 A determinação Judicial da Pena
II.4.2.2.1 A opção pela pena de multa
Os crimes em apreço são punidos, como vimos, em alternativa, com pena privativa da liberdade e multa.
Estabelece o art. 70.°, do Código Penal, que “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”.
De acordo com o art. 40.°, n.° 1, do Código Penal, a aplicação das penas (e das medidas de segurança) “... visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.”. Encontram-se, assim, expressas no citado normativo as finalidades subjacentes à aplicação de sanções de índole penal: fins de prevenção geral e fins de prevenção especial.
A protecção de bens jurídicos (prevenção geral) traduz-se numa forma de prevenção positiva, com vista a dissuadir o agente da prática de futuros crimes.
A prossecução desse objectivo obtém-se através da criação de expectativas na comunidade, mediante as quais se pretende assegurar o cumprimento do postulado nas normas penais, quer por essa mesma sociedade às quais se dirigem, quer ao nível individual de cada cidadão. A este propósito escreveu-se no Acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 02-03-1994 (BMJ n.° 435, pág. 499), “Na prevenção geral visa-se proteger as expectativas da comunidade na manutenção ou reforço da validade da norma infringida e reforçar a consciência jurídica da mesma comunidade.”.
Nesta confluência, a prevenção geral actua, não tanto por via da intimidação, mas também e sobretudo, por via da integração. Por isso, cumpre nesta sede acautelar as expectativas da sociedade manifestadas num sentimento comum que entenda a aplicação da pena como sendo adequada a impedir a perpetração de ulteriores infracções às normas sociais e jurídicas vigentes.
No que concerne à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial) pretende-se, através da aplicação de sanções de índole penal, que o mesmo as sinta actuarem sobre si e se sinta motivado a repensar, a reajustar o seu comportamento às exigências da vida em sociedade. Os fins de prevenção especial pressupõem, por isso, a vertente intimidativa da consciência da seriedade da ameaça penal.
Em todo o caso, as exigências de prevenção, em qualquer uma das suas formas, medem-se pela perigosidade. Ora, o juízo de perigosidade distingue-se fundamentalmente do juízo de culpa, por se traduzir numa valoração de prognose em função da probabilidade de cometimento de futuros crimes e não em razão do facto passado. Por consequência, o momento racional a atender para aferir as exigências de prevenção é o da sentença e não o da prática do facto.
Na operação de escolha da pena aplicável, devem assumir preponderância as exigências de prevenção geral face às de prevenção especial.
As exigências de prevenção especial assumem, in casu, mediana relevância, considerando que o arguido não tem antecedentes criminais.
Ademais, o arguido é jovem, já tem o peso de ter uma morte sobre si que o fará repensar na sua conduta.
Perante quanto ficou aduzido, considero que o cumprimento das exigências de prevenção, em qualquer uma das suas vertentes, se compadece com a opção pela aplicação ao arguido de uma pena não privativa da liberdade, ou seja, de uma pena de multa.
***
II.4.2.2.2 A medida concreta da pena
Importa ainda apurar qual a medida concreta da pena que se reputa adequada.
Os concretos factores de medida da pena, constantes do elenco, não exaustivo, do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, revelam tanto pela via da culpa como pela via da prevenção: seja a função primordial de socialização, seja qualquer uma das funções subordinadas de advertência individual ou de segurança/inocuização. Importa assim considerar todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido:
a) A ilicitude dos factos considera-se muito elevada, relativamente a ambos os crimes que lhe são imputados, considerando desde logo a gravidade das suas consequências – morte e lesão de corpo e da saúde dos ofendidos. Depois, temos ainda que considerar o modo de execução do facto – com utilização de um veículo ligeiro de passageiros –, fonte potencial de risco para a circulação rodoviária.
b) A culpa é mediana, uma vez que o grau de negligência apurada embora seja acentuada molda-se na negligência consciente: o arguido violou frontalmente o dever geral de diligência imposto aos condutores, tendo violado a regra estradal de obrigação de guardar a distância de segurança.
c) As necessidades de prevenção geral mostram-se elevadas, atento os níveis de sinistralidade e mortalidade das estradas portuguesas, os quais sugerem uma reflexão atenta no sentido de determinar as causas. Muito tem sido feito no sentido de melhorar a rede viária e, de igual modo, o parque automóvel tem vindo a ser renovado, aumentando assim os níveis de segurança. Todavia, os dados estatísticos de sinistralidade não desceram, porquanto fácil será de inferir que um dos factores, se não o principal, tem a ver com a postura dos cidadãos na estrada.
Mais, a condução segura, com respeito por todas as regras estradais e outras com elas estritamente relacionadas, é uma “imposição” que vem sendo feita a todos nós quer com a criação de normas que punem cada vez mais severamente condutas desrespeitadores das mesmas, quer através dos “média” motivando o condutor por intermédio da publicidade, a que não pudemos ficar indiferentes.
Exige-se, pois, um reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à norma violada.
d) As exigências de prevenção especial são medianas, e neste sentido temos a ausência de antecedentes criminais.
Como atenuantes:
e) O facto de se encontrar social, familiar e profissionalmente inserido.
Ponderado todo o acima exposto, bem como a moldura penal aplicável aos crimes em apreço, e sabendo que a pena a aplicar ao arguido deverá ser o reflexo
de todos os critérios e factores enunciados, afigura-se justo e adequado:
· Condenar o arguido, na pena de 250 dias de multa, pelo crime de homicídio por negligência praticado.
*
II.4.2.2.3. Do Quantitativo diário
Importa agora apurar o quantitativo diário aplicável ao arguido. De acordo com o artigo 47.°, n.° 2, do Código Penal a cada dia de multa corresponde uma quantia entre € 5 e € 500, devendo o tribunal atender à situação económica e financeira do arguido e aos seus encargos pessoais.
Figueiredo Dias define os parâmetros para a fixação do quantitativo diário, de modo a realizar a desejada igualdade de ónus e sacrifícios entre todos os indivíduos sujeitos a pena de multa. Também Maia Gonçalves (in Código Penal Português, 10.ª edição, pág. 226), a este respeito, refere que a amplitude estabelecida no artigo 47.°, n.° 2 do Código Penal, quanto ao quantitativo diário da multa visa “eliminar ou pelo menos esbater as diferenças de sacrifício que o seu pagamento implica entre os réus possuidores de diferentes meios de a solver”.
Assim dever-se-á ter em conta:
a)        a situação económico-financeira do condenado;
b)        os seus rendimentos e encargos;
c)        os deveres e obrigações do condenado decorrentes ao facto de haver praticado um facto ilícito de natureza criminal.
Assim, ponderando, por um lado, que o arguido aufere € 850,00 e não tem encargos de relevo porque vive em casa dos pais e, por outro, que a pena de multa não pode ser inócua, sob pena de gerar um perigoso sentimento de impunidade e inutilidade e de não assegurar a estabilização das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida, fixamos, o quantitativo diário a aplicar em € 7,00.
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II.4.2.2.4. Da Pena Acessória de proibição de conduzir veículos motorizados
O crime de homicídio por negligencia é, ainda, punível com a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, prevista no artigo 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, que dispõe que: “É condenado na proibição de conduzir veículos motorizados por um período fixado entre 3 meses e 3 anos quem for punido: a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291.° ou 292.°”.
Trata-se de uma verdadeira pena acessória. “Corolário da sua natureza de verdadeira pena criminal, a pena acessória de proibição de conduzir concretamente aplicada há-de representar, em cada caso, uma censura suficiente do facto e, simultaneamente, o reforço da imperatividade e vigência da norma jurídica violada e do sentimento de segurança da comunidade face à mesma norma.” (Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 17.05.2007, disponível em www.dgsi.pt).
O Tribunal não pode ainda deixar de ser indiferente ao facto de a condução de um veículo dever ser efectuada com a observância das regras estradais, consubstanciando um acto responsável e reflectido para que, ao invés de esse meio de transporte se transformar numa fonte de perigo para a vida, a integridade física e os interesses patrimoniais dos demais utentes das vias públicas ou equiparadas, seja um instrumento susceptível de propiciar conforto e maior segurança para quem dele usufrui.
A pena acessória a aplicar ao arguido deverá ter em consideração, desde logo, a moldura abstracta, todo o circunstancialismo fáctico apurado, nomeadamente, que o arguido infringiu uma regra estradal, o grau de ilicitude e de culpa, a ausência de antecedentes criminais, bem como as elevadas exigências de prevenção geral.
Tendo em consideração todos os factores supra expostos, julga-se justo e adequado condenar o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis, pelo período de 8 (oito) meses.
***
II.5 Das Custas
Dispõe o artigo 3.0, n.0 1 do Regulamento das Custas Processuais, que as custas compreendem quer a taxa de justiça, como os encargos com o processo e as custas de parte.
Pelo que, de acordo com os artigos 513.0 e 514.0 do Código de Processo Penal, tendo a acusação sido totalmente procedente e o arguido sido condenado pela prática de dois crimes, a taxa de justiça e encargos com o processo devem ser suportados pelo arguido.
Ademais, por nos encontrarmos perante um processo comum singular onde não existiu contestação, segundo a Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Judicias para a qual remete o n.0 9, do artigo 8.0 daquele diploma legal, a taxa de justiça aplicável varia entre 2 a 6 U.C., tendo em consideração a complexidade da causa.
Em função do exposto, deverá o arguido ser condenado em taxa de justiça, que fixo em 2U.C., bem como nos encargos a que deu azo.
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III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas:
a) Condeno o arguido AA, como autor material de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.0, n.0 1, do Código Penal, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à razão diária de € 7,00 (sete euros), num total de € 1750,00 (mil, setecentos e cinquenta euros).
b) Condeno o arguido AA na pena de proibição de conduzir veículos com motor por um período de 8 (oito) meses, nos termos do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
c) Condeno o arguido AA nas custas processuais, que englobam taxa de justiça de 2 U.C., reduzida a metade em face da confissão, bem como os encargos com o processo.
(…)

Da análise dos fundamentos do recurso:
Tudo visto, diremos que, como é sabido, e resulta do disposto nos arts. 368.º e 369.º, ex vi art. 424.º, n.º 2, todos do CPP, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem o objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.
Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada e, depois, dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP.
Por fim, das questões relativas à matéria de direito.
Será, pois, de acordo com estas regras de precedência lógica que serão apreciadas as questões suscitadas.
Antes de mais, diremos que, o recorrente não impugnou a matéria de facto nos termos do disposto no artº 412º do CPP.

Decidindo diremos:
O Código de Processo Penal estabelece, no seu art. 379º, um regime específico das nulidades da sentença, as quais são de conhecimento oficioso.
Assim, e nos termos das três alíneas do seu nº 1, é nula a sentença penal quando, não contenha as menções previstas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do art. 374º, quando condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, fora dos casos previstos nos arts. 358º e 359º, e quando o tribunal omita pronúncia ou exceda pronúncia.
Não sendo pacífica a interpretação do nº 2, do art. 379º, do C. Processo Penal quanto ao conhecimento destas nulidades, estamos com os que entendem ser oficioso tal conhecimento.
Tudo isto porque, como procuraremos demonstrar, sendo fácil tal tarefa, diga-se, que a sentença ora recorrida, enferma do vício de omissão de pronúncia na vertente de excesso de pronúncia.
Assim deixamos expresso que para efeitos da nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do art. 379.º do CPP, o conhecimento proibido é aquele que resulta de decisão não compreendida pelo objecto do recurso, e o conhecimento omitido é o que não resulta de decisão relativamente ao objecto do recurso.
Englobam-se as mesmas no disposto na alínea c) do nº 1 do artº 379º do C.PP, que dispõe que é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
A omissão de pronúncia, que é fulminada com a nulidade caracteriza-se essencialmente por uma ausência de decisão sobre questões que a lei impõe que sejam conhecidas, ou seja, só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes, ou de que deve conhecer oficiosamente.
 Citando-se o exarado no AC do S.T.J. de 24-10-2012, processo 2965/06.0TBLLE, diremos que : “a pronúncia cuja “omissão” determina a consequência prevista no artigo 379º, nº 1, alínea c) CPP – a nulidade da sentença – deve, pois, incidir sobre problemas e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objecto que é submetido à cognição do tribunal e não aos motivos ou as razões alegadas”.
Porém, mesmo não alegadas essas nulidades, sempre seriam oficiosamente cognoscíveis em recurso, visto que as nulidades de sentença enumeradas no artº 379º nº 1 do CPP, têm regime próprio e diferenciado do regime geral das nulidades dos restantes actos processuais estabelecendo-se no nº 2 do mesmo artigo que as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se com as necessárias adaptações o disposto no artigo 414º nº 4(v. Ac, do STJ Supremo de 31 de Maio de 2001, proc. Nº 260/01, 5ª, SASTJ, nº 51,97). 
Ora foi exactamente isto que aconteceu nestes autos, e em circunstâncias que revestem até contornos “sui generis”.
Passemos a explicar, mas sucintamente:

A primeira, verifica-se, quando, a jusante o Ministério Público na acusação que formulou a fls.247 a 252, acusou o arguido da pratica como autor material e sob a forma consumada de um crime de homicídio por negligência, p.p. pelo artº 137º e 69 do Código Penal, sem especificar, como se pode facilmente constatar, se a pratica dos factos contidos na acusação, quer no que respeita aos elementos objectivos, quer subjectivos, se integravam no nº 1, ou no nº 2 do artº 137º do C.P.
Frisamos que o artº 137º do C.P. não é uma disposição legal de corpo único onde encerre em si a prática de um só crime.
Ao invés é composto por dois números que configuram duas incriminações diferentes, como é por todos consabido, (homicídio negligente com negligência simples ou com negligência grosseira) e diferenciados perfeitamente, pois até são cominados com penas abstractas bem diversas.
E assim para que não se fique com reminiscências que possam abalar as afirmações supra, deixa-se aqui exarada a norma legal em questão (a qual até não sofreu alterações desde a entrada em vigor do Código Penal, tendo assim uma “sedimentação” legal apreciável de aplicação, dizemos nós…)

Artigo 137.º
Homicídio por negligência
1 - Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 - Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos.


Passemos então à apreciação “in casu”, e revertendo ao que atrás se deixou exarado:
A acusação encontra-se manifestamente mal e deficientemente enquadrada no que toca à qualificação jurídica do crime que ali foi imputado ao arguido.
Tal “defeito”, se assim se pode configurar, foi ultrapassando com ligeireza todas as barreiras processuais, ou seja na aplicação do artigo 311º do CPP, onde tal hiato passou despercebido, tendo-se recebido a acusação nos seus exactos termos, mesmo deficiente que estava, e podendo até ali no pretérito ter-se equacionado a eventual possibilidade de aplicação da sua rejeição nos termos do disposto no artº 311º nº 1 e nº 2 al. a) e nº 3 al. c) do Código de Processo Penal ou usando qualquer outro expediente legal, consentido por lei.
(vide aqui entre muitos outros, o Ac. TRL de 4-10-2006: I. Depois de os autos terem sido remetidos para a fase de julgamento, o juiz tem oportunidade de se pronunciar sobre a qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido no momento em que profere o despacho a que se referem os artigos 311º a 313º do Código de Processo Penal.
II. Se nessa ocasião decidiu receber a acusação deduzida «pelos factos e incriminação nela constantes», cujo conteúdo deu por reproduzido, só pode reexaminar a qualificação jurídica da conduta, então face aos factos provados e não face àqueles que o Ministério Público tinha considerado suficientemente indiciados, ao proferir a sentença).
Também no decurso da audiência de discussão e julgamento o mutismo quanto a este tema foi sepulcral, só cessando na sentença quando finalmente no seu corpo e na fundamentação de direito nas duas últimas linhas se decidiu sem mais, condenar o arguido pela prática de um crime p.p. pelo artigo 137º nº 1 do Código Penal, sem mais, e depois de ali se ter tecido, mas previamente elaboradas considerações legislativas, doutrinais e jurisprudenciais, mas despiciendas quanto a este tema.
Mas o mal já estava feito, o qual teve a sua origem na deficitária acusação pública como já se frisou.
No entanto o modo encontrado pelo Tribunal “ a quo” para superar tal “status quo”, não é legalmente consentido. E não o é, porque primeiro o arguido não pode ser surpreendido com a condenação por um crime pelo qual efectivamente não estava acusado, pois seguindo tal raciocínio, também o Tribunal “ a quo” o poderia ter condenado pelo artº 137º nº 2 do C.P.P., sem mais.
Fazendo uma comparação com uma hipotética situação análoga, o mesmo aconteceria, se percorrendo a mesma via sacra, o Ministério Público tivesse acusado um arguido pela pratica de um crime p.p. pelo artº 132º do C.P., ou de um crime p.p. pelo artigo 256º do C.P., sem mais, e depois na sentença ou acórdão sem nada o fazer prever se escolhesse, agora à la carte, e de forma precisa, qual o crime concretamente cometido pelo arguido quer quanto aos elementos objectivos só, ou a estes e à pena abstractamente aplicável, já para não repetir, que o caso dos autos, em que a pedra de toque na diferenciação do tipo legal (para além da evidente morte de uma pessoa) se centra nos elementos subjectivos (tipo de negligência) dos dois tipos de crime insertos no artº 137º do C.P., no nº 1 e nº 2.
E tanto assim é a situação anómala espelhada nestes autos, que por via do recurso interposto pelo Ministério Público, vem este agora pretender que o arguido seja condenado pela pratica do crime previsto e punido pelo artigo 137º nº 2 do Código Penal, por entender que este agiu com negligência grosseira, talvez por ter sido essa a sua intenção inicial, mas não concretizada na acusação, nem sequer na fase do julgamento onde poderia até ter feito antes ou durante um requerimento com o conteúdo tido por ele por conveniente e adequado (vide aqui ler com atenção o nº 1 do artº 358º do C.P.P.).
Não podendo ser branqueada a situação dos autos diremos claramente, e enfatizando que o artº 358º do C.P.P. dispõe o seguinte:
Artigo 358.º
Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia
1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.
3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.
Contém as alterações dos seguintes diplomas:
- Lei n.º 59/98, de 25/08
Consultar versões anteriores deste artigo:
-1ª versão: DL n.º 78/87, de 17/02

Podemos pois concluir que o cumprimento do artigo 358°, n° 3, é acto que interessa à defesa, de acordo com as exigências do processo justo e equitativo e é imperativo do princípio do contraditório, com assento constitucional no n° 5 do artigo 32° da CRP.
O direito ao contraditório traduz-se na estruturação da audiência e dos outros actos instrutórios que a lei determina como uma discussão entre a acusação e a defesa, «em que se procura também realizar a igualdade de armas entre os sujeitos do processo, cada apresentando os seus argumentos e as suas provas, submetendo uns e outros ao controlo das razões e das provas apresentadas pelos outros sujeitos, assim participando activamente na formação da decisão que vier a ser tomada pelo juiz» (acórdão do TC de 4 de Novembro de 1987, BMJ 371 p. 160. e o parecer n° 18/81 da Comissão Constitucional).
Ora, omitindo-se o mecanismo do artigo 358°, n° 3 (que remete para o nº 1 do mesmo artigo), omitiu-se do mesmo passo - e definitivamente, já que a lei não determina a reabertura da audiência, e a estrutura do processo, de raiz basicamente acusatória, não o consente, a efectiva possibilidade de o arguido, que em dado momento se viu comprometido com os novos factos ou incriminação, os discutir, contestar e valorar adequadamente, tanto mais que com a interposição do presente recurso o Ministério Público visa agravar a conduta típica criminosa do arguido que tem por espelho os factos dados como assentes na sentença recorrida.”
Apesar de o n.° 3 do artigo 358° aludir apenas a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, essa qualificação jurídica dos factos em sede de acusação não se circunscreve à indicação da norma que prevê o tipo de crime ou crimes que aqueles preenchem. Com efeito, a lei - alínea c) do n.° 3 do artigo 283° Código de Processo Penal,  impõe a indicação das disposições legais aplicáveis, ou seja, de todas as disposições legais aplicáveis. Deste modo, para além da indicação da norma que prevê o tipo de crime ou crimes, terão de ser indicadas as normas que estabelecem a respectiva punição, ou seja, a espécie e a medida das sanções aplicáveis.
Pretende a lei que ao arguido seja dado conhecimento do exacto conteúdo jurídico-criminal da acusação, ou seja, da incriminação e da precisa dimensão das consequentes respostas punitivas, dando-se assim expressão aos princípios da comunicação da acusação e da protecção global e completa dos direitos defesa, este último acolhido no n.° 1 do artigo 32° da CRP.
Só assim o arguido poderá preparar e organizar a sua defesa de forma adequada.
É que o arguido não tem que se defender apenas dos factos que lhe são imputados na acusação. A vertente jurídica da defesa em processo penal é, em muitos casos, mais importante. E esta para ser eficaz pressupõe que o arguido tenha conhecimento do exacto significado jurídico-criminal da acusação, o que implica, que lhe seja dado conhecimento preciso de todas disposições legais que irão ser aplicadas.
Por isso, qualquer alteração da qualificação jurídica dos factos feita na acusação, principalmente qualquer alteração que importe um agravamento, terá necessariamente de ser dada a conhecer ao arguido para que este dela se possa defender, sob pena de se trair o ideário do processo justo e equitativo, de que fala o art.° 6° da CEDH e densificado no art.° 32° da nossa Constituição (vide aqui o Ac do TRL de 14-09-2016).
Estaremos assim no caso dos autos perante uma alteração da qualificação jurídica, pelo que deverá o Tribunal a quo dar cumprimento ao estipulado no art° 358° n° 1/3 do CPP, seguindo-se os demais termos processuais.
Ao não proceder à alteração da qualificação jurídica e ao não pronunciar-se sobre a mesma incorreu o Tribunal a quo numa omissão de pronuncia nos termos do art° 379° n° 1 al. c) do CPP, relativamente e apenas à efectiva incriminação que é imputada ao arguido, uma vez que esta está formulada de forma imperfeita na acusação comprimindo assim de forma patente os direitos do arguido no caso em apreço.
De facto apesar de o n.° 3 do artigo 358° aludir apenas a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, essa qualificação jurídica dos factos em sede de acusação não se circunscreve à indicação da norma que prevê o tipo de crime ou crimes que aqueles preenchem. A lei - alínea c) do n.° 3 do artigo 283° Código de Processo Penal - impõe a indicação das disposições legais aplicáveis, ou seja, de todas as disposições legais aplicáveis. Para além da indicação da norma que prevê o tipo de crime ou crimes, terão de ser indicadas as normas que estabelecem a respectiva punição, ou seja, a espécie e a medida das sanções aplicáveis. Pretende a lei que ao arguido seja dado conhecimento do exacto conteúdo jurídico-criminal da acusação, ou seja, da incriminação e da precisa dimensão das consequentes respostas punitivas, dando-se assim expressão aos princípios da comunicação da acusação e da protecção global e completa dos direitos defesa, este último acolhido no n.° 1 do artigo 32° da CRP. Só assim o arguido poderá preparar e organizar a sua defesa de forma adequada. O arguido não tem que se defender apenas dos factos que lhe são imputados na acusação. A vertente jurídica da defesa em processo penal é, em muitos casos, mais importante. E esta para ser eficaz pressupõe que o arguido tenha conhecimento do exacto significado jurídico-criminal da acusação, o que implica, que lhe seja dado conhecimento preciso de todas disposições legais que irão ser aplicadas. Por isso, qualquer alteração da qualificação jurídica dos factos feita na acusação, principalmente qualquer alteração que importe um agravamento, terá necessariamente de ser dada a conhecer ao arguido para que este dela se possa defender, sob pena de se trair o ideário do processo justo e equitativo, de que fala o art.° 6° da CEDH e densificado no art.° 32° da nossa Constituição. A aplicação surpresa da pena acessória na sentença não é compatível com o processo justo e equitativo desenhado na CRP e no Código de Processo Penal, in Proc. 517/14.0PDFUN 3ª Secção, Desembargadores: Vasco Rui Freitas - Rui Gonçalves / sendo que aqui se perfilha uma nulidade da al. b) do nº 2 do artº 379 do CPP.
Perfilhamos também o entendimento que não estabelecendo a lei o momento exacto, aberta a audiência logo no seu início e mesmo antes de ter sido produzida prova, pode o juiz alterar a qualificação jurídica dos factos constantes da acusação. Tal procedimento não colide com a estrutura acusatória do processo (vide aqui Ac. TRG de 7-01-2013, CJ, 2013, T2, pág.292), mais se dizendo que o despacho que procede à comunicação nos termos do artº 358º1/3 CPP é provisório e transitório, não afectando nenhum direito do recorrente a exigir tutela jurisdicional, sendo irrecorrível.
Ora não sendo um caso de aplicação do Ac. STJ de Fixação de Jurisprudência nº1/2015, ressalta-se sim que e de acordo com o Acórdão do STJ n.º 11/2013 de Fixação de Jurisprudência in DR de 19.07.2013, com o qual se concorda com os seus fundamentos e decisão, que a alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º nºs 1 e 3, do CPP.
Ora, tal hiato se assim lhe podemos chamar, configura uma omissão de pronúncia prevista no artº 379 nº 1 al. c) do C.P.P., a qual não podendo ser colmatada pelo Tribunal Superior, nem muito menos evidentemente com recurso ao artº 380º do C.P.P. (por não estar ai evidentemente previsto este tipo de situações por extravasar largamente o seu conteúdo e âmbito de aplicação) acarreta a nulidade da sentença proferida pelo tribunal “ a quo”.
vide aqui o Ac. TRC de 4-06-2008, CJ, 2008, T3, pág.52: I. A alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação a efectuar na sentença é processualmente equiparada a alteração não substancial dos factos.
II. A não notificação do arguido da referida alteração da qualificação jurídica antes da prolação da sentença consubstancia uma nulidade da sentença.
E sendo este um vício de conhecimento oficioso, o qual se encontra bem destacado na sentença recorrida (se bem que a sua génese se tenha iniciado com a deficiente formulação da acusação pública pelo Ministério Público, a qual posteriormente na fase judicial passou “despercebida” incluso até à decisão final), incorreu a sentença no vício da omissão de pronúncia, artº 379 nº 1 c) do CPP, pois deixou de tomar conhecimento de uma questão que até é forçosamente teria de fazer parte daquela decisão e que é legalmente exigível.
O Tribunal pode sempre alterar a qualificação jurídica dos factos, desde que dê cumprimento ao dever de comunicação prévia previsto no artigo 358º, n.º 3, do C.P.P., facultando a oportunidade de exercício da defesa, inteiramente conforme à constituição e à Lei, conforme já se apontou.

Assim sendo aqui, a omissão da comunicação da alteração da qualificação jurídica ao abrigo do disposto no artº 358 nº 1 e 3, do Código de Processo Penal, configura uma omissão de pronúncia, logo a não notificação do arguido da referida alteração da qualificação jurídica antes da prolação da sentença consubstancia uma nulidade da sentença, (nota: em sentido concordante Frederico Isasca, in «Alteração Substancial dos Factos no Processo Penal Português», Almedina, Coimbra Editora, pág.100-) artº 379º nº 1 al. c) do C.P.P. do Tribunal “ a quo”, devendo agora tê-los em consideração e apreciação na decisão que vier a tomar no futuro.
Nestes termos declara-se nula a decisão recorrida por se verificar omissão de pronúncia nos termos “sui generis” atrás referidos, de acordo com o disposto no artº 379 nº 1 c) do C.P.P., o que se declara.
Assim, impõe-se ordenar o suprimento da nulidade verificadas, com a consequente revogação da decisão da 1ª instância, e a determinação da comunicação da alteração jurídica, tida por pertinente pelo Tribunal “a quo” nos termos do artº 358º nº e 3 do CPP, o que se declara. 
Assim encontram-se prejudicados os segmentos do recurso apresentado pelo recorrente, o Ministério Público.

DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam as Juízas da 9.ª Secção Criminal da Relação de Lisboa em:
Declarar nula a decisão recorrida por omissão de pronúncia nos termos atrás referidos, nos termos do artº 379º nº 1 alínea c) do C.P.P. e, em consequência, determinar a sua substituição por outra sentença a efectuar pelo mesmo tribunal e juiz, que supra as apontadas nulidades, nos termos sobreditos, com a comunicação prévia da alteração da qualificação jurídica tida por pertinente pelo Tribunal “ a quo”, nos termos do artº 358 nº 1 e 3 do C.P.P.
Não é devida tributação.

Notifique- se e D.N.

Lisboa, 10 de Outubro de 2019
(Certifica-se, para os efeitos do disposto no art. 94.º, n.º 2, do CPP, que o presente acórdão foi elaborado e revisto pela relatora, a primeira signatária; versos das folhas em branco)

Filipa Costa Lourenço
Cristina Santana