Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1784/2008-6
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: ACÇÃO DE DESPEJO
DESISTÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/06/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I. O Código Civil consagra a doutrina objectivista da interpretação da declaração negocial, mitigada embora por uma restrição de natureza subjectivista.
II. O senhorio, depois de receber as chaves do loja arrendada e declarar que “retira a acção de despejo em tribunal “, só pode dar a entender, a um declaratário normal, colocado na posição do arrendatário, que, perdido o interesse na acção de despejo, é sua vontade retirá-la do tribunal, desistindo de obter a satisfação das demais pretensões jurídicas.
III. Não há má fé processual, quando a vontade real do declarante pode ser diferente do sentido normativo encontrado nos termos da n.º 1 do art. 236.º do Código Civil.
O.G.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
R e mulher, M, instauraram, em 30 de Março de 2007, no 2.º Juízo Cível da Comarca de Almada, contra T, Lda., e L, acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, subordinada ao regime de processual experimental, aprovado pelo DL n.º 108/2006, de 8 de Junho, pedindo que fosse declarada a resolução do contrato de arrendamento tendo por objecto a Loja, sita no Centro Comercial Caparica Oceano, concelho de Almada, e a Ré condenada na entrega imediata do locado, e ambos os Réus a pagarem-lhe, solidariamente, a quantia de € 5 950,00, a título de rendas vencidas, e as rendas vincendas, bem como a quantia de € 215,00, a título de despesas de condomínio, e nas mesmas despesas vincendas, tudo acrescido dos juros, à taxa legal, a partir da citação.
Para tanto alegaram, em síntese, que a R. deixou de pagar as rendas, no valor mensal de € 850,00, a partir de Outubro de 2006, bem como a despesa de condomínio, no valor mensal de € 21,50, a que se vinculara por contrato de arrendamento, com o prazo mínimo de 36 meses, celebrado no dia 19 de Abril de 2006, e pelo qual o R. também se obrigou como fiador.
Os AA., em 25 de Maio de 2007, dando conta que “os RR. denunciaram o contrato, com a entrega das chaves no dia 22 de Maio de 2007”, requereram “o prosseguimento dos autos apenas quanto à questão das rendas em atraso” (fls. 33).
Os RR., pessoal e regularmente citados, não contestaram.
Em 25 de Outubro de 2007, foi proferida a sentença, nos termos do n.º 4 do art. 15.º do DL n.º 108/2006, de 8 de Junho, condenando os RR. a pagarem aos AA.:
1. As rendas mensais vencidas, desde Outubro de 2006 a Maio de 2007, cada uma no valor de € 850,00.
2. O valor das rendas mensais até se completar o prazo do contrato de 36 meses.
3. As despesas de condomínio, vencidas desde Junho de 2006 a Maio de 2007.
4. Os juros moratórios, à taxa legal, vencidos, a partir da data de cada uma das respectivas prestações, e vincendos.

Inconformados, recorreram os Réus, que, alegando, formularam essencialmente as seguintes conclusões:
a) Quando ainda decorria o prazo da contestação, foi celebrado um acordo extrajudicial, entre os RR. e o A., nos termos do qual foi entregue imediatamente o locado, enquanto o último se comprometeu, por escrito, a “retirar” a acção em tribunal.
b) O A. agiu com má fé e pôs em causa o seu direito ao exercício do contraditório.
c) O A., requerendo o prosseguimento dos autos “apenas quanto à questão das rendas em atraso”, renunciou a todos os restantes pedidos.

Pretendem, com o provimento do recurso, para além da condenação do A. como litigante de má fé, a revogação da sentença recorrida e sua absolvição da totalidade do pedido ou, então, a sua condenação limitada às rendas em atraso.

Contra-alegou o Autor, no sentido de ser mantida a sentença recorrida, que pediu também a condenação dos RR., por má fé, com o fundamento da interpretação abusiva do documento junto com as alegações.
Cumpre apreciar e decidir.

Neste recurso, está essencialmente em causa saber se as partes celebraram um contrato de transacção e, na afirmativa, em que termos o fizeram, assim como a sua má fé no âmbito do recurso.

II. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Para além da dinâmica processual descrita, está também provado que o Apelado fez a seguinte declaração escrita, que subscreveu (fls. 68):
Eu, R, declaro que recebi nesta data, 22 de Maio de 2007, as chaves da loja situada no Centro Comercial Oceano, na Costa de Caparica, das mãos de C.
Mais declaro que retiro a acção de despejo em tribunal.”

2.2. Delimitada a materialidade relevante, importa então conhecer do objecto do recurso, definido pelas suas conclusões, e cujas questões jurídicas emergentes foram já antes destacadas.
A transacção é definida, no Código Civil (CC), como sendo o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões (art. 1248.º, n.º 1).
O contrato de transacção formaliza-se mediante documento autêntico ou particular, sem prejuízo das exigências de forma da lei substantiva, ou através de termo no processo, como se prevê no art. 300.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC).
É, neste âmbito, que se insere a declaração do Apelado, constante de fls. 68 e acima transcrita, a qual foi junta aos autos com as alegações, pelos Apelantes.
Aceitando ambas as partes a materialidade da declaração, divergem já relativamente à sua interpretação. Assim, enquanto os Apelantes defendem o sentido de que a declaração corresponde à desistência do pedido da acção, o Apelado, por sua vez, entende que não se quis desistir do pagamento dos valores peticionados.
Desenhada a controvérsia jurídica que divide as partes, torna-se imprescindível averiguar do sentido normal da declaração, servindo-nos, para o efeito, das regras normativas consagradas nos artigos 236.º e 238.º, ambos do CC.
Segundo o disposto no art. 236.º, n.º 1, do Código Civil, a declaração negocial vale com o sentido que um declarante normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
Consagra-se, neste dispositivo legal, a doutrina objectivista da interpretação da declaração negocial, mitigada embora por uma restrição de natureza subjectivista, que, igualmente, se estende sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante (n.º 2 do art. 236.º do CC).
No caso vertente, os autos não disponibilizam os factos que permitam conhecer o sentido da vontade real, isto é, o que declarante quis, quando manifestou a sua vontade.
Por isso, é necessário encontrar o sentido normativo da declaração, designadamente através da aplicação da já aludida teoria da impressão do destinatário.

A declaração formal constante de fls. 68 é clara no sentido de que, no dia 22 de Maio de 2007, o Apelado recebeu da Apelante a loja arrendada, mediante a entrega das chaves.
Sobre isso, na verdade, não existe qualquer divergência.
Onde a controvérsia surge é, efectivamente, no sentido normal da outra declaração do Apelado, quando afirmou: “que retiro a acção de despejo em tribunal”.
Desde logo, esta declaração não podia valer com o sentido de apenas se estar a referir ao pedido de despejo formulado na acção. Com efeito, essa pretensão ficara satisfeita com a entrega das chaves da loja arrendada, provocando, nessa parte, a inutilidade superveniente da lide, como aliás foi declarado, como questão prévia, também na decisão impugnada.
Tendo assim o pedido de despejo perdido a utilidade, pelo facto superveniente da entrega das chaves do local dado de arrendamento, pela arrendatária, da declaração do Apelado de retirar a acção de despejo em tribunal, um declaratário normal, colocado na posição da Apelante, seria levado a entender que o declarante iria desistir da acção de despejo proposta, designadamente dos pedidos formulados cuja utilidade ainda se mantinha depois da entrega da loja arrendada.
Trata-se, aliás, de um tipo de transacção que é corrente, nos termos do qual o senhorio, em troca da entrega imediata do local dado de arrendamento, renuncia ao direito de crédito sobre o arrendatário.
Em face da declaração do senhorio, não se pode atender a qualquer outro sentido.
Se não era essa a sua vontade real, então, como autor da declaração, tinha de a deixar clara. Com efeito, é mais fácil ao declarante evitar uma declaração não coincidente com a sua vontade do que ao declaratário aperceber-se da vontade real do declarante (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Fevereiro de 1988, BMJ, 374, 436).
A interpretação objectivista, que neste caso é prevalecente, justifica-se também pela necessidade de conferir protecção às legítimas expectativas do declaratário, garantindo ainda a segurança do tráfico jurídico.
Observe-se que a declaração posterior dos Apelados, feita já nos autos, a fls. 33, é diferente, quando especifica o “prosseguimento dos autos apenas quanto à questão das rendas em atraso”.
Com esta declaração, fica-se a saber que o senhorio continua a exigir o direito de crédito emergente das rendas não pagas.
Contudo, para além dessa declaração ser contraditória relativamente à anterior, também não produz efeitos jurídicos, em virtude de não ser possível a sua alteração, sem o acordo do declaratário, dado que este era conhecedor da anterior declaração.
Assim, o senhorio, ao declarar que “retira a acção de despejo em tribunal “, só pode dar a entender, a um declaratário normal, colocado na posição do arrendatário, que, perdido o interesse na acção de despejo, é sua vontade retirá-la do tribunal, desistindo de obter a satisfação das demais pretensões jurídicas formuladas.
Acresce ainda que o sentido da declaração tem, no texto, um mínimo de correspondência verbal, não ofendendo a regra normativa do art. 238.º, n.º 1, do CC.

Por outro lado, não se questiona a legitimidade substantiva do Apelado, sendo certo que o contrato de arrendamento foi apenas por si outorgado, na qualidade de senhorio, para além de ninguém ter posto em causa a sua declaração de vontade, expressa à arrendatária do dia 22 de Maio de 2007.
No contexto referido - que ao momento da prolação da sentença recorrida era ignorado - não podiam os Apelantes ser condenados em qualquer dos pedidos formulados na acção, porquanto a desistência do pedido extinguira o direito que se pretendia fazer valer (art. 295.º, n.º 1, do CPC).
Por isso, quanto aos pedidos que não ficaram prejudicados pela extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, os Apelados deviam ter sido absolvidos.

2.3. Para além dos autos não revelarem má fé por partes dos Apelantes, nomeadamente no âmbito do recurso, como alegaram os Apelados, também quanto a estes não se verifica tal situação, na medida em que a sua vontade real podia ser diferente do sentido normativo encontrado para a declaração expressa no dia 22 de Maio de 2007.
Sendo assim, não fornecem os autos elementos demonstrativos dos Apelados terem actuado, na acção, com má fé, tanto a título de dolo como de negligência grave (art. 456.º do CPC).

2.4. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:
I. O Código Civil consagra a doutrina objectivista da interpretação da declaração negocial, mitigada embora por uma restrição de natureza subjectivista.
II. O senhorio, depois de receber as chaves do loja arrendada e declarar que “retira a acção de despejo em tribunal “, só pode dar a entender, a um declaratário normal, colocado na posição do arrendatário, que, perdido o interesse na acção de despejo, é sua vontade retirá-la do tribunal, desistindo de obter a satisfação das demais pretensões jurídicas.
III. Não há má fé processual, quando a vontade real do declarante pode ser diferente do sentido normativo encontrado nos termos da n.º 1 do art. 236.º do Código Civil.

Nestes termos, procede a apelação e, em consequência, é de revogar a sentença recorrida, na parte impugnada, absolvendo os Apelantes do pedido.

2.5. Os Apelados, ao ficarem vencidos por decaimento, são responsáveis pelo pagamento das custas nesta instância, de harmonia com a regra da causalidade consagrada no art. 446.º, n.º 1 e 2, do CPC.
Na acção, tendo havido inutilidade superveniente da lide, imputável aos Apelantes, e desistência do pedido, as custas são por conta dos Apelantes e Apelados, na respectiva proporção (arts. 447.º e 451.º, n.º 1, ambos do CPC).

III. DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
1) Conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e absolvendo os Réus do pedido.
2) Condenar os Autores no pagamento das custas da apelação.
3) Condenar os Réus e os Autores nas custas da acção, na proporção em que se verificou a extinção da instância e a absolvição do pedido.
Lisboa, 6 de Março de 2008
(Olindo dos Santos Geraldes)
(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)