Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
147/13.3TELSB-C.L1-9
Relator: MARGARIDA VIEIRA DE ALMEIDA
Descritores: NE BIS IN IDEM
COMPETENCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES
APREENSÃO DE BENS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/26/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: I – A competência internacional dos Tribunais Portugueses em matéria Penal é a definida nos artºs 4º a 6º do Código Penal, (Cons. Maia Gonçalves, anot.7 ao artº 19º do CPP), e obedece aos princípios da nacionalidade, defesa dos interesses nacionais, universalidade, administração supletiva da lei e da aplicação convencional.

II – Não tem, assim, o MºPº competência para abrir inquérito por factos praticados por um cidadão nacional de outro País,  nesse mesmo País.

III – Tendo os alegados factos, neste caso, sido objecto de processo com acusação deduzida em outro País, igualmente subscritor da Convenção de Auxílio judiciário Mútuo em matéria penal, no âmbito da CPLP, a instauração do referido inquérito viola o princípio do “ne bis in idem”.

IV – Segundo o referido princípio do “ne bis in idem” –artº 29º, nº5 da CRP, - ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime, valendo tal garantia para todos os tribunais, e todas as pessoas, não apenas para cidadãos portugueses, e para julgamentos efectuados por Tribunais Portugueses.

V – Qualquer apreensão cautelar de bens efectuada em conexão com os alegados factos ocorridos em Angola, no Brasil ou em França/ Mónaco só pode ser efectuada, neste caso, no âmbito da Convenção de Auxílio Judiciário Mútuo em matéria penal, entre os Países da CPLP, ou no âmbito da Dec. QUADRO 2003/577/JAI, de 22 de Julho, sob pena de violação do alegado princípio.

VI – Como ensina Prof. Figueiredo Dias, …”não se trata de facultar a cada Estado intervenção penal relativamente a todo e qualquer facto considerado crime pela lei interna, o que conduziria à existência de um ”jus puniendi” internacional sem qualquer fronteira … e fomentador de conflitos internacionais, …mas do reconhecimento do caracter supra nacional de certos bens jurídicos…”

VII – Tendo o recorrente efectuado prova de que as suas actividades profissionais são de molde a gerar elevados proventos, qualquer “non liquet” em relação aos movimentos de capitais deve ser resolvido por força da aplicação do princípio do “in dúbio pro reo”, a favor do mesmo recorrente.

VIII – Em processo penal, o ónus da prova cabe ao MºPº, não tendo o visado pela medida cautelar de apreensão de fazer prova da legalidade da situação económica, o que constituiria uma inversão do ónus da prova, proibida por lei.

XIX – Tendo sido aberto inquérito com violação do princípio do “ne bis in idem”, por um lado, e da competência internacional do Estado Português, por outro, impõe-se nos termos do disposto nos artºs 4ºdo CPP e 96º do CPC actualizado, o conhecimento oficioso da excepção da incompetência absoluta do Tribunal,

X –O conhecimento da referida excepção prévia da incompetência absoluta do Tribunal determina a absolvição da instância, nos termos do artºs 97º e 99º do CPC actualizado, com consequente levantamento da medida de apreensão das contas bancárias.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas que constituem o tribunal colectivo desta 9.ª secção:

F……., residente em Angola, cidadão angolano, veio interpor recurso da decisão que determinou a medida de obtenção de prova de apreensão de saldos de todas as contas bancárias de que é titular, nos termos do disposto no artº 181º, nº 1 do CPP –fls. 1459 dos autos.

Entende, em síntese,
a) Que a decisão recorrida é ilegal porquanto os meios de obtenção de prova se destinam exclusivamente a recolher meios de prova, e não a servir propósitos cautelares num procedimento criminal;
b) A entender-se de outro modo, a norma contida no artº 181º do CPP., conjugada com o disposto no artº 186º, nº 1 do mesmo diploma, seria inconstitucional, porquanto o regime ali previsto não concede ao arguido as garantias fundamentais consagradas no nº1 do artº 32º da CRP.
c) Qualquer lacuna existente em matéria de finalidade cautelar, preventiva e antecipatória de uma eventual perda de bens, nos termos do disposto no artº 111º do CP, tem de ser preenchida por aplicação analógica do regime geral das medidas cautelares, constantes dos artºs 191º e ss., em obediência à regra do artº 10º, nº1 e 2 do Código Civil.
d) A decisão recorrida é nula por ter sido proferida com omissão de actos obrigatórios, a saber, a constituição de arguido e audição prévia do mesmo, o que consubstancia a nulidade prevista no artº 120º, nº 2 d) do CPP, ou, se assim se não entender, a de uma irregularidade prevista no artº 123º do mesmo diploma.
e) A decisão recorrida é ainda nula por falta de fundamentos tal como estipula o nº 6 do artº 194º do CPP.
f) Com efeito, o recorrente desconhece os fundamentos de tal decisão uma vez que não foi constituído arguido, não foi ouvido sobre quaisquer factos, e não foi notificado de qualquer decisão contra si proferida, apenas tendo sido confrontado com o facto de as despesas pagas por débito em conta terem ficado por liquidar, por ter sido impedido o respectivo pagamento.

Invoca a falta de cumprimento da Convenção assinada entre Estados que permite a notificação em A, onde tem o seu domicílio, por notificação postal simples, a nulidade decorrente de não ter sido constituído arguido e de, nessa qualidade, ter sido ouvido, e, bem assim, a falta de fundamentos de facto e de direito para permitir a decisão de que ora recorre.

PEDE a revogação do despacho recorrido por a sua finalidade preventiva e antecipatória não ser permitida pelo regime das apreensões aplicadas enquanto meio de prova;

Ou, se assim se não entender, declarar nulo o despacho recorrido em consequência da preterição da constituição do recorrente como arguido e sua audição nessa qualidade, devendo, consequentemente, determinar-se o levantamento das apreensões sobre as contas bancárias do recorrente

O MºPº RESPONDE, pugnando pela manutenção do despacho recorrido por entender que face …” à natureza das investigações em curso no Brasil (que prosseguem embora tenha sido revogado o mandado de captura internacional que visava o recorrente) …existe uma forte possibilidade de as contas bancárias acima indicadas servirem para ocultação de vantagens obtidas em resultado das prática de factos susceptíveis de configurar  os crimes supracitados e camuflar a respectiva origem, o que configura a prática do crime de branqueamento p.p. pelo artº 386º A do Código Penal.”

As questões objecto do recurso são as enunciadas na síntese efectuada, das conclusões da motivação de recurso interposto pelo recorrente, a saber:
a) Que a decisão recorrida é ilegal porquanto os meios de obtenção de prova se destinam exclusivamente a recolher meios de prova, e não a servir propósitos cautelares num procedimento criminal;
b) A entender-se de outro modo, a norma contida no artº 181º do CPP., conjugada com o disposto no artº 186º, nº 1 do mesmo diploma, seria inconstitucional, porquanto o regime ali previsto não concede ao arguido as garantias fundamentais consagradas no nº1 do artº 32º da CRP.
c) Qualquer lacuna existente em matéria de finalidade cautelar, preventiva e antecipatória de uma eventual perda de bens, nos termos do disposto no artº 111º do CP, tem de ser preenchida por aplicação analógica do regime geral das medidas cautelares, constantes dos artºs 191º e ss., em obediência à regra do artº 10º, nº1 e 2 do Código Civil.
d) A decisão recorrida é nula por ter sido proferida com omissão de actos obrigatórios, a saber, a constituição de arguido e audição prévia do mesmo, o que consubstancia a nulidade prevista no artº 120º, nº 2 d) do CPP, ou, se assim se não entender, a de uma irregularidade prevista no artº 123º do mesmo diploma.
e) A decisão recorrida é ainda nula por falta de fundamentos tal como estipula o nº 6 do artº 194º do CPP.
f) Com efeito, o recorrente desconhece os fundamentos de tal decisão uma vez que não foi constituído arguido, não foi ouvido sobre quaisquer factos, e não foi notificado de qualquer decisão contra si proferida, apenas tendo sido confrontado com o facto de as despesas pagas por débito em conta terem ficado por liquidar, por ter sido impedido o respectivo pagamento.

Para apreciação das mesmas cumpre analisar o texto da decisão recorrida na parte notificada ao recorrente (pois só a essa se pode o recorrente opor).

O texto do despacho recorrido é o seguinte: (na parte notificada ao recorrente)

…”

Da apreensão de saldos de contas bancárias.

Como já supra referido, o objecto dos presentes autos centra-se na investigação de factos susceptíveis de integrar, em abstracto, para além do mais, a prática de crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelo art.º 368.º-A, do CP, precedido da prática de crimes de lenocínio, p. e p. pelo art.º 169.º - 1 do Código Penal, por factos ocorridos no Brasil, relativos aos anos de 2007 a 2013. (sublinhado da relatora, nesta Relação)


No âmbito dos presentes autos, como medida preventiva, ao abrigo das disposições conjugadas no artº 17º, ns. 1 a 3, da  Lei 25/2008, de 05/06 e artº 4º, nº 4 da Lei 5/2002, de Lei 5/2002 de 11/01, foi determinada uma medida de suspensão de operações bancárias a débito, que actualmente impende sobre as seguintes contas bancárias:

- Conta BES nº 0001 xxx e conta poupança associada;

- Conta BES nº 0001 yyy e contas de aplicações associadas.

Resulta da presente investigação que F....... é titular de diversas contas bancárias domiciliadas em Portugal, nas quais efectuou depósitos em numerário, não tendo declarado, oportunamente, os montantes superiores a 10.000 euros que introduziu em Portugal, como lhe impunha o DL 61/2007, de 14.03.

Como aduzido pelo titular da acção penal, no âmbito da prevenção do branqueamento, após movimentações de contas de três sociedades (a Rxxx1, a Rxxx2 e a Rxxx3) concretizadas por F......., a sua conta pessoal nº 0001 xxx foi provisionada com diversos montantes, apresentando em 15.05.2014 o saldo de 400.478,99 euros.

Com efeito, como aduzido pelo titular da acção penal, por se indiciar a prática de operações de branqueamento de capitais, cuja origem se suspeita ser a prática de factos lícitos praticados no Brasil e para impedir a dispersão dos fundos na economia legítima, foi determinado, em sede de procedimento de prevenção de branqueamento de capitais (no âmbito do PA 985/14), a suspensão provisória das operações a débito no âmbito das contas bancárias 0001 xxx (Euro) e conta poupança associada com o nº 0001 6419 4423 e na conta nº 0001 yyy (USD), domiciliadas no BES (Novo Banco) e tituladas por F....... (cf. fls. 446 a 453). (idem)

Tal medida veio a ser judicialmente confirmada por um prazo de três meses, com renovação trimestral (cfr. fls. 446 e segs).

À presente data não se mostra ainda concluída a investigação nem se afigura que o venha a ser brevemente.

Foi ainda possível à presente investigação apurar que F......., é titular das contas nºs 806 xxx (euros) e 806 yyy (USD), ambas domiciliadas no BIC, e da conta n.º 453159477744 domiciliada no Millennium BCP.

Mais se apurou que é ainda titular de um contrato de aplicação financeira denominada BES Vida Aforro 2012, 1ª série (BES Vida – Banca Seguros), associado à conta 0001 xxx, com o saldo actual de 43.349,70 euros.

Indicia-se que as quantias depositadas nas contas domiciliadas em instituições de crédito portuguesas estejam relacionadas com a actividade ilícita desenvolvida por F........

Mais se indicia que as quantias depositadas naquelas contas são provenientes da prática de facto ilícito típico, com indícios, neste momento, de terem ocorrido no Brasil e em Portugal factos susceptíveis de configurar a prática de crimes lenocínio e, eventualmente, fraude fiscal.

Concorda-se com o detentor da acção penal quando aduz que, face à natureza das investigações em curso no Brasil e às situações denunciadas, entendemos existir uma forte possibilidade de as contas bancárias acima indicadas servirem para ocultação de vantagens obtidas em resultado da prática de factos susceptíveis de configurar os crimes supracitados e camuflar a respectiva origem, o que configura a prática do crime de branqueamento p. e p. pelo artº 386º- A do Código Penal.

 

Mais se concorda que, atenta a proximidade entre a data da prática dos factos narrados pelas autoridades brasileiras, os factos ocorridos em França e os depósitos efectuados em contas bancárias portuguesas, indicia-se fortemente nos autos que os créditos nestas contas constituam proventos pecuniários da prática dos ilícitos criminais em investigação no Brasil e em Portugal por F........

Como aduzido pelo titular da acção penal, verifica-se que pese embora o suspeito alegue, em documentação junta com o requerimento de interposição do recurso, que as quantias depositadas nas contas tituladas por si, bem como os montantes utilizados para aquisição de imóveis em Portugal seriam provenientes do seu trabalho, e das inúmeras sociedades que possui em Angola, certo é que não juntou qualquer documento que comprove o efectivo recebimento de tais rendimentos em Angola, ou seja, qualquer documento comprovativo de ter recebido licitamente o dinheiro em causa.(inversão do ónus da prova).

Concordamos, assim, que se pode considerar fortemente indiciado que tais contas foram abertas pelo suspeito em seu nome, da sua família e de sociedades das quais é sócio gerente ou sócio, com o intuito de camuflar a sua origem, efectuou depósitos de quantias obtidas através da prática dos crimes pelos quais se encontra indiciado no Brasil, com mandados de prisão preventiva pendentes, para ocultar a sua proveniência ilícita. ( os mandados foram, entretanto, recolhidos).

Com efeito, atento os indiciados ilícitos aqui em investigação, importa, desde logo, prevenir que os fundos detectados possam vir a ser dissipados pela economia legítima, enquanto não se apura cabalmente a verdade dos factos.

Dispõe o artº 181º, nº 1, do CPP: “O Juiz procede à apreensão em bancos ou outras instituições de crédito de documentos, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objectos, mesmo em cofres individuais, quando tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, mesmo que não pertençam ao arguido ou não estejam depositados em seu nome” (sic.).

Indiciam os presentes autos, que os montantes existentes nas contas sujeitas à medida de suspensão de operações bancárias e as demais contas entretanto detectadas, estarão relacionados com as actividades delituosas aqui em investigação.

Face ao supra exposto, atento o objecto dos autos e inexistindo quaisquer elementos que permitiam infirmar as suspeitas iniciais, com vista, para além do mais, a não permitir que os fundos detectados possam vir a ser dissipados pela economia legitima, ao abrigo do disposto no artº 181º, nº1 e 269º, nº1, ambos do CPP, deferindo ao doutamente promovido pelo titular da acção penal, determino a apreensão do saldo bancário existente nas conta infra indicadas, porquanto consubstanciar relevante meio de prova dos factos aqui em investigação e tais valores serem susceptíveis de vir a ser declarados perdidos a favor do Estado ou restituído a quem de direito – ex vi do artº 111º, nº 2 do CP.


1. - Contas bancárias n.º 0001 xxx (Euro) e conta poupança associada com o nº 0001 6419 4423 e na conta nº 0001 yyy (USD), domiciliadas no ex-BES (actual Novo Banco) e tituladas por F....... (cf. fls. 446 a 453).
2. - Contas bancárias nº 806 xxx (Euros) e n.º 806 yyy (USD), domiciliadas no Banco BIC;
3. - Conta bancária nº 453 zzz, domiciliada no Millennium BCP, com aplicação financeira “special one top” associada e da conta PPE domiciliado no BES Vida – Banca Seguros, bem como todos os activos associados às contas supra indicadas ou depositados nessas instituições de crédito existentes ou que venham a ser realizados.

Após a efectivação da apreensão do correspondente montante do saldo da conta em referência, deverá cessar a medida de suspensão de operações a débito, que se encontra em vigor, o que se determina.

Oficie em conformidade, remetendo-se tais ofícios ao titular da acção penal juntamente com os presentes autos a fim de serem oportunamente expedidos às competentes I.C.’s, tendo em conta a eficácia das diligências investigatórias em curso.

          Notifique o M.º P.º.

          D.N.

***

…”

Apreciando:

Da totalidade do despacho recorrido, que não da parte que foi notificada ao recorrente, resulta que os presentes autos se iniciaram (quando?) com uma denúncia… na qual era dada conta da existência de uma alegada circulação de fundos obtidos de forma ilícita em ANGOLA.

Os factos que deram origem aos presentes autos têm, pois, nessa parte, definido o seu lugar de consumação em País soberano, com o qual Portugal assinou Convenção de Auxílio Judiciário Mútuo em matéria penal no âmbito da CPLP, em 23 de Novembro de 2005.

A primeira conclusão a retirar deste facto é a de que tendo os presentes autos partido de uma denúncia apresentada contra o aqui recorrente, cidadão angolano com residência em Luanda, por alegados factos ocorridos, supostamente, em Angola, não tem o MºPº português  competência para   abrir inquérito aos referidos factos.

Com efeito,

a competência internacional dos Tribunais Portugueses encontra-se definida nos artºs 4º a 6º do Código Penal.

Como refere Pinto de Albuquerque em anotação ao artº 5º …” a aplicação espacial do direito penal a factos cometidos fora do território nacional assenta em cinco princípios: da nacionalidade, da defesa dos interesses nacionais, da universalidade, da administração supletiva da lei nacional e da aplicação convencional.

Nos termos do princípio da nacionalidade, o Estado pune todos os factos juridicamente relevantes cometidos pelos seus nacionais ou contra os seus nacionais, independentemente do lugar onde tenham sido cometidos.

Nos termos do princípio da defesa dos interesses nacionais, o estado pune os factos juridicamente relevantes dirigidos contra os interesses nacionais.

Este princípio tem natureza complementar.

Nos termos do princípio da aplicação universal, o Estado pune todos os factos juridicamente relevantes dirigidos contra os interesses da humanidade, independentemente da nacionalidade do agente ou da vítima e do local onde foram cometidos.

A reforma do C.P. de 1998 introduziu o princípio da administração supletiva da lei nacional, nos termos do qual o estado pune os factos juridicamente relevantes cometidos fora do território nacional contra estrangeiros por estrangeiros que se encontram em Portugal mas que não podem ser extraditados.

Nos termos do princípio da aplicação convencional da lei penal nacional, esta é aplicável sempre que o estado Português se vincule, por tratado ou convenção internacional a julgar certos factos pela lei nacional…

…” in anotações ao referido artº 5º, Comentário do Código Penal.

No caso vertente, o Estado Português poderia actuar de acordo com o princípio da universalidade, ou da protecção de bens jurídicos comuns a toda a humanidade, a saber, nos crimes de escravidão, (artº 159º), tráfico de pessoas (160º), rapto (161º), abuso sexual de crianças e de menores dependentes (artºs 171º e 172º) de lenocínio de menores e de pornografia de menores (175º e 176º) danos contra a natureza, poluição e de poluição de perigo comum.

Ora, das informações trocadas posteriormente à denúncia apresentada inicialmente, por factos ilícitos ocorridos em Angola, e para cuja investigação o MºPº só seria, a nosso ver, competente, a pedido das autoridades angolanas, resulta ainda que os factos a que as autoridades portuguesas atribuem os proventos ilícitos obtidos pelo recorrente são objecto de um processo no BRASIL, processo esse com acusação deduzida.

O mandado de captura internacional foi, contudo, revogado pelo Tribunal superior.

Aliás, o despacho recorrido faz menção ao BRASIL e às investigações que aí decorrem.

Por outro lado, o MºPº faz ainda menção ao processo que correu termos em França onde indivíduos alegadamente ligadas ao recorrente transportavam dinheiro vivo, em viaturas de matrícula portuguesa, supostamente destinado ao Mónaco.

Quer isto dizer que os factos a que o detentor da acção penal atribui os proventos ilícitos de que o recorrente terá alegadamente beneficiado resultam, segundo o mesmo detentor da acção penal, de factos que se encontram a ser investigados, e que são objecto de processos em Países soberanos terceiros, um deles subscritor (Brasil) da mesma convenção de auxílio judiciário em matéria penal no âmbito da CPLP.

Logo, a prossecução da acção penal em Portugal viola o princípio do “ ne bis in idem”, segundo o qual ninguém pode ser duplamente punido pelo mesmo crime, e do qual resulta a exclusão de novo julgamento em Portugal no caso de o agente ter sido absolvido pelo Tribunal do estado onde foi praticado o facto e no caso de ter sido condenado e ter cumprido a respectiva pena.

…” o ne bis in idem”será, porventura, um dos princípios mais importantes e estruturantes de qualquer Estado de direito e do respectivo direito processual penal. Hassemer afirma mesmo que este princípio faz parte integrante dos direitos fundamentais processuais que são indisponíveis, no sentido de insusceptíveis de ponderação.

Um princípio desta importância deveria ter, após séculos, os seus contornos bem definidos…” in Cooperação Judiciária Internacional em matéria penal, Vânia Costa Ramos, Ne bis in idem”…

Ora, decorrendo, segundo o detentor da acção penal, tais proventos de acções ilícitas em Países soberanos terceiros, cabe a esses Países, um deles subscritor da Convenção de Auxílio Judiciário Mútuo em matéria penal, quer com Portugal, quer com Angola, pedir, se assim o entender, a apreensão dos bens que se vier a provar terem sido adquiridos em resultado da alegada actuação ilícita do recorrente.

É certo que a decisão recorrida fundamenta a apreensão cautelar das contas bancárias do recorrente no facto de o mesmo estar a ser investigado ainda pela alegada prática de branqueamento de capitais decorrentes dessas alegadas actividades ilícitas no Brasil, Angola e França, actividade essa ocorrida em Portugal.

Todavia, tal como o objecto do processo se encontra delimitado, essa apreensão cautelar teria de ser pedida pelas autoridades desses países, no âmbito dos respectivos processos, sob pena de violação do “ne bis in idem”, caso tivessem indícios suficientes que pudessem fundamentar tal pedido. – Decisão Quadro 2003/577/JAI, de 22 de Julho relativa à execução na União Europeia das decisões de congelamento de bens ou de provas, que a Lei nº 25/2009 veio a designar por decisão de apreensão – “freezing order”.

Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, …” o princípio da universalidade ou da aplicação universal visa permitir a aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos no estrangeiro que atentam contra bens jurídicos carecidos de protecção internacional ou que … o Estado Português  se obrigou internacionalmente a proteger. Não se trata …da facultar a cada Estado a intervenção penal relativamente a todo e qualquer facto considerado crime pela lei interna o que conduziria à existência de um jus puniendi estadual sem qualquer fronteira e fomentador, por isso, em larga medida, de conflitos internacionais de caracter jurídico penal. (sublinhado nosso)

Do que se trata é antes – e só – do reconhecimento do caracter supra nacional de certos bens jurídicos e que por conseguinte, apelam para a sua protecção a nível mundial. Deste modo, aponta Jescheck… como fundamentos do princípio, “a solidariedade do mundo cultural face ao delito” e “a luta contra a delinquência internacional perigosa”.

Neste sentido, vai logo o artº 5º, 1b) … ordenando a aplicação da lei penal portuguesa a crime que tutelam bens jurídicos carecidos de protecção internacional”… mas ….”submete todavia a aplicação da lei penal portuguesa a uma dupla condição: que o agente seja encontrado em Portugal e que não possa ser extraditado” in Direito Penal, Tomo I, Parte Geral, 9º capítulo, pág. 227

…”

E prossegue o mesmo Professor na obra citada, pág 229, III

…” o caracter meramente complementar ou subsidiário dos princípios de aplicação extraterritorial da lei penal portuguesa revela-se … na circunstância de … a aplicação só ter lugar…” quando o agente não tiver sido julgado no país da prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação (artº 6º/1).

Trata-se aqui, antes de mais, de respeitar o princípio constitucional “ne bis in idem” segundo o qual ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime” (CRP artº 29º, 5) até porque uma tal garantia é considerada pela nossa Constituição como valendo para todas as pessoas e para todos os Tribunais, não apenas para cidadãos portugueses e para julgamentos levados a cabo por tribunais portugueses.”

Como vimos, o recorrente tem acusação pendente no BRASIL pelos alegados factos que terão dado, segundo o detentor da acção penal, origem aos movimentos de dinheiro que na convicção (??) do Tribunal “a quo” circulou pelas empresas do recorrente, tendo sido branqueado.

Como demonstrámos já, a ser verdade, esses factos prendem-se com a investigação/ julgamento a realizar no Brasil, que como País subscritor da Convenção para Auxílio Judiciário Mútuo em matéria penal no âmbito da CPLP sempre poderá requerer, pelos meios próprios, a apreensão dos bens ou outras medidas que entenda adequadas.

Como ensina o Conselheiro Maia Gonçalves in CPP anotado…” as regras do artº 19º e seguintes daquele diploma não se aplicam à competência internacional dos Tribunais Portugueses, ou seja, à aplicação no espaço da lei penal portuguesa, a qual é regulada nos artºs 4º a 6º do Código Penal. In nota 7 ao artº 19º citado.

De harmonia com o disposto nos artºs 4º do CPP e 96º do Código do Processo Civil actualizado, …” determinam a incompetência absoluta do Tribunal a) a infracção das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras da competência internacional;”

A incompetência absoluta deve ser conhecida pelo Tribunal oficiosamente… artº 97º do CPC e implica a absolvição da instância – artº 99º do CPC.

Ora, analisado o despacho recorrido, verifica-se que a mesma decisão extrai de factos que ligam pessoas, e sociedades entre si, e à aquisição de imóveis em Portugal, a “conclusão” de que essas sociedades serviram para fazer circular dinheiro que adviria de actividades que constituem objecto de processo em País soberano, pelo simples facto de ter conhecimento de que existe um processo contra o recorrente.

O recorrente não foi constituído arguido, não foi ouvido sobre tais factos – os que constituíram o alegado branqueamento, e foi objecto de medida de apreensão de quantias constantes de contas bancárias ao abrigo do artº 181º do Código do Processo penal.

A nosso ver, mal.

Não só a aplicação do princípio do “ne bis in idem” impunha que se aguardasse o desfecho do processo a decorrer e que se terminar em absolvição impedirá novo processo em Portugal, como o aqui recorrente fez prova documental de que exerce em Angola, várias actividades ligadas à construção civil e ao comércio de diamantes, entre outras, actividades essas geradoras de fluxos consideráveis de dinheiro.

Analisados os factos objectivamente, o dinheiro movimentado nas contas do recorrente tanto pode ser dessas actividades como de alegadas actividades ilícitas, conforme invoca o detentor da acção penal.

Sucede, contudo, que na repartição de um non liquet como este, tem necessariamente de aplicar-se o princípio do “in dúbio pro reo”, concluindo-se a favor do recorrente.

Por outro lado, as sociedades que a decisão recorrida afirma não terem tido qualquer actividade, e apenas terem servido para criar uma aparência de justificação para a introdução de numerário no sistema financeiro nacional, fizeram declarações de IRC.

E a decisão recorrida não discrimina quais os factos que integram o referido crime de branqueamento.

Nem se diga que foi o recorrente que não procedeu à junção de documentos, pois em processo penal o ónus da prova cabe ao detentor da acção penal, não o inverso. Ou seja, não é o recorrente que tem de provar a licitude da origem dos fundos, é o detentor da acção penal que tem de provar essa origem ilícita, com factos, não com suposições.

Sendo o recorrente cidadão angolano a sua declaração de rendimentos, mesmo dos detidos em Portugal, tem de ser apresentada no País onde tem residência fiscal, logo, qualquer eventual crime de fraude fiscal ocorre em País soberano que não em Portugal, sendo a competência internacional do nosso País meramente residual, sob pena de conflitos de natureza jurídico-diplomática devida a ingerência na definição da política criminal de outro Estado.

Em nosso entender, assiste razão ao recorrente quando pede a revogação da decisão recorrida, com levantamento da apreensão das quantias constantes das contas bancárias de que é titular, ainda que por motivos não totalmente coincidentes com os que invoca.

Existindo questão prévia de que o tribunal deve, nos termos da lei, conhecer oficiosamente, e que obsta à decisão sobre o mérito da causa por falta absoluta de competência dos Tribunais Portugueses, sob pena de violação dos princípios sobre competência internacional, assiste razão ao recorrente quando entende que deve ser revogada a decisão recorrida e ordenado o levantamento da apreensão determinada cautelarmente, ainda que com fundamentos diferentes dos invocados pelo recorrente.

Assim decidindo, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pelo recorrente.

Decisão:

Termos em que acordam em conferência, em julgar procedente o recurso interposto por F……, ainda que com fundamentação diversa da aduzida pelo mesmo recorrente, revogam a decisão recorrida e determinam o levantamento da apreensão ordenada sobre as contas bancárias do recorrente.

Não é devida taxa de justiça.

Registe e notifique, nos termos legais.

Comunique as instituições bancárias, indicadas em 1 a 3, supra.

Lisboa, 26 de Março 2015

Margarida Vieira de Almeida

Maria da Luz Batista