Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3814/2006-2
Relator: NETO NEVES
Descritores: MÚTUO
COMPRA E VENDA
RESERVA DE PROPRIEDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE
Sumário: 1- A entidade financiadora do crédito para aquisição de um veículo automóvel não pode reservar para si o direito de propriedade desse veículo, desde logo porque esse direito não existe na sua esfera jurídica.
2- A cláusula em que o financiador reserva para si a propriedade de uma coisa alienada pelo vendedor, porque contrária a uma disposição de natureza imperativa, é nula.
Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Lisboa (2ª Secção Cível)

IS… intentou a presente acção declarativa com processo ordinário contra A…e AM…, pedindo:
a) Que seja declarada judicialmente a resolução do contrato de crédito celebrado entre a Autora e os RR. em 25.6.2004;
b) Consequentemente, que sejam os RR. condenados a restituir à Autora o veículo automóvel da marca Volkswagen, modelo Golf, com a matrícula 58-76-NB;
C) Que seja reconhecido o direito ao cancelamento do registo averbado em nome do R. A….
Alegou que exerce a actividade de locação financeira e de financiamento de aquisições a crédito, no âmbito da qual celebrou com os RR. um contrato de financiamento para aquisição de um veículo automóvel, no qual, como garantia do seu bom cumprimento, foi clausulada a constituição de reserva de propriedade a favor da Autora sobre o mencionado veículo. O veículo foi vendido com o encargo de reserva de propriedade, devidamente registado na Conservatória do Registo Automóvel.
Os RR. obrigaram-se a pagar à Autora a prestação mensal de 272,37 pelo período de 72 meses; contudo, deixaram de pagar aquelas prestações desde a 1ª.
Através de cartas registadas com aviso de recepção a A. concedeu aos RR. um prazo de 10 dias para pôr termo à mora, findos os quais a mora se convertia em incumprimento definitivo, cartas essas que foram recebidas pelos destinatários.
O R. não liquidou as prestações em dívida nem restituiu o veículo, o que lhe confere o direito a resolver o contrato.
Tem ainda a Autora tem direito à entrega do veículo considerando a reserva de propriedade clausulada.
Citados, os RR. não contestaram, pelo que foi proferido despacho declarando confessados os factos articulados pela Autora.
Ofereceu esta alegações, nos termos do artigo 484º, nº 2 do Código de Processo Civil.
Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente: apesar de declarar válida a resolução do contrato celebrado entre a Autora e os RR., absolveu estes dos pedidos de restituição do veículo e de cancelamento do registo.

Da sentença apelou a Autora, concluindo pela seguinte forma a respectiva alegação de recurso:
a) O Meritíssimo Juiz a quo julgou a presente acção declarativa parcialmente improcedente, porquanto entende não haver lugar à constituição da reserva de propriedade, em face da celebração de contratos de financiamento, uma vez que tal garantia jurídica poderá apenas ser acordada quando estamos perante a celebração de contratos de compra e venda;
b) O M. Juiz a quo deu como provado, os factos já transcritos supra, nos pontos 1° a 9°, que se dão por integralmente reproduzidos.
c) Acontece que para o Meritíssimo Juiz a quo não basta que se verifique a existência de reserva de propriedade inscrita a favor da A., nem que se verifique o incumprimento das obrigações que originaram a mesma, é necessário, também, que a referida reserva de propriedade seja garantia do cumprimento de um contrato de compra e venda resolvido, e não de qualquer outro;
d) Ora, salvo o devido respeito, discordamos deste entendimento que, em nossa opinião, não faz a correcta interpretação da Lei;
e) A reserva de propriedade, tradicionalmente uma garantia dos contratos de compra e venda, tem vindo, face à evolução verificada nas modalidades de contratação, a ser constituída como garantia dos contratos de mútuo, sobretudo, daqueles cuja finalidade e objecto é financiar um determinado bem, ou seja, quando existe uma interdependência entre o contrato de mútuo e o contrato de compra e venda;
f) Nestas situações, tem-se verificado uma sub-rogação do mutuante na posição jurídica do vendedor, isto é, o mutuante ao permitir que o comprador pague o preço ao vendedor, subroga-se no risco que este correria caso tivesse celebrado um contrato de compra e venda a prestações, bem como, nas garantias de que este poderia dispor, no caso, a reserva de propriedade;
g) Este entendimento encontra pleno acolhimento no artigo 591° do Código Civil, bem como no princípio da liberdade contratual estabelecido no artigo 405° do Código Civil, uma vez que não se vislumbram quaisquer objecções de natureza jurídica, moral ou de ordem pública relativamente ao facto de a reserva de propriedade ser constituída a favor do mutuante e não do vendedor;
h) Ora, a própria lei que regula o crédito ao consumo o admite no n.° 3 do seu artigo 6° quando refere que "o contrato de crédito que tenha por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações deve indicar ainda. (...)
j) O acordo sobre a reserva de propriedade".
i) Entendimento este, que também tem sido sufragado em diversos acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, entre os quais destacamos o acórdão de 27-06-2002, consultado na base de dados do Ministério da Justiça em - www.dgsi.pt, cujo n.° de documento é RL200206270053286, o acórdão de 13-05-2003 consultado na mesma base de dados de que não se encontra disponível o n.° de documento e que teve como relator o Meritíssimo Juiz Desembargador Rosa Maria Coelho, e o acórdão datado de 26/01/2006;
j) Por outro lado, o direito que a Requerente tem de reaver a viatura decorre da propriedade que tem sobre ela, bem como, face à resolução contratual verificada e dada como provada pelo M. Juiz a quo, tem direito ao cancelamento do registo averbado a favor da Recorrida, na Conservatória de Registo Automóvel;
k) A propriedade da Recorrente será condicionada, é certo, mas ao não se verificar a condição que implicaria a transmissão da mesma para a Mutuária, então a propriedade permanece na sua esfera jurídica;
l) Posto isto, e encontrando-se inscrita a favor da Recorrente reserva de propriedade sobre a viatura de que se requereu a restituição, bem como, estando provado que a mutuária não cumpriu as obrigações que originaram a constituição da reserva de propriedade, conforme resultou da matéria provada, pelo que, e em conformidade, assiste à A. o direito de reivindicar o veículo que adquiriu, ao abrigo do disposto no art. 1311° do Código Civil.
m) Ou seja, enquanto a reserva a favor da Recorrente se mantiver, o R. é apenas mero detentor do veículo automóvel financiado, pelo que fica necessariamente sujeito a que, se não pagar o preço acordado, a reservatária possa exigir a sua restituição!
a) Acresce que, tendo em consideração a tese já defendida de interpretação actualista da Lei, necessário será apelar também à interpretação actualista do n.° 1 do art. 18° do DL n.° 54/75, de 12/12, devendo este normativo, englobar, também, as situações de contrato de mútuo conexo com o contrato de compra e venda.
b) O mesmo entendimento encontra-se presente em diversa jurisprudência, já indicada a título exemplificativo supra,
c) Certo é que, aquando da celebração de um contrato de mútuo com vista ao financiamento do contrato de compra e venda de veículo automóvel, quem, efectivamente, corre o risco relativamente ao incumprimento não é o vendedor mas antes o mutuante! ! !
d) Assim, e tal como resulta do acórdão datado de 05/05/2005, melhor identificado supra, "aceitar-se a formal e redutora interpretação de que só o incumprimento e consequente resolução do contrato de alienação conduz à apreensão e entrega do veículo alienado, a cláusula da reserva de propriedade deixaria de ter qualquer efeito prático, sempre que a aquisição do veículo fosse feita através do financiamento de terceiro – o que, como se disse, é hoje a regra face à evolução verificada nessa forma de aquisição".
e) A reserva de propriedade acordada funciona como condição suspensiva do efeito translativo do direito de propriedade sobre a viatura em causa, tal como resulta claramente do disposto no art. 409° do Código Civil,
f) Ora, tendo-se tornado impossível de verificação prática da condição em causa, retroactivamente extinguiu-se a possibilidade do mutuário vir a ser o efectivo proprietário da viatura dos autos, tal como resulta do estatuído no art. 276° do Código Civil.
g) O contrato de crédito celebrado foi resolvido com fundamento no incumprimento reiterado do R., que apesar de interpelado ao pagamento dos valores em dívida, não regularizou os montantes em dívida, verificando-se o seu incumprimento definitivo.
h) Ou seja, enquanto a reserva a favor da Agravada se mantiver, o Agravante é apenas mero detentor do veículo automóvel financiado, pelo que fica necessariamente sujeito a que, se não pagar o preço acordado, a reservatária possa exigir a sua restituição, mesmo através do recurso à apreensão!
n) Nestes termos o direito de propriedade da A. sobre a viatura financiada, terá que ser, impreterivelmente reconhecido e consequentemente, os RR. deveriam ter sido condenados a restituir o veículo com as matrículas …NB à A., e ser ainda ordenado o respectivo cancelamento do registo averbado em nome do 1° R..
o) Em conformidade, o cancelamento da reserva de propriedade constituída a favor da Recorrente, tal como ordenada pela decisão ora recorrida, carece, de qualquer sentido ou fundamento legal, por violação manifesta do disposto no DL 359/91, de 21/09.
p) A decisão recorrida viola ainda o regime legalmente patente no DL 54/75 de 12/02, e as disposições legais já indicadas nas presentes alegações de recurso.
q) Pelo que, a procedência do presente recurso é manifesta (1).
Não foram oferecidas contra alegações.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

IIOS FACTOS
O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. Em 25.6.2004, a Autora e os RR. subscreveram o instrumento junto por fotocópia a fls. 24-25 destes autos, denominado "Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito — Contrato n.° 51 234".
2. Nesse instrumento e sob "Condições Particulares" consignou-se:
- Fornecedor do bem: E….
- Descrição do bem: Marca Volkswagen Golf 14l, matrícula …NB;
- Valor do bem: 14 000,00;
- Entrada inicial: 1 900,00;
- Crédito concedido: 12 100,00;
- (…)
- Valor de cada prestação: 273,86;
- Total financiamento e encargos: 21 690,52;
- N.° de prestações mensais e postecipadas: 72;
- Data de vencimento da 1ª prestação: 23.07.04.;
- Garantias: reserva de propriedade.
- (…)
3. Nesse instrumento e sob "Condições Gerais" ficou consignado:
- Cláusula 1ª -
a) A S… concede ao cliente um empréstimo, destinado a financiar a aquisição de bens e serviços, no montante e condições fixadas neste contrato.
b) (…)
- Cláusula 2ª -
a) O cliente desde já autoriza a S… a entregar o montante mutuado ao fornecedor do bem ou serviço indicado nas condições particulares, nas condições acordadas entre a S… e o vendedor do bem e/ prestador do serviço;
b) (...)
- Cláusula 3ª
a) A quantia mutuada será reembolsada em prestações sucessivas, cujo número, periodicidade, valor e data estão fixadas nas Condições particulares deste contrato;
b) Estas prestações englobarão a amortização, o pagamento de juros, encargos e impostos legalmente obrigatórios.
- Cláusula 9ª -
a) Em garantia do bom pagamento do capital emprestado, respectivos juros e demais obrigações decorrentes do presente contrato, o cliente presta as garantias que venham referidas nas condições particulares do mesmo.
b) (…)
c) (…)
d) (…)
e) Até ao integral cumprimento deste contrato, a S… poderá constituir, no seu interesse, reserva de propriedade sobre o bem objecto deste contrato, salvo se a S… dela prescindir.
4. A propriedade do veículo supra identificado está registada na CRA de Lisboa a favor do 1° Réu.
5. Sobre o referido veículo e registada na CRA incide uma reserva de propriedade tendo como sujeito activo a S….
6. O Réu não pagou a 1ª prestação, vencida a 23.07.04 e seguintes.
7. Com a data de 3.11.04, a Autora enviou ao 1° Réu, para a morada do contrato, a carta junta por fotocópia a fls. 27 e à Ré, para a morada que consta do contrato, a carta de fls. 29, mediante registo e com aviso de recepção, nos termos das quais dá conta das prestações em dívida, concede um prazo suplementar de 10 dias para pagamento das referidas prestações, com a cominação de, não sendo efectuado o pagamento, considerar o contrato automaticamente resolvido.
8. As referidas cartas foram devolvidas ao remetente com a menção de não reclamadas.
9. Os RR. no prazo que lhes foi concedido não pagaram as prestações em dívida nem restituíram o veículo.

III – 1
A questão a decidir, de acordo com as conclusões formuladas pelo recorrente – as quais, nos termos conjugados dos artigos 684º, nº 3, 690º, nº 1 e 660º, nº 2, todos do Código de Processo Civil delimitam o objecto do recurso – é a de determinar se, tendo sido celebrado um contrato de mútuo com vista ao pagamento do preço num contrato de compra e venda, o mutuário pode ficar como titular da reserva de propriedade sobre o bem comprado pelo mutuante.

III – 2
A cláusula de reserva de propriedade reporta-se, inevitavelmente, aos contratos de alienação – artigo 409º do Código Civil.
Em princípio, a constituição e a transferência de direitos reais sobre coisas determinadas dão-se por mero efeito do contrato (artigo 408º do mesmo diploma legal).
Do citado artigo 409º, nº 1 resulta, porém, que é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações ou até à verificação de qualquer outro evento.
Acrescenta o nº 2 do mesmo artigo que Tratando-se de coisa imóvel ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros.
No âmbito mais específico dos veículos automóveis, o artigo 5º, nº 1, alínea b) do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro diz que está sujeita a registo a reserva de propriedade estipulada em contratos de alienação de veículos.
Com a reserva de propriedade o vendedor visa precaver-se de uma eventual inexecução do contrato ou insolvência por parte do comprador, podendo obter a restituição da coisa e fazer valer os seus direitos quer face ao comprador, quer face a terceiros, credores daquele.
Ao mesmo tempo, proporciona-se o gozo da coisa ao adquirente antes de realizado o pagamento integral do preço.
Desse modo, por acordo entre devedor e comprador, a transmissão da propriedade é diferida para o momento do pagamento integral do preço (ou para o momento em que se verifique aquele evento a que a cláusula se reporta).
Refere Menezes Leitão (2) que a cláusula de reserva de propriedade tem que ser estipulada no âmbito de um contrato de compra e venda, do qual não pode ser cindida. Assim, se a venda já foi celebrada, não poderá posteriormente ser nela inserida uma cláusula de reserva de propriedade, dado que a propriedade, nesse caso, já foi transferida para o comprador.
A questão traz à colação a natureza jurídica do pacto de reserva de propriedade, que é objecto de discussão doutrinária.
Para Pires de Lima e Antunes Varela (3) neste caso o negócio é realizado sob condição suspensiva, quanto à transferência de propriedade, posição que é clássica sobre a questão.
Assim, a transmissão da propriedade ficaria sujeita a um facto futuro e incerto (designadamente o pagamento do preço).
A tese hoje maioritária na doutrina configura a venda com reserva de propriedade como uma venda em que o efeito translativo da propriedade é diferido para o momento do pagamento do preço (ou do evento estabelecido), obtendo, no entanto, o comprador logo com a celebração do contrato uma posição jurídica específica, distinta da propriedade, normalmente qualificada como uma expectativa real de aquisição (4).
Por sua vez, Luís Lima Pinheiro (5) entende que se trata de uma convenção de garantia acessória do contrato de compra e venda, convenção esta que reserva a faculdade de resolver o contrato, mas que se socorre instrumentalmente de uma condição suspensiva do efeito translativo, para alcançar o seu efeito característico: a oponibilidade erga omnes da resolução
[…]
A condição suspensiva subordina a transferência do direito de propriedade, não obsta porém à transmissão da posse, que se opera com a tradição da coisa. Enquanto o adquirente detém o conjunto de poderes de gozo e disposição que correspondem ao conteúdo do direito de propriedade, a propriedade reservada do alienante consiste apenas na titularidade “abstracta” do direito de propriedade.
O “direito de expectativa” do comprador revela-se, assim, não só um direito real de aquisição da propriedade, mas também um direito de gozo nos termos do direito de propriedade.
E Ana Maria Peralta (6) defende que a compra e venda com reserva de propriedade é um tipo especial de compra e venda em que a transferência de propriedade é diferida – por razões que se prendem com a garantia de uma das partes contra o risco de incumprimento da outra, as partes desligam temporalmente a transmissão da propriedade com respeito à celebração do contrato, sendo o comprador titular de uma expectativa jurídica real (que aquela autora reconduz a um direito real de aquisição automática).
Embora normalmente o evento que determina a transferência da propriedade seja o pagamento do preço, as partes poderão colocar aquela transferência dependente da verificação de qualquer outro evento, inclusivamente o pagamento de uma dívida a terceiro – o que é uma situação comum nos casos em que o financiamento para a aquisição do bem não é fornecido pelo vendedor mas por terceiro.
Como salienta Menezes Leitão (7) mais complexa é a questão de saber se o financiador pode ficar como titular da reserva de propriedade.

No caso sub judice, foi celebrado entre a Autora e os RR. um contrato de mútuo, pelo qual a Autora financiou a aquisição pelos RR. de um veículo automóvel e estes obrigaram-se a restituir à A. a quantia mutuada e os juros no condicionalismo acordado.
Entre a Autora e os RR. não foi celebrado qualquer contrato de alienação, pois que aquela não é alienante do veículo automóvel mas, tão só, mutuante no âmbito do contrato de financiamento que permitiu aos RR. obterem a quantia que possibilitou a satisfação do preço no contrato de compra e venda que os RR. celebraram com outrem.
Estes dois contratos são autónomos, ainda que económica e funcionalmente interligados – os dois contratos como que se unem em vista da prossecução de uma finalidade económica comum, mantendo, contudo, formal e estruturalmente a sua autonomia (8).
Como garantia do pagamento do crédito concedido aos RR. foi reservada a favor da Autora a propriedade do veículo que fora vendido por terceiro – reserva de um bem de que a Autora nunca foi dona.
Se a Autora nada alienou, pois o veículo foi vendido aos RR. por terceiro, limitando-se a conceder o crédito, então não se mostra preenchido o circunstancialismo previsto no artigo 409º do Código Civil.
Nos termos desse preceito, só o vendedor, como titular do direito de propriedade sobre o veículo, poderá manter na sua esfera jurídica a propriedade daquilo que vendeu (para efeito de poder resolver o contrato e obter a restituição do veículo, nos termos do artigo 934º do Código Civil).
Como defende Fernando de Gravato Morais (9) reportando-se à argumentação que assenta sobre o espírito do nº 1 do artigo 409º do Código Civil, a finalidade do legislador, ainda que interpretada actualisticamente, não terá sido a de permitir a quem não aliena um bem, mas tão só o financia, a constituição em seu favor de uma reserva de domínio sobre esse objecto – que não produziu nem forneceu – apenas em razão do fraccionamento das prestações.
Conclui-se, pois, que a entidade financiadora do crédito para aquisição de um veículo automóvel não pode reservar para si o direito de propriedade desse veículo – desde logo por esse direito não existir na sua esfera jurídica.
É certo que no artigo 6º, nº 3, alínea f) do Decreto-Lei nº 359/91, de 21 de Setembro (referente aos contratos de aquisição a crédito) se prevê que fique a constar do contrato de financiamento o acordo sobre a reserva de propriedade.
Mas tal disposição reporta-se, apenas, a situações em que o vendedor, proprietário do bem, mantém essa qualidade por efeito da reserva, ao mesmo tempo que financia a aquisição através de alguma das formas previstas no artigo 2º (diferimento do pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou outro acordo de financiamento semelhante), não podendo aquela norma ter aplicação a situações previstas no artigo 12º do mesmo diploma, em que o crédito é concedido por terceiro para financiar o pagamento de bem adquirido ao vendedor (10).
Alude a apelante nas suas conclusões de recurso à sub-rogação, mencionando estar sub-rogada nos direitos que caberiam ao vendedor do veículo.
Decorre do nº 2 do artigo 591º do Código Civil, no que concerne à sub-rogação em consequência de empréstimo feito ao devedor, que a sub-rogação não necessita do consentimento do credor, mas só se verifica quando haja declaração expressa, no documento do empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor.
Ora, o documento dos autos que titula o empréstimo, junto a fls. 24-25, não contém tal declaração expressa de sub-rogação.
Citando de novo Fernando de Gravato Morais (11) Deste modo, a cláusula em que o financiador reserva para si a propriedade de uma coisa alienada pelo vendedor, porque contrária a uma disposição de natureza imperativa, é assim nula, nos termos do art. 294 do Código Civil..
No caso dos autos é, pois, de aplicar a regra geral constante do artigo 408º do Código Civil, de que a transferência do direito real sobre aquele veículo determinado se deu por mero efeito do contrato, do vendedor para os RR..
O mutuante, enquanto o legislador não entender alargar os mecanismos de que ele pode dispor para defesa dos seus interesses, sempre poderá lançar mão de outros meios, exigindo, designadamente, a constituição de uma hipoteca sobre o veículo, em seu benefício.
Não podem, porém, o interessado, nem o intérprete, substituir-se ao legislador, extraindo das normas em vigor soluções que nem a sua letra nem o seu espírito comportam.
É, pois, de manter a decisão recorrida, na parte em que declarou a nulidade da aposição da cláusula e julgou improcedentes os pedidos de condenação dos RR. a restituir o veículo à Autora e de cancelamento do registo averbado em nome do 1º R.

IV - DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas da apelação pela apelante.

Lisboa, 12 de Julho de 2006
António Neto Neves
Manuel Capelo
Maria da Graça Mira


____________________________
1.-Os saltos que se podem verificar na sequência das alíneas são do original da apelante.

2.-Direito das Obrigações, 3ª edição, vol. III, pág. 53.

3.-Código Civil Anotado, vol. I, pág. 357

4.-V. Menezes Leitão, ob. cit., págs. 58-65

5.-A Cláusula de Reserva de Propriedade, págs. 115-116

6.-A Posição Jurídica do Comprador na Compra e Venda com Reserva de Propriedade, págs. 152-153

7.-Ob. cit., pág. 53, nota 92

8.-V. Acórdão da Relação do Porto de 1.6.2004, Proc. 0422028, com texto integral em http://www.dgsi.pt/jtrp

9.-Em artigo denominado Reserva de Propriedade a Favor do Financiador, de comentário ao Acórdão da Relação de Lisboa de 21.2.2002, publicado nos Cadernos de Direito Privado, nº 6, Abril/Junho de 2004, a págs. 43 e segs, concretamente a pág. 52

10.-Neste sentido o acórdão desta Relação de 14.12.2004, Proc. 98957/04-7, com texto integral em http://www.dgsi.pt/jtrl

11.-loc. cit.