Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1534/22.1T8AMD.L1-6
Relator: EDUARDO PETERSEN SILVA
Descritores: UNIÃO DE FACTO
REQUISITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - O elemento distintivo objectivo e radical que caracteriza a união de facto é a coabitação, é viverem os unidos na mesma casa. Esta união não é descaracterizada porque um dos unidos tenha outra casa e nela conserve a sua morada fiscal ou de correio, ou porque um dos unidos não leve as suas coisas pessoais para a casa onde coabita com o outro.
II - Apurando-se, relativamente a pessoas com mais de oitenta anos de idade, que mantinham uma relação amorosa há vinte anos, que a partir da doença de um deles, o outro passou a dormir na casa do doente por mais de dois anos, até ao internamento hospitalar em que o doente sucumbiu, está preenchido o conceito de união de facto.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes que compõem este colectivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório[1]
C intentou contra E(T) a presente acção declarativa de simples apreciação, com processo comum, pedindo que o tribunal julgue não reconhecida a vivência em situação de união de facto entre o réu e a sua beneficiária falecida, M.
Alega que esta foi subscritora da C e que, em consequência do seu falecimento a 10 de junho de 2019, o réu veio habilitar-se à pensão de sobrevivência, juntando atestado da junta de freguesia em como viviam maritalmente há mais de 4 anos. Contudo, em julho de 2021, uma filha da referida M informou a C que a mãe e uma pessoa com a qual a mãe se relacionara (o requerente) nunca tinham vivido em união de facto. O requerente afirmou que as declarações dessa filha eram falsas e motivadas por nunca ter tido uma boa relação com ela, e ofereceu testemunhas. A C, por despacho de 29 de outubro de 2021, indeferiu o pedido do réu. Havendo dúvidas sobre a existência da união de facto, a C veio, ao abrigo do artigo 6.º, n.º 2 da Lei 23/2010, intentar acção com vista a sua comprovação.
O réu apresentou contestação, tendo alegado que manteve um relacionamento amoroso com M desde o ano de 1999, tendo vivido com a mesma em comunhão de leito e habitação durante dois anos e meio antes do seu falecimento. Alega que lhe prestou assistência e companhia quando esteve internada no hospital, que passaram a fazer férias juntos (por vezes na companhia das filhas desta) e que, a partir do ano de 2016, passou a viver com a ré em permanência. 
Convidado a aperfeiçoar os factos constitutivos da união de facto, o autor veio concretizar que passou a viver na casa de M desde janeiro de 2017, o que era do conhecimento da família, e de amigos e vizinhos. Mais afirmou que o relacionamento com a filha mais nova era bom mas que o relacionamento com a filha mais velha (a que informou a requerente, como acima relatado) era comprometido pelos problemas de toxicodependência desta. 
Foi proferido despacho a 26 de outubro de 2023, fixando o valor da acção em €30.000,01, dispensando a audiência prévia e fixando o objeto do litígio e os temas da prova.
Realizou-se audiência de julgamento, com gravação da prova nela prestada, que decorreu nos dias 7 de dezembro de 2023, 9 e 26 de janeiro de 2024.
Seguidamente foi proferida sentença de cuja parte dispositiva consta:
Pelo exposto, o Tribunal julga a presente ação procedente, por provada, e em consequência declara não reconhecida a vivência em situação de união de facto entre o réu E e a beneficiária falecida M à data da morte desta.
Custas a cargo do réu - artigo 527.º e 530.º do CPC”.
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Inconformado, o R. interpôs o presente recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:
“1. Atentos os depoimentos das testemunhas C e T, F e o depoimento de parte do R., ora apelante, os factos dados por não provados pelo Tribunal a quo deveriam ter sido dados por provados.
2. Na verdade resulta do depoimento das várias testemunhas e do depoimento do R ora apelante, que este, desde 2016, residia na morada da D. M, sita na Praceta …, em comunhão de habitação, mesa e leito.
3. Do depoimento das várias testemunhas inquiridas nos presentes autos, nas quais se incluem as filhas da beneficiária M, depreende-se que ambos mantinham um relacionamento normal de um casal, partilhando o seu dia a dia, fazendo os seus passeios, gerindo a sua casa quanto às despesas correntes, auxiliando-se mutuamente em qualquer situação, mormente nos problemas de saúde que afectavam a D. M, convivendo com a família, amigos e vizinhos.
4. Tendo em consideração que quer a D. M quer o Sr. T, aqui apelante, eram economicamente independentes e tinham património próprio, não será de estranhar que ambos mantivessem a sua independência e cada um assegurasse o pagamento das despesas inerentes aos seus bens pessoais.
5. Tão pouco será de estranhar que o apelante não alterasse a sua morada para recepção de correspondência, quando tinha todos os dias de se deslocar à sua casa de … para tratar da horta e animais e aí ter mantido a sede da empresa da qual foi sócio e gerente.
6. De toda a situação descrita e que resulta do depoimento do R. e das várias testemunhas, e ainda à luz das regras da experiência e da vida em sociedade, é inequívoca a vivência em união de facto da beneficiária M com o apelante E, desde 2016 até ao falecimento da primeira em Junho de 2019.
7. Pelo que, entende o R. ora apelante que o Tribunal a quo não esteve bem ao qualificar a sua relação de “namoro”, devendo qualificá-la de união de facto, atenta a partilha de habitação, cama e mesa e toda a vida em comum, desde finais de 2016.
8. O incorrecto não reconhecimento da união de facto entre ambos implica para o apelante a perda injustificada da pensão de sobrevivência paga pela apelada C.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e reconhecida a união de facto entre a beneficiária M (…) e o Apelante (…), e em consequência ser julgada improcedente, por não provada, a acção que lhe foi movida pela C, devendo esta manter e pagar retroactivamente a pensão de sobrevivência ao Apelante (…)”.
Não foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir:
II. Direito
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do Código de Processo Civil - as questões a decidir são a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e em consequência a improcedência da acção.
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III. Matéria de facto
A decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de primeira instância é a seguinte:
FACTOS PROVADOS
O tribunal considera relevantes para a decisão da causa e provados os seguintes factos:
1- M, filha de F e M, nasceu no dia 20 de setembro de 1938 e faleceu no dia 10 de junho de 2019, no estado civil de viúva de J;
2- M casou civilmente com J a 12 de setembro de 1964, tendo o casamento se dissolvido por óbito do cônjuge marido a 9 de março de 1990. Deixou duas filhas: A e C;
3- E nasceu no dia 15 de dezembro de 1929, filho de A e A;
4- E casou civilmente com P a 24 de outubro de 1954, tendo o casamento se dissolvido por óbito do cônjuge mulher a 2 de agosto de 2014;
5- M era subscritora n.º … da C;
6- Em consequência do falecimento de M o réu E requereu junto da autora, em 5 de julho de 2019, a atribuição de pensão de sobrevivência na qualidade de “unido de facto” da falecida.
7- Para tanto, o réu juntou um atestado da Junta de Freguesia de …, datado de 21 de junho de 2019, onde declara que, em relação a E, “Confirma-se por prova testemunhal que o requerente vivia maritalmente com M há mais de 4 anos, nesta Freguesia, na Praceta …, até à data do seu falecimento ocorrido a 10.06-2019. O presente atestado destina-se exclusivamente para efeitos de confirmação de Residência para ser entregue na Agência Funerária …. (…)
8- Em data próxima do ano de 1997, o réu E e M conheceram e começaram a relacionar-se afetiva e sexualmente como namorados;
9- Ocasionalmente, com frequência não concretamente apurada, tomavam refeições juntos, passeavam juntos e ele pernoitava na casa dela;
10- Conviviam um com o outro e relacionavam-se com amigos e familiares de um e de outro e eram reputados como namorados;
11- E tinha uma boa relação com os familiares de M;
12- Passavam férias juntos, reservando o mesmo quarto de hotel;
13- Não obstante, M vivia na sua casa na … e E vivia na sua casa em …, onde tinha animais e uma horta;
14- Com a morte da mulher, no ano de 2014, E e M passaram a estar mais tempo um com o outro.
15- Quando M ficou doente e hospitalizada, E fez-lhe companhia no hospital até à sua morte.
FACTOS NÃO PROVADOS
O tribunal considera não provados os seguintes factos relevantes para a decisão da causa:
a) E passou a residir em permanência na casa de M na Praceta …, onde colocou as suas coisas pessoais, e ali permaneceu até à morte desta última;
b) E e M contribuíam para as despesas comuns do agregado, da casa onde viviam, partilhavam os rendimentos e despesas;
c) Tomavam decisões conjuntas;
d) E recebia correspondência na casa de M;
e) E declarou a sua residência junto de entidades oficiais na morada referida em a);
f) Era E quem suportava o custo das viagens de férias.
g) O relacionamento como se de marido e mulher se tratassem era publicamente conhecido, sendo assim tratados por todas as pessoas que com eles se relacionavam.
MOTIVAÇÃO
Para resposta à factualidade supra elencada, o tribunal alicerçou a sua convicção na ponderação da prova documental que se encontra junta aos presentes autos, das declarações de parte do réu e da prova testemunhal, com recurso às regras da experiência comum e plausibilidade.
Os factos provados em 1) e 2) assenta na análise do assento de óbito n.º 1590 de 2019 e assento de nascimento n.º 1968 do ano de 2012, estando averbado o óbito do marido e da própria, ocorrido a 10 de junho de 2015. A existência de duas filhas decorre da escritura de habilitação de herdeiros de 24 de junho de 2019, junta pela autora.
Os factos provados em 3) e 4 assenta na análise do assento de nascimento n.º 15411 do ano de 2014, estando averbado o casamento e o óbito da mulher.
Autora e réu admitem por acordo o facto provado em 5). Os factos provados 6) e 7) resultam da admissão por acordo pelo réu. Ainda que assim não fosse, estão suportados por documentação apresentada pela C, cuja autenticidade não foi colocada em causa, nomeadamente no requerimento de pensão de sobrevivência onde foi aposta a assinatura do réu e ainda os documentos que o acompanham.
A essencialidade dos factos controvertidos diz respeito à vivência de E e M como se de marido e mulher se tratasse, partilhando cama, mesa e habitação. Por se tratar de um critério essencial na apreciação da prova produzida nos autos, invocamos a regra da prova de que, sendo esta ação de simples apreciação negativa, em que se pede a declaração de não vivência em união de facto de duas pessoas, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito de que se arroga – artigo 343.º n.º 1 do Código Civil. Ou seja, é o réu que se arroga de direitos decorrentes da união de facto e é ele quem tem de prova que tal união existe.
Tendo em conta a prova a prova produzida nos autos, o tribunal ficou convencido de que existiu um relacionamento amoroso, de intimidade, entre E e M, o que significa que havia convivência, amizade, cumplicidade, partilha de refeições, partilha de quartos em hotel, trato sexual, assistência, entre os dois, o que até era reconhecido por familiares nos termos infra expostos. Podemos concluir inequivocamente que namoravam. Não ficamos, convencidos, porém, que os dois tivessem estabelecido uma relação em situação análoga às dos cônjuges, no sentido da existência do estabelecimento de uma plena comunhão de vida, de uma coabitação prolongada, de uma assunção conjunta de responsabilidades de uma vida comum.
Cabe-nos explicar esta conclusão com base na análise crítica da prova à luz das regras de experiência e de vida em sociedade.
A prova testemunhal e por declarações de parte revela a existência de duas versões contrárias relativamente à matéria de facto. O antagonismo não é, porém, total, existindo o reconhecimento (praticamente) generalizado que existiu uma relação inicialmente de amizade entre o réu E e M, que depois se intensificou, e que os dois passavam o tempo livre juntos, faziam companhia um ao outro, viajavam juntos, tomavam refeições juntos, por vezes, pernoitavam juntos, tinham relações sexuais um com o outro e, na doença de M, o réu visitou-a e fez-lhe companhia.
A questão de facto controvertida é a de saber se a partilha de cama, de refeições e de habitação era um acontecimento ocasional ou se se tornou algo permanente e que se prolongou durante um determinado período de tempo, numa ideia de comunhão de vida.
Começando pelas declarações de parte, o réu E, atualmente com 94 anos de idade, relatou que, há cerca de 22 anos, conheceu a M numa viagem que fizeram a Barcelona. Ela era viúva e ele ainda era casado, mas a sua mulher era uma pessoa doente, dependente de cuidados, e que ele estava emocionalmente disponível para uma relação. Começaram a namorar, num período que tempo que classificou como o melhor da sua vida, permanecendo cada um na sua casa, ela na … e ele em …. Nesse período de tempo, conheceu os amigos da namorada, as duas filhas e respetivas família, que chegaram a ir à sua casa. Contou que a situação se alterou a partir da passagem de ano de 2016, quando estavam no Algarve e a M se sentiu muito mal. Nesse momento, acordaram que ele fosse viver com a namorada na casa desta, na …, para onde levou as minhas coisas todas, tendo ali permanecido até M falecer em 2019. Tinha as chaves de casa, que lhe foram dadas por uma das filhas, que lhe pediu para não deixar a mãe sozinha. Só entregou a chave a chave à filha quando os médicos disseram que M já não tinha salvação. Relatou que dormiam juntos no mesmo quarto, que partilhavam as despesas, e que era ele quem pagava as despesas maiores. As despesas de água e luz eram pagas por M, de uma conta co-titulada com a filha. Era ele quem a levava ao banco e quem a acompanhava às consultas médicas. A namorada tinha autonomia para tratar da medicação. Recebiam os amigos em casa, incluindo as visitas das amigas. Ia buscar os netos de M à escola. Passava o Natal com a família de M, o que aconteceu na casa da filha ou na casa de familiares em …. Passaram o fim-do-ano juntos. Assegura que a família e os amigos sabiam que viviam juntos. Explicou que tinha animais e tinha uma horta na sua casa em …. O que fazia era acordar cedo e tratar de tudo, regressando logo a casa da namorada. Recebia a sua correspondência em …. Quando a companheira ficou muito doente, ficava no hospital das 10h00 às 12h30. Quando a companheira morreu, continuou a ter boa relação com as filhas.
C, filha de M, declarou que sempre teve uma relação próxima com a mãe, com quem viveu até se casar, no ano de 2001, na casa que foi da mãe. Depois de sair de casa, continuou com uma relação próxima com a mãe, que se estreitou a partir de 22 de março de 2016, data em que a mãe teve um AVC, que a deixou com sequelas: de memória, disfagia, dificuldades na fala, maiores dificuldades de locomoção e agravamento de síndrome vertiginoso. Não obstante, a mãe continuou a fazer a sua vida doméstica, mas não tinha autonomia fora de casa. Ela própria fazia compras para a mãe. Explicou que a mãe enviuvou cedo e sabe que, cerca de 18 anos antes, a mãe conheceu o réu E numa viagem que fez, tendo ficado amigos, tendo sido apresentado pela mãe como tal. E passou a estar presente na vida da mãe, podendo afirmar que, a dado momento, passaram a ser namorados, convivendo, passeando juntos, presumindo, de acordo com as regras da vida, que tivessem um relacionamento sexual. Sabe que passavam o fim do ano juntos com amigas da mãe e que, nessas ocasiões, ficavam no mesmo quarto. Uma das vezes, a mãe chegou a levar uma das netas consigo. Não obstante E passar muito tempo com a sua mãe, garante que tinham vidas completamente separadas, que nunca viveram como marido e mulher. A mãe vivia sozinha na casa da … e ele vivia na casa dele em …, perto de …, numa moradia de dois pisos que ela própria chegou a visitar, sabendo que E vivia num dos pisos e os familiares no outro, tendo horta e animais. Tem a certeza disso porquanto falava com a sua mãe diariamente, cerca de 4 a 5 vezes, visitava-a cerca de 1 vezes por semana e, na fase final, diariamente. Ia à casa da sua mãe, faziam compras juntas, e havia um ritual desde há muitos anos em que a mãe ia almoçar a sua casa ao fim-de-semana. Admite que, por vezes, encontrava lá o Sr. T, alguma vezes até mais tarde, mas não havia coabitação entre eles. Ela passava a semana sozinha e ao fim-de-semana, tiravam-na de casa. Nega que houvesse em casa da mãe um qualquer objeto pessoal de E que indiciasse que ele ou qualquer outra pessoa ali vivessem, seja roupa, objetos de higiene ou outros objetos pessoais. No final da vida, a mãe esteve internada dois meses e não viu nenhum objeto pessoal do Sr. T. Nega que E(T) tivesse as chaves de casa da mãe, que ele as tenha entregado a si, relatando que, depois da mãe morrer, ele telefonou para pedir umas coisas que tinha em casa, tendo ali sido encontrado, apenas, um casaco. Nega ainda que a mãe partilhasse despesas de casa com o Sr. T. As contas de água, eletricidade ou eram pagas por débito direto da conta da mãe ou pela filha, com o cartão bancário da mãe. Conhece os movimentos por as contas bancárias da mãe serem co-tituladas por si. O Natal era passado consigo ou com a sua irmã, não obstante o Sr. T ter acompanhado a mãe em algumas ocasiões.  Na ocasião em a mãe teve o AVC, a declarante tinha saído de fim-de-semana. Não obstante, falou ao telefone com a mãe, que lhe disse que estava a preparar o jantar e que o Sr. T trazia Pasteis de Belém. Ligou mais tarde, mas ninguém atendeu, o que fez com que ligasse ao Sr. T que também não atendia. Pediu ajuda a um sobrinho, ligou à polícia e hospitais e colocaram-se a caminho de Lisboa. Só mais tarde, o Sr. T informou que a mãe estava no hospital, tendo relatado que tinha batido à porta e que a mãe não atendeu, tendo chamado os bombeiros para abrir a porta. Chegou a encontrar o Sr. T no Hospital, mas que ela ou a irmã tiraram atestado de assistência à família para poder estar junto com a mãe. A conta do hospital foi paga, com o dinheiro da mãe, e que era ela o contato familiar. Reconheceu que havia uma boa relação entre a família e o Sr. T, aceitando a importância que ele teve para o bem-estar da mãe, dando o exemplo de, depois do óbito da mãe, ter aceitado o convite do Sr. T para uma sardinhada em sua casa. Não aceita, porém, que o Sr. T apresente uma realidade que não é verdadeira. Concatenando os relatos do réu e da filha de M, verificamos que, não obstante ambos terem uma relação próxima com M, apresentam versões com contradições insanáveis, designadamente os relacionados com a coabitação, a partilha de cama, mesa e divisão de despesas.
A testemunha A, filha de M, não teve dúvidas em qualificar a relação da mãe com E como de namoro. Descreveu ter saído de casa da mãe com 20 anos de idade, mas que continuou a viver a pouca distância, mantendo ligação familiar. Sabe que, cerca 15 anos antes de morrer, a mãe, sendo viúva, conheceu E numa viagem que fizeram no estrangeiro tendo ficado amigos. Aquela pessoa passou a ter uma relação próxima com a mãe, mostravam uma grande afetividade juntos, em convívios, partilhando refeição. A dado momento, passavam a passagem do ano juntos, às vezes com os netos dela. Confirma que, em alguns Natais, o Sr. T foi convidado nas festas familiares, faziam viagens juntos. Tratava-se de uma relação aceite por ela própria, por respeito pela mãe, mas também aceite pelas famílias de ambos, tendo chegado a ir a casa dele quatro ou cinco vezes, tendo conhecido a vivenda onde vivia, e onde morava num piso superior a filha e a neta, local onde ela tinha uma horta e animais. Não obstante, nega que a mãe tenha vivido com o Sr. E, afirmando que ela vivia sozinha, uma vez que visitava a sua mãe na casa que ela tão bem conhecia, por ser casa onde em tempos também viveu e que ali nunca encontrou sinais de ali vivesse outra pessoa, muito menos um homem. Chegou a fazer estas visitas à noite, em horas inopinadas, e não encontrou o Sr. T. Isso não quer dizer que o Sr. E não visitasse a mãe, tendo chegado a encontra-lo em casa da mãe algumas vezes, já que era convidado assíduo para almoçar. Não rejeita a possibilidade dele ter pernoitado em casa da mãe, o que seria normal face à relação de namoro que tinham, mas nunca encontrou vestígios desse facto ou de uma presença perene. Realça que, em 2016, a mãe teve um AVC e que ficou com limitações, o que fez com que a família assumisse alguns cuidados: deslocava-se à casa da mãe para dar o pequeno almoço, nunca tendo encontrado, reitera, sinais de que outra pessoa ali vivesse, insistindo que seria natural encontrar produtos de higiene ou roupa. Também não via partilha de despesas, sendo os pagamentos das despesas feitas pela mãe. Também as consultas médicas e gestão da medicação era feita pelas filhas. Admite, porém, que, nos dois meses antes da mãe falecer, o Sr. T esteve presente. Foi a família que pagou a hospitalização e o funeral.
Foram arroladas testemunhas familiares e amigas de M.
L é genro de M, tendo casado com C no ano de 2001. Contou que sempre frequentou a casa da sogra e esta a sua casa, uma vez que mãe e filha tinham uma relação de amizade e confidência. Além disso, a sua sogra dava apoio com os netos, tendo o seu filho mais velho ficado aos cuidados da avó até aos 3 anos de idade, e os dois filhos quando ficavam doentes. Conhece o Sr. T há muitos anos, sabendo que ele e a sogra se conheceram numa excursão ao estrangeiro, tendo ficado com uma relação forte de amizade. Questionado sobre se eles tinham uma relação de namoro, a testemunha, de forma pueril, resistiu a dizê-lo, que os via mais como amigos, o que justifica por a sogra ser uma pessoa reservada, nunca os ter visto junto com mãos dadas, com manifestações de carinho. Perguntado se achava normal que duas adultas tivessem a proximidade que demonstravam publicamente (fazendo férias juntos, convivendo nas festas de Natal) sem uma relação mais intima do que a amizade, a testemunha, relutantemente, esquivando-se, veio admitir que sim, que teriam uma relação de namoro. Declara que sempre teve uma relação de respeito com Sr. T, mas que nunca soube que tivesse vivido com a sua sogra. Aliás, quando a sogra foi para o hospital, chegou a ir a casa da sogra ver se estava tudo bem e nunca encontrou pessoais do Sr. T, com exceção de um casaco.
Foram ainda arroladas duas pessoas da amizade de M.
Uma delas foi MC, pessoa que o próprio réu reconheceu como sendo uma das amigas de M, e uma das pessoas que, segundo ele, conhecia a sua vivência em comum. Contudo, MC não só declarou que a amiga não vivia com E, como declarou enfaticamente desconhecer a relação de namoro entre eles. A testemunha contou que trabalharam juntas na mesma escola e que eram amigas, tendo-se reformado juntas desde os anos oitenta. Combinavam encontra-se no Natal, em locais públicos, tendo chegado a conhecer o Sr. E como amigo dela, que o trouxe uma ou duas vezes para tomar café. Admite que chegaram a ir todas a casa dele em …, tendo encontrado a família dele. Contou que a amiga não era uma pessoa de exteriorizar afetos, era uma pessoa fechada até com as amigas, não partilhando essas confidências, não se tendo apercebido de qualquer sinal de intimidade entre os dois. Questionada, admite, porém, que chegaram a ir passar uns dias de descanso num Inatel e que a amiga ficou no mesmo quarto que o tal amigo. Quando a amiga ficou mais doente, internada no Hospital … visitava-a praticamente todos os dias. Encontrava ali o Sr. T bastantes vezes e as filhas dela. Questionada sobre se a amiga não podia viver como marido e mulher com o Sr. T, referiu que sempre que combinaram encontros, ela não tinha qualquer constrangimento de agenda em relação ao réu, dando a entender que era uma pessoa livre de compromissos dessa natureza.
A testemunha AL declarou ser amiga de A, filha de M. Declarou que conheceu a mãe da amiga, no ano de 2016, num contexto em que ficou doente, e dava boleia à amiga quando vinha prestar cuidados à mãe. Tais visitas aconteciam à hora de almoço, que subia com a amiga, e que encontrava a mãe sempre sozinha, um pouco debilitada. Sabe que a amiga faltou ao trabalho para prestar cuidados à mãe, sem conseguir precisar.
O réu arrolou como testemunhas vizinhos de M.
C declarou que viveu no 2.º direito do prédio onde viveu M, que era vizinha de patamar, entre os anos de 2005 a 2022. Habitualmente saía de manhã e regressava à noite. Ainda assim, sabia que M era dona da casa, conheceu as filhas, e encontrava o Sr. E a entrar e a sair de casa. Nos últimos tempos, quando ela tinha problemas de saúde, o Sr. E passou a viver lá, o que concluiu pelo facto de ele estar sempre presente, entrava e saía de casa com chave, saiam os dois juntos, sabia que passavam férias conjuntas. Via o Sr. E com robe vestido. Considerava-os como um casal. Questionado sobre se tiveram de chamar os bombeiros para abrir a porta quando vizinha foi para hospital, declarou desconhecer. Sabe que E tinha uma casa para o lado de …, o que ele lhe disse. Quando a senhora foi hospitalizada, o Sr. E disse-lhe que já não regressava, que pediu que lhe fossem buscar os pertences.
A testemunha T disse que viveu no 2.º direito do prédio onde vivia M, entre 2006 e 2021, sendo sua vizinha de patamar, e que o Sr. E era o seu vizinho da frente. Contou que, a dada altura, via-o sentado no carro à porta do prédio e depois, em data que não consegue precisar, começou a vê-lo em casa dela. A vizinha andava com desequilíbrio e viu-a a ser ajudada pelo Sr. T, assim como via-os a subir juntos com sacos de compras. Contou que chegou a ver o vizinho de robe em casa. Quando tocavam à campainha, tanto abria um como abria o outro, ouvia-os à noite em casa, e via roupa de mulher e de homem pendurado no estendal da roupa, pelo que concluiu que ambos viviam em casa. Em data que não conseguiu precisar, os seus filhos brincavam com os netos dela. Conversavam nas escadas. Apesar de terem falado de combinar refeição, pensa que não chegou a entrar em casa deles. A filha C vinha muitas vezes, com quem conversava sobre os filhos.
CCC apresentou-se como tendo vivido no prédio ao lado do prédio onde vivia M entre 2008 e 2019. Acabou por reconhecer ser irmão e genro das testemunhas anteriores. Relatou que entrava no trabalho às 07h00 e que encontrava o Sr. T na rua e, por vezes, coincidiam quando chegavam a casa, e via-o entrar no prédio. Cerca de 2 a 3 vezes por semana visitava o irmão e, por vezes, encontrava o Sr. E, que pensava ser esposo de M. Relatou um episódio em que saltou janela para abrir porta aos vizinhos, que tinham deixado porta fechada.
I identificou-se como moradora do 3.º esquerdo desde o ano de 1994. Conheceu a D. M quando foi para lá viver e o réu E mais tarde. Em data que não consegue precisar, talvez no ano de 2013 ou 2014, passou a ver o Sr. E a entrar no prédio e a dirigir-se para a casa da vizinha. Passou a ver o Sr. E mais diariamente no ano de 2016, pensando que o mesmo dormia lá. Ouvia-o a sair de casa de manhã e via-o chegar a casa com a D. M, num Mercedes que conduzia. Via o carro parado na praceta a várias horas do dia e da noite. Não conhece em concreto a vida particular dele, não era visita de casa, nunca ali tendo entrado. Acrescentou ainda que as filhas tinham boa relação com a mãe, que a visitavam.
Por fim, F relatou ser amigo do réu desde há mais de 40 anos, tendo sido colegas de trabalho, passando férias juntos. Declarou que, no ano de 1998 ou 1999, foi com o amigo a Espanha e que, no último dia, encontraram duas senhoras portuguesas, uma delas era M. Trocaram telefones, tendo sido esse o princípio da relação entre os dois. Sabe que ela era viúva e que ele era casado, mas que a mulher tinha uma doença psiquiátrica, e que marido e mulher dormiam em quartos separados. O amigo expôs a M esta realidade e que ela se disponibilizou a aceitá-lo nestas condições. A partir daí, quando faziam férias juntos, partilhavam o mesmo quarto, reconhecendo como suas as fotografias juntas aos autos, que situa em diversas viagens que tiveram juntos. Quando a mulher de E morreu, passaram a viver juntos, o que eles próprios lhe disseram. Sabe que não poderia acontecer antes da morte da mulher, porque ele lhe tinha prometido isso. Chegou a ir a casa da D. M duas ou três vezes, mas que não reparou se ele tinha roupa ou artigos de higiene seus em casa, podendo apenas dizer que ele mostrava um grande à vontade. Instado a esclarecer se as visitas foram depois do ano de 2016, disse que talvez uma ou duas, porque ela já se encontrava doente. O amigo contou-lhe que tinha a chave de casa, o que desconhece.
Analisada criticamente a prova produzida nos autos, verificamos que existem duas versões distintas, incompatíveis entre si. Temos por certo (as próprias filhas o reconhecem), que M e E se conheceram nos finais dos anos 90 e que iniciaram uma relação de romântica, partilhando o tempo livre juntos, tomando refeições juntos, viajando juntos, dormindo na mesma cama e, como qualquer pessoa minimamente socializada pode concluir, não sendo uma relação platónica, tinham relações sexuais um com o outro. Era uma relação que acontecia à vista dos familiares, verificando da parte das filhas de M uma reação de aceitação daquela nova relação da mãe, juntando-se todos em comemorações de família. Apesar da resistência de MC em verbalizar essa relação, pensamos que havia efetivamente sinais exteriores dessa relação amorosa, ainda que sem sinais notórios de afeto, o que até se compreenderá tenho em conta a idade dos namorados e no contexto da sociedade em que cresceram. A testemunha F revela um facto que é pertinente à luz do contexto cultural em que os intervenientes viveram, de que E, estando casado apenas formalmente com a mulher, não poderia viver com outra pessoa. Havia como que um limite ao aprofundamento da relação de ambos. Circunstância que faria com que os encontros de ambos acontecessem principalmente na casa dela. Ocorrendo o óbito da mulher no ano de 2014, existem indícios de que há como que uma normalização da relação junto das famílias, permitindo com que as filhas acompanhem a mãe para convívios na casa de E. Mas existe prova concludente de que E e M passaram a fazer da casa dela a casa familiar? Pensamos que não. Em primeiro lugar, não foi produzida qualquer prova documental que indique que E tenha passado o centro da sua vida familiar para a casa de M. Não existem contratos de fornecimento de serviços essenciais titulados por E para aquela casa. Não existe prova de pagamento por parte de E destes serviços. Não existe prova que tenha mudado para lá a sua residência fiscal, a morada da segurança social, a residência para efeitos de cartão de cidadão, carta de condução, cartões de fidelização de supermercado etc. Não há prova de que o réu tenha dado aquela casa como paradeiro, como local onde pudesse ser encontrado. Por outro lado, não existe prova sólida da existência de uma economia familiar, de uma comparticipação nas despesas de uma vida em comum, na aquisição de alimentos, produtos de casa etc. Pelo contrário, as filhas declararam que a mãe tinha uma conta bancária que também era co-titulada por uma das filhas, que tinha acesso ao movimento da conta e do saldo, etc. Acresce que o réu tinha uma vivenda onde morava com a antiga mulher, onde tinha a sua horta e os seus animais, em …, na mesma casa onde também vivia a sua filha e neto, onde recebia correspondência. Ele tinha, no passado, uma casa própria onde tinha o seu centro de vida organizado, da qual não se desfez. Outro elemento significativo é a circunstância de as testemunhas indicadas pelo réu, apenas terem mostrado ter conhecimento de determinados sinais exteriores da vida de ambos, que podem ser mal interpretados. Nenhuma das testemunhas vizinhas tinha um contato íntimo com E e com M, não sendo visitas da casa. À luz das regras de experiência em sociedade, admitimos que, num ambiente suburbano, em que as pessoas ativas passam a maior parte do tempo fora de casa e as relações de vizinhança são limitadas ao essencial, o conhecimento da vida dos vizinhos esteja assente em sinais efémeros, em contatos fugidios, facilmente mal interpretados. No caso concreto, a proximidade e a convivência de Ee com M pode levar os vizinhos (três deles da mesma família) a fazer presunções que não sejam rigorosas. Saliente-se que apenas a testemunha F confirmou ter entrado em casa de M, mas sem se aperceber da presença de coisas pessoais de E, como material de higiene ou roupa de homem ou outros elementos, como molduras com fotografias da família dele. O que queremos dizer é que a generalidade das testemunhas apenas via o que acontecia do patamar do apartamento de M para fora: viam E entrar e sair com frequência na casa de M, viram-no vestido com um roupão, ouviam ruídos, chegaram a ver (uma vez?) roupa de homem estendida a secar. Mas estes elementos são compatíveis com uma relação de convívio, de intimidade, de partilha de refeições. São compatíveis, com o pernoitar esporádico. As restantes testemunhas não entraram na casa de M para poderem afirmar que ali viram artigos pessoais dele em casa, que viram objetos de higiene na casa de banho, roupa no armário etc.. O facto de terem uma visão exterior e parcial das coisas, a partir do espaço público, não lhes dá a credibilidade necessária para que o tribunal conclua, como fizeram, que E ali estava diariamente, que trouxe as coisas do seu quotidiano para a casa da namorada, que tenha ali fixado o seu centro de vida com ela.  O tribunal não detetou contradições significativas no depoimento do réu. Mas também não encontrou contradições significativas no depoimento das filhas de M. Estas filhas não eram filhas ausentes. Eram filhas que mantinham uma relação de proximidade afetiva com a mãe, filhas que conheciam aquela casa por ali terem vivido até casarem, que visitavam a mãe frequentemente, que receberam E no seio familiar, que o convidaram para festas, e que disseram, de forma inequívoca, que cada um vivia em sua casa, que a mãe vivia sozinha e que eram elas que assistiam as necessidades da mãe. Um elemento significativo na formação do convencimento do tribunal é a circunstância de o tribunal não ter encontrado qualquer animosidade dos familiares de M contra o réu. A prova produzida nos autos revela que C, o marido L e A respeitaram a decisão de M de se relacionar amorosamente com um homem que não era o pai delas. Faziam-no apesar de E estar casado com outra mulher e de ambos viveram na mesma casa em ...  Razões de moralidade pública, de pudor, de vergonha não impediram as filhas de respeitassem a decisão da mãe de se relacionar com aquele homem, e que elas próprias o convidassem para festas familiares, de conhecer a família daquele, permitindo que os netos convivessem com a avó e o seu companheiro. Transparece do depoimento dos familiares, um reconhecimento da importância do apoio emocional e físico que o mesmo dava à sua mãe, até no leito da morte. Só assim se explica que, após a morte de M, os filhos desta e o réu se tenham reunido num convívio na casa de E, como que honrando a memória de pessoa tão significativa na sua vida.  Não se identifica qualquer fonte de inimizade entre eles. Também não se vislumbra qualquer vantagem patrimonial para os familiares de M do sucesso desta ação. Pelo contrário, é o réu quem tem interesse em obter da C de uma vantagem patrimonial. Um elemento relevante é a circunstância de o réu ter pedido na Junta de Freguesia da … dois atestados de residência, com base em declarações de testemunhas, a primeira de junho de 2019 e a segunda de julho de 2023 em que se atesta que a união de facto começou há mais de 4 anos antes da morte de M, na primeira, e 2 anos e meio na segunda, desfasamento temporal que não pode ser desvalorizado, face aparente ligeireza de quem veio servir de testemunha.
O tribunal reconhece que existem versões contraditórias dos factos, existem dúvidas sobre a realidade que de facto existiu.
Nestas circunstâncias, a lei declara expressamente que a dúvida se resolve contra quem tem o ónus de fazer prova da realidade – artigo 414.º do CPC. Tratando-se de uma ação de simples apreciação negativa, cabe ao réu o ónus de fazer prova dos factos constitutivos do seu direito – artigo 343.º, n.º1 do Código Civil.
A análise crítica da prova dos elementos de prova à luz das regras de experiência e de vida em sociedade não permite que o tribunal fique convencido, para além de qualquer dúvida razoável, da prova dos factos alegados pelo autor. Tendo em conta os elementos de prova produzidos, apenas podemos dar como provada uma realidade que fica aquém daquela que é alegada pelo réu. Ficamos convencidos que o réu e M tinham uma relação de namoro, que conviviam um com o outro, que ocasionalmente tomavam refeições juntos, ocasionalmente viajavam juntos, ocasionalmente dormiam juntos, que tinham relações sexuais um com o outro, mas não mais do que isto. Deste modo, o tribunal dá como não provados os factos invocados pelo réu referentes à subsistência de uma condição de partilha constante de mesa, cama e habitação”.
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IV. Apreciação
Está em causa no presente processo a impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Mostram-se minimamente cumpridos os ónus de impugnação especificada. Este tribunal procedeu à audição, muito atenta, de todos os depoimentos. Tivemos as filhas da falecida, o marido da filha C, a colega de trabalho duma das filhas, e a amiga da falecida. Ouviu-se depois um vizinho, seguidamente o réu, em declarações de parte, e seguiram-se os depoimentos do amigo do réu, da mulher do vizinho, da vizinha de cima, e do vizinho do prédio ao lado, que é irmão do primeiro vizinho ouvido. Ouvimos também muito o Mmº Juiz, com grande empenho na descoberta da verdade, e inúmeras e insistentes intervenções, tendo acabado por reconhecer, numa das testemunhas, que tirou a instância do i. mandatário do réu, o que de facto aconteceu, por muito tempo. Basta, de resto, ler a motivação do tribunal, para se ter um retrato fiel da enorme preocupação na descoberta da verdade.
O tribunal de segundo grau não está limitado ao apuramento dos erros notórios de apreciação da prova cometidos pelo tribunal recorrido, ao invés devendo formar a sua própria convicção. Secundamos sim, a tese final da motivação, no sentido de que a dúvida se resolve contra a parte onerada com o ónus de prova.
Decorre da audição, das respostas dadas e da motivação do tribunal, ser claro ter-se adquirido que o réu e a falecida tiveram uma relação amorosa desde 1998/1999. F, amigo do réu, contou o modo como se conheceram, no 1º de Janeiro de 99, em Lloret del Mar, e como já no final desse ano o réu e M foram passar o fim do ano juntos. O réu repetiu várias vezes, e o amigo confirmou, que esses (praticamente 20 anos) foram os melhores da sua vida. Com o amigo, sabemos que logo no ano seguinte também foram passar férias a Cuba, aliás há fotografias disso nos autos.
A partir daqui podíamos ficar no arquitecto genro, falando sobre os grupos (de amigos/reformados em excursão) e dizer que tudo não havia passado de uma amizade entre grupos, entre elementos de grupos. Podíamos, com MC, a amiga (que raramente ia a casa) chegar à figura tristíssima de ter de admitir ao Mmº Juiz que no Inatel de … tinham sido reservados dois quartos – ela tinha ficado num com outra amiga, e a M noutro com o réu – depois de afirmar que não sabia se dormiam no mesmo quarto porque só os encontrava na mesa do pequeno almoço no dia seguinte.
Não foi sem esforço que as filhas admitiram em julgamento que o amigo era namorado da mãe. Só vencida essa resistência é que C pode afirmar que afinal a sua própria filha L se dava muito bem com o réu, porque muitas vezes depois da escola estava em casa da avó e ali estava também o réu. E davam-se tão bem que a neta ia de férias com a avó e com o amigo da avó.
Não podemos deixar de notar o depoimento do genro, e a sua obstinação em defender a simples amizade entre o réu e a sogra.
Finalmente, a colega da filha, que nos traz esta improbabilidade do ponto de vista da experiência normal da vida: - a filha enervava-se muito a partir do momento em que a mãe ficou doente, estava sempre a telefonar para a mãe (leia-se, do emprego) e ficava tão nervosa que não conseguia guiar, e a colega vinha a conduzi-la a casa da mãe, na hora do almoço, e, aqui vem a improbabilidade, vinham da Praça do Comércio em Lisboa à Amadora, não uma vez ou outra, mas durante o tempo de doença da mãe (seja do AVC de 2016 à morte em 2019).
Ora, neste particular, o que o depoimento da colega quer dar a conhecer ao tribunal é que era a filha que tratava da mãe, não era o réu, que não vivia em casa da, digamos, namorada. Isto mesmo foi tentado nos depoimentos das duas filhas e no do genro, e nos depoimentos das duas filhas pelo relato das baixas para assistência à família, e das idas às sete da manhã a casa da falecida para dar a medicação da manhã e medir a tensão arterial. Não duvidamos. Mas já não se sabe é quando é que tais baixas foram metidas, seguramente que as duas irmãs ao mesmo tempo não as meteram, e quanto tempo demoraram tais baixas? E se a mãe teve o AVC em 2016, Março, parece, e se o réu diz que na passagem desse ano, ela se sentiu muito mal e parecia que morria, e só a partir dessa data é que passou a viver com ela, então não temos vários meses de 2016, em que efectivamente a senhora está sozinha, e está na imediata sequência dum AVC e precisa mesmo de assistência das filhas? Temos. Quer isto dizer, não houve esclarecimento sobre datas. Por isso, a aparente contradição que há entre o réu viver em casa da falecida e as filhas afirmarem que não, que eram elas que iam lá a casa de manhã dar a medicação e que faziam (C) o jantar em casa e levavam lá, e que prestavam um imenso (não duvidamos) apoio, em termos de compras, em termos de idas a médicos e consultas, em idas ao multibanco (C) (porque A não tinha conta com a mãe), pode não ser mesmo uma contradição, ou não ser uma contradição verdadeiramente excludente (por coincidência temporal total a partir de janeiro de 2017).
Outro ponto, para nós fulcral, que revelaria fulcralmente a falta de verdade do réu, não foi abordado. C conta o dia em que a mãe teve o segundo AVC, e diz que foram os bombeiros que foram lá a casa, porque a mãe estaria caída, consciente, mas longe da porta, e sem conseguir abri-la ao réu, que ia almoçar com ela. Os bombeiros entraram por uma janela. Quer isto dizer: - o réu, que diz ter vivido na casa desde janeiro de 2017, dois meses antes do falecimento de M em Junho de 2019, não tinha a chave de casa. Perguntado C, vizinho, sobre os bombeiros, disse que lhe disseram que tinham ido os bombeiros. Documentação sobre bombeiros, nenhuma. Nas declarações de parte do réu, o réu não foi perguntado sobre os bombeiros. Quer dizer, não se conseguiu apanhar o réu a confessar indirectamente que não tinha chave de casa – tendo ele dito que a tinha desde o casamento da filha C, que lha havia dado (então, que saía de casa da mãe).
Por isso, quando temos os vizinhos a afirmar que ele tinha chave de casa, não temos maneira de concluir de imediato que faltam à verdade.
Uma nota antes de passarmos aos vizinhos. É verdade que quando ouvimos as testemunhas de uma das partes, ficamos mais inclinados à versão que nos trazem. Quando começamos a ouvir as testemunhas da outra parte, temos de ir desfazendo, se for o caso, essa primeira impressão. Não é curial confrontar as testemunhas do segundo bloco a par e passo, como se estivessem a mentir. Menos ainda é pertinente que um mandatário condicione as testemunhas com a advertência que têm de falar a verdade – é uma simples questão de não perder a aquisição de um depoimento espontâneo, relativamente ao qual a apreciação da sua credibilidade se faz depois, no sossego da ponderação, no qual se sopesam todos os depoimentos.
Uma boa maneira de evitar estas ocorrências era considerar que competindo o ónus da prova ao réu, a ordem de prestação dos depoimentos deveria ser invertida. Se o autor tem o ónus de prova dos factos constitutivos do seu direito – artigo 342º do Código Civil – e primeiro depõem as testemunhas do autor – artigo 512º do CPC – quando é o réu que tem o ónus de prova dos factos constitutivos do seu direito, que lhe é negado pelo autor na acção de simples apreciação negativa (como é o caso), então faz mais sentido serem inquiridas primeiro as testemunhas do réu e depois as do autor, o que teria sido possível por via da parte final do nº 1 do artigo 512º do CPC.
Quanto aos vizinhos, não vemos à partida que o facto de três testemunhas serem da mesma família seja motivo de descrédito, e no caso concreto menos ainda, porque a última testemunha prestou um depoimento absolutamente claro e escorreito a partir da sua ciência, qual seja a de quem vive no prédio ao lado. Portanto, em termos de vizinhos temos o casal que vive no andar do lado, a vizinha que vive no andar mesmo por cima, e o vizinho que vive no prédio do lado. Estes dois não afirmam serem visitas da casa. E o casal também só assegura que só mais para o fim é que a convivência era maior (isto é, excedia o patamar da escada, por vezes eram convidados a entrar, e isto ainda com mais pretexto a partir do momento em que os filhos do casal e os netos da falecida brincavam uns com os outros).
Pergunta-se, é claro, qual é o móbil. Que razão levou o bloco familiar a negar a união de facto, ou ainda mais pertinentemente, que razão levou a filha A a denunciar à Autora que o requerimento apresentado pelo R. não era verdadeiro. Na motivação pondera-se que as filhas não seriam prejudicadas financeiramente, ou basicamente, não ganham nem perdem com o resultado da acção. Não necessariamente, para efeitos de explicação, os pratos da balança sejam as filhas, dum lado, e o réu, do outro. Notamos como, tendo o réu declarado que a explicação possível era a animosidade de A, por efeito de ter tido um historial de toxicodependência, o tribunal não considerou entrar por essa via, esmiuçar ou pedir ao réu para concretizar melhor o que estava a dizer. Notamos do mesmo modo que o réu declarou – e parece ser certo que o réu não precisava da pensão de sobrevivência, pois que tinha casa própria, e carro, e horta e animais (que significam, em termos práticos, despesa e não ganho) – que pediu a pensão para ajudar a filha de C a tal neta L com a qual a própria mãe afirmou haver uma relação de proximidade com o réu, a qual estaria prestes a entrar na universidade. Estes caminhos não foram mais percorridos, mas alguma coisa tem de explicar que as filhas que tinham boa relação com o namorado da mãe, afinal tenham sido testemunhas contra este.
Que outro motivo? A defesa da honra e do pudor das pessoas nascidas nos anos 30, que supostamente eram mais reservadas (talvez a viúva se devesse vestir de preto até à morte?). Esta visão não é adequada ao contexto suburbano, sim ao mais profundo rural, e nem aqui, a partir da Revolução, que foi também uma revolução de costumes. A falecida tinha 35 anos na altura da revolução, e enviuvou em 1990. Muito dificilmente se encaixaria no perfil que supostamente as filhas estariam a preservar. Aliás, basta ver as fotografias, independentemente de poderem ser momentos de festa ou de mais descontração, para perceber que a falecida não seria a tal pessoa muito reservada. A defesa da honra e do pudor e da reserva como motivo para a posição das filhas, cai por terra quando todas (o bloco familiar) acabam a admitir que sim, que o réu era o namorado da mãe. Então, com o devido respeito, qual é a diferença, em termos de honra, pudor ou reserva, entre ser o namorado que pernoita na casa da mãe – o que as filhas tiveram que admitir – e essa pernoita ser constante? Sobretudo numa altura em que a mãe precisa de ajuda?
Então, não sendo assim, foi o amor à verdade que as moveu, ou mais propriamente foi o amor à verdade que moveu A à denúncia, dum pedido feito por um homem de cerca de 90 anos? Alguém afirmou que era devido honrar a falecida porque ela era uma pessoa muito intransigente na verdade, ou alguém afirmou que alguma das filhas, ou a família, em geral, o fosse? Não ouvimos.
Neste conspecto, do amor à verdade, é que nos é útil pensar em depoimentos menos fluidos, menos completos, menos coincidentes. Quando o tribunal pondera que não encontra contradições de maior nos depoimentos nem das filhas nem do réu, e verdade seja, nem dos outros todos, é certo que há coerência interna, mas isso não é propriamente ou necessariamente uma garantia de credibilidade. Mais úteis, mais espontâneos, são os depoimentos com menos certezas. C (vizinho) retirou a afirmação de ter visto o réu em pijama e pantufas, mas não a afirmação de o ter visto em robe.
Quando lemos a motivação percebemos que o tribunal foi até ao seguinte ponto: - está bem que o réu fosse o namorado, está bem que tivessem relações sexuais, está bem que dormissem na mesma cama, está bem que o réu estivesse lá muitas vezes em casa, o que não temos provado é que dormisse sempre, sendo certo que não há outros indícios da união de facto, como ter o réu mudado a sua morada fiscal ou receber correspondência, ou haver contas conjuntas ou prova melhor de despesas assumidas em comum, e como não ter o réu mudado as suas coisas para a casa da namorada. Quer isto dizer que o réu não residia lá sempre.
Mudar morada e receber correspondência é o próprio réu que diz que o não fez. Contas conjuntas não havia, e despesas de água e luz e similares eram pagas pela falecida, disse. Compras para o dia a dia, não temos grande prova, excepto os vizinhos que asseguram que o réu sofria de zona e que por vezes o ajudavam a subir com os sacos das compras.
Mudar as coisas pessoais? Temos aqui uma, salvo o devido respeito, pedra de toque para o tribunal recorrido – e diga-se, louvamos e louvamos verdadeiramente, o esforço do Mmº Juiz em apurar a verdade – que é que os vizinhos não entram em casa, portanto não viram armários, não viram se havia roupas do réu nos armários, não viram se havia produtos de higiene do réu na casa de banho. Admitimos que as filhas, ou mais provavelmente a filha C, fosse frequentemente a casa da mãe. Mas em que caso é que as filhas vão ver os armários do quarto da mãe? No caso de terem com ela uma relação muito próxima? Não, não é normal. As filhas poderiam ver o armário do quarto da mãe nos raros casos em que esta não se conseguisse levantar por via do síndrome vertiginoso e fosse preciso tirar uma camisa de noite do armário. Mas se o AVC foi em 2016 e no final do ano a mãe foi passar o ano ao Algarve, com o réu, estaria então melhor, certo? Quem nos garante que as filhas não faltam à verdade quando asseguram que não há duas escovas de dentes na casa de banho? E tem de haver, visíveis?
Mas só havia um casaco que foi o genro arquitecto que o foi levar ao réu, depois da morte da sogra, junto com uns tapetes que foram parar ao turismo que a filha do réu explorava? Então e o robe, que C (vizinho) e a sua mulher T referem? Quem mente? E porquê? Verdadeiramente, qual é o móbil dos vizinhos para mentirem?
Melhor é o canário, que nos dá um cenário que não é muito comum: - se no último internamento da mãe, as filhas iam dar de comer ao canário (que também foi referido como periquito), e se, por não ser praticável (então não viviam mesmo perto?) uma delas levou o canário para casa, o réu, se vivia lá em casa, porque é que não continuou a tratar do canário? Porque é que o réu disse que quando M foi internada, nunca mais voltou lá a casa, e deu as chaves à filha no hospital? Se o internamento durou quase dois meses, e se só na última semana os médicos conversaram com o réu dando-lhe nota do fim, notícia que o fez até cair e partir a cabeça, então não era normal que ele tivesse ainda ido para casa durante os primeiros dias, pelo menos? Não sabemos em que estado de saúde M estava depois do segundo AVC. O que sabemos e nos parece relativamente claro, é que eram namorados desde 1999, até à morte da esposa do réu, em 2014, não viveram juntos, e dali em diante, segundo o réu, passaram mais dois anos, e só em Janeiro de 2017 é que passam a viver juntos, diz o réu. Então temos uma relação amorosa de 17 anos em que os enamorados não vivem juntos, e um tempo final em que o réu diz que sim, e em que, sabemos também pelo seu depoimento, continua a ter a sua casa em …, onde tem os seus animais e a sua horta, de que gosta muito, e onde vive, numa parte separada da moradia, a sua filha e o seu neto. Depois, sabemos que o réu tem um Mercedes (que aliás vários vizinhos vêm estacionado na praceta), isto é, conduz, e que todos os dias trata dos animais. Então, faz parte da facilidade da vida – em modo, não é preciso complicar, sobretudo quando já estamos quase nos 90 anos – manter as coisas que temos acessíveis, receber o correio na mesma morada, onde estamos/vamos diariamente, manter a mesma morada fiscal, não ter de mudar de hospital público. Se por outro lado, estamos, vamos agora admitir, vamos, todos os dias tratar dos animais à nossa casa, todos os dias temos acesso às nossas coisas pessoais, não precisamos mudar todas as nossas coisas pessoais – menos ainda os retratos da nossa família para decorar a casa da namorada – nem mesmo precisamos mudar todo o enxoval. Se, não duvidando, com o réu, os (20) melhores anos da sua vida foram os que passou com M, o que nos parece claro é que na casa dela estavam essencialmente as coisas dela, nela e com elas o réu estava muito à vontade, mas sendo a casa dela e sendo ela o motivo para ele viver nessa casa, a ida dela para o hospital, e com o nível de incerteza que uma ida ao hospital na fase dos 80 já significa, dirá que ao réu seria muito desagradável ou triste ir dormir à Amadora. É uma explicação possível.
Que pretendemos com toda esta especulação? Demonstrar que não há padrões fixos e que não há neste julgamento, nenhum dado que necessariamente leve à conclusão que o réu não vivia com M, na parte final da vida desta.
Podemos então ir aos vizinhos. Eles dizem-nos que não só viam o carro do réu estacionado na praceta, como viam o réu a subir com compras, como viam o réu a descer as escadas com M, quando ela já não estava muito segura a andar, como viam o réu em casa de M, onde estavam também os filhos de C e os filhos do casal vizinho, ou brincando entre casas, donde, portas abertas. Dizem-nos como quando a porta de M se abria, porque alguém (as filhas) se enganasse a tocar primeiro para eles (vizinhos) viam o réu, em robe (é normal em pessoas com alguma idade e no inverno), e mais dizem-nos que ouviam o barulho de várias pessoas ao jantar, e mais disse-nos T que a parede do seu quarto pegava com a do quarto de M, e que se ouvia (som de mais do que uma pessoa). Já não vamos à roupa no estendal. Vamos ao irmão de C: - sobretudo no Verão, saia para trabalhar às sete, e o réu saía à mesma hora. Ora, convenhamos, se alguém sai de casa de alguém às sete da manhã, com grande probabilidade podemos concluir que lá dormiu, e vamos mais longe, que lá dorme, regularmente. Quem dorme regularmente numa casa, tendo o tribunal admitido que tinha uma relação amorosa com a dona da casa, faz necessariamente parte da sua vida nessa casa, faz a parte mais substancial, mais reservada, mas conexa ao próprio conceito de lar, nessa casa, podendo dizer-se que lá mora, que lá reside, que lá vive. De todo podemos dizer que a impressão errada dos contactos fugidios a partir do domínio público, que é apontada aos vizinhos como motivo para não serem credíveis, se verifique quanto a esta questão simples: - se sai de casa às sete da manhã, isso indica com toda a razoabilidade que lá dormiu. Se foi ouvido na noite anterior ao jantar, ou se foi visto no dia anterior de robe, com toda a probabilidade não foi para … à meia-noite, para voltar à Amadora ao quarto para as sete, e voltar a sair às sete, e isto só para dar aos vizinhos a aparência que vivia em casa de M.
Se a relação amorosa era muito boa – ninguém disse o contrário – muito segura, já com a segurança, sabedoria e ponderação da velhice, faz todo o sentido que a partir do momento em que um dos membros fica doente, fica mais frágil, mais a precisar de apoio, o outro vá viver com ele. Nem outra coisa é de esperar. Nem outra razão, para o réu continuar a viver na sua casa de …, foi atestada, sequer falada ou aventada. E mal fica, com o devido respeito, estar a desmerecer o réu na sua afirmação de não ter arredado pé do hospital, quem, porque necessariamente trabalha, não pode lá estar todo o dia (porque estamos a falar de 55 dias de internamento, não é duma semana).
Estamos assim em crer, na convicção que formámos, que mais espontâneos e credíveis nos pareceram os depoimentos dos vizinhos, do que os do bloco familiar.
Nestes termos, e com o devido respeito, vamos alterar a decisão sobre a matéria de facto, e vejamos agora concretamente os factos não provados. 
a) E passou a residir em permanência na casa de M na Praceta…, a partir de Janeiro de 2017, e ali permaneceu até à morte desta última; Dá-se como provado a parte sublinhada, na qual se acrescentou a referência à data de começo, por resultar da contestação aperfeiçoada. Não se dá como provado que o réu tenha colocado naquela residência as suas coisas pessoais.
b) E e M contribuíam para as despesas comuns do agregado, da casa onde viviam, partilhavam os rendimentos e despesas; Não se altera a resposta não provada a este facto.
c) Tomavam decisões conjuntas;
Com o devido respeito, não conseguimos perceber donde vem a referência a decisões conjuntas, que não foi alegada, nem que tomar decisões conjuntas seja um indício ou requisito ou modo de viver análogo ao dos cônjuges. Mais possivelmente se estará a pensar em refeições conjuntas, em contraponto ao ocasionalmente das refeições conjuntas referidas no facto provado nº 9. Mas como o impugnante não suscitou esta questão, não vamos alterar decisões por refeições, e prova de decisões conjuntas não temos. Não se altera a resposta não provado. 
d) E recebia correspondência na casa de M; Não se altera a resposta, em função das declarações do próprio réu.
e) E declarou a sua residência junto de entidades oficiais na morada referida em a); Não se altera a resposta em função das declarações do próprio réu.
f) Era E quem suportava o custo das viagens de férias. Com o devido respeito, o réu assim afirmou, mas com referência ao período Janeiro de 2017 a Junho de 2019, estando já M com mais problemas de saúde, as viagens de férias seriam muito pouco frequentes. Não se altera a resposta dada.
g) O relacionamento como se de marido e mulher se tratassem era publicamente conhecido, sendo assim tratados por todas as pessoas que com eles se relacionavam. A prova, vizinhos e amigo F, só consegue permite responder provado, sem qualquer dúvida, com a restrição de “todas as pessoas que com eles se relacionavam” aos vizinhos e ao amigo. Como o – um – amigo é um universo relativamente curto, mais curial é restringir apenas aos vizinhos.
Assim, damos como provado que “O relacionamento como se de marido e mulher se tratassem era publicamente conhecido, sendo assim tratados por todos vizinhos que com eles se relacionavam”.
Segunda questão:
Está em causa o (não) reconhecimento da situação de união de facto para efeitos da pretensão que o réu formulou junto da C, nos termos dos artigos 3º, al. e), da Lei 7/2001 de 11 de maio e 6º nº 1 da mesma Lei, que estabelecem que “as pessoas que vivem em união de facto nas condições previstas na presente lei têm direito a: (…) e) Protecção social na eventualidade de morte do beneficiário, por aplicação do regime geral ou de regimes especiais de segurança social e da presente lei; (…)” e “O membro sobrevivo da união de facto beneficia dos direitos previstos nas alíneas e), f) e g) do artigo 3.º, independentemente da necessidade de alimentos”.
Diz-nos o artigo 1º nº 2 da mesma lei que “A união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”.
O conceito de “condições análogas às dos cônjuges” tem de buscar-se nos deveres que resultam do casamento, que definem os comportamentos a adoptar pelos cônjuges, a saber os que constam do artigo 1672.º do Código Civil: deveres de respeito, de fidelidade, de coabitação, de cooperação e de assistência.
Sendo todos eles gradativos e relativos, isto é, admitindo mais ou menos preenchimento, segundo as concepções culturais concretas e segundo a disposição voluntária de cada cônjuge e as suas condições específicas, aquele dos deveres que tem uma raiz mais objectiva, que se traduz em facto objectivo e por isso relativamente mais simples de apurar, é o dever de coabitação, seja basicamente viver na mesma casa, ou, nas expressões tradicionais, viver em comunhão de mesa, leito e habitação. Só que, estas expressões tradicionais não correspondem a exigências necessárias do conceito: num cenário em que ambos os cônjuges trabalham fora de casa, não é suposto que comunguem mesa ao almoço, possivelmente nem ao jantar, dependendo dos horários de trabalho. Comungar leito não é exigência literal, é uma mera alusão à natureza íntima do relacionamento, sobre cujos termos voluntários o legislador nada tem a, nem pode dizer. Donde a raiz: - o facto objectivo é viver na mesma casa. Sucede, nesta situação, que o mais reservado existir, que integra também o período de maior indefesa, é partilhado, ou melhor dizendo, é acompanhado, e em consequência a fragilidade é menor. Duas intimidades frágeis, que se reforçam, pela mera circunstância de estarem juntas.
No caso dos autos, salvo melhor opinião e com o devido respeito, os factos demonstram isto mesmo. Está provada a relação amorosa, estão provadas as idades dos enamorados, está provada a fragilidade adicional resultante da doença da beneficiária da A., e está provado, agora, que o réu passou a viver em casa da beneficiária a partir de janeiro de 2017, justamente amparando-a ainda mais, justamente partilhando ainda mais a vida – não uma expectativa de vida, mas se calhar mais, e com mais valor, a expectativa contrária, que ocorreu em Junho de 2019, ou seja, durando a vivência em comum mais de dois anos. Em suma, estão preenchidos os requisitos da união de facto e os requisitos da atribuição do beneficio pedido pelo réu à autora.
Assim, procede o recurso e improcede a acção.
Tendo ficado vencida, as custas são pela recorrida – artigo 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil – tanto no que toca ao recurso como à acção.
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V. Decisão
Nos termos supra expostos, acordam os juízes que compõem este colectivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso e em consequência em revogar a sentença, que substituem por este acórdão que julga a acção improcedente, condenando a autora em custas da acção e do recurso.
Registe e notifique.

Lisboa, 05.12.2024
Eduardo Petersen Silva
Teresa Soares
Nuno Gonçalves

[1] Beneficia do relatório da sentença de primeira instância.