Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1598/2005-4
Relator: RAMALHO PINTO
Descritores: IMPUGNAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
QUALIFICAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/02/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I- Na impugnação da matéria de facto, se a parte quiser que sejam reapreciados, pelo Tribunal da Relação, os depoimentos gravados, tem de indicar nas conclusões da alegação de recurso os pontos concretos da matéria de facto que pretende ver modificados e os concretos meios de prova que, no seu entender, levam a decisão diversa, não sendo suficiente a simples remessa para a alegação.
II- Faltando tal indicação, não há lugar ao convite ao recorrente para reformular a sua impugnação da matéria de facto, impondo-se a rejeição do recurso relativo à decisão de facto.
III- Os contratos de formação profissional ou de estágio não geram relações de trabalho subordinado, sendo que tais acções de formação implicam, necessariamente, que sejam dadas ordens ao estagiário sobre as tarefas da sua formação.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

(A) veio instaurar, no 3º Juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa, a presente acção emergente de contrato de trabalho, com processo comum, contra RÁDIO E TELEVISÃO DE PORTUGAL, SGPS, SA, pedindo que a Ré seja condenada a:
1. Ver declarada a ilicitude do despedimento do Autor, por inexistência de justa causa e por não ser precedido de processo disciplinar;
2. A pagar ao Autor a quantia de € 9.158,79, a título de créditos salariais, acrescidos dos juros vencidos que, à data da propositura da acção, liquida em € 433,60, totalizando a quantia de € 9.592,39;
3. A pagar ao Autor, a quantia de € 963,86 correspondente a 30 dias de retribuição antes da propositura da acção;
4. No pagamento do montante das retribuições desde a propositura da acção até ao trânsito em julgado da decisão do Tribunal;
5. A reintegrar o Autor ou, caso este não opte pela reintegração, a indemnizá-lo na quantia de € 11.566,32, conforme estipulado no AE;
6. Nos juros vincendos desde a citação até integral pagamento.
Para fundamentar a sua pretensão, alegou, em síntese, que foi admitido para trabalhar sob a autoridade, direcção e fiscalização da Ré em 07/01/2002, para o exercício das funções inerentes à actividade de jornalista profissional com a categoria de “jornalista estagiário”. Embora a Ré lhe tenha apresentado, para que o Autor assinasse, no início da prestação de trabalho, um documento designado “Acordo para a Frequência de Estágio de Formação”, e mais tarde lhe tenha apresentado outro documento designado “Aditamento a Acordo para a Frequência de Estágio de Formação”, o certo é que durante a prestação de trabalho o Autor nunca teve qualquer formação profissional, não frequentou quaisquer aulas de estágio ou formação, nem recebeu qualquer quantia a título de bolsa de formação. Tais documentos tiveram como objectivo o encobrimento de um verdadeiro contrato de trabalho. Assim, quando a Ré comunicou ao Autor que estava dispensado de lhe prestar serviço a partir de 04/01/2003, procedeu a um despedimento ilícito. Acresce que a Ré não concedeu ao Autor a totalidade das férias a que tinha direito, não lhe pagou subsídio de férias nem de Natal, não lhe pagou subsídio de horário irregular, subsídio de transporte, subsídio de refeição e compensação pela prestação de trabalho nocturno.
Regularmente citada, a Ré apresentou contestação, onde, também em síntese, refere que entre o Autor e a Ré não se estabeleceu uma relação de trabalho subordinado, mas foi tão só celebrado um acordo para a frequência de um estágio de formação em Jornalismo, antecedido de um acordo de formação, estágio esse que efectivamente se realizou.
Conclui pela improcedência da acção.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, que julgou a acção improcedente, absolvendo a Ré do pedido.
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Inconformado com a sentença, o Autor veio interpor recurso, impugnando a matéria de facto e formulando as seguintes conclusões:

(...)

Foram colhidos os vistos legais.
x

Definindo-se o âmbito do recurso pelas suas conclusões (artºs 684°, n°3, e 690°, n° 1, do CPC), temos como questões em discussão:
a) -a impugnação da matéria de facto;
b) – saber se a relação jurídica existente entre as partes se pode qualificar como contrato de trabalho.
x
Na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. Em 26.3.2001 o Departamento de Recursos Humanos da R. deu início a um processo de recrutamento de estagiários em Jornalismo para a Direcção de Informação da RTP, nos termos do Despacho Normativo interno constante a fls. 90 a 93 destes autos (doc. nº 1 junto com a contestação).
2. O processo de recrutamento iniciou-se com a análise das candidaturas apresentadas na sequência da emissão de um anúncio nos jornais Expresso, Diário de Notícias e Público.
3. Nos termos desse anúncio, de que se encontra uma reprodução a fls. 34 destes autos (doc. 15 junto com a petição inicial), a RTP, que se apresentava como uma “empresa de comunicação social / televisão” declarava que “admite estagiários em jornalismo” e ainda que “pretende seleccionar estagiários”.
4. O A. respondeu ao aludido anúncio, tendo entregue à RTP o seu curriculum vitae, constante a fls. 222 dos autos.
5. O A. efectuou estágio de acesso obrigatório à profissão de jornalista no Canal de Notícias de Lisboa, em 1999/2000, e tornou-se titular da carteira profissional de jornalista, com o nº 6629, em 09.8.2000.
6. O A., após ter realizado provas escritas de conhecimentos em línguas e de cultura geral, provas práticas de capacidade oral e de improvisação, provas de avaliação psicológica e uma entrevista final, foi aprovado, juntamente com mais 33 candidatos, para efectuar um Curso de Formação.
7. Assim, em 17.9.2001 o A. e a R. subscreveram o “Acordo para frequência de curso de formação” constante a fls. 100 a 103 destes autos, o qual contém quinze cláusulas, cujo teor aqui se dá por reproduzido, e de entre as quais se destacam as seguintes:
1ª: “A RTP faculta ao segundo outorgante, em Lisboa, e no seu Centro de Desenvolvimento e Formação, a frequência de um Curso de Formação Inicial em Jornalismo Televisivo, o qual faz parte integrante do próprio processo de selecção”;
2ª: “O curso de formação, com início em 17.09.01, terá a duração de 10 semanas, prorrogáveis por períodos sucessivos de uma semana, no caso do Júri o considerar necessário, e será seguido de um período de estágio remunerado de nove meses”;
4ª: “Durante o funcionamento do curso de formação e do estágio, o segundo outorgante obriga-se a frequentar as aulas respectivas e a cumprir os horários de estágio, de acordo com o calendário e programa estabelecidos”;
6ª: “O bom aproveitamento final do curso de formação por parte do segundo outorgante não obriga a RTP a proceder à sua admissão, pois esta dependerá, sempre e exclusivamente, da necessidade e interesse da empresa e de expressa comunicação ao segundo outorgante após a conclusão do estágio”;
7ª: “Findo o estágio, o segundo outorgante compromete-se a celebrar com a RTP, um contrato de trabalho a termo certo, se a RTP, no prazo de 60 dias após a conclusão do estágio, para tanto, e por carta registada com aviso de recepção, a enviar para a morada constante do processo de selecção, o vier a solicitar”.
8. Na sequência da aprovação do A. e da celebração do acordo de formação, o A. e as restantes pessoas seleccionadas frequentaram, de 17.9.2001 a 23.11.2001, um Curso de Formação no Centro de Desenvolvimento e Formação da RTP, no decurso do qual receberam aulas de cariz teórico e de cariz prático, quer no Centro de Desenvolvimento e Formação da R., quer noutras instalações da empresa, quer mesmo no exterior.
9. No final do curso de formação o A. foi considerado apto.
10. Em 07.01.2002 o A. e a R. subscreveram o “acordo para a frequência de estágio de formação” constante a fls. 28 a 31 (doc. nº 13 junto com a p.i.), o qual contém onze cláusulas, de entre as quais se destacam as seguintes:
1ª: “A RTP faculta ao segundo outorgante a frequência de um Estágio em Jornalismo, em Lisboa, o qual será efectivado através da Direcção de Recursos Humanos e ocorrerá na Direcção Geral de Antena.”
2ª: “Este estágio profissional terá a duração de 9 meses, com início em 07.01.02 e termo em 04.10.02. A RTP reserva-se a faculdade de, unilateralmente e em qualquer altura, suspender ou cancelar o funcionamento do estágio ou de excluir o segundo outorgante da sua frequência”;
3ª:
1. No pressuposto da verificação do estágio pelo período integral, será atribuída pela RTP ao segundo outorgante uma bolsa de estágio no valor total de € 6 015,50.
2. A bolsa será paga através de nove prestações mensais no valor de € 668,39. A RTP pagará ainda um subsídio de alimentação e um subsídio de transporte nos mesmos moldes em que o são os seus empregados.
4ª: “O estágio será realizado em função da competência do segundo outorgante, o qual será objecto de avaliação selectiva no final do mesmo.
5ª: “O segundo outorgante obriga-se a frequentar as aulas do estágio, bem como a cumprir os respectivos horários, de acordo com o calendário e programa estabelecidos.”
6ª: “Pelo presente Acordo não se estabelece qualquer vínculo jurídico laboral, nem tão pouco o bom aproveitamento final do estágio por parte do segundo outorgante lhe confere quaisquer direitos a ser admitido como trabalhador da RTP.”
7ª: “Findo o estágio, e se a RTP assim o pretender, o segundo outorgante compromete-se a celebrar com a RTP ou com a empresa que esta venha a indicar um contrato de trabalho a termo certo, por um período mínimo de 6 meses, para o exercício da categoria de Jornalista-Estagiário”.

1. “Em caso de incumprimento dos compromissos constantes da cláusula anterior, o segundo outorgante obriga-se a indemnizar a RTP pelo valor de todos os encargos do estágio, incluindo a bolsa que lhe foi atribuída durante o mesmo, na parte proporcional ao incumprimento verificado”.
11. No período de 07.01.2002 a 31.7.2002 o A. exerceu funções no programa designado “Regiões”, sob a coordenação do Dr. (H).
12. Nesse âmbito, o A. efectuou reportagens sobre vários temas de interesse local e nacional, com deslocações ao terreno, onde fazia pesquisa e recolha de dados, dados esses que depois eram supervisionados pelo seu coordenador.
13. O A. realizou ainda, nesse período, reportagens em directo para o programa “Regiões”.
14. Durante o período referido em 11 o A. prestou a sua actividade de segunda a sexta-feira, oito horas por dia, com descanso ao sábado e no domingo.
15. Durante o mês de Agosto de 2002 o programa “Regiões” não foi emitido, tendo o Dr. (H) dito ao A. para ir de “férias” durante esse período.
16. O A. esteve inactivo durante os primeiros 15 dias de Agosto.
17. Durante a segunda quinzena de Agosto de 2002 e até 01.10.2002, por determinação do Dr. (J), então sub-director de informação da RTP e “orientador de estágio”, o A. passou para a “Editoria de Sociedade”, onde, sob a orientação e coordenação da Dr.ª (G), efectuou trabalho de pesquisa, recolha de dados e reportagem, para serem divulgados pelo “Telejornal”, “Jornal 2” e “24 horas”.
18. Durante o período referido em 17 o A. prestou a sua actividade de segunda a domingo, com folgas na segunda e terça-feira seguintes e depois de quarta a sexta, com descanso no sábado e domingo.
19. Em 02.10.2002 o A. e a R. subscreveram o “aditamento a acordo para a frequência de estágio de formação” constante a fls. 32 e 33 dos autos (doc. 14 junto com a p.i.), nos termos do qual declararam que era prorrogada “a duração do estágio profissional a decorrer ao abrigo do acordo celebrado em 07.01.2002, o qual terá o seu termo em 04.01.2003”.
20. Na ocasião do referido aditamento a R. invocou, como motivo para a prorrogação do “estágio”, o facto de os “estágios” se terem desenvolvido pelos meses em que mais se concentra o período de férias (Julho, Agosto e Setembro), o que não teria possibilitado o acompanhamento mais adequado dos “estagiários”.
21. De 02.10.2002 a 01.11.2002 o A. efectuou trabalho de reportagem, através de pesquisa, recolha de notícias, opiniões para a chamada “Editoria de Economia”, que era coordenada pela Dr.ª (M), tendo muitos dos seus trabalhos passado no serviço informativo, “Telejornal”, “Jornal 2” e “24 horas”.
22. De 02.11.2002 a 04.01.2003 o A. integrou a “equipa de economia” do programa “Bom Dia Portugal”, sob a coordenação e orientação do Dr. (L).
23. O A. prestou a sua actividade para a R. ainda no seguinte horário:
Em 03.6.2002, das 18h à 01h, e em 20.7.2002, das 19h às 04h, para o programa “Regiões”;
De 02.9.2002 a 08.9.2002, de 16.9.2002 a 22.9.2002 e de 21.10.2002 a 27.10.2002, das 17h às 02h, no programa “Jornal 2”, sob a orientação do Dr. (L).
24. Durante o período de duração do “estágio” a R. pagou ao A., mensalmente, as seguintes quantias:
2002
Janeiro - € 633,23
Fevereiro - € 900,84
Março - € 818,48
Abril - € 837,10
Maio - € 868,98
Junho - € 825,35
Julho - € 847,86
Agosto - € 818,48
Setembro - € 824,35
Outubro - € 836,10
Novembro - € 818,48
Dezembro - € 794,97
2003
Janeiro - € 128,68.
25. Os pagamentos dessas quantias foram titulados através da emissão, pela R., dos recibos constantes a fls. 16 e seguintes dos autos (documentos 1 a 12 juntos com a p.i.), referentes a “Estágio Jornalista”, sendo os abonos descritos como “Estag./Form.”, sem discriminação de verbas, sobre as quais a R. fez incidir, na totalidade, descontos para o I.R.S., na modalidade de “trabalho dependente”.
26. Aquando da celebração do acordo referido em 10 foi dito ao A. e aos outros “estagiários” que durante o “estágio” seriam objecto de avaliação contínua.
27. Durante o “estágio” o A. foi avaliado pelos supra referidos (G), (H), (C), (M),(L) e (J), todos jornalistas, de acordo com critérios previamente definidos, nomeadamente, quanto à sua capacidade de apreensão das instruções editoriais, a sua iniciativa e motivação, o conhecimento das funções, a qualidade e quantidade do trabalho útil, a assiduidade e pontualidade, o relacionamento, a auto-avaliação, a telegenia e a capacidade de improviso – tendo elaborado os relatórios de avaliação constantes a fls. 117 a 129 dos autos (documento nº 8 junto com a contestação).
28. A actividade do A. durante o “estágio” foi realizada com recurso aos equipamentos e demais meios pertencentes à R.
29. O A. apresentava-se diariamente nas instalações onde a R. tem a sua sede, na Av. 5 de Outubro, nº 197, em Lisboa.
30. A R. não pagou ao A. qualquer quantia a título de “subsídio de férias” ou de “Natal”, “subsídio de horário irregular”, “compensação pela prestação de trabalho nocturno”.
31. Em 04.01.2003, numa reunião em que estavam presentes o A. e os outros “estagiários”, além de, nomeadamente, o “orientador de estágio” (JAC), foi dito àqueles que o “estágio” não se prolongaria, e que estavam dispensados de comparecer na R.
32. Em 15.01.2003 o júri do “concurso externo para jornalistas-estagiários” classificou o A. e mais 22 “estagiários”, considerando-o “apto” e graduando-o em 16º lugar, com a classificação final de 3,9493 (numa escala de 1 a 5), nos termos da “acta final” constante a fls. 96 a 99 dos autos (parte do documento nº 2, junto com a contestação).
33. A R. não comunicou ao A. os relatórios de avaliação referidos em 27 nem a classificação final referida em 32.
34. Durante o período de 07.01.2002 a 04.01.2003 o A. teve como actividade principal e permanente a que prestou na R., nos termos supra expostos.
35. Nos meses de Janeiro de 2002 a Janeiro de 2003 a R. pagou, àqueles que considerava seus trabalhadores, subsídio de refeição, no valor de € 5,88 por dia de prestação de trabalho e subsídio de transporte, de valor mensal equivalente ao passe social L12.
36. Em 2003 o A. não gozou férias, nem lhe foi paga qualquer quantia a título de retribuição de férias.
37. No cálculo das quantias referidas em 24 a R. levou em consideração o valor do subsídio de transporte e do subsídio de refeição que pagava àqueles que considerava seus trabalhadores.
38. No período de Janeiro de 2002 a Janeiro de 2003 a remuneração paga pela R. àqueles que considerava seus trabalhadores, enquadrados no nível 9, base, era de € 1 133,95.
Nada mais se provou, nomeadamente que:
Durante a frequência do “curso de formação” referido em 8, os formadores sempre disseram ao A. que, finda a mesma, seria assinado com este um “contrato de trabalho a termo certo”;
Após 04.01.2003 o A. auferiu rendimentos de trabalho em actividades iniciadas posteriormente àquela data.
x
O direito:
- a impugnação da matéria de facto:
A recorrente impugnou a decisão proferida sobre a matéria de facto, propugnando, nas conclusões da sua alegação ( e são estas que, como se disse, delimitam o objecto do recurso), a eliminação dos factos nºs 26, 27 e 37, a alteração da redacção dos pontos 28 e 34, e o aditamento de outros, que indica.
Vejamos:
A matéria de facto só pode ser alterada pela Relação nas situações contempladas no nº 1 do artº 712º do C.P.C.
Uma dessas situações, a que releva para o caso, e uma vez que houve gravação da prova, é da al. a), isto é, “se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 690º-A, a decisão com base neles proferida”.
Nos termos do artº 690º-A, nº 1, do C.P.C. quando “se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.”
Por sua vez, no nº 2 de tal artigo estabelece-se:
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento de erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do nº 2 do artº 522-C.
De tais dispositivos resulta, para a parte que impugna a matéria de facto, o cumprimento de diversas regras processuais. Com efeito, todo o processo tem de obedecer a determinadas formalidades que, elas mesmas, não podem deixar de ser consideradas como constituindo factores ou meios de segurança, quer para as partes quer para o próprio Tribunal.
A este respeito é assaz esclarecedora a seguinte passagem do Ac. do Tribunal Constitucional de 14/3/2002, publicado no DR- II Série, de 29/5/2002: “As formalidades processuais ou, se se quiser, os formalismos, os ritualismos, os estabelecimentos de prazos, os requisitos de apresentação das peças processuais e os efeitos cominatórios são, pois, algo de inerente ao próprio processo. Ponto é que a exigência desses formalismos se não antolhe como algo que, mercê da extrema dificuldade que apresenta, vá representar um excesso ou uma intolerável desproporção, que, ao fim e ao resto, apenas serve para acentuadamente dificultar o acesso aos tribunais, assim deixando, na prática, sem conteúdo útil a garantia postulada pelo n°. 1 do art. 20°. da Constituição".
Incumbe, assim, ao recorrente relativamente ao pedido de reapreciação da matéria de facto:
- A necessidade de circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente qual a parcela ou segmento o "ponto" ou "pontos" da matéria de facto da decisão proferida que considera viciada por erro de julgamento.
- O ónus de fundamentar as razões por que discorda do decidido, indicando ou concretizando quais os meios probatórios, constantes de auto, ou de documento incorporado no processo, ou de registo ou gravação nele realizada, que, no entender do recorrente, impõem decisão diversa da tomada pelo tribunal, quanto aos pontos da matéria de facto impugnados.
Face à actual redacção do nº 2 do artº 690º-A, introduzida pelo DL 183/2000, de 10/8, dispensou-se a”transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que (o recorrente) se funda”.
- O ónus de, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no n°. 2 do artigo 522°.-C ", segundo o qual "quando haja lugar a registo áudio (. ..), deve ser assinalado na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento".
A reapreciação da prova é pois meramente auditiva, não abrange sequer todo o depoimento prestado por uma qualquer testemunha, mas apenas o depoimento que incidiu sobre os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, e que este tem de indicar por referência ao assinalado na acta da audiência de julgamento.
Afigura-se, assim, a necessidade da individuação dos factos considerados incorrectamente julgados, e a localização na fita registadora dos depoimentos testemunhais que incidiram sobre tais factos, feita através do documento autêntico que é a acta de julgamento, o que visou, em confronto com o regime anterior, facilitar a tarefa quer do tribunal quer dos próprios intervenientes processuais, que assim mais facilmente descortinam os pontos de divergência sobre a matéria de facto invocados pelo recorrente.
Este é o regime aplicável no tocante à reapreciação da prova.
No caso concreto, e em sede das conclusões do recurso, o recorrente não estruturou desta forma a sua impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Na verdade, nessas conclusões, nem sequer indica quais os concretos meios de prova em que funda a sua impugnação e, muito menos e logicamente, não indica, através da referência ao assinalado na acta, quais as passagens dos depoimentos gravados em que a sua discordância de funda.
Diga-se, à margem, que a junção da transcrição dactilografada dos depoimentos gravados, representa, desde o início de vigência do DL 183/2000, a prática de um acto que a lei não prevê como válido para a reapreciação da matéria de facto.
Aliás, já na alegação de recurso, o apelante, apesar de identificar as testemunhas cujos depoimentos seriam susceptíveis de alterar a decisão de facto, não indica, por referência ao assinalado na acta, as passagens dos depoimentos, nos termos legais.
E, tal como se decidiu no Ac. do STJ de 5/2/2004, disponível em www.dgsi.pt, entendemos que se a parte quiser que sejam reapreciados pelo Tribunal da Relação os depoimentos gravados tem de indicar nas conclusões do recurso os pontos concretos da matéria de facto que pretende ver modificados e os concretos meios de prova que, no seu entender, levam a decisão diversa.- Ac. do STJ de 5/2/2004, in www.dgsi.pt.
Escreveu-se, de relevante e a este propósito, em tal douto aresto:
“O artº 690º do C.P.Civil estabelece a obrigatoriedade de serem elaboradas conclusões das alegações de recurso, sob pena deste não ser conhecido.
Após o estabelecimento da gravação da prova e da consequente possibilidade da matéria de facto poder ser alterada em recurso, foi acrescentado o artº 690º - A, que determinou que, sob pena de rejeição, o recorrente que impugne aquela matéria deverá especificar os pontos concretos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios que levam a decisão diversa da recorrida.
A história do preceito e a sua inserção sistemática levam-nos a concluir que a referida especificação deverá obrigatoriamente constar das conclusões do recurso.
Nem significa tal exigência um excesso de formalismo.
É que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa um julgamento ex novo e global dessa matéria, mas sim a possibilidade do tribunal de 2ª instância fiscalizar os erros concretos do julgamento já realizado. Dupla jurisdição não quer dizer forçosamente repetição. É o que o legislador pretendeu assinalar no preâmbulo do DL 35/95 de 15.02, quando aí consignou, que o duplo grau de jurisdição visava "apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso".
Ora, o exercício desta faculdade fiscalizadora sobre pontos concretos da decisão da matéria de facto só é possível, não com o arrazoado da alegação, mas sim com a rigorosa delimitação desses pontos nas conclusões do recurso, bem como dos meios de prova que lhes respeitam.”
Nem se diga que, em casos como o presente, em que se não verifica a indicação, nas conclusões do recurso, dos concretos meios de prova que servem de base à impugnação da matéria de facto, se impunha o convite ao recorrente para reformular a sua impugnação da matéria de facto.
Voltando a citar o mencionado Acórdão do nosso Supremo Tribunal, não estamos perante um cumprimento, ainda que imperfeito, da lei. O legislador, ao acrescentar, com o artº 690º - A, o elenco dos ónus a cargo do recorrente, não podia deixar de ter presente a solução que determinara para a falta ou a imperfeição das conclusões e que é o convite à sua apresentação ou reformulação - artº 690º, nº 4.
Se nada disse a esse respeito no nº 1 do artº 690º - A, foi porque quis solução diferente.
Idêntico entendimento foi perfilhado no recente Acórdão da Rel. do Porto de 25/1/2005 (www.dgsi.pt), nos seguintes termos:
“Quando as conclusões faltem, sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o n.º 2, o recorrente deve ser convidado a apresentá-las, completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, sob pena de não se conhecer do recurso na parte afectada – v. art. 690º, n.º 4.
Este n.º 4 não tem norma equiparável no âmbito do recurso em que se impugne a decisão sobre a matéria de facto.
Com efeito, o art. 690º-A nada prevê quanto à omissão ou deficiência das conclusões relativas às especificações obrigatórias estipuladas no nºs 1, als. a) e b) e n.º 2.
No Ac. do STJ de 01.10.1998, publicado no BMJ 480º, pág. 348, entendeu-se que deveria ser estendido ao art. 690º-A o disposto no n.º 4 do art. 690º, em homenagem aos princípios gerais da cooperação e da decisão do processo pelo juiz. Esse entendimento é, porém, energicamente recusado pela doutrina mais autorizada.
Assim, Amâncio Ferreira, em “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 3ª edição, pág. 150, anotação 301, critica aberta a solução adoptada nesse acórdão. A principal razão que aponta para a imediata rejeição do recurso é a de que o legislador nada declarou ou previu quanto a essa possibilidade de convite prévio, ao contrário do que sucede nos casos do art. 690º, n.º 4 e 75º-A, n.º 5 da Lei do Tribunal Constitucional. Esta posição é também assumida por Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, 1999, pág. 466, Leal-Henriques, “Recursos em Processo Civil”, 3ª edição, pág. 61, e Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 3º, pág. 53.
Supomos ser esta a melhor interpretação do preceito em causa. A faculdade concedida às partes para impugnarem a matéria de facto constituiu um importante passo no sentido de se tornar efectivo um duplo grau de jurisdição nesse campo. Mas não se deve levar essa possibilidade ao extremo, designadamente quando as partes interessadas na modificação da decisão da matéria de facto negligenciam os requisitos mínimos que a lei impõe para tal desiderato. Como ironicamente refere Amâncio Ferreira, loc. cit., a seguir-se o caminho propugnado nesse acórdão, pouco faltaria para, antes de se julgar deserto o recurso por falta de alegações, se formulasse um convite prévio ao recorrente para que as apresentasse. Por outro lado – e este é o argumento mais decisivo –, se tivesse querido, o legislador teria consagrado norma idêntica à do n.º 4 do art. 690º, porque se presume que ao legislar terá delineado as soluções mais acertadas ao fim em vista, exprimindo o seu pensamento em termos adequados – v. art. 9º do CC.”
Também na situação sobre que se debruça este último aresto, o recorrente não indicou, nas conclusões, os concretos meios probatórios que justificariam - na tese do apelante - decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados.
O que leva o mesmo acórdão a concluir que a inobservância desse ónus, adjectivado de “rigoroso” por Lebre de Freitas, loc. cit., conduz à rejeição do recurso nessa parte.
Assim, face à inobservância, descrita, ao disposto na citada al. b) do nº 1 do artº 690º- A do C.P.C., indicando, nas conclusões da respectiva alegação, os concretos meios de prova em que se funda a impugnação, é de rejeitar o recurso relativo à decisão de facto, o que se decide.
- o contrato de trabalho:
No caso concreto, concluiu-se na sentença que a relação estabelecida entre Autor e Ré não configurava uma relação jurídico-laboral.
E bem, desde já o adiantamos:
O contrato de trabalho está definido no artº 1152º, do Cod. Civil, reproduzido "ipsis verbis" no artº 1º do Dec.- Lei nº 49.408:
"Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta."
Em face da definição legal, e de harmonia com que a doutrina e jurisprudência têm entendido, são dois os elementos constitutivos do contrato de trabalho:
a)- subordinação económica;
b)- subordinação jurídica.
O primeiro elemento traduz-se no facto de o trabalhador receber certa retribuição do dador de trabalho; para que se verifique o segundo é necessário que na prestação da sua actividade o trabalhador esteja sob as ordens, direcção e fiscalização do dador de trabalho.
No contrato de trabalho a prestação de trabalho pelo trabalhador tem sempre como contrapartida o percebimento de uma determinada retribuição que pode ser certa e/ou variável, em dinheiro, em espécie ou mista. Por outro lado, segundo a generalidade da doutrina e da jurisprudência, o que verdadeiramente caracteriza o contrato de trabalho e o distingue de outros, designadamente do de prestação de serviço, é que existe uma subordinação jurídica do trabalhador ao beneficiário da respectiva actividade, subordinação essa traduzida na circunstância de aquele ter de prestar a sua actividade intelectual ou manual, sob a autoridade e direcção deste.
Ora, sendo a subordinação jurídica do trabalhador ao beneficiário da respectiva actividade o aspecto verdadeiramente diferenciador do contrato de trabalho, ao ponto de existir necessariamente naquele, não raro se verificam situações em que se torna difícil a determinação da verificação dessa subordinação do prestador da actividade à pessoa que dela beneficia. É que a subordinação jurídica pode não transparecer em cada momento da prática de certas relações de trabalho.
Na verdade, a subordinação jurídica comporta graus. Ao lado dos casos em que, diariamente, a entidade patronal manifesta a sua posição de supremacia, programando, dirigindo, controlando e fiscalizando a actividade do trabalhador, existem outros em que devido às condições de realização da prestação, o trabalhador goza de uma certa autonomia na execução da sua actividade laborativa, sem que deixe de ocorrer a subordinação jurídica.
A subordinação jurídica existirá, pois, sempre que ocorra a mera possibilidade de ordens e direcção, bem como quando a entidade patronal possa, de algum modo, orientar a actividade laboral em si mesma, ainda que só no tocante ao lugar ou ao momento da sua prestação.
É por isso que quer a doutrina, quer a jurisprudência vêm recomendando que em caso de dificuldade de determinação da natureza de um contrato, em termos de se saber se estaremos perante um contrato de trabalho ou perante um contrato de prestação de serviço, se recorra aos chamados índices de subordinação tais como, entre outros, a vinculação do prestador a um horário de trabalho determinado pelo beneficiário da prestação da actividade; a execução da actividade em instalações do beneficiário da prestação da mesma; ser este o proprietário dos meios, instrumentos e equipamentos necessários à prestação da actividade; a existência de controlo sobre o modo de prestação da actividade; a obediência a ordens e a sujeição à disciplina do beneficiário da prestação da actividade; a inexistência de assalariados por conta do prestador da actividade bem como a ausência de ajuda de familiares seus ou de entreajuda de colegas de profissão; a retribuição em função do tempo e da exclusividade da prestação da actividade para o beneficiário dessa prestção- cfr. Bernardo Lobo Xavier, Curso de Direito do Trabalho, 302-303, e, entre outros, os Ac. do STJ de 2/10/91, 17/2/94 e de 27/9/2000, respectivamente em Ac. Dout. nº 368-369, pag. 1023, e www.dgsi.pt.
Por outro lado, e como se decidiu no Ac. do STJ de 7/11/2001 (www.dgsi.pt), “a prova indicaria da subordinação terá de ser apreciada no seu todo e não reportada a factos isolados”.
Ou seja, e no dizer do Ac. da Rel. de Coimbra de 23/2/95, Col. Jur. XX, 1, 78, sendo a subordinação jurídica um conceito integrado por um conjunto de características reveladoras dos poderes de autoridade e direcção atribuídos à entidade patronal, a sua determinação há-de fazer-se através de uma maior ou menor correspondência entre aquelas características e as da situação concreta.
Não esquecendo, todavia, que o valor de qualquer desses índices de subordinação não pode deixar de considerar-se relativo, quer pela insuficiência de cada um deles, isoladamente considerado, quer porque podem assumir significado muito diverso de caso para caso.
Assim, para a determinação da subordinação jurídica- continua o mesmo aresto- deve ter-se como decisivo um juízo de apreciação global sobre os elementos indiciários fornecidos pela sua situação concreta em correspondência com aquelas características do conceito-tipo.
No caso concreto, temos que, após a Ré ter efectuado um processo de recrutamento de estagiários em jornalismo, o A. foi aprovado, juntamente com mais 33 candidatos, para efectuar um “curso de formação”. As condições e termos da frequência desse curso foram reduzidas a escrito, mediante a subscrição, por ambas as partes, do “acordo para frequência de curso de formação”, constante de fls. 100 ss, e referido no nº 7 da matéria de facto.
Analisando tal documento, salta à evidência que, com o mesmo, se não visava que o Autor passasse a exercer qualquer actividade sob as ordens, direcção e fiscalização da Ré, mas sim a frequência de um Curso de Formação Inicial em Jornalismo Televisivo, o qual faz parte integrante do próprio processo de selecção”- clª 1ª. A essa frequência seguir-se-ia um estágio remunerado- clª 2ª; e a clª 7ª, ao referir que o “ bom aproveitamento final do curso de formação por parte do segundo outorgante não obriga a RTP a proceder à sua admissão, pois esta dependerá, sempre e exclusivamente, da necessidade e interesse da empresa”, é inequívoca no sentido de se perceber que a admissão, como trabalhador subordinado, do Autor ao serviço da Ré apenas ocorreria se esta assim o entendesse e dependendo das necessidades da mesma.
É óbvio que o objectivo da Ré era formar profissionais que, posteriormente, se viessem a revelar necessários para o desenvolvimento da sua actividade. O que não ficou provado foi que, como pretende o recorrente, essa formação inicial se destinasse, desde logo, a satisfazer necessidades actuais da Ré.
Tendo o Autor sido considerado apto no final desse curso, foi subscrito entre as partes o “acordo para a frequência de estágio de formação” constante de referido nº 10 da matéria de facto. Também das cláusulas deste documento também não resulta que houve, por parte dos respectivos outorgantes, o propósito de, através do mesmo, celebrar um contrato de trabalho. Como se diz na sentença impugnada, nesse documento ficou consignado que a Ré facultaria ao Autor a frequência de um estágio em jornalismo, com a duração de 9 meses, o qual seria remunerado através do pagamento de uma bolsa de estágio, acrescida de subsídio de alimentação e subsídio de transporte. O Autor seria objecto de avaliação selectiva no final do estágio e obrigava-se a frequentar as aulas do estágio, bem como a cumprir os respectivos horários. No referido documento ficou a constar, expressamente, que “pelo presente acordo não se estabelece qualquer vínculo jurídico laboral, nem tão pouco o bom aproveitamento final do estágio por parte do segundo outorgante lhe confere quaisquer direitos a ser admitido como trabalhador da RTP” (cláusula 6ª).
Ou seja, estamos perante uma situação de facto perfeitamente enquadrável no regime jurídico da aprendizagem, tal como o mesmo se encontra regulado pelo D.L. nº 205/96, de 25/10, e com definição consgrada no seu artº 16º, nº 1:
“O contrato de aprendizagem é aquele que é celebrado entre um formando e o seu representante legal e a entidade formadora, em que esta se obriga a ministrar-lhe formação em regime de aprendizagem e aquele se obriga a aceitar essa formação e a executar todas as actividades a ela inerentes, no quadro dos direitos e deveres que lhe são cometidos por força da legislação e outra regulamentação aplicáveis a este sistema”
Por outro lado, estabelece-se, sem qualquer margem para dúvidas, no nº 3 de tal artigo, que o “contrato de aprendizagem não gera nem titula relações de trabalho subordinado”.
Verifica-se que, de acordo com o artº 3º do mesmo diploma, a formação envolve vários componentes – formação sócio-cultural, científico-tecnológica e prática, referindo-se, no nº 1 do artº 2º que por formação em situação de trabalho se entende a realização de actividades profissionais pelo formando, enquadradas em itinerários de formação estruturados e sob a orientação de um tutor, inseridas em processos reais de trabalho e realizadas junto de pessoas singulares ou colectivas que desenvolvem uma actividade de produção de bens ou de prestação de serviços. Daí que, e como muito bem conclui a sentença sob recurso, a circunstância de se não ter provado que o Autor, durante o estágio de jornalismo, não ter frequentado “aulas”, entendidas estas como as ministradas, de forma teórica ou prática, num determinado espaço físico, aparece como irrelevante, dado que, atenta a própria natureza da actividade de jornalista, o Autor colaborou em diversos programas de carácter informativo, efectuando reportagens, incluindo directos, com recolha de dados, que eram posteriormente apresentados em conhecidos programas televisivos. Ou seja, actividades próprias e necessárias à formação em jornalismo, compreendendo-se muito mal que esse tipo de formação se limitasse à tradicional “sala de aula”.
Assim sendo, e porque perfeitamente enquadrável nesse regime legal de aprendizagem, não se vê como pretende legitimamente o Autor que se considere que, em tal período de estágio, esteve ligado à Ré por contrato de trabalho. É perfeitamente compreensível que a Ré procurasse captar talentos destinados a integrar, no futuro, no quadro da empresa, para isso lhe dando a correspondente formação. E expressamente salvaguardou, em ambos os acordos escritos, a possibilidade- não a obrigação- de vir a estabelecer um contrato de trabalho com cada um dos formandos / estagiários. A redacção das correspondentes cláusulas não permite qualquer dúvida a esse respeito, e nesse sentido as interpretou o Autor, como o faria o homem médio. O Autor conhecia, ou pelo menos tinha obrigação de conhecer, a vontade real da declarante – Ré – artº 236º, nº 2, do Cod. Civil.
Se bem que o nomen juris atribuídos pelas partes à situação não vincule o tribunal, não é curial admitir que as partes, designadamente o Autor, se tenham equivocado quanto ao tipo de contrato por elas pretendido. Tendo subscrito os acordos em questão, em que se não faz referência ao desenvolvimento de uma típica relação jurídico-laboral, mas sim a uma formação e a um estágio, e expressamente se salvaguarda a liberdade contratual da Ré, dando-lhe a faculdade, que só dela dependia, de celebrar com o Autor um posterior contrato de trabalho, é porque essa foi naturalmente a sua vontade, havendo que respeitá-la. O Autor não alegou qualquer facto susceptível de pôr em causa a sua liberdade contratual e o nível cultural inerente à circunstância de ser titular da carteira profissional de jornalista faz supor que quis realmente, e tão só, frequentar essa formação e esse estágio.
Ainda que não decisiva, a denominação atribuída pelas partes ao vínculo jurídico nem sempre é um dado irrelevante, designadamente quando os contratantes são pessoas esclarecidas e apresentam um nível cultural que lhe permita ter uma percepção, ainda que mínima, da natureza desse vínculo- cfr. Ac. do STJ de 16/05/2000, disponível em www.dgsi.pt . E, no caso concreto, o Autor, para obter a sua carteira, obteve uma formação académica acima da média e a Ré é uma empresa de comunicação de grande dimensão e com uma antiguidade assinalável: ambas estavam, à partida, em condições, superiores ao do cidadão médio, de percepcionar, com suficiente clareza, as implicações de natureza jurídica da relação que estabeleceram. E o Autor não provou que alguma vez se tivesse oposto junto da Ré relativamente à denominação ou às cláusulas dos documentos que assinou, e onde se não faz qualquer referência à sujeição ao poder de direcção e fiscalização da Ré.
Também se não vislumbra, pelo exposto, em que é que a Ré não obedeceu aos ditames da boa-fé.
E, como se disse, é decisiva a existência da descrita subordinação jurídica, a qual, no caso concreto, se não encontra demonstrada, antes é, e desde logo por imposição legal- artº 16º, nº 3, do DL 205/96, afastada pela natureza e características do regime legal da aprendizagem.
Conclusão que não é beliscada pelo facto de no AE da Ré, publicado no BTE 20/92, se prever que a carreira profissional de Jornalista possa comportar um período de aprendizagem, tendo o candidato a designação de “jornalista estagiário”. Como, mais uma vez ponderada e acertadamente se diz na sentença, “independentemente da circunstância de o A. não alegar qualquer facto de que resulte que o AE lhe era aplicável, nomeadamente por estar filiado nalgum dos sindicatos outorgantes (art.º 7º do Dec.-Lei nº 519-C1/79, de 29.12), a verdade é que assim como a RTP pode contratar para os seus quadros um Jornalista sem o sujeitar a qualquer fase de aprendizagem (por este ser, por exemplo, um profissional já com uma longa carreira, que reúne todos os atributos necessários à imediata e plena prestação da actividade pretendida pela R.), também pode, em vez de admitir um “jornalista estagiário”, que irá fazer a sua aprendizagem ao abrigo de um contrato de trabalho, optar por vincular-se a dar formação profissional a um jornalista (titular de carteira profissional) ou a um candidato a jornalista (não titular de carteira profissional), fora dos quadros de uma relação jurídica laboral. Foi esta última situação a que ocorreu no caso a que se reportam estes autos”. A redacção encontrada pelo Sr. Juiz para abordar este particular aspecto tem uma dupla virtualidade: é incisiva e exaustiva, tornando desnecessário acrescentar o que quer que seja; e não permite segundas interpretações, designadamente a pretendida pelo recorrente na conclusão 21ª da sua alegação.
Também dentro do contexto e condições específicas da relação jurídica estabelecida entre as partes, são perfeitamente irrelevantes as circunstâncias que o recorrente pretende erigir como índices da existência de contrato de trabalho- a saber, vinculação a horário de trabalho; existência de local de trabalho; controle externo do modo da prestação; sujeição a ordens e disciplina da empresa, como qualquer trabalhador; retribuição mensal; pertença dos instrumentos de trabalho ao empregador; actividade exclusiva do Autor; retenção na fonte do IRS.
Como já se disse, é entendimento doutrinal e jurisprudencial pacífico que, não obstante a maior ou menor relevância dos índices da existência do contrato de trabalho, a pedra basilar da qualificação do contrato reside sempre no elemento subordinação jurídica, na sujeição do trabalhador às ordens, direcção e fiscalização do dador de trabalho. Repetindo o que já se disse supra, o valor de qualquer desses índices de subordinação não pode deixar de considerar-se relativo, quer pela insuficiência de cada um deles, isoladamente considerado, quer porque podem assumir significado muito diverso de caso para caso.
No caso concreto, e tendo em consideração tudo quanto se disse acerca da natureza e específico desenvolvimento da relação e acerca da vontade real das partes, desde logo se pode concluir que os mesmos superam, em larga medida, para não dizer que anulam, os aspectos indiciadores que o recorrente invoca:
- vinculação a horário de trabalho e existência de local fixado de trabalho: não se concebe que assim não fosse, já que é absolutamente necessário ao desenvolvimento de uma formação e de um estágio, sujeitos a regras específicas e que não poderiam estar a mercê da vontade do formando no que respeita às horas e aos locais em que pretendesse desenvolver a sua actividade;
- controle externo do modo da prestação e sujeição a ordens e disciplina da empresa, como qualquer trabalhador: se a formação e o estágio eram orientados por profissionais da Ré (autênticos professores), era perfeitamente natural e imposto pelas exigências de formação que tais profissionais dessem ordens aos formandos sobre as tarefas da mesma formação;
- retribuição mensal: o que era pago ao Autor era uma “bolsa de estágio” e não uma retribuição propriamente dita, com o sentido e alcance de uma contrapartida por uma actividade jurídico-laboral. E o facto de lhe serem pagos o subsídio de alimentação e de transporte, que os trabalhadores da Ré recebiam, não tem qualquer significado, no contexto, tanto mais que havia outras parcelas retributivas pagas a esses trabalhadores que o Autor nunca recebeu - férias, subsídio de férias, subsídio de Natal, “subsídio de horário irregular”, “compensação pela prestação de trabalho nocturno”.
- a utilização, pelo Autor, de meios postos à sua disposição pela Ré: bem se compreende, dada a natureza e meios de produção indispensáveis à actividade de formação e estágio, com vista à colaboração em programas televisivos, meios esses que dificilmente seria economicamente justificável que estivessem na posse do Autor.
- actividade exclusiva do Autor: não se descortina, atentos a natureza das actividades de formação, que pudesse ser de outro modo,
- retenção na fonte, para efeitos de IRS, como “trabalhador dependente”: dentro do contexto, tal circunstância é perfeitamente irrelevante, porque praticamente isolada, não tendo a virtualidade de, só por si, alterar a natureza da relação jurídica.
No sentido que os contratos de formação profissional ou de estágio não geram relações de trabalho subordinado se pronunciaram expressamente os Ac. do STJ de 22/11/2000, Col. Jur.- Ac. STJ, Ano 2000, Tomo III, pag. 290 e de 10/3/98, Ac. Dout. 439, 1015 (citados nas contra-alegações), referindo-se, inequivocamente, neste último, que não descaracteriza o contrato de estágio, enquanto tal, o facto de o estagiário estar sujeito às ordens, direcção e fiscalização da entidade formanda ou dos seus representantes, na medida em que tais acções de formação implicam, necessariamente, que sejam dadas ordens ao estagiário sobre as tarefas da sua formação. Mais afirma tal aresto que tais elementos, típicos do contrato de trabalho, têm perfeito cabimento dentro de um contrato de formação profissional e antes se tornam obrigatórios, pois só assim se compreenderá uma eficaz formação, e, por outro lado, que o subsídio ou bolsa de formação não se confunde com o conceito de retribuição.
Também no Ac. do mesmo Supremo Tribunal de 18/3/98, www.dgsi.pt, se diz que “o contrato de estágio profissional não pode ser qualificado como contrato de trabalho ou de aprendizagem nem a bolsa de formação paga ao aprendiz se confunde com o conceito de retribuição”.
Argumenta, por outro lado, o recorrente, que o contrato de estágio seria nulo, por não ter cumprido com as formalidades nele exigidas, nem ficando sujeito à supervisão do IEFP.
Quanto ao primeiro aspecto, para além de tudo quanto se disse, não se vê onde pretende chegar o recorrente, quando afirma, sem concretizar que se “mostra alheada das exigências formais e substantivas previstas no regime jurídico da aprendizagem”. Não se vislumbra quais são essas exigências não respeitadas no caso dos autos; em relação à conclusão 14 do recurso, basta atentar no texto dos contratos para se concluir, sem qualquer dificuldade, que “foi previamente definido o objecto da aprendizagem ou de formação a ministrar pela Ré”, de harmonia com os requisitos do artº 17º do DL 205/96. Mas mesmo que o não fosse, daí não resultava a conversão automática em contrato de trabalho.
No que respeita à supervisão da autoridade competente- o IEFP, valem aqui, por acertadas e perfeitamente adequadas, as considerações, que o recorrente não belisca minimamente, expostas na sentença, citando um Acórdão desta Relação:
“Em parte alguma a lei proíbe a celebração de acordos de estágio fora do controle das autoridades administrativas. Nestes casos, a única consequência para as empresas formadoras é não poderem candidatar-se aos benefícios materiais previstos na lei, para os “estágios oficiais” (cf. art.º 38º do mesmo diploma).
A ser assim, o estágio não conforme ao estatuído no Decreto-Lei nº 205/96, não fica descaracterizado nem se converte em contrato de trabalho.
Seria um absurdo impedir as empresas de, a exclusivas expensas suas, fazerem o que os outros fazem com dinheiros públicos. O interesse público vai precisamente no sentido da validade dos “contratos de estágio profissional”, mesmo que celebrados à margem do controle das autoridades administrativas.
No Decreto-Lei nº 205/96 não existe qualquer disposição que determine que os “contratos de estágio” ou “contratos de formação”, se convertem em “contrato de trabalho” se não forem cumpridas as formalidades nele previstas.
Mas mesmo que se entendesse que o “contrato de estágio profissional” celebrado entre Autor e Réu era nulo, por falta de cumprimento das formalidades legais, jamais ele poderia converter-se em contrato de trabalho válido, atento o disposto no art.º 293º do Código Civil, por falta do pressuposto essencial da vontade da Ré, na medida em que, nada permite supor que esta o tivesse querido, se tivesse previsto a sua invalidade.”
Pelo que improcedem as conclusões do recurso.
x
Decisão:
Nesta conformidade, acorda-se em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.

Lisboa, 2/6/05

Ramalho Pinto
Mateus Cardoso
Guilherme Pires