Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5092/2007-5
Relator: VIEIRA LAMIM
Descritores: CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
TAXA
PROVA PERICIAL
ACUSAÇÃO
REJEIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/03/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – Ao proferir o despacho previsto no art.311, do CPP, deve o juiz limitar-se aos factos descritos na acusação, estando-lhe vedada qualquer valoração da prova, nomeadamente para, com base nessa valoração, alterar aqueles factos e concluir que a conduta imputada ao arguido não constitui crime, rejeitando a acusação com esse fundamento.
II- Estando o arguido acusado de conduzir veículo automóvel na via pública com uma TAS de 1,24g/l, só em audiência pode o tribunal pronunciar-se sobre a fiabilidade do aparelho que, em inquérito, conduziu a tal resultado, não prevendo a lei qualquer margem de erro para os resultados obtidos pelos analisadores quantitativos de avaliação do teor de álcool no sangue, que permita ao juiz, naquele despacho, concluir por uma TAS diversa da imputada pelo Ministério Público na acusação.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:

Iº 1. No Processo Abreviado nº523/06.8GBMFR, pelo Ministério Público foi deduzida acusação contra (H), imputando a este os factos descritos a fls.16/17 e a prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p.p., pelo art.292, nº1, Código Penal.
Remetidos os autos ao 2º Juízo do Tribunal Judicial de Mafra, para julgamento, pelo Mmo. Juiz foi proferido despacho de rejeição da acusação, com o seguinte teor:

...
O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido (H), imputando-lhe a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292°, nº1, do Cód. Penal, por, no dia 15.08.2006, pelas 19H04, na Avenida 09 de Julho, na Venda do Pinheiro, conduzir o veículo ligeiro de passageiros, matrícula 46-...-JR, tendo acusado uma TAS de 1,24 g/l, nos moldes melhor enunciados a fls.16/17, remetendo para o talão do alcoolímetro de fls.4.
Segundo o art.5°, nº5, do DL 44/2005, de 23.02 (que introduziu alterações ao Código da Estrada), compete à Direcção-Geral de Viação aprovar, para uso na fiscalização do trânsito, os aparelhos ou instrumentos que registem os elementos de prova previstos no nº4, do art. 170, do Cód. da Estrada, onde se incluem os alcoolímetros, aprovação essa que deve ser precedida de controlo metrológico, a cargo do Instituto Português de Qualidade.
As normas legais e regulamentares aplicáveis ao referido controlo admitem a possibilidade de erro, estando os limites máximos desse erro (para mais ou para menos do valor registado) estabelecidos em recomendações da Organização Internacional de Metrologia Legal e na Portaria 748/94, de 13.08, que aprovou o Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros, consignando que, nos alcoolímetros os erros máximos  admissíveis são os definidos na norma NFX20- 701, sendo, segundo esta, de mais ou menos 7,5%, quando está em causa uma TAS apurada de mais de 0,92 g/l e inferior a 2,30 g/l.
Neste conspecto, aliás, fez a Direcção-Geral de Viação por circular e transmitir instruções no sentido de, na fiscalização da condução sob a influência do álcool, o valor relevante, para efeitos da qualificação do acto como crime ou contra-ordenação seja o que resultar da TAS registada deduzida do valor do erro máximo admissível, segundo as normas regulamentares (oficio circular esse que foi dado a conhecer aos magistrados judiciais, designadamente, via Conselho Superior da Magistratura).
O exposto implica que a TAS relevante seja a registada pelo alcoolímetro deduzido o valor da margem de erro máximo possível, no caso 1,15 g/l (ou seja, a TAS registada de 1,24 g/l deduzida a margem de mais ou menos 7,5%).
Estabelece o art.292°, nº1, do Cód. Penal, que «Quem, pelo menos com negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal».
Está em causa a protecção do bem jurídico segurança da circulação rodoviária, ainda que «indirectamente se protejam outros bens jurídicos que se prendem com a segurança das pessoas face ao trânsito de veículos, como a vida ou a integridade fisica» (Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Vol.II, pág. 1093, Coimbra Editora, 1999), constituindo o tipo objectivo deste crime a condução de veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igualou superior a 1,2 g/l.
Ora, de harmonia com os factos plasmados na acusação (corroborados pelo teor do talão de fls. 4), o arguido conduzia o identificado veículo com uma taxa de álcool no sangue registada de 1,24 g/l, a que corresponde a TAS de 1,15 g/l, deduzida a margem máxima de erro possível (conforme decorre de normas regulamentares de conhecimento oficioso que se impõe) ou seja, com uma taxa inferior a 1,2 g/l, não se mostrando, desde logo, preenchido o elemento objectivo do tipo de crime imputado.
Resulta do exposto que os factos imputados ao arguido não constituem crime (mas tão somente contra-ordenação), sendo de considerar a acusação manifestamente infundada e proceder à sua rejeição, de harmonia com o disposto no art. 311°, nºs2, aI. a) e 3, aI.d), do Cód. de Proc. Penal.
Assim sendo, por tudo o exposto e de harmonia com as normas legais citadas, rejeito a acusação deduzida pelo Ministério Público.
....”.

2. Desta decisão recorre o Ministério Público, motivando o recurso com as seguintes conclusões:
2.1 Os factos carreados para os autos, nesta fase, conjugados com as regras da experiência comum e face ao disposto no art° 283° n° 2 do Código de Processo Penal, indiciam, suficientemente, com probabilidade e segurança suficientes, a prática pelo arguido (H), com dolo directo, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos arts.292° e 69° n° 1 aI. a) do Cód. Penal.
2.2 Na verdade, pela análise dos elementos constantes dos autos vislumbra-se de forma clara e cabal a existência de indícios de que o arguido é autor material dos factos e do crime imputado na acusação deduzida pelo Ministério Publico
2.3 O arguido, no dia 15 de Agosto de 2006, cerca das 19 horas e 04 minutos, conduzia o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de matrícula 46-...-JR, na Avª 9 de Julho, Venda do Pinheiro, área da comarca de Mafra, e, e, fazia-o com uma TAS de 1,24 g/I.
2.4 Todo o procedimento em causa atinente à análise de pesquisa de álcool no sangue, nos presentes autos, foi realizado com observância do formalismo legal e por respeito designadamente ao disposto no art° 153°do C.Estrada.
2.5 O arguido confrontado com o resultado (TAS) do exame por si efectuado conformou­-se com o mesmo, não solicitando a realização de um novo exame, seja por expiração de ar, seja sanguíneo.
2.6 O aparelho em causa nos autos- "Drager 7110 MK 111" na qual o arguido realizou o exame de pesquisa de álcool, foi aprovado pelo I.Q.P. e por despacho 001/DGV/ALC98, não tendo a sua fiabilidade sido suscitada.
2.7 Actualmente, os instrumentos normativos que regulam a detecção e quantificação das taxas de álcool que os condutores apresentam são o Decreto-Regulamentar n.o 24/98, de 30/10.e a Portaria n.o 1006/98, de 30/11.
2.8 A Portaria nº748/94, de 13/8, que visava regulamentar o Decreto-Regulamentar nº12/90, de 14/5, caducou por falta de objecto, face à expressa revogação do Decreto­ Regulamentar nº12/90 pelo Decreto-Regulamentar nº 24/98.
2.9 Em nenhum dos diplomas indicados na conclusão referida em VII se encontram, referências a possíveis margens de erro dos alcoolímetros, o que se entende uma vez que os aparelhos agora utilizados pelas forças policiais têm margens de erro tão pequenas que são desprezíveis.
2.10 Consequentemente, não está regulamentada a taxa de erro máximo admissível a aplicar nos exames de detecção de álcool no sangue através de alcoolímetros quantitativos
2.11 Não estando legalmente estabelecida qualquer margem de erro prevista para aferir os resultados obtidos pelos analisadores quantitativos de avaliação do teor de álcool, no sangue, se o arguido, submetido a teste de pesquisa de álcool no sangue através de um analisador quantitativo, acusou uma TAS de 1,24 g/I, conformando-se com o resultado, é esta TAS que deve ser considerada.
2.12 Não havendo lugar à realização de qualquer dedução de margem máxima de erro possível à TAS registada.
2.13 A Acusação deduzida pelo Ministério Publico não padece de qualquer dos aludidos vícios previstos no art.311°, do C.P.P., mormente, não é manifestamente infundada, pelo que deve ser recebida e designada data para realização da audiência de discussão e julgamento
2.14 Ao rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido (H) pelos factos nela constantes, o douto despacho recorrido violou o disposto nos artes nos artigos 292.°, nº1 e 69°, nº1, alínea a), ambos do CP.

3. Admitido o recurso, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo, não foi apresentada resposta.

4. Neste Tribunal, a Exma. Srª. Procuradora Geral Adjunta, em douto parecer, pronunciou-se pelo provimento do recurso.
5. Colhidos os vistos legais, procedeu-se a conferência.
6. O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas conclusões, reconduz-se à apreciação da verificação de fundamento para rejeição da acusação, por manifestamente infundada.
*     *     *
IIº 1. Proferida acusação, em processo abreviado e recebidos os autos para julgamento, o juiz conhece das questões a que se refere o art.311, nº1, do Código de Processo Penal[1] e designa dia para audiência, sendo aplicável o disposto no art.311, nºs2 e 3, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido debate instrutório (art.391- D).
Assim, o juiz do processo despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos dos artigos 284.º, n.º 1, e 285.º, n.º 3, respectivamente (art. 311.º, n.º 2) .
Segundo o n.º 3 da mesma norma processual penal, «a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime».
No caso, o Mmo. Juiz rejeitou a acusação invocando esta última alínea “...os factos imputados ao arguido não constituem crime (mas tão somente contra-ordenação)...”.
Contudo, para chegar a tal conclusão, o Mmo. Juiz não se limitou a analisar os factos descritos na acusação, tendo feito uma avaliação da prova, com base na qual considerou que o arguido não conduzia o veículo automóvel, na via pública, com TAS que lhe é imputada pelo Ministério Público (1,24g/l), mas antes com uma TAS inferior àquela a partir da qual a conduta constitui crime (segundo o Sr. Juiz conduzia com a TAS de 1,15g/l).
Para o efeito, apelou o Sr. Juiz a Recomendações da Organização Internacional de Metrologia Legal, à Portaria n.º 748/94, de 13Ago., que aprovou o Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros e, ainda, a um despacho do Sr. Director Geral de Viação, que a respectiva Direcção fez divulgar pelos tribunais, através do Conselho Superior da Magistratura, em Agosto de 2006.
Esqueceu, porém, que tal despacho e recomendações mais não são que orientações de procedimento para as autoridades policiais, não existindo norma legal a estabelecer qualquer margem de erro para aferir os resultados obtidos pelos analisadores quantitativos de avaliação do teor de álcool no sangue, por forma a se poder afirmar que a conduta daquele que conduz na via pública e que submetido a exame, através do aparelho identificado no auto de notícia, acusa uma TAS de 1,24g/l, não preenche os elementos típicos do crime imputado na acusação.
Caso a fiabilidade do aparelho usado venha a ser posto em causa, o que até ao momento não aconteceu, caberá então ao tribunal, na altura própria, em julgamento e assegurado o contraditório, tomar posição quanto à valoração desse elemento de prova, após averiguação da sua aprovação pelo Instituto Português da Qualidade (IPQ) que, como se sabe, foi criado pelo Dec. Lei nº183/86, de 12 de Julho e é o organismo nacional responsável pelas actividades de normalização, certificação e metrologia, bem como pela unidade de doutrina e acção do Sistema Nacional de Gestão da Qualidade, instituído pelo Dec. Lei nº165/83, de 27 de Abril.
Neste momento, porém, não pode o Sr. Juiz fazer um juízo sobre a suficiência ou insuficiência da prova.
Aliás, como refere Maia Gonçalves[2]a impossibilidade de rejeição da acusação por insuficiência de prova indiciária acabou por ficar decididamente perfilhada pela Assembleia da República através de novos dispositivos da Lei nº59/98, enumerando taxativamente no nº3 os casos em que, para os efeitos do nº2, a acusação se considera manifestamente infundada. Manteve-se assim a estrutura acusatória do processo na sua pureza, bem como uma nítida separação entre os órgãos da acusação e do julgamento”.
Ora, sendo inquestionável que os factos descritos pelo Ministério na acusação constituem crime e não se verificando a previsão de qualquer das outras alíneas do nº3, do art.311, é manifesto que a acusação não podia ser rejeitada, impondo-se a procedência do recurso.

*     *     *
IVº DECISÃO:
Pelo exposto, os juizes do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, acordam:
Em dar provimento ao recurso, determinando que o despacho recorrido seja substituído por outro que receba a acusação e designe dia, hora e local para a audiência.
Sem tributação.
Lisboa, 3/7/07
 (Relator: Vieira Lamim)
 (1º Adjunto: Ricardo Cardoso)
 (2º Adjunto: Filipa Macedo)

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[1] Diploma a que respeitam todos as normas adiante indicadas sem menção doutra origem.
[2] Código de Processo Penal anot., 15ª ed., pág.616.