Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4405/21.5T8ALM-A.L1-7
Relator: PAULO RAMOS DE FARIA
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
HERDEIRO DO EXECUTADO FALECIDO
RESPONSABILIDADE NA PROPORÇÃO DA QUOTA
DÍVIDA DE TORNAS
REMISSÃO
EXERCÍCIO ABUSIVO DE POSIÇÃO JURÍDICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. Não tendo sido impugnada a decisão respeitante à matéria de facto nem se colocando a questão da sua alteração oficiosa, é inadmissível a junção de documentos para efeitos probatórios na fase de recurso.
2. A “proporção da quota que (ao herdeiro aceitante) tenha cabido na herança”, referida no n.º 1 do art.º 2098.º do Cód. Civil, corresponde ao quinhão hereditário previsto no título da vocação sucessória, no momento da abertura da herança.
3. Quando o herdeiro devedor de tornas aceita a remissão desta sua dívida, a oposição à satisfação do direito do credor da herança pelo produto da venda dos bens que lhe foram adjudicados em partilha, no montante das tornas remitidas, qualifica-se como um exercício abusivo de uma posição jurídica.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

A. Relatório
A.A. Identificação das partes e indicação do objeto do litígio
Por apenso à execução que lhe move Instituição de Crédito, S.A., veio FJSV instaurar os presentes embargos de executado, pedindo, no que agora releva:
XII. Que (…) seja o mesmo [embargante] declarado apenas responsável pela sua quota-parte na herança do falecido executado seu pai – JV –, até ao limite de €24.800,09.
Para tanto, alegou (no que importa para o julgamento do recurso) que:
86. Para efeitos de responsabilização no pagamento da dívida o embargante apenas poderia vir a ser responsabilizado pela quota-parte que lhe coube na partilha; (…)
88. É irrelevante o valor dos bens que lhe foram adjudicados na partilha.
Notificada a embargada, ofereceu esta a sua contestação, manifestando diferente entendimento sobre o limite da responsabilidade do herdeiro embargante.
Após realização da audiência final, o tribunal a quo julgou os embargos parcialmente procedentes, concluindo nos seguintes termos:
Julgo os embargos à execução parcialmente procedentes e determino o prosseguimento da ação executiva quanto ao embargante para satisfação do valor de (apenas) 24.800,08 euros
Inconformada, a embargada apelou desta decisão, concluindo, no essencial:
C. Conforme resulta da escritura de partilha, além da quota que lhe cabia, o embargante recebeu mais €48.637,81.
D. A interessada que tinha direito a tornas prescindiu das mesmas na escritura celebrada.
E. Pelo que o embargante recebeu assim na partilha o valor de €73.537,88, pelo que deverá ser este o limite da sua responsabilidade, pois foi este o valor que efetivamente recebeu.
O apelado contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão do tribunal a quo recorrida, requerendo, ainda, a junção de documentos supervenientes.
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Não tendo sido impugnada a decisão respeitante à matéria de facto nem se colocando a questão da sua alteração oficiosa, é inadmissível, por inútil, a junção de documentos para efeitos probatórios na fase de recurso.
Vai indeferido o requerimento de junção de documentos apresentado pelo apelado.
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A.B. Questões que ao tribunal cumpre solucionar
Apenas uma questão é suscitada na alegação de recurso: saber se o herdeiro responde pela dívida do autor da herança na proporção do seu quinhão hereditário ou, diferentemente, na proporção da quota do acervo hereditário que efetivamente recebeu (sem pagamento de tornas).
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B. Fundamentação
B.A. Factos julgados provados pelo tribunal ‘a quo’
1 – No dia 9 de março de 2007, a Instituição de Crédito, S.A. (adiante, Instituição de Crédito), e a TCB, Lda., celebraram, por escrito, acordo de “utilização do Cartão de Crédito X Works”, garantido por livrança (…).
2 – No dia 9 de março de 2007, foi entregue à Instituição de Crédito uma declaração, assinada (entre outros) por JV, na qual consta “(…) autorizamos a Instituição de Crédito a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostrar necessário (…)” (…).
3 – No dia 9 de março de 2007, JV (entre outros) assinou o seu nome no verso da livrança executada (então em branco quanto à importância e data de vencimento), a qual foi entregue à Instituição de Crédito.
4 – Em data não concretamente apurada posterior a 9 de março de 2007, o acordo referido no ponto 1 – factos provados –. deixou de ser cumprido pela TCB, Lda., declarada insolvente em 15 de dezembro de 2014.
5 – A Instituição de Crédito completou o preenchimento da livrança com a importância “6.166,54 euros” e a data de vencimento de “2021-03-30”.
6 – No dia 11 de maio de 2011, morreu JV, no estado de casado, no regime da comunhão geral, com MDV.
7 – No dia 28 de agosto de 2019, MDV e o embargante, enquanto únicos herdeiros de JV, outorgaram escritura de partilha (…).
8 – No dia 31 de março de 2021, a embargada enviou carta ao embargante a declarar vencida a totalidade do crédito emergente do contrato referido no ponto 1 – factos provados – e a fixar o dia 30 de março de 2021 para o vencimento da livrança pelo valor de 61.166,54 euros (…).  
B.B. Alteração oficiosa da decisão sobre a matéria de facto
Não obstante terem os autos sido instruídos com diversos documentos autênticos que permitem esclarecer melhor os contornos da relação material controvertida, não foi o seu teor dado por provado e transcrito na decisão respeitante à matéria de facto. Justifica-se, pois,  ao abrigo do disposto no n.º 1 e na al. c) do n.º 2 do art.º 662.º do Cód. Proc. Civil, que o tribunal ad quem desenvolva (mais do que altere) a decisão respeitante à matéria de facto, no sentido de do leque dos factos provados passar a constar a factualidade em questão – sobre a admissibilidade da alteração oficiosa, cfr. o Ac. do STJ de 17-10-2019 (3901/15.8T8AVR.P1.S1), bem como António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2022, pp. 357 e 358.
Em face do exposto, é a seguinte a fundamentação deste acórdão, exarando-se em itálico a factualidade agora aditada, julgada provada com base nos documentos autênticos juntos aos autos:
1. Subscrição da livrança (título executivo)
1 – No dia 9 de março de 2007, a Instituição de Crédito, S.A. e a TCB, Lda., celebraram, por escrito, acordo de “utilização do Cartão de Crédito X Works”, garantido por livrança (…).
2 – No dia 9 de março de 2007, foi entregue à Instituição de Crédito, S.A., uma declaração, assinada (entre outros) por JV, na qual consta “(…) autorizamos a Instituição de Crédito a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostrar necessário (…)” (…).
3 – No dia 9 de março de 2007, JV (entre outros) assinou o seu nome no verso da livrança executada (então em branco quanto à importância e data de vencimento), a qual foi entregue à Instituição de Crédito, S.A..
4 – Em data não concretamente apurada posterior a 9 de março de 2007, o acordo referido no ponto 1 – factos provados –. deixou de ser cumprido pela TCB, Lda., declarada insolvente em 15 de dezembro de 2014.
5 – A Instituição de Crédito, S.A. completou o preenchimento da livrança com a importância “6.166,54 euros” e a data de vencimento de “2021-03-30”.
6 – No dia 31 de março de 2021, a embargada enviou carta ao embargante a declarar vencida a totalidade do crédito emergente do contrato referido no ponto 1 – factos provados – e a fixar o dia 30 de março de 2021 para o vencimento da livrança pelo valor de 61 166,54 euros (…).  
2. Óbito de JV
7 – Em 11 de maio de 2011, morreu JV, no estado de casado, no regime da comunhão geral, com MDV (adiante, MDV), tendo deixado como descendentes os seus filhos FJSV (adiante, FJSV), ora embargante, e JASV (adiante, JASV).
8 – Em 27 de março de 2016, morreu JASV, no estado de casado com MV no regime da comunhão de adquiridos, tendo deixado como descendentes os seus filhos JFMSV (adiante, JFMSV) e PAMSV (adiante, PAMSV).
9 – Em 20 de outubro de 2016, por escritura pública, JFMSV declarou repudiar a herança aberta por óbito de JASV.
10 – Em 28 de agosto de 2019, MDV e o embargante outorgaram escritura de partilha da herança aberta por óbito de JV, junta aos autos com a petição de embargos, na qual consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:
DOCUMENTO TITULADO POR NOTÁRIO – ESCRITURA PÚBLICA PARTILHA
No dia vinte e oito de agosto de dois mil e dezanove (…) compareceram:
1.º MDV (…).
2.º FJSV (…).
Declararam:
I – Que (…) faleceu a onze de maio de dois mil e onze JV, no estado de casado com MDV, em únicas núpcias de ambos e sob o regime da comunhão geral, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros o cônjuge sobrevivo e os filhos JASV (já falecido) e FJSV, ora outorgantes;
II – Que (…) faleceu a 27/03/2017 JASV, no estado de casado com MV sob o regime da comunhão de adquiridos, tendo deixado como únicos filhos JFMSV, solteiro, maior, e PAMSV, solteiro, maior;
Que a viúva MV repudiou a herança (…);
Que o filho JFMSV repudiou a herança (…);
Que o filho PAMSV repudiou a herança (…);
Que, em consequência, sucedeu-lhe como única herdeira a mãe, MDV, ora outorgante;
Que, pela presente escritura, os herdeiros na qualidade de únicos interessados, vão proceder à partilha do património comum do casal, que se compõe dos seguintes bens:
VERBA UM – Fração autónoma, destinada a habitação, individualizada pela letra "B", que constitui o primeiro andar – logradouro do lado poente com a área de 138,75m2, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, Denominado Lote 1, Situado (…), concelho de Cascais (…);
Que o prédio se encontra inscrito na matriz da freguesia de (…) sob o artigo (…), sendo de 72.937,90€ o valor patrimonial da designada fração autónoma, que lhe atribuem;
Que se encontra registada uma servidão;
VERBA DOIS – Veículo automóvel da marca Peugeot, modelo 106, com a matrícula (…), a que atribuem o valor de seiscentos euros;
VERBA TRÊS – Recheio do imóvel mencionado na verba um, (…) a que atribuem o valor de trinta e oito mil euros;
VERBA QUATRO – valores monetários depositados na conta bancária (…) na Instituição de Crédito, no valor de duzentos e sessenta e dois euros e sessenta cêntimos;
VERBA CINCO – coleção de selos, a que atribuem o valor de trinta e sete mil euros;
Somam os bens a partilhar o total de CENTO E QUARENTA E OITO MIL E OITOCENTOS EUROS E CINQUENTA CÊNTIMOS, que se divide inicialmente por dois, constituindo uma das metades no valor de setenta e quatro mil e quatrocentos euros e vinte e cinco cêntimos a meação do cônjuge sobrevivo, representando a outra metade, de igual valor, a herança em causa, que se divide depois em três partes iguais, correspondendo o quociente de vinte e quatro mil e oitocentos euros e oito cêntimos ao quinhão hereditário de cada um deles; nestes termos, a viúva do autor da herança, tem direito ao total de 124.000,41 euros para integral pagamento da sua legítima e meação e o quinhão do seu falecido filho JASV;
E fazem a partilha pelo modo seguinte:
Adjudicam à outorgante MDV os bens identificados nas verbas três, quatro e cinco, a menos no seu direito no valor de quarenta e oito mil setecentos e trinta e sete euros e oitenta e um cêntimos;
Adjudicam ao outorgante FJSV, os bens mencionados nas verbas um e dois, pelo que recebe a mais no seu direito a quantia de quarenta e oito mil setecentos e trinta e sete euros e oitenta e um cêntimos;
Declarou a interessada com direito a tornas que delas prescinde.
Termos em que dão por concluída a presente partilha.
3. Óbito de MDV
11 – Em 10 de junho de 2021, faleceu MDV, com a idade de 92 anos, no estado de viúva, tendo deixado como descendentes o seu filho FJSV, ora embargante, e os seus netos JFMSV e PAMSV, filhos do seu filho pré-falecido JASV.
12 – Em 1 de fevereiro de 2022, por escritura pública, o embargante declarou repudiar a herança aberta por óbito de MDV.
13 – Em 18 de julho de 2022, na sequência do óbito de MDV, foi apresentada à Autoridade Tributária e Aduaneira a declaração modelo 1 do Imposto de Selo sobre Transmissões Gratuitas, cuja cópia se encontra junta aos autos, na qual consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:

IDENTIFICAÇÃO DO CABEÇA DE CASAL (…)
(…) Nome: FJSV (…)
Data Recepção: 2022-07-18 (…)
(Anexo I – Relação de Bens)
ACTIVO – BENS IMÓVEIS – Propriedade Plena (…)
Verba n.º 1: Quota Parte Transmitida: 2/14 Indicador Herança Indivisa: Sim Tipo de Prédio: Urbano (…)
ACTIVO – CRÉDITOS (…)
Verba n.º 2: Quota Parte Transmitida: 1/1 Tipo: Valores monetários depositados em contas bancárias Valor: € 1 073,94


14 – Em 13 de fevereiro de 2023, por escritura pública, JFMSV declarou repudiar a herança aberta por óbito de MDV.
15 – JFMSV tem um filho, nascido em 8 de março de 2018.
4. Factos processuais
16 – Em 14 de julho de 2021, deu entrada o requerimento executivo.
17 – Em 18 de fevereiro de 2022, foi o embargante citado para a execução.
18 – Em 8 de março de 2022, deu entrada a petição de embargos.

B.C. Análise dos factos e aplicação da lei
São as seguintes as questões de direito parcelares a abordar:
1. Responsabilidade do herdeiro após a partilha
2. Delimitação dos termos da questão
3. Interpretação do enunciado legal
3.1. Elemento gramatical (a “letra da lei”)
3.2. Elemento histórico
3.3. Elemento sistemático
3.4. Elemento teleológico (a ‘ratio legis’)
3.5. Presunção de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas
3.5.1. Tutela do interesse contraposto do credor
3.5.2. Contributo do caso para o desenho de um resultado conforme à ‘ratio legis’
3.5.3. Remédios para o desacerto da solução acolhida na sentença apelada
3.5.4. Tutela da certeza e segurança jurídicas
3.5.5. Solução mais acertada
3.6. Pensamento legislativo (o “espírito da lei”) – Solução adotada
4. Aplicação da norma interpretada ao caso dos autos
5. Responsabilidade pelas custas
Responsabilidade do herdeiro após a partilha
Diz-se sucessão o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam (art.º 2024.º do Cód. Civil). Por força do fenómeno sucessório, os herdeiros que tenham aceitado a herança assumem a titularidade das posições jurídicas passivas do autor da herança, respondendo o acervo hereditário por estas dívidas, como património autónomo de titularidade coletiva – cfr. os arts. 601.º (ressalva), 2068.º e 2071.º do Cód. Civil.
Dispõe o n.º 1 do art.º 2098.º do Cód. Civil (pagamento dos encargos após a partilha) que, “[e]fectuada a partilha, cada herdeiro só responde pelos encargos em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança”. É na interpretação do enunciado “em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança” que se encontra a controvérsia que justifica a apelação.
No entender do apelado (embargante), tal segmento do texto legal tem o sentido de quinhão hereditário, isto é, de quota prevista no título da vocação sucessória no momento da abertura da herança. Esta foi a posição sufragada na sentença apelada. No entender da apelante (embargada), equivale ele à quota do acervo hereditário que o herdeiro efetivamente recebeu na partilha – ao menos quando não tenha pagado tornas.
No estabelecimento do chão dogmático desta discussão, não acompanhamos o entendimento do apelado (embargante), manifestado através da convocação de jurisprudência que cita, de acordo com a qual, enquanto a herança “permanece indivisa, o devedor é apenas um, ou seja, é aquele património autónomo, dotado de personalidade judiciária e, por isso, suscetível de ser parte, isto é, de demandar e ser demandado (…). Mas, após a partilha, esse devedor desaparece, dando lugar a uma pluralidade de devedores, tantos quantos os herdeiros”. Efetuada a partilha, “os herdeiros respondem pelos encargos em proporção das quotas que lhes tenham cabido na herança, mas não necessariamente e só com os bens herdados, podendo, até àquela proporção, ser penhorados quaisquer bens do seu património. Assim, em termos gerais, poderá até afirmar-se que a garantia do credor se reforçou”.
Trataremos mais adiante da afirmada possibilidade de execução de “quaisquer bens” do património do herdeiro, nos casos em que está assente a composição da herança, bem como da alegada inexistência de prejuízo decorrente da perda da garantia constituída pelo acervo hereditário (tangível). No que respeita à consideração da herança indivisa como centro de imputação de direitos e deveres, podemos já afirmar tratar-se de uma posição juridicamente insustentável.
Nos termos da lei, “[q]uem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária” − cfr. o art.º 11.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil. O que equivale a dizer que, por regra, quem não tem personalidade jurídica não tem personalidade judiciária.
Excecionalmente, porém, a lei admite extensões à suscetibilidade de uma entidade não personificada civilmente ser parte. Entre os casos assim expressamente previstos, encontra-se o da herança jacente (herança aberta mas não aceita), mas já não o da herança indivisa (herança aceita mas não partilhada) − cfr. a al. a) do art.º 12.º do mesmo código. Assim, visto que a herança indivisa, como mero património (autónomo) que é − como que adiante se verá −, não goza de personalidade jurídica, também não goza de personalidade judiciária, pelo que não pode ser parte.
E nem se diga que este património autónomo deve considerar-se abrangido pela referida norma legal, por aplicação analógica. É que não só esta norma é claramente excecional − cfr. o art.º 11.º do Cód. Civil −, como a necessária analogia não existe: a herança indivisa, ao contrário da herança jacente, é um património com um ou mais titulares, pelo que as relações jurídicas que integram o mesmo podem e devem ser discutidas em litígio por esses titulares – como, de resto, acontece com qualquer outro património geral ou autónomo com titular definido.
É certo que, por vezes, o enunciado legal pode induzir em erro, embora os conceitos utilizados sejam corretos, ao referir, em relação à herança indivisa, que “[a] herança responde (...) pelo pagamento das dívidas do falecido” (art.º 2068.º do Cód. Civil), ou que “[o]s bens da herança respondem coletivamente pela satisfação dos respetivos encargos” (art.º 2097.º do Cód. Civil), ou, ainda, que os credores são-no “da herança” (art.º 2070.º, n.º 1, do Cód. Civil) − naturalmente sem sublinhado no texto legal. Porém, a utilização destas expressões tem a ver com a natureza de património autónomo e (normalmente) coletivo da herança indivisa.
Por uma dívida responde uma pessoa – em princípio, o seu titular passivo: o devedor. Porém, por esta dívida também responde o património (geral e pessoal) da mesma (art.º 601.º do Cód. Civil). Naturalmente, não estamos perante duas entidades responsáveis. Estamos, sim, perante um sujeito de direitos e obrigações − um centro de imputação de relações jurídicas − que é subjetivamente responsável pela dívida; e perante um acervo patrimonial que é objetivamente responsável (hoc sensu) pela mesma, isto é, cujos bens integrantes estão afetos ao seu pagamento (os termos subjetivo e objetivo são aqui usados em atenção às “entidades” − pessoas ou coisas − a que se imputa a responsabilidade, bem como à natureza dessa imputação, e não por referência ao pressuposto da culpa).
Se, por qualquer razão, a dívida em questão for inerente a um “património separado” da titularidade do devedor, ou seja, se o seu património geral não responder pela mesma, a lei tem de esclarecer, dada a natureza excecional da situação, quais são os bens ou qual é o património objetivamente responsável pelo pagamento da dívida (art.º 601.º Cód. Civil). Porém, com isto não quer a lei significar que o património passa a figurar como sujeito da obrigação, isto é, que passa figurar como subjetivamente responsável e, consequentemente, como o titular da relação material controvertida com legitimidade para litigar. A lei quer, sim, referir que, dos patrimónios do titular da obrigação − um ou mais autónomos e o geral −, somente um, o acervo hereditário, no caso, verá os bens que o integram afetos ao cumprimento da obrigação.
Os titulares da herança indivisa − os herdeiros que aceitaram a herança (art.º 2050.º, n.º 1, do Cód. Civil) − são os titulares passivos da relação jurídica complexa, sendo subjetivamente responsáveis pela dívida que era do de cujus – pelo se compreende que, por regra, todos eles devam ser chamados a discutir essa posição (art.º 2091.º, n.º 1, última hipótese, do Cód. Civil). Após a partilha dos ativos, e na falta de acordo (art.º 2098.º, n.ºs 2 e 3, do Cód. Civil), dá-se, por assim dizer, uma adjudicação legal individual do passivo ainda não satisfeito – isto é, uma partilha legal (hoc sensu) da dívida. A questão que nos ocupa não é outra do que a do apuramento do critério escolhido pela lei para realizar esta adjudicação.
1. Delimitação dos termos da questão
Antes de avançarmos, três notas apenas. Serve a primeira para sublinhar que a análise desta questão não deve ser contaminada com a discussão de cenários fraudulentos hipotéticos. Por assim ser, não há aqui que considerar a hipótese de simulação na escritura de partilha (art.º 240.º do Cód. Civil). Se um dos outorgantes da partilha prescindir das tornas devidas pelo herdeiro demandado (pelo credor do de cujus), por ter este recebido bens de valor superior ao seu quinhão hereditário, a questão em torno do limite da responsabilidade do herdeiro mantém-se, ainda que inexista qualquer intuito fraudulento, pretendendo apenas o credor de tornas, legitimamente, beneficiar o devedor (arts. 863.º, n.º 2, e 940.º do Cód. Civil) – eventualmente, por o beneficiário ser seu descendente, pensando numa antecipação da herança.
Pela segunda nota chamamos a atenção para a circunstância de não se discutir na apelação a adesão à realidade dos valores atribuídos na escritura de partilha aos bens deixados por JV. Não é discutido na demanda – nem é alegado, nem resulta da instrução – o valor dos bens deixados pelo falecido primitivo devedor cambiário – porventura por o valor meramente declarado já ser superior ao valor da dívida.
É certo que algumas das particularidades da relação material controvertida são insólitas. Extrai-se dos factos provados que, quando é outorgada a escritura de partilha, a credora de tornas já havia completado 90 anos de idade. Dois anos depois, na relação de bens apresentada na sequência do seu óbito, os bens que lhe foram adjudicados haviam desaparecido. Fica por explicar a falta de relacionação, por exemplo, de um recheio de uma habitação avaliado dois anos antes em €38.000,00. O mesmo se diga de uma coleção de selos no valor de €37.000,00. Quanto a esta, não pode deixar de se notar que não são descritos em documento complementar à escritura de partilha os valiosos selos que integram esta coleção. Ao embargante foram adjudicados os bens sujeitos a registo, como tal, de existência certa, e de valor mais seguro (dado que são conhecidos e devidamente identificados); à co-herdeira foram adjudicados os bens de existência incerta para terceiros (dado que não sujeitos a registo) e de valor mais inseguro. Embora estas particularidades do caso se destaquem, nada há a extrair delas, pois, como referimos, não é discutido nos embargos o valor dos bens deixados pelo falecido primitivo devedor.
Finalmente, e na sequência das notas anteriores, podemos assentar que para a resolução do problema que nos ocupa não relevam questões de prova respeitantes à incerteza sobre a composição da herança. Não há controvérsia sobre esta matéria, pelo que não é pertinente a convocação direta das normas previstas no art.º 2071.º do Cód. Civil na resolução do caso. Note-se que a epígrafe deste artigo é geradora de equívoco, pois a norma que encerra não respeita propriamente à “responsabilidade do herdeiro”, mas sim, na sua articulação com a norma enunciada no art.º 2068.º do Cód. Civil, ao ónus da prova sobre a composição do património autónomo que responde objetivamente (hoc sensu) pela dívida. A responsabilidade do herdeiro (mas apenas após a partilha) está, sim, regulada no art.º 2098.º do Cód. Civil (também, por consequência, incorretamente epigrafado).
2. Interpretação do enunciado legal
Resulta do disposto no n.º 2 do art.º 9.º do Cód. Civil que, na interpretação da lei, o sentido a retirar do texto legal deve ter com este um mínimo de correspondência verbal. Temos, pois, que o elemento gramatical (isto é, a “letra da lei”) constitui, a um tempo, a base da hermenêutica e o seu limite. Constitui, ainda, até por razões de segurança e de certeza jurídicas, o fator hermenêutico, que, caso subsista alguma dúvida sobre o sentido da lei, decidirá o resultado da interpretação, pois o intérprete deve presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art.º 9.º, n.º 3, do Cód. Civil).
No entanto, a atividade interpretativa não se deve cingir à análise da letra da lei (art.º 9.º, n.º 1, do Cód. Civil), mas, sim, reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo (isto é, o “espírito da lei”), tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, bem como as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. O resultado da atividade hermenêutica deve ser coerente e consequente, quer quanto à hipótese legal, quer quanto à estatuição normativa, quer, finalmente, quanto à relação entre estas, devendo o intérprete, na fixação do sentido e alcance do enunciado legal, presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (art.º 9.º, n.º 3, do Cód. Civil).
Enunciadas as premissas da interpretação da lei, em geral, cabe agora a elas sujeitar a interpretação da norma enunciada no n.º 1 do art.º 2098.º do Cód. Civil
2.1. Elemento gramatical (a “letra da lei”)
O texto do n.º 1 do art.º 2098.º do Cód. Civil não estabelece, simplesmente, que, efetuada a partilha, cada herdeiro aceitante só responde pelos encargos em proporção do seu quinhão hereditário, isto é, na medida da sua quota prevista no título da vocação sucessória no momento da abertura da herança. No entanto, também não estabelece que cada herdeiro só responde pelos encargos em proporção da quota que lhe tenha cabido na partilha.
O quinhão hereditário resulta do título da vocação sucessória e não está sujeito às contingências da partilha. Ora, os termos e o tempo verbal empregues no enunciado legal sugerem que o que “tenha cabido na herança” (isto é, no acervo hereditário) ao herdeiro é um resultado contingente, correspondente ao incerto resultado do fenómeno sucessório concreto, isto é, ao efetivo enriquecimento de cada herdeiro resultante da partilha (aumento líquido da sua esfera de direitos e de deveres com expressão patrimonial). O mesmo é dizer que parece ter maior apoio na letra da lei o entendimento segundo o qual a quota que coube a cada herdeiro corresponde à medida do concreto e inicialmente incerto incremento do seu património provocado pela partilha dos ativos da herança. No entanto, esta conclusão surge como forçada, já que a utilização do referido tempo verbal (pretérito perfeito do conjuntivo) pode apenas refletir a perspetiva retrospetiva adotada na hipótese legal, na qual o fenómeno sucessório está findo.
Em suma, no que respeita ao sentido e alcance das duas interpretações do enunciado legal em confronto, temos de concluir que ambas têm apoio no texto da lei, não se podendo dizer que o elemento gramatical dê maior conforto a uma delas.
2.2. Elemento histórico
Norma idêntica à contida no n.º 1 do art.º 2098.º Cód. Civil encontrava-se enunciada no art.º 2115.º do Código Civil de 1867 nos seguintes termos: “A herança responde solidariamente pelo pagamento das dívidas do autor dela; mas, depois de feitas as partilhas, os co-herdeiros só respondem em proporção da parte que lhes coube na herança”. A inserção da norma na segunda parte de um mesmo enunciado, separada da primeira pela conjunção adversativa “mas” sugere fortemente que foi intenção do legislador, apenas, estabelecer que, após a partilha, os herdeiros não respondem solidariamente pelas dívidas, mas somente na proporção da parte da herança que lhes coube – cfr. Luiz da Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, Vol. XI, Coimbra, Coimbra Editora, 1936, pp. 8 e 9. Afigura-se, pois, que não se pode extrair desta norma uma opção do legislador quanto à questão interpretativa em litígio – isto é, quanto a saber se a responsabilidade (proporcional) do herdeiro se mede pelo valor relativo dos bens que recebeu ou pelo valor relativo do seu quinhão hereditário.
O n.º 1 do art.º 2098.º Cód. Civil tem a sua fonte direta no n.º 1 do art.º 71.º do anteprojeto de Galvão Telles, produzido no âmbito dos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966: “Depois de feita a partilha, cada co-herdeiro só responde em proporção da parte que lhe tiver cabido na herança” – cfr. Inocêncio Galvão Telles, «Direito das sucessões», BMJ, n.º 54, março de 1956, p. 49. Este documento não contém uma exposição de motivos, pelo que a sua exegese nada acrescenta à análise do atual texto legal, que o segue de perto.
Antunes Varela, com a autoridade que lhe advém (quando se discute o elemento histórico) da autoria das revisões ministeriais ao anteprojeto de Galvão Telles, entende que, “a partir da divisão da herança, passa a responder cada herdeiro, individualmente, pela satisfação de cada dívida da herança (ou cada encargo dela), mas apenas em proporção da quota que lhe coube na partilha [!] (dentro, por conseguinte, das forças dos bens que especificadamente recebeu da herança, nos termos resultantes do disposto no art.º 2071.º)” – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. VI, Coimbra, Coimbra Editora, 1998, pp. 160 e 161. É patente que este autor associa a noção de quota na responsabilidade do herdeiro à da quota nos bens efetivamente recebidos na partilha – e não ao quinhão hereditário.
Podemos, em conclusão, reter a ideia de que, à luz do elemento histórico, terá sido intenção do legislador, tão-só, afastar a solidariedade passiva entre herdeiros pelas dívidas do autor da herança, após a partilha, e já não tomar posição na querela que nos ocupa. Em qualquer caso, este fator hermenêutico não dá maior amparo a uma das posições em confronto, embora se possa dizer que, na discussão dogmática mantida, a quota da responsabilidade do herdeiro não é indiferente à quota do acervo hereditário que efetivamente recebeu na partilha.
2.3. Elemento sistemático
Não pode deixar de ser notado que a norma que encerra o escopo do capítulo respeitante à liquidação da herança, no qual se inscreve o enunciado objeto de interpretação, estabelece claramente que os bens da herança indivisa respondem coletivamente pela satisfação dos respetivos encargos (art.º 2097.º do Cód. Civil). A regra que orienta a satisfação do crédito correspondente à dívida transmitida mortis causa é, pois, a da manutenção da garantia de satisfação daquele pelo produto da execução do património deixado pelo primitivo devedor (art.º 601.º do Cód. Civil). Ou seja, o crédito (incluindo a sua garantia civil) deve sobreviver ao fenómeno sucessório e atravessar incólume o processo de partilha, apenas se modificando na medida do imposto pelas características da vocação sucessória.
Este escopo constitui a marca-d’água de todo o regime previsto neste capítulo, prestando tributo ao princípio da coerência valorativa da ordem jurídica. Impõe ele, desde logo, que, no decurso do fenómeno sucessório, o resultado dos atos de disposição (lato sensu) do património deixado pelo de cujus não represente uma cisão entre a titularidade deste património, que garante o crédito, e a titularidade da dívida. É, aliás, este postulado que justifica a norma enunciada na segunda parte do n.º 3 do mesmo art.º 2098.º do Cód. Civil. (Acrescente-se, entre parênteses, que a norma prevista no n.º 1 do art.º 2070.º do Cód. Civil empresta ao património (autónomo) hereditário uma coloração aproximada à de uma garantia real especial (art.º 604.º, n.º 2, do Cód. Civil), sabendo-se que este tipo de garantias – quando o seu conhecimento seja proporcionado ao adquirente – tende a sobreviver à transmissão do bem onerado, continuando este a garantir o crédito).
A convocação desta última norma, na busca da unidade do sistema jurídico leva-nos a um caso afim daquele que surge nestes autos – isto é, a um “lugar paralelo”, económica e socialmente. Por meio da remissão das tornas devidas (art.º 863.º do Cód. Civil), o credor destas obtém um efeito económico e social próximo da alienação gratuita do seu quinhão. De facto, poucas diferenças existem, no que para discussão que nos ocupa releva, entre a doação do quinhão e a aceitação da não adjudicado qualquer bem da herança, acompanhada da remissão de tornas. Esta conclusão vale (proporcionalmente), quer a disposição seja total, quer seja parcial.
Ora, estabelece o art.º 2128.º do Cód. Civil (sucessão nos encargos), no que para o caso vertente releva, que “[o] adquirente (…) de quinhão hereditário sucede nos encargos respetivos (...)”. Adverte Antunes Varela “que esta sucessão legal do adquirente da herança nos respetivos encargos é um meio de tutela dos beneficiários dos encargos, cujas legítimas expectativas a norma do artigo 2128.º trata de acautelar. (…) Vale para este efeito a doutrina expressamente proclamada no n.º 2 do § 2382 do Código alemão, segundo o qual a responsabilidade do adquirente da herança perante os credores não pode ser excluída ou limitada através do acordo (contrato) entre o adquirente e o alienante (…)” – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. VI, Coimbra, Coimbra Editora, 1998, p. 209.
Pretendendo um de dois herdeiros, por exemplo, por espírito de liberalidade e à custa do seu quinhão, que o acervo hereditário seja integralmente recebido pelo outro herdeiro, tem ao seu dispor, quer o contrato de doação do quinhão, quer o mecanismo da partilha, com adjudicação da totalidade dos bens e remissão do crédito a tornas. Aceitar que o resultado sobre a titularidade passiva da dívida decorrente da alienação do quinhão é o oposto do resultado decorrente do não preenchimento do quinhão, acompanhado da remissão da dívida de tornas, é fazer “letra morta” do critério hermenêutico da procura da unidade do sistema jurídico; é aceitar uma ostensiva incoerência valorativa.
Em suma, quer o contexto – em especial, o capítulo do Cód. Civil – no qual se inscreve o enunciado agora interpretado, quer os lugares paralelos apontados levam à conclusão de que o elemento sistemático dá maior conforto a um resultado interpretativo de acordo com o qual a responsabilidade individual do herdeiro, após a partilha, deve refletir, proporcionalmente, o seu enriquecimento efetivo com a aquisição mortis causa do património que era do primitivo devedor – ou, ao menos, a um resultado que não inviabilize a aplicação de institutos gerais do direito civil que impeçam o enriquecimento injustificado do herdeiro à custa do credor.
2.4. Elemento teleológico (a ‘ratio legis’)
Dos elementos histórico e sistemático – com os subsídios dados pelas epígrafes dos artigos e pelas designações dos capítulos do código – retiramos o fim da lei (a ratio legis): a delimitação da responsabilidade do herdeiro após a partilha, com a transmissão individual da titularidade passiva da relação jurídica creditícia, procurando conciliar a tutela de dois interesses conflituante – do credor, em manter a garantia proporcionada pelo património do autor da herança; do herdeiro, em ver limitada a sua responsabilidade às forças da herança que efetivamente recebeu ((non) ultra vires hereditatis). No entanto, bem vistos os dados da questão, parece que, no essencial, este fim já se mostra satisfeito por outras normas. Quanto à tutela do interesse do credor, já resulta ela do disposto no art.º 2068.º do Cód. Civil e do facto de os herdeiros aceitantes também sucederem nas relações jurídicas passivas do de cujus (art.º 2024.º do Cód. Civil). No que toca à tutela do interesse do herdeiro, o respeito pelo princípio (non) ultra vires hereditatis já decorre do disposto no art.º 2071.º do Cód. Civil. Se a responsabilidade, em geral, é limitada aos bens da herança, a responsabilidade do herdeiro está limitada aos (agora) seus bens que tenha recebido em partilha.
Há, todavia, uma questão não resolvida pelas restantes normas que dispõem sobre a matéria. Referimo-nos à modalidade da obrigação, isto é, à solidariedade, ou não, entre herdeiros, após a partilha. Embora o credor não possa executar outros bens para além dos que integravam a herança (art.º 744.º do Cód. Proc. Civil), a solidariedade passiva entre herdeiros poderia suscitar algumas dúvidas quanto à extensão da responsabilidade dos sucessores. Para além de outros problemas equacionáveis – como a alteração do valor do património entre a partilha e a cobrança da dívida –, a existência de uma solidariedade passiva dificultaria a satisfação voluntária da dívida (na proporção do seu quinhão) por um dos herdeiros. Poder-se-ia entender que o herdeiro que liquidasse voluntariamente uma parte da dívida na medida da sua quota na herança poderia, ainda, ver o seu património herdado executado para pagamento da parte da dívida ainda não liquidada. A entender-se assim, para evitar que o seu património herdado fosse executado, o herdeiro teria de liquidar toda a dívida, exigindo depois, em via de regresso, dos restantes herdeiros a satisfação da parte que lhes competiria (art.º 524.º do Cód. Civil).
Decorre do exposta, que o fim (ratio legis) visado pela norma prevista no n.º 1 do art.º 2098.º do Cód. Civil é, mais especificamente, o afastamento da solidariedade entre herdeiros, após a partilha, estabelecendo-se uma proporção equitativa na repartição das suas responsabilidades individuais – conforme acima se extraiu do elemento histórico. Ora, este fim (orientado para a tutela do interesse do herdeiro) pode ser atingido por duas vias.
Como vimos, de um lado, temos uma solução que limita a responsabilidade do herdeiro ao valor proporcional (isto é, relativo face ao total do ativo partilhado) dos bens que recebeu em partilha; melhor, ao valor proporcional do seu enriquecimento – ou seja, dos bens recebidos, deduzido ou somado do valor das tornas pagas ou recebidos. De outro lado, temos uma resposta que limita a responsabilidade do herdeiro à proporção do seu quinhão hereditário. Em qualquer uma destas soluções, se o herdeiro pagar voluntariamente o valor correspondente à sua quota – ou na riqueza proporcionada pela sucessão, ou prevista no título de vocação sucessória –, fica extinta a sua responsabilidade.
Em suma, a identificação da ratio legis não resolve o problema da determinação do pensamento legislativo – isto é, do “espírito da lei” –, não sendo o conhecimento do fim da lei decisivo na opção entre as duas soluções interpretativas acima enunciadas. No entanto, apenas uma destas duas vias parece respeitar o interesse contraposto do credor (sem ofender o interesse do herdeiro digno de tutela). Esta circunstância pode ser determinante na definição do sentido e alcance do texto legal, por força da primeira presunção estabelecida no n.º 3 do art.º 9.º do Cód. Civil.
2.5. Presunção de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas
2.5.1. Tutela do interesse contraposto do credor
É útil desfazer de imediato a ideia de acordo com a qual, se um herdeiro recebe mais bens do que aqueles que eram necessários para integrar o seu quinhão hereditário, a garantia do credor não diminui, continuando a ser viável fazer-se pagar pelo valor da herança.  O problema é mais matemático do que jurídico.
A responsabilidade de cada herdeiro após a partilha está limitada ao “conjunto interceção”, constituído pela sobreposição entre os seus bens que respondem (hoc sensu) pela dívida – isto é, os bens que recebeu em partilha – e o valor da dívida pelo qual responde proporcionalmente. Só nesta sobreposição encontrará o crédito possibilidade de satisfação. Quanto menor for esta sobreposição, menor é o espaço da garantia civil do crédito.
Exemplificando, no limite, se todos os bens forem adjudicados a um herdeiro com uma quota de responsabilidade de 1/100, só esta proporção do crédito poderá ser-lhe cobrada, já que pelos restantes 99/100 respondem (subjetivamente) os restantes herdeiros – que não receberam os bens que respondem (objetivamente) pela dívida. A estes, por seu turno, nada pode ser cobrado, pois nada receberam em partilha – apenas são titulares do seu património geral, o qual não responde pela dívida “herdada”. Voltaremos a esta demonstração quando tratarmos dos casos, como o vertente, em que as tornas são prescindidas.
Se forem pagas tornas, podemos aceitar – até no espírito das normas enunciadas nas als. a) a c) do art.º 2069.º do Cód. Civil – que o seu montante, embora não tenha sido recebido por via sucessória, pode ser executado pelo credor, até ao valor da quota de responsabilidade do herdeiro delas credor – executando mesmo o património geral do herdeiro que apenas recebeu tornas na partilha. Se as tornas forem devidas, mas não tiverem sido pagas, o mecanismo da sub-rogação (art.º 606.º do Cód. Civil) também poderá oferecer alguma proteção ao credor. Já quando – sem fraude, repisa-se, mais uma vez – o herdeiro delas credor prescinde de tornas, a desproteção do credor (de uma dívida transmitida) é evidente.
2.5.2. Contributo do caso para o desenho de um resultado conforme à ‘ratio legis’
O contexto factual da jurisprudência invocada pelo embargante é distinto daquele que integra a relação material controvertida objeto destes autos, pois ali os herdeiros credores de tornas não abdicaram expressamente do seu recebimento (desconhecendo-se se o pagamento teve efetivamente lugar). No nosso caso, conforme resulta dos factos dados por provados, acima exarados, a co-herdeira credora de tornas devidas pelo embargante prescindiu do seu recebimento. O mesmo é dizer que a fundamentação desenvolvida na jurisprudência citada pelo embargante não pode ser aproveitada, acriticamente, para a decisão vertente.
Tendo o credor de tornas prescindido destas, não se pode afirmar que o seu não pagamento não prejudica o credor. É certo que, decompondo analiticamente o processo aquisitivo, não se pode dizer que, no montante das tornas devidas (excesso do preenchimento do quinhão), existe um aumento do património do herdeiro devedor de tornas em resultado do fenómeno sucessório. Em resultado da sucessão, o excesso de preenchimento do quinhão (montante das tornas devidas) reflete-se na esfera jurídica do herdeiro a crédito (titularidade de verbas a mais) e a débito (nascimento da obrigação de tornas), inexistindo qualquer enriquecimento, mantendo-se, pois, tal esfera de posições jurídicas e passivas equilibrada. O enriquecimento do herdeiro devedor de tornas vem a ocorrer por força da liberalidade que lhe foi proporcionada pelo herdeiro remitente desta dívida (arts. 863.º, n.º 2, e 940.º do Cód. Civil).
No entanto, afigura-se-nos apodítico que esta operação não é inócua para os titulares ativos de créditos compreendidos nos encargos da herança. Estando assente a composição do acervo hereditário – note-se que esta questão só surge no contexto de uma partilha formal (contendo o problemático excesso de preenchimento de quinhão) –, e sendo incontrovertido que pela dívida só respondem bens que integram este acervo (arts. 2068.º e 2071.º do Cód. Civil), é evidente que a adjudicação a um herdeiro de bens de valor inferior ao seu quinhão prejudica a garantia do crédito – constituída pelo património do de cujus (arts. 601.º e 2068.º do Cód. Civil).
Simplificando o raciocínio, a ser aceite a posição criticada pelo apelante, sendo dois os herdeiros (com iguais quinhões) e a herança de 10, se o quinhão de um herdeiro for preenchido com 10, prescindindo o outro de tornas, o credor da herança com um crédito de 9 apenas poderá ver satisfeito o seu crédito no montante de 5 (contra o herdeiro que recebeu bens), embora a herança tenha valor bastante para a sua total satisfação – e não obstante, em vida do autor da herança, todo o património que integra o acervo hereditário responder pela sua dívida. Com efeito, a possibilidade de satisfação do crédito sofrerá uma dupla restrição: a responsabilidade do herdeiro devedor de tornas ficaria (supostamente) limitada pela proporção do seu quinhão hereditário de ½ da herança – ficando, pois, limitada a 5 –; a responsabilidade do herdeiro credor de tornas ficaria limitada aos bens que recebeu em partilha, ou seja, limitada a zero – cfr. os arts. 2068.º e 2071.º do Cód. Civil, bem como o art.º 744.º do Cód. Proc. Civil. O que significa que, embora a herança tanha um valor de 10, o crédito apenas é satisfeito no valor de 5.
Note-se que, sendo conhecida a composição da herança – afirmação de base com a qual devemos trabalhar –, ainda que se entendesse que o credor pode executar o património geral do credor de tornas prescindidas – até ao limite do seu quinhão de ½, isto é, até ao limite de 5 –, e não pode, pois pelas dívidas “herdadas” só respondem os bens herdados, ainda assim ficaria ele prejudicado com a substituição de uma garantia com consistência real – acervo hereditário – por uma garantia verdadeiramente pessoal. Como o caso dos autos bem o ilustra, o credor de tornas pode não ter nenhum outro património relevante – no caso, faleceu dois anos após a outorga da escritura partilha, deixando um pequeno quinhão hereditário de que era titular e um modesto depósito bancário.
Em qualquer caso, na aceitação, que negamos, de que o património geral do herdeiro credor de tornas prescindidas pode ser agredido – isto é, ainda que existam outros bens tangíveis no património geral do herdeiro cujo quinhão não é preenchido com bens da herança –, a proteção do credor sempre ficaria fragilizada, pois teria de concorrer com os restantes credores, por não gozar na execução do património geral da preferência que detêm na execução do património herdado (art.º 2070.º do Cód. Civil). E se o património geral for constituído por ativos não tangíveis, vale lembrar aqui, na sustentação da efetiva fragilização da posição do credor, a vasta construção dogmática e jurisprudencial em torno do conceito de dissipação do património, para efeitos de preenchimentos dos pressupostos do arresto.
2.5.3. Remédios para o desacerto da solução acolhida na sentença apelada
Não vale aqui dizer que o credor pode sempre impugnar a escritura de partilha, invocando a sua simulação (art.º 240.º do Cód. Proc. Civil). Não pode: a vontade real e a vontade declarada dos intervenientes podem ser concordantes. Já acima afastámos desta análise o cenário de fraude.  Tal como foi referido, pode o credor de tornas, legitimamente, desejar beneficiar o devedor (arts. 863.º, n.º 2, e 940.º do Cód. Civil). Pode, ainda, a partilha entre dois herdeiros ser o resultado de uma licitação informal, pretendendo ambos ficar com um bem com elevado valor afetivo, mas sem valor comercial, acabando por acordar que um deles fica com esse bem, ficando todos os bens deixados com valor comercial para o outro, prescindindo o primeiro de tornas. E outros motivos legítimos podem existir – como uma objeção de consciência ao enriquecimento à custa do património do de cujus. Enfim, repete-se, o cenário de fraude não deve contaminar a exegese das normas que nos ocupam.
Também não tem aqui lugar a convocação do disposto no art.º 606.º do Cód. Civil, como panaceia para todos os males, meio do qual o credor (titular de um crédito que constitui um encargo da herança) poderia lançar mão, exercendo o direito a tornas contra o herdeiro delas devedor, de modo a satisfazer a quota do seu crédito que responsabiliza o herdeiro com aquele direito não exercido. Tal hipótese só seria de ponderar no caso de as tornas não pagas não terem sido prescindidas – podendo equacionar-se, neste caso, reconhecer-se à escritura de partilha uma função integradora do título executivo. Diferentemente, tendo as tornas sido prescindidas, e por força da natureza contratual da remissão (art.º 863.º do Cód. Civil), o herdeiro inicialmente delas credor perdeu o seu direito (não mais podendo este ser exercido, designadamente, por sub-rogação), pelo que o seu credor só por meio da impugnação pauliana poderá satisfazer o seu crédito com recurso aos bens adjudicados ao herdeiro devedor de tornas.
Resta-nos, pois, ponderar a via da impugnação pauliana da remissão da dívida de tornas (arts. 610.º e 863.º do Cód. Civil). Deve aceitar-se que este meio de tutela da garantia patrimonial do crédito pode contrariar os efeitos da remissão, ainda que o seu uso seja limitado pelo prazo de caducidade de cinco anos (art.º 618.º do Cód. Civil). No entanto, esta aceitação encerra uma contradição nos seus termos.
Não podemos dizer que uma dada interpretação deve ser adotada porque é a que garante a satisfação dos interesses tutelados pela lei – v.g., a satisfação do crédito pelo património hereditário ou a limitação da responsabilidade do herdeiro ao seu enriquecimento (proporcional) –, dela resultando a irrestrita irrelevância do excesso do preenchimento do quinhão, para efeitos de definição das quotas no débito transmitido mortis causa,  para, no passo seguinte, reconhecermos que este resultado, afinal, não protege o crédito. Ou seja, com o recurso à impugnação pauliana, estar-se-á, na verdade, a combater um problema que a lei causou, isto é, que só existe porque, embora se afirme que também se visa manter a proteção que o credor tinha antes da abertura da herança, se interpreta a lei com um sentido que, efetivamente, o desprotege.
Podemos aceitar que, como último recurso, a impugnação pauliana seja necessária, quando o credor de tornas não prescinde delas no mesmo ato ou no decurso do mesmo processo de partilha, apenas remitindo a dívida subsequentemente – ficando este segundo ato sujeito à referida impugnação. No entanto, esta realidade pode não impor que a solução legal tenha de ser a mesma em caso de renúncia contemporânea, devendo antes entender-se que o surgimento do problema pode ser evitado a montante, com base numa adequada interpretação do disposto no n.º 1 do art.º 2098.º do Cód. Civil.
2.5.4. Tutela da certeza e segurança jurídicas
Na sustentação da posição que afirma que o segmento “em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança” (art.º 2098.º, n.º 1, do Cód. Civil) tem o sentido de quinhão hereditário, isto é, de quota prevista no título da vocação sucessória no momento da abertura da herança, já foi afirmado que fazer a responsabilidade de cada herdeiro depender do desfecho da concreta partilha seria gerador de uma insustentável incerteza e segurança jurídicas. Não é claro o percurso que leva a esta conclusão.
A certeza e segurança jurídicas alcançam-se garantido ao credor que todo o património deixado pelo devedor continua a responder pelas suas dívidas (art.º 601.º do Cód. Civil). Deve ser esta a regra e o fim perseguido pelo direito sucessório, no que respeita à transmissão mortis causa das posições passivas do autor da herança. Os desvios a ela estabelecidos apenas se justificam na medida do necessário para garantir que nenhum herdeiro é prejudicado, em face dos demais, e que não responderá com património próprio por uma dívida que não contraiu – princípio (non) ultra vires hereditatis.
A convocação dos postulados da certeza e da segurança jurídica não tem sentido relativamente aos intérpretes da partilha – isto á, aos herdeiros. Estes controlam os seus termos, pelo que estão certos e seguros do seu resultado. Tais postulados têm de ser afirmados, sim, quanto aos credores. Ora, quanto a estes, a certeza e a segurança são tuteladas através da garantia de que a concreta partilha não corromperá a regra prevista no art.º 601.º do Cód. Civil.
Por contraponto, a incerteza e a insegurança jurídicas surgirão, de modo insustentável, se a garantia do seu crédito ficar, à sua revelia, totalmente dependente da vontade – legítima e não fraudulenta, repisa-se – dos herdeiros outorgantes da escritura de partilha. Esta preocupação, diga-se, tem assento legal, estando presente em diferentes normas, como sejam as enunciadas nos números seguintes do mesmo art.º 2098.º, n.º 3, do Cód. Civil ou na primeira parte do art.º 2128.º do Cód. Civil.
Em suma, a consideração da tutela da certeza e da segurança jurídicas leva a um resultado interpretativo contrário ao propugnado pela tese defendida pelo embargante (apelado), nos casos de não cobrança das tornas devidas. Só uma “solução de recurso”, assente no mecanismo previsto no art.º 606.º do Cód. Civil, a permitirá remediar – sem prejuízo do recurso aos institutos jurídicos que constituem a “válvula de escape” do sistema, como adiante se verá.
2.5.5. Solução mais acertada
A aquisição de uma massa patrimonial correspondente a uma parte da herança, em resultado da partilha, antes de constituir um limite à responsabilidade do herdeiro, constitui a causa ou fundamento da sua responsabilização: “os herdeiros vêm a ser responsáveis pelos encargos apenas porque titulares dessas massas patrimoniais autónomas” – cfr. Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, pp.110 e 111. Compreende-se, pois, que se associe tal responsabilidade à quota do que efetivamente receberam em partilha, e não ao seu quinhão hereditário. “A responsabilidade dos herdeiros está limitada às forças da herança: os herdeiros apenas respondem pelas dívidas do de cujus na medida daquilo que tenham recebido em herança (intra vires hereditatis), e não para além delas (ultra vires) com os seus bens próprios” – Ac. do TRE de 28-10-2021 (4029/04.1TBSTB-C.E1). Só assim se poderá afirmar a subsistência do “princípio da responsabilidade global da herança mesmo partilhada” – afirmando este princípio após a partilha, cfr. Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, p. 119.
A cisão entre a titularidade do património autónomo que garante o crédito e a titularidade da dívida ofende este princípio, desprotegendo o interesse do credor sem justificação bastante com a tutela do interesse do herdeiro que enriquece com a partilha numa proporção superior à do seu quinhão hereditário. Deve, pois, ser evitada, se possível, uma interpretação o n.º 1 do art.º 2098.º do Cód. Civil que leve à irrestrita irrelevância do excesso do preenchimento do quinhão na definição das quotas dos herdeiros no débito transmitido mortis causa.
Processando-se a transmissão da riqueza por sucessão mortis causa de modo normal, nada obsta a que a quota do herdeiro (na dívida) corresponda ao quinhão hereditário – tal como sustentado na tese invocada pelo apelante. No entanto, assim não ocorrerá quando o procedimento de partilha (incluindo as declarações atributivas ou abdicativas contemporâneas que alteram a distribuição da riqueza) não opera uma distribuição de riqueza no respeito pelos quinhões hereditários. No caso de excesso no preenchimento do quinhão do herdeiro, a medida deste excesso poderá ser relevante na fixação da quota-parte da sua responsabilidade. É o caso de não lhe corresponder um dever de pagamento de tornas de valor equivalente.
Nos casos em que o herdeiro credor de tornas prescinde destas, o direito às mesmas extingue-se, não podendo o credor do autor da herança substituir-se ao referido herdeiro na cobrança das tornas (art.º 606.º do Cód. Civil). A solução mais acertada para a fixação da medida da responsabilidade do herdeiro, após a partilha, deve, pois, oferecer uma resposta adequada ao problema da remissão do crédito a tornas. Parece, pois, impor-se a conclusão de que a “proporção da quota” que “tenha cabido” ao herdeiro na herança corresponde ao valor proporcional dos ativos que lhe foram adjudicados, deduzido do valor das tornas de que se constitua devedor ou somado do valor das tornas de que seja credor.
Em face do exposto, afigura-se que a solução mais acertada será aquela que, além do mais, não seja indiferente à concreta quota do acervo hereditário adquirida pelo herdeiro – isto é, à concreta quota na aquisição da riqueza transmitida –, de modo a garantir, não apenas o respeito pelo princípio (non) ultra vires hereditatis, mas também, na medida do possível, o respeito pelo princípio da responsabilidade global da herança, mesmo partilhada.
2.6. Pensamento legislativo (o “espírito da lei”) – Solução adotada
É na interpretação do n.º 1 do art.º 2098.º do Cód. Civil (pagamento dos encargos após a partilha), recorde-se, que se encontra a controvérsia que justifica a apelação: “[e]fectuada a partilha, cada herdeiro só responde pelos encargos em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança”. Do que se trata é de determinar se a “proporção da quota que lhe tenha cabido na herança” corresponde ao quinhão previsto no título da vocação sucessória no momento da abertura da herança – isto é, ao valor nominal da respetiva quota – ou, diferentemente, tal proporção deve refletir o efetivo enriquecimento provocado pelo excesso de preenchimento do quinhão.
Aqui chegados, parece inevitável a conclusão de que o enunciado no centro da controvérsia – “em proporção da quota que [ao herdeiro] tenha cabido na herança” (art.º 2098.º, n.º 1, do Cód. Civil) – deve ser interpretado no sentido de “em proporção da quota do acervo hereditário que ao herdeiro tenha cabido na partilha”, valendo a dívida ou o crédito a tornas para o cálculo desta quota. Dizer isto ou dizer quinhão hereditário é dizer essencialmente o mesmo – pois os excessos ou as insuficiências, relativamente ao quinhão, são compensados com o pagamento ou com o recebimento de tornas.
O percurso argumentativo desenvolvido parece pedir, ainda, que se conclua que a “proporção da quota” deve refletir o excesso de preenchimento do quinhão, quando tenha havido uma remissão da dívida de tornas. No entanto, pela frente temos um obstáculo lógico: a remissão da dívida de tornas é estranha ao fenómeno sucessório, não o integrando. O enriquecimento do devedor de tornas, na parte que nos interessa, não resulta da sucessão, mas sim do contrato de remissão (art.º 863.º do Cód. Civil). Neste âmbito, surge como artificiosa uma distinção entre uma remissão declarada no ato ou processo que formaliza a partilha – que seria relevante para o aumento da quota do herdeiro cujo quinhão foi preenchido em excesso – e aquela que vem a ser declarada algum tempo depois – que seria indiferente na fixação da quota da responsabilidade, obrigando o credor a recorrer à impugnação pauliana (no prazo de cinco anos).
Na determinação do sentido e alcance do enunciado legal, não podemos ignorar que o contrato de remissão, fonte do enriquecimento acrescido, não se confunde com a vocação sucessória nem podemos sacrificar a coerência lógica do sistema jurídico e os seus axiomas.  Esta constatação impede-nos de concluir que o pensamento legislativo abarcou o cenário de remissão da dívida de tornas, não se podendo concluir que a “quota” referido no n.º 1 do art.º 2098.º do Cód. Civil abrange o enriquecimento do herdeiro decorrente do perdão de dívida declarado no ato que formaliza a partilha.
Em conclusão, e voltando ao ponto de partida, o enunciado “em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança” corresponde, no essencial, a quinhão hereditário, tal como este resulta do título da vocação sucessória – neste sentido, cfr. o Ac. do STJ de 19-06-2019 (2100/11.2T2AGD-A.P2.S2).
Todo o excurso argumentativo desenvolvido produziu um efeito secundário de inegável utilidade: permitiu-nos conhecer, porventura, ad nauseam, o fim social e económico da “partilha legal” da dívida operada pela norma analisada (art.º 334.º do Cód. Civil). Como vimos, o dispositivo dissecado destina-se, apenas, a afastar a solidariedade entre herdeiros, no respeito pelo princípio (non) ultra vires hereditatis e pelo princípio da responsabilidade global da herança, mesmo após a partilha.
Este resultado abre as portas à apreciação da conduta do herdeiro nos quadros do exercício abusivo do direito. Quando o credor da herança não consegue satisfazer o seu crédito contra o herdeiro a quem deveriam ter sido pagas as tornas prescindidas, a oposição do herdeiro que delas era devedor a que o primeiro se faça pagar, na medida das tornas prescindidas, pelo excesso do preenchimento do seu quinhão, ultrapassa, manifestamente, o fim social e económico das normas que limitam a sua responsabilidade à proporção do seu quinhão hereditário. O credor apenas não consegue satisfazer esta quota do seu crédito porque o devedor declarou aceitar um ato extintivo da sua dívida de tornas – recorde-se que a remissão é um contrato –, assim impedindo que o primeiro se sub-rogasse no exercício do direito ao pagamento destas, pondo em risco a satisfação da correspondente quota do crédito.
3. Aplicação da norma interpretada ao caso dos autos
Resulta do disposto no n.º 1 do art.º 2098.º do Cód. Civil, interpretado no sentido acima adotado, que o embargante (apelado) não é responsável pela dívida que o autor da herança tinha perante embargado (apelante), além da proporção do seu quinhão hereditário. No entanto, como também resulta do capítulo desta fundamentação imediatamente precedente, a oposição do embargante representa um exercício abusivo de uma posição jurídica, por exceder manifestamente o fim social e económico do direito decorrente da limitação prevista no n.º 1 do art.º 2098.º do Cód. Civil (art.º 334.º do Cód. Civil).
Até à medida proporcional do seu enriquecimento decorrente da remissão – isto é, ao montante das tornas remitidas –, deve o embargante (apelado) responder pela satisfação do crédito exequendo, pelas forças da herança (verbas 1 e 2 adjudicadas em partilha), como pretende a exequente.
O quinhão hereditário do embargante (apelado) é de 1/3 – correspondendo ao valor de € 24 800,08, considerando o valor total atribuído pelos herdeiros aos bens partilhados. No entanto, recebeu bens no valor de €73.537,90, ou seja, recebeu uma quota do património partilhado de 98,84% – atendendo ao valor da herança de €74.400,25 (metade/meação de €148.800,50). Considerando que aceitou não ficar responsável pelo pagamento de tornas no valor correspondente ao excesso de preenchimento do seu quinhão, é esta a proporção da sua responsabilidade na satisfação do crédito exequendo.
Sem prejuízo do agravamento do crédito pelo decurso do tempo – mas sempre com o limite do valor do seu quinhão, acrescido do valor das tornas remitidas –, e considerando o valor da quantia exequenda inscrita no título executivo, é o embargante (apelado) responsável pelo pagamento do valor de €61.457,92 – correspondente a 98,84% de €62.179,20.
4. Responsabilidade pelas custas
A decisão sobre custas da apelação, quando se mostrem previamente liquidadas as taxas de justiça que sejam devidas, tende a repercutir-se apenas na reclamação de custas de parte (art.º 25.º do Reg. Cus. Proc.).
A responsabilidade pelas custas (dos embargos e da apelação) cabe à apelante e ao apelado, na proporção de 1/20 para a primeira e de 19/20 para o segundo (art.º 527.º do Cód. Proc. Civil).
C. Dispositivo
C.A. Do mérito do recurso
Em face do exposto, na procedência parcial da apelação, acorda-se em revogar a sentença recorrida, julgando-se os embargos parcialmente procedentes, fixando-se a responsabilidade do embargante em 98,84% da dívida exequenda, o que corresponde, no momento da entrada do requerimento executivo, a €61.457,92 (sessenta e um mil quatrocentos e cinquenta e sete euros e noventa e dois cêntimos), prosseguindo a execução em conformidade.
C.B. Das custas
Custas dos embargos e da apelação a cargo da apelante e do apelado, na proporção de 1/20 para a primeira e de 19/20 para o segundo.
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Notifique.

Lisboa, 05-03-2024
Paulo Ramos de Faria
Rute Alexandra da Silva Sabino Lopes
Alexandra de Castro Rocha