Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
| Processo: |
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| Relator: | LARA MARTINS | ||
| Descritores: | IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVA INDICIÁRIA PERDA A FAVOR DO ESTADO SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 12/03/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
| Sumário: | (da responsabilidade da Relatora) I- Não cumpre o iter descrito no artº 412º nº 3 do Código de Processo Penal, o recorrente que apenas pretende ver alterada a matéria de facto, contrapondo a valoração pessoal que faz dos depoimentos das testemunhas com aquela que foi feita na decisão recorrida. II- A prova directa não é a única prova de que o tribunal se pode socorrer, podendo a prova dos factos assentar em prova indiciária, sem que tal seja incompatível com o princípio da presunção de inocência, posto que aquela seja objectivável e fundamentada. III- A suspensão da execução da pena de prisão condicionada ao pagamento de determinada quantia ao lesado em simultâneo com a declaração de perda a favor do Estado das vantagens obtidas com a prática de um facto ilícito típico, não significa que se esteja a responsabilizar duplamente o arguido, atentas as distintas finalidades e natureza de uma e outra. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam1, em conferência, os Juízes da 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: I. Relatório No âmbito do processo comum nº Processo nº 4692/19.9 T9AMD do Juízo Local Criminal de Oeiras – Juiz 3, foi proferida sentença em ........2025, que condenou o arguido AA, pela prática de: a) Um crime de falsidade informática, na pena de 200 dias de multa à taxa diária de €7,00; b) Um crime de falsificação de documento, na pena de 180 dias de multa à taxa diária de €7,00; c) Um crime de abuso de confiança agravado, na pena de um ano e seis meses de prisão; d) Em cúmulo jurídico das penas parcelares referidas em a) e b) na pena única de 220 dias de multa à taxa diária de € 7,00. Mais ali se decidiu: e) Suspender a execução da pena de prisão referida em c), pelo período de três anos, subordinada à condição de pagamento ao ofendido de € 11.515,55, correspondente a metade da quantia apropriada, no prazo da suspensão, a contar do trânsito da sentença. f) Declarar a perda a favor do Estado das vantagens do facto ilícito típico de falsificação de documento com a consequente condenação do arguido no pagamento ao Estado da quantia de 23.031,10 €. * A- Do Recurso Inconformado com esta decisão, o arguido dela interpôs recurso, pondo em causa a matéria de facto dada como provada nos factos 4 a 21, considerando que, em face da prova produzida, existe uma dúvida razoável de que o arguido tenha praticado os factos, pelo que houve violação do princípio do in dubio pro reo, pugnando a final pela sua absolvição da prática dos crimes pelos quais foi condenado. Para o efeito apresentou as seguintes conclusões que se transcrevem: I - O presente recurso tem como objeto toda a matéria de facto e de direito do douto Acórdão proferido nos presentes autos, o qual condenou o arguido AA pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de: a) um crime de falsidade informática, na pena parcelar de 200(duzentos) dias de multa à taxa diária de €7,00 (sete euros). pela prática, b) um crime de falsificação de documento, na pena parcelar de 180(cento e oitenta) dias de multa à taxa diária de €7,00 (sete euros). c) um crime de abuso de confiança agravado, na pena parcelar de um ano e seis meses de prisão. d) Condenar o arguido AA, em cúmulo jurídico de penas, na pena única de 220(duzentos e vinte) dias de multa à taxa diária de €7,00(sete euros), perfazendo o montante global de €1.540,00 (mil, quinhentos e quarenta euros) e na pena de um ano e seis meses de prisão. e) Suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido, pelo período de três anos. f) Subordinar a suspensão da execução da pena de prisão, ao pagamento pelo arguido ao ofendido metade da quantia apropriada ou seja, €11.515,55, no prazo da suspensão, a contar do trânsito em julgado da presente sentença, disso fazendo prova nos autos. g) Declarar a perda a favor do Estado das vantagens do facto ilícito típico de falsificação de documento com a consequente condenação do arguido no pagamento ao Estado da quantia de 23.031,10 €. II - O Tribunal a quo deu, designadamente COMO PROVADOS (com relevo para a decisão) os seguintes factos: (transcrição dos factos provados constantes da decisão recorrida) III – No entanto, considera o arguido que os factos 4 a 21, foram indevidamente dados como provados e da prova testemunhal e documental junto aos autos não se pode infirmar tal conclusão, não só porque as testemunhas apenas tinham conhecimento real de que o arguido fazia depósitos da empresa, mas que não sabem quando é que estes ocorreram, que valores estavam em causa. E as testemunhas BB e CC, são claras em dizer que algo terá ocorrido alegadamente nos últimos 2/3 meses, mas não sabem dizer o quê. Não têm provas de nada, nem que valores foram entregues ao arguido, nem em que dias tal aconteceu. IV- Aliás, O contrato de trabalho com o arguido terminou em .... E aliás a sociedade queixosa requereu insolvência em ........2020. V- E quanto aos factos 6 a 21, também considera o arguido dados como indevidamente provados, pois, nem a prova documental junta aos autos, nem a prova testemunhal, pode confirmar tal assunção, se não vejamos e quanto ao depoimento de DD, gravado em ...0....2025 entre as 09.48H e as 10.09, ppis também do depoimento desta testemunha, ao contrario do doutamente alegado surgem inconsistências, e não pode conduzir à conclusão vertida no douto acórdão de que: “ o arguido tenha feito ou não algum depósito e quais os valores em causa e muito menos que tenha falsificado qualquer documento do banco em questão ou tenha criado e elaborado qualquer email da sua autoria. VI- Da fundamentação da convicção do Tribunal, também não poderia resultar a condenação do arguido por qualquer dos crimes de que vinha acusado, se não vejamos: Indica o douto Tribunal a quo, que fundamenta a sua convicção nos termos seguintes: (transcrição da motivação de facto exarada na decisão recorrida) VII - E portanto, muito resumidamente o tribunal funda a sua convicção em embora,” a pergunta principal é, no entanto, se o autor destes factos é o arguido. E ainda que não exista qualquer prova direta desse facto, cremos que há indícios bastantes para alcançar essa conclusão”, violando entre outros, o princípio in dúbio pro reu, e uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo. Principio que indica o douto tribunal , conforme salienta Figueiredo Dias in, está associado ao “ ..dever de perseguir a chamada “ verdade material “ - , de tal sorte que a apreciação há- de ser, em concreto, reconduzível a critérios objetivos e , portanto, em geral suscetível de motivação e ao controlo efetivos- acreditando que uma tal convicção existirá apenas e só, quando o tribunal tiver logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a duvida razoável…” VIII- E in casu, e face a todo o alegado, e da prova produzida, existe uma duvida razoável de que o arguido tenha praticado os factos de que vem acusado. E tal duvida, deve ser valorada a seu favor, sob pena de violação do principio in dubio pro reo , o que in casu não aconteceu.Pois este principio É, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa, pois de facto existiram versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, e muita e gritante falta de prova, o que não foi tido em conta pelo douto tribunal. IX - Assim, o enquadramento da violação do in dubio pro reo como erro de julgamento, postula uma concepção objectiva da dúvida quanto aos factos desfavoráveis ao arguido, que é, de resto, a que melhor se coaduna com os princípios da culpa e da livre apreciação da prova, perante as dúvidas sobre os factos desfavoráveis ao arguido, no sentido em que, se o Tribunal tem a máxima liberdade, mas também a máxima responsabilidade na forma como deve, com objectividade, efectuar o exame crítico e global das provas, adquirir a sua convicção quanto aos factos provados e fundamentar a sua decisão, também a dúvida relevante para a aplicação do princípio in dubio pro reo terá de ser motivada, segundo critérios de razoabilidade e de lógica, o que não se verificou. Assim sendo, haverá violação do princípio in dubio pro reo, sempre que o tribunal do julgamento tenha julgado provado facto desfavorável ao arguido, não obstante a prova disponível não permitir, de forma racional e objectiva, à luz das máximas de experiência comum, das regras da lógica, dos conhecimentos científicos aplicáveis, ou das normas e princípios legais vigentes em matéria de direito probatório, com o grau de certeza ou convencimento «para além de toda a dúvida razoável», dar por verificada a realidade desse facto, mesmo que do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras do senso comum, não resulte que o Tribunal se tenha confrontado, subjetivamente, com qualquer dúvida insuprível, no momento da decisão. X – Quanto ao enquadramento jurídico penal, feito pelo douto tribunal a quo, cumpre dizer que, não ficou provado nestes autos que : o arguido tenha adulterado quaisquer guias de depósito, atestando que o valor ali aposto era a receita da loja e que seria depositada nesse momento, não traduziam a realidade que alegadamente o tenha feito ainda com o propósito de obter o benefício ilegítimo de ficar com o valor desses depósitos só para si, ciente que cometia um crime. Não resultando minimamente provado tenha fabricado ou utilizado quaisquer documentos, pelo que deve ser absolvido de tal crime. XII – quanto ao crime de abuso de confiança, não se provou que o arguido, se tenha apropriado do que quer que seja. Mesmo que existisse alguma questão relacionada com dinheiro de depósitos, a questão que se coloca é a prova de tais valores em concreto estavam na posse do arguido e este os fez seus. O que não aconteceu! Não existindo qualquer prova do cometimento dos factos do tipo legal em apreço, pelo que deve ser o arguido absolvido. XIII- No que toca ao alegado crime de falsidade informática previsto, não resultou da prova produzida, que o arguido tenha criado e usado qualquer email de terceiros. Aliás nem se provou que o email atribuído ao arguido seja efetivamente seu. Aliás, determina o artigo 3.º, n.ºs 1, 2 e 3 da Lei n.º 109/2009, de 15 e setembro que: « 1 - Quem, com intenção de provocar engano nas relações jurídicas, introduzir, modificar, apagar ou suprimir dados informáticos ou por qualquer outra forma interferir num tratamento informático de dados, produzindo dados ou documentos não genuínos, com a intenção de que estes sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se o fossem, é punido com pena de prisão até 5 anos ou multa de 120 a 600 dias. 2 - Quando as ações descritas no número anterior incidirem sobre os dados registados, incorporados ou respeitantes a qualquer dispositivo que permita o acesso a sistema de comunicações ou a serviço de acesso condicionado, a pena é de 1 a 5 anos de prisão. 3 - Quem, atuando com intenção de causar prejuízo a outrem ou de obter um benefício ilegítimo, para si ou para terceiro, usar documento produzido a partir de dados informáticos que foram objeto dos atos referidos no n.º 1 ou dispositivo no qual se encontrem registados, incorporados ou ao qual respeitem os dados objeto dos atos referidos no número anterior, é punido com as penas previstas num e noutro número, respetivamente.» O bem jurídico protegido pela incriminação é a integridade dos sistemas de informação1 O tipo objetivo traduz-se na introdução, modificação, apagamento ou supressão de dados informáticos ou por qualquer outra forma de interferência num tratamento informático de dados, de que resulte a produção de dados ou documentos não genuínos, consumando-se o crime apenas com a produção deste resultado. Por dados informáticos deve entender-se, nos termos do artigo 2.º, alínea b), da referida Lei: «qualquer representação de factos, informações ou conceitos sob uma forma susceptível de processamento num sistema informático, incluindo os programas aptos a fazerem um sistema informático executar uma função.» O tipo subjetivo exige o dolo em qualquer uma das suas modalidades, «exigindo, enquanto elemento subjetivo especial do tipo, a intenção de provocar engano nas relações jurídicas, bem como, relativamente à produção de dados ou documentos não genuínos, a particular intenção do agente de que tais dados ou documentos sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se fossem genuínos.» Pelo que, no presente caso, considerando que o arguido não introduziu, modificou, apagou ou suprimiu dados informáticos ou interferiu em tratamento informático de dados, conforme da prova documental ou testemunhal, para onde se remete por uma questão de economia e celeridade processual, conclui-se que a sua conduta não consubstancia a prática do crime por que foi acusado, pelo que, deve ser absolvido. XIV – Quanto à determinação das penas aplicadas, cumpre dizer que, por todo o já exposto, e considerando que não se fez qualquer prova, por parte do arguido dos crimes de que vem acusado, o mesmo deve ser absolvido de todos, pelo que as penas aqui aplicadas são excessivas e não aplicáveis. Além do facto, de ter sido flagrantemente violado o princípio do In dúbio pro reo. XV- Além do mais, subordinar a aplicação da pena de prisão ao arguido ao pagamento da quantia de €11.515,55, à queixosa, entidade insolvente, e ainda declarar a perda a favor do Estado das vantagens do facto ilícito típico de falsificação de documento com a consequente condenação do arguido no pagamento ao Estado da quantia de 23.031,10 €, não constitui mais de que uma dupla incriminação, o que é de todo ilegal. * B-Da Admissão do recurso Por despacho datado de ........2025, o recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo. * C- Da Resposta O Ministério Publico respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos: 1- São as conclusões que limitam o objecto do recurso, nos termos do art. 403º e 412º, n.º 1 in fine do Código de Processo Penal e conforme jurisprudência dominante a pacífica. 2- A douta sentença recorrida norteou a sua convicção quanto à matéria de facto, valorando a prova produzida e examinada em audiência. 3- O arguido não prestou declarações em audiência de discussão e julgamento, fazendo uso de um direito que lhe assiste nos termos do disposto no art. 343º, n.º 1 do Código de Processo Penal. Não apresentou, assim, uma versão diferente dos factos nem pretendeu esclarecer os mesmos. 4- Ora, tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça que o silêncio, sendo um direito do arguido, não pode prejudicá-lo, mas também dele não pode colher benefícios. Se o arguido prescinde, com o seu silêncio, de dar a sua visão pessoal dos factos e eventualmente esclarecer determinados pontos de que tem um conhecimento pessoal, não pode, depois, pretender que foi prejudicado pelo seu silêncio (neste sentido, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/01/2008, Relator Simas Santos, in www.dgsi.pt). 5- O arguido pode manter-se em silêncio, sem que tal atitude o desfavoreça, mas não pode pretender que daí surja um agravamento do ónus da prova imposto ao Ministério Público ou um especial direito à absolvição com base no princípio in dubio pro reu - neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19/12/2023, Relatora Isilda Pinho, in. www.dgsi.pt. 6- Entendemos pois, que o Tribunal a quo não violou o princípio do in dúbio pro reu nem valorou o silencio do arguido de forma desfavorável. 7- Para a conclusão a que chegou o Tribunal a quo quanto à matéria de facto, o mesmo socorreu-se da denominada prova indireta, devidamente sustentada nos diversos elementos que deixou vertidos na correspondente fundamentação. 8- A prova indiciária é senão de forma unânime, pelo menos na esmagadora maioria da jurisprudência aceite, conforme decorre, entre muitos outros, do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.05.2005, Rel. Des. OLIVEIRA MENDES, no processo n.º 1056/05, e do douto e mais recente Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.09.2019, Rel. Des. ARTURVARGUES, no processo n.º 294/17.2JGLSB.L1-5, no qual se escreveu que “– Sabido é que o tribunal a quo pode prevalecer-se da prova indirecta ou indiciária para chegar à convicção que formou, pois esta prova (que se distingue da prova directa) é admissível pelo nosso ordenamento jurídico.” 9- Não tendo o arguido prestado declarações, na estratégia que o mesmo delineou para a sua defesa, não o beneficiando tal facto, também não o prejudica, é certo. Porém, ao assim ter optado o arguido, o Tribunal a quo limitou-se, e bem, a apreciar toda a demais prova recolhida nos autos e produzida perante o mesmo, tendo então, em consequência, concluído que é o arguido o autor da prática dos factos: 10- O tribunal a quo, ao considerar que o arguido praticou os factos em causa, não violou o princípio in dubio pro reo, uma vez que, apreciada a prova, não permanece em aberto uma qualquer hipótese factual alternativa à dada como provada na sentença sub judice. 11- Por fim, a subordinação da suspensão da execução da pena de prisão ao dever de pagamento, pelo arguido ao ofendido, de determinada quantia, não constitui impedimento a que possa/deva ser decretada a perda das vantagens adquiridas pela prática do crime e a condenação do arguido ao pagamento ao Estado de igual quantia (as vantagens adquiridas pela prática de um facto ilícito típico devem sempre ser declaradas perdidas a favor do Estado) - neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 7/05/2024, Relatora Fátima Bernardes, in www.dgsi.com. 12- Ao dar como provado os factos constantes da sentença, o tribunal recorrido não incorreu em qualquer erro ou vício, não merecendo qualquer reparo, valorando de forma sustentada e fundamentada a prova produzida. * D- Do Parecer Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público, tendo sido emitido parecer que concluiu pela improcedência do recurso, aderindo à resposta formulada em primeira instância. * Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do Código de Processo Penal (CPP) o recorrente não respondeu. * Colhidos os vistos, o processo foi presente a conferência, por o recurso dever ser aí decidido. * II- Fundamentação II.1- Objecto do recurso Como é pacificamente entendido tanto na doutrina como na jusrisprudência, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso2. Atentas as conclusões apresentadas, no caso em análise são as seguintes as questões a decidir por ordem de precedência lógica: a) Da impugnação da matéria de facto quanto aos pontos 4 a 21 dados por provados; b) Se foi violado o princípio do in dubio pro reo; c) Se a declaração da perda a favor do Estado das vantagens do ilícito em simultâneo com a subordinação da suspensão de execução da pena de prisão à condição de pagamento de quantia ao ofendido constitui uma dupla incriminação. * II.2- Da Sentença Recorrida A- É a seguinte a matéria de facto considerada pelo tribunal de 1ª instância: 1) A sociedade ofendida “...” é uma sociedade comercial que se dedica à importação, exportação, confecção e venda por grosso e/ou a retalho de todo o tipo de peças de vestuário, complementos, artigos de decoração, artigos têxteis para o lar e tapeçarias, bem como todo o tipo de artigos de consumo duradouro. 2) O arguido AA começou a trabalhar para a referida sociedade a ... de ... de 2012, exercendo funções inerentes à categoria profissional de Chefe de Vendas, sendo o seu local de trabalho a loja do ..., sito na .... 3) Uma das funções desempenhadas pelo arguido, desde data não concretamente apurada, consistia no levantamento das quantias geradas sobre as vendas realizadas na loja do ..., transporte das mesmas até ao ... e com o ... 4) Em dia não apurado do mês de ..., o arguido procedeu à recolha das quantias geradas na loja do ..., no valor global de 23.031,10€ (vinte e três mil e trinta e um euros e dez cêntimos), correspondente aos ganhos do período compreendido entre ... de ... de 2019 e ... de ... de 2019. 5) Contudo, o arguido não depositou a referida quantia na conta bancária da sociedade ofendida, com o..., como lhe era devido em virtude das suas funções, tendo ficado com esse dinheiro e usando-o em benefício próprio. 6) Acresce que, em dia não apurado do mês de ..., o arguido elaborou quatro “destacáveis” de envelopes de depósito com o logótipo do ..., de onde constavam, respectivamente, os códigos ..., ..., ... e ..., “destacáveis” em tudo semelhantes àqueles que são entregues pelo Banco após a realização de um depósito, e a indicação das quantias monetárias de, respectivamente, 4.352,65€, 4.505,34€, 8.402,66€ e 5.770,44€, o que perfaria o valor global de 23.031,10€. 7) Após, no ... de ... de 2019, o arguido enviou uma mensagem de correio electrónico à sociedade ofendida na qual anexava uma fotografia dos supra referidos destacáveis, com vista a demostrar que havia efectuado o depósito das quantias recolhidas. 8) Decorridos cerca de quinze dias desde essa data, e uma vez que a referida quantia não tinha dado entrada na conta bancária da sociedade ofendida, aquela questionou o arguido relativamente a tal demora. 9) Nessa sequência, o arguido criou o endereço de correio electrónico ..., com vista a fazer-se passar pelo gestor da conta bancária da sociedade ofendida, DD. 10) Após, o arguido procedeu à troca de correspondência entre o seu endereço de correio electrónico – ... - e o correio electrónico por si criado fazendo-se passar por DD - ... -, onde solicitava esclarecimentos relativamente aos depósitos alegadamente efectuados. 11) Do teor dessa correspondência electrónica consta a confirmação, alegadamente prestada pelo Banco através do seu funcionário DD, que os valores depositados se encontravam retidos em virtude das necessárias operações de compliance exigidas pelo ..., tendo o arguido fornecido tal informação à sociedade ofendida. 12) Contudo, o endereço de correio electrónico utilizado por DD é o ...”, e não o endereço de correio electrónico ..., criado pelo arguido. 13) Com as condutas descritas, agiu o arguido aproveitando o facto de ter acesso ao dinheiro da sociedade ofendida, em virtude das funções que exercia para a mesma, com o propósito, concretizado, de integrar no seu património a quantia global de 23.031,10€, não obstante saber que a mesma não lhe pertencia e que era da sociedade ofendida, causando-lhe um prejuízo em igual valor. 14) Assim, o arguido fez sua a quantia global de 23.031,10€, apropriando-se da mesma, sabendo que tal quantia pertencia à sociedade ofendida “...”, actuando sem o conhecimento e consentimento da mesma e contra a sua vontade, bem sabendo que tal quantia lhe tinha sido entregue por título não translativo da propriedade, apenas para que o arguido a transportasse para a instituição bancária e procedesse ao seu depósito na conta bancária da ofendida. 15) Ao elaborar e utilizar os “destacáveis” de envelopes de depósito semelhantes aos que são entregues pelo Banco após a realização de um depósito, sabia o arguido que elaborava um documento que não correspondia à realidade, induzindo outras pessoas em erro, para seu benefício. 16) O arguido agiu com o propósito de iludir a sociedade ofendida, simulando que havia procedido ao depósito das quantias que recolhera da loja do ..., em benefício próprio e em detrimento da ofendida, prejudicando a segurança e credibilidade do tráfico jurídico probatório. 17) Com a sua actuação pretendeu o arguido fazer crer perante terceiros que aqueles “destacáveis” eram verdadeiros, bem sabendo que, dessa forma, abalava a segurança, genuinidade e credibilidade que documentos como o ora em causa revestem perante a generalidade das pessoas. 18) O arguido sabia que atentava contra a fé pública daqueles documentos, sabendo que se tratavam de documentos destinados a provar a realização de depósitos em contas bancárias, o que quis e conseguiu. 19) Ao criar um endereço de correio electrónico em nome do gestor de conta DD, do ..., ao utilizar o referido endereço electrónico, que informaticamente criou, e ao efectuar a troca de correspondência supra descrita, o arguido produziu dados e informações informáticas que sabia não serem verídicas, com intuito de enganar terceiros, fazendo crer a estes que o utilizador desse endereço de correio electrónico e autor da correspondência de e-mail era o funcionário do ..., DD. 20) Bem sabia o arguido que, com tais condutas, criava equívoco nas comunicações efectuadas através de correio electrónico, e que criava mensagens de correio electrónico não genuínas, por não serem realizadas pela pessoa que se identifica como sua autora, criando em terceiros a convicção de que o autor dessas mensagens era DD, gestor de conta da conta bancária da sociedade ofendida. 21) Assim, conhecia o arguido os factos e agiu sempre de forma consciente, livre e voluntária, bem sabendo serem as suas condutas proibidas por lei e punidas criminalmente, e tinha capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento. 22) O arguido encontra-se no estado civil de solteiro, reside com a mãe. 23) O arguido reside em casa arrendada, pela qual paga mensalmente a quantia de €850,00. 24) O arguido é consultor imobiliário, auferindo mensalmente a quantia de €2.500,00. 25) O arguido tem o 11.º ano de escolaridade. 26) O arguido não tem antecedentes criminais. Não se provou qualquer que: a) Ademais, em dia não apurado do final do mês de ..., o arguido procedeu à recolha das quantias geradas na loja do ..., no valor global de 8.512,83€ (oito mil, quinhentos e doze euros e oitenta e três cêntimos), correspondente aos ganhos do período compreendido entre ... de ... de 2019 e ... de ... de 2019. b) Contudo, o arguido não depositou a referida quantia na conta bancária da sociedade ofendida, com o IBAN ..., como lhe era devido em virtude das suas funções, tendo ficado com esse dinheiro e usando- o em benefício próprio. * B- Da motivação de facto e exame crítico das provas exarados na sentença recorrida: É a seguinte a motivação da decisão de facto apresentada na sentença recorrida: O Tribunal norteou a sua convicção quanto à matéria de facto, valorando a prova produzida e examinada em audiência da forma que, abaixo, se discrimina. O arguido não prestou declarações. Contudo, das declarações conjugadas de todas as testemunhas inquiridas, aliadas ao contrato de trabalho de fls.13 a 33, conclui-se que o arguido trabalhou para a ofendida a partir de ... de ... de 2012, exercendo funções inerentes à categoria profissional de Chefe de Vendas, na loja do ...; a ofendida dedica-se importação, exportação, confecção e venda por grosso e/ou a retalho de todo o tipo de peças de vestuário, complementos, artigos de decoração, artigos têxteis para o lar e tapeçarias, bem como todo o tipo de artigos de consumo duradouro, conforme se extrai da certidão permanente de fls. 337. Também as testemunhas BB e CC, que trabalhavam como subordinadas do arguido na mencionada loja, esclareceram que em ... aí, este passou a ser o único, na qualidade de superior hierárquico que procedia ao transporte das quantias geradas sobre as vendas realizadas na loja do ... até ao Banco e depósito daquelas na conta bancária da sociedade ofendida, sediada no Banco Millennium BCP e com o ... Também DD, bancário, confirma que o arguido fazia a ponte entre o Banco e a ofendida. Assim, cremos que a prova é clara quanto ao facto de o arguido ser o único a efectuar estes depósitos, não existindo qualquer outra pessoa, à data da prática dos factos, que o fizesse e lidasse com o banco em representação da ofendida. A acusação imputa ao arguido que no mês de ..., procedeu à recolha das quantias geradas na loja do ..., no valor global de 23.031,10€ e não as depositou na conta bancária da sociedade ofendida, tendo ficado com esse dinheiro e usando-o em benefício próprio. Tratar-se-iam de quatro valores distintos: 4.352,65€, 4.505,34€, 8.402,66€ e 5.770,44€. A defesa argui, e bem cremos, que há que garantir, antes, que está provado que esses valores entraram em loja, antes de avançar e concluir por uma subtracção ilícita por parte do arguido. Ora, atendendo ao lapso temporal decorrido é evidente que nenhuma das testemunhas trabalhadoras na loja consegue assegurar que dinheiro fez a loja no período entre ... de ... de 2019 e ... de ... de 2019. Mas a contagem semanal de dinheiro entrado em loja nesse período (fls. 34 a 36) atesta 8.402,66€ de ... de ... de 2019 a ... de ... de 2019, 5.770,44€ de ... de ... de 2019 a ... de ... de 2019, 4.505,34€ de ... de ... de 2019 a ... de ... de 2019 e 4.352,65€ de ... de ... de 2019 a ... de ... de 2019. É certo que se trata apenas de um documento da ofendida, mas é aliado ao e-mail de fls. 38 de ..., onde alguém, que se identifica como “AA” e trabalhador da ofendida, comunica às chefias o recebimento desses valores em caixa e que foram colocados em quatro sacos de depósito para serem depositados, pelo que não temos dúvidas de que a ofendida teve estes valores em caixa, pois que parece indiscutível que alguém, com um email profissional da ofendida, informa as chefias, em ... de ... de 2019, da entrada em caixa de €23.031,10. O email já referido, além de mencionar as quantias, refere que fará o depósito das mesmas em quatro sacos de depósito distintos – N023487441 -4.352,65€; N023487440 -4.505,34€ ; N023487441-8.402,66€; N023487441 - 5.770,44€. A acrescer, é remetido à ofendida (fls. 40), fotografia do comprovativo desses depósitos. Contudo, é manifesto que as quantias não foram depositadas, pois que a ofendida cuidou de saber o que sucedeu com esses depósitos e o mesmo email ... (fls. 41, 42 e 42)) envia um email DD, bancário, a ... -, onde solicitava esclarecimentos relativamente aos depósitos efectuados, que não ingressaram na conta. O email ... reencaminha à ofendida a alegada resposta do banco,através do seu funcionário DD, que os valores depositados se encontravam retidos em virtude das necessárias operações de compliance exigidas pelo ..., tendo o arguido fornecido tal informação à sociedade ofendida (fls. 44). Sucede, porém, que DD confirma em julgamento que o seu endereço electrónico não é, nem nunca foi ..., mas .... Assim, sendo claro que as quantias não foram depositadas e que este e-mail não pertence a DD, é de alguma facilidade concluir que alguém forjou os talões comprovativos de depósito, falsificou um endereço de email para se fazer passar por DD e para demonstrar a existência de contactos com o banco e, inevitavelmente, subtrair a quantia de €23.031,10. Significa isto que parece claro que o objectivo seria a apropriação desta quantia e que foi a pessoa que se apropriou que elaborou ou participou na falsificação dos documentos e do endereço electrónico para o alcançar. A pergunta principal é, no entanto, se o autor destes factos é o arguido. E ainda que não exista qualquer prova directa desse facto, cremos que há indícios bastantes para alcançar essa conclusão. Responder à pergunta se o remetente desse email ... é o arguido é o passo seguinte: note-se que era o arguido que tinha a função de contactar com as chefias em ... e comunicar precisamente os valores recebidos, ou seja, justamente o conteúdo desse email. Significa que o conteúdo do email está dentro do escopo de funções do arguido. Também a sua assinatura como “...” consta do final, o de se atesta que tem precisamente o cargo que decorre do seu contrato de trabalho. Em momento algum foi sinalizado ou aludido que a conta profissional do arguido tenha sido alvo de interferência ilícita. Acresce que é também através deste email que, uma vez mais decorrente das suas funções, inicia conversações com o banco acerca dos alegados depósitos. Estava também na sua disponibilidade de conhecimento saber o email do gerente bancário DD para simular uma conversa e mostrar aos seus superiores. Assim, dúvidas não temos que o endereço de correio electrónico pertende ao arguido. E, se assim é, praticou tudo o que consta desses mesmos emails. Desde o recebimento das quantias, à simulação de falsos depósitos. Em suma, o arguido tinha a funções de recolher e depositar o dinheiro e é no âmbito das suas funções que este desaparece e que surge uma série de falsificações. O arguido não tem de contribuir para a descoberta da verdade, mas deveria ter esclarecido o que sucedeu para que o dinheiro desparecesse, sobretudo se só ele tem, ou deveria ter, acesso ao mesmo. Não o fazendo, o Tribunal não pode concluir de outra forma senão que se é o arguido que tem aquele dinheiro, se lhe incumbe depositá-lo e esse depósito não ocorre e se não é trazida qualquer explicação lógica e plausível para tal, só podemos concluir que a pessoa (única) a quem as funções foram confiadas não as cumpriu adequadamente. Parece, também, a única pessoa com a capacidade de forjar todos estes elementos – os talões de depósito e o email de DD, pois que em alternativa estaríamos a falar da falsidade informática de dois emails e não apenas de um, e, insistimos, em momento algum o arguido se queixou de interferências ilícitas no seu email profissional. Sabemos que o arguido, à data, era o único com acesso ao dinheiro para o depositar. Não foi trazida qualquer prova que faça duvidar que só o arguido, nesta data, teria estas funções em exclusivo. Dinheiro este que, apesar do tempo decorrido, até ao momento não foi devolvido. Já quanto ao valor de € de 8.512,83€ (oito mil, quinhentos e doze euros e oitenta e três cêntimos), correspondente aos ganhos do período compreendido entre ... de ... de 2019 e ... de ... de 2019, ainda que haja comprovativo do seu recebimento em loja (fls. 48), não se apurando nada do que lhe sucedeu depois não se prova que foi por virtude de uma qualquer actuação do arguido que este desapareceu. Ao contrário dos demais valores não se sabe se em algum momento estiveram na posse do arguido e não foram depositados, já que, a respeito dos mesmos, não foi sinalizada qualquer irregularidade pelo banco, nem o arguido se refere a estes valores no seu e-mail. Em sede de condições de vida, designadamente quanto à situação económica, social e familiar do arguido, o Tribunal fez fé no declarado pelo próprio. Relativamente aos antecedentes criminais do arguido, o Tribunal formou a sua convicção com base no teor do Certificado de Registo Criminal juntos aos autos. * II.3- Da análise do recurso A- Da impugnação da matéria de facto quanto aos factos provados 4 a 21 É consabido que em face do nosso quadro normativo, a decisão da matéria de facto em sede de recurso pode ser sindicada por duas vias diferentes: Ou através da invocação dos vícios referenciados no artº 410º nº 2 do CPP (a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova), vícios, aliás, de conhecimento oficioso (mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito3), no que se vem denominando de revista alargada. Ou mediante o que se vem denominando de impugnação ampla, procedendo-se à invocação de erros de julgamento, de harmonia com o estatuído no artigo 412º nºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma. Como resulta das conclusões apresentadas, o recorrente socorre-se desta última forma de impugnação para pôr em crise a decisão recorrida no que respeita aos factos dados por provados de 4 a 21, alicerçando a sua argumentação na inexistência de prova testemunhal e documental que os sustente. Dispõe o artº 412º, na parte que ora releva: (…) 3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas. 4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata nos termos do nº 2 do art.º 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. 5- (…) 6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.” Em suma, tem o recorrente expressamente que indicar: a) Os factos individualizados que constam da sentença recorrida e que considera incorretamente julgados; b) O conteúdo específico do meio de prova e com a explicitação da razão pela qual essas provas impõem decisão diversa da recorrida; e c) Se for caso disso, os meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, no âmbito dos vícios previstos no artigo 410º nº 2, do CPP, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. o artigo 430º nº 1, do CPP). Como se refere no AC.RC.12.07.20234 a impugnação alargada não se satisfaz com mera discordância do recorrente quanto à valoração feita pelo tribunal recorrido quanto à prova produzida, contrapondo apenas os seus argumentos, críticas, a negação dos factos, suscitando dúvidas – próprias que não do julgador - e não analisando o teor dos depoimentos indicados nas respetivas passagens da gravação, indicando por que tal facto ou factos devem ser dados como provados ou não provados. Por outro lado, não é inócua a utilização do verbo “impor” que é feita na alínea b) do nº 3 do artº 412º. Na verdade, não basta estar demonstrada a mera possibilidade de existir uma solução, em termos de matéria de facto, alternativa à fixada pelo tribunal, sendo necessário que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido, em sede de matéria de facto provada e não provada, à solução por si (recorrente) defendida, e não àquela consignada pelo tribunal recorrido5. Com efeito, como referido no Acordão da Relação de Lisboa, desta secção, de 22.01.20256, não é suficiente a demonstração da possibilidade de existir uma seleção em termos de matéria de facto alternativa à da constante da decisão recorrida sendo necessário que o recorrente demonstre que a prova produzida em julgamento só poderia ter conduzido à matéria de facto provada e não provada por si propugnada e não àquela fixada na decisão recorrida. O recurso sobre a matéria de facto não está configurado no nosso sistema processual penal como um segundo julgamento, mas sim como um mecanismo de correção. Destarte a modificação da decisão recorrida pelo Tribunal de recurso só poderá ter lugar se, depois de cumprido o ónus de impugnação previsto no citado art. 412º nºs 3, 4 e 6 do Código de Processo Penal se vier a apurar que a decisão recorrida sobre os precisos factos impugnados em face da prova concretamente produzida no processo, deveria necessariamente ter sido a oposta. Ora, no caso em apreço, o recorrente, sem cumprir tal ónus, limita-se a pôr em causa a matéria de facto provada, descrita nos factos 4 a 21, que no seu entendimento deveriam ser dados como não provados, baseando-se tão somente na valoração pessoal que faz dos depoimentos das testemunhas BB, CC e DD, os quais, em seu entender, são inconsistentes e não poderiam levar às conclusões que a decisão recorrida extraiu dos mesmos. Analisada esta decisão, mormente a motivação exarada quanto à matéria de facto (cf. II.2-B), e ouvidos os depoimentos de tais testemunhas, aquilo que se verifica é que o tribunal fez um exame crítico das provas, conjugando todos os meios de prova produzidos e explicando, por referência às razões de ciência, ao grau de verosimilhança e ao conteúdo de cada um deles, conjugando-os na sua globalidade e explicando o raciocínio lógico em que alicerçou a sua convicção. Aliás, o próprio tribunal, na análise conjugada de tais meios de prova, não deixa de mencionar a inexistência de prova directa para os montantes existentes em caixa e para a autoria dos factos por parte do recorrente, pois desenvolve de seguida a articulação que fez dos depoimentos das testemunhas supra referidos com a prova documental, para, apesar de tal inexistência, concluir da forma como concluiu. Acresce que a explicação do tribunal recorrido é lógica, assenta em critérios de senso comum e nos princípios da imediação, da oralidade e do contraditório que são característicos da audiência de julgamento, revelando absoluto respeito do princípio de livre apreciação da prova previsto no artº 127º do CPP, pelo que terá que prevalecer, sobre a divergente convicção do arguido acerca do sentido global da prova. Conclui-se, pois, que a argumentação expendida pelo recorrente, quer na motivação, quer nas conclusões do recurso, não é de todo eficiente para produzir qualquer alteração da matéria de facto. Improcede, pois, neste segmento, o recurso. * B- Se foi violado o princípio do in dubio pro reo Sustenta o recorrente que a decisão recorrida violou tal princípio porquanto imputa-lhe a autoria dos factos com apelo a prova indirecta. É consabido que o princípio do in dubio pro reo constitui uma manifestação do princípio da presunção da inocência, consagrado no artº 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa. Tal princípio constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe que perante uma dúvida objectiva e razoável que não foi ultrapassada em audiência, o non liquet sobre os factos constitutivos da infracção criminal (ou sobre factos que afastem a ilicitude ou a culpa) deve transformar-se numa decisão favorável ao arguido. Como referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18.05.2022, desta secção7a concatenação entre os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo e o da admissibilidade da prova indirecta, através de presunções judiciais em Direito Penal, implica que as dúvidas acerca da demonstração de determinados factos, sejam resolvidas em benefício do arguido, conduzindo à sua absolvição, mas a questão da existência da dúvida e consequente aplicação deste princípio só pode colocar-se depois de esgotado todo o iter probatório, ou seja, quando o non liquet persiste, mesmo depois de analisadas todas as provas directas e de concluído todo o esforço lógico-dedutivo inerente ao apuramento dos factos através de presunções judiciais. Como tal, este princípio só funciona, quando analisados todos os meios de prova e de feita toda a sua análise crítica, o tribunal permanecer em dúvida quanto a factos decisivos para a decisão da causa. Importa, no entanto, sublinhar que a prova directa não é a única prova de que o tribunal se pode socorrer, podendo a prova dos factos assentar em prova indiciária, sem que tal seja incompatível com o princípio da presunção de inocência, posto que aquela seja objectivável e fundamentada. Com efeito, o indício apresenta grande importância no processo penal, já que nem sempre se têm à disposição provas directas que autorizem a considerar existente a conduta perseguida e então, ante a realidade do facto criminoso, é necessário fazer uso dos indícios, com o esforço lógico – jurídico intelectual necessário, antes que se gere impunidade8. A este propósito diz-nos também o AC.STJ.09.02.20129 que para que seja possível a condenação não basta a probabilidade de que o arguido seja o autor do crime nem a convicção moral de que o foi. É imprescindível que, por procedimentos legítimos, se alcance a certeza jurídica, que não é desde logo a certeza absoluta, mas que, sendo uma convicção com génese em material probatório, é suficiente para, numa perspectiva processual penal e constitucional, legitimar uma sentença condenatória (…). Como tal, a enunciação da prova indiciária como fundamento da convicção do juiz tem de se expressar no catalogar dos factos base ou indícios que se considere provados e que se vão servir de fundamento à dedução ou inferência e, ainda, que na sentença se explicite o raciocínio através do qual se conclui pela verificação do facto punível e da participação do arguido no mesmo. Analisada a decisão recorrida, designadamente a motivação da decisão de facto, logo se constata que o tribunal não ficou em estado de dúvida. Pelo contrário, fica-se a conhecer, de forma clara e escorreita, o processo de formação da sua convicção, através do enunciado sobre o exame crítico da prova, com a justificação das razões pelas quais foram valorados e tidos em consideração os depoimentos das testemunhas indicadas, em conjugação com os demais meios de prova produzidos, referentes a todos os segmentos da decisão, como supra já se deixou explícito. Assim sendo, na ausência de qualquer dúvida por parte do julgador, é desprovido de fundamento apelar-se a este princípio, pelo que improcede também este segmento do recurso. * Julgados improcedentes os segmentos do recurso até aqui apreciados, mantém-se inalterada a matéria de facto decidida pela primeira instância, pelo que se mantém evidentemente provados os elementos constitutivos dos crimes pelos quais o recorrente foi condenado, designadamente os elementos – objectivo e subjectivo - dos crimes de abuso de confiança agravado, de falsificação de documento e de falsidade informática, cabendo apenas apreciar a última questão suscitada no recurso. * C- Se a declaração da perda a favor do Estado das vantagens do ilícito em simultâneo com a subordinação da suspensão de execução da pena de prisão à condição de pagamento de quantia ao ofendido constitui dupla incriminação. Como supra se referiu, a sentença recorrida, entre o mais, decidiu: - Suspender a execução da pena de prisão de um ano e três meses, pelo período de três anos, subordinada à condição de pagamento ao ofendido de € 11.515,55, correspondente a metade da quantia apropriada, no prazo da suspensão, a contar do trânsito da sentença. - Declarar a perda a favor do Estado das vantagens do facto ilícito típico de falsificação de documento com a consequente condenação do arguido no pagamento ao Estado da quantia de 23.031,10 €. No que concerne à suspensão de execução da pena de prisão, refere a decisão recorrida que: (…) Ora, perante a ausência de condenações à data da prática dos factos, o Tribunal considera, neste caso, atendendo à gravidade da conduta e, sobretudo, à gravidade das consequências, que o arguido será capaz de conduzir a sua vida de modo lícito e adequado pela via da suspensão da execução da pena de prisão, acreditando-se que a simples censura do facto e a ameaça de cumprimento de pena de prisão que advém da sentença, o afastará da criminalidade, não se duvidando da capacidade de compreensão da oportunidade de ressocialização e confiança oferecida, e que se regerá conforme o direito. Assim, e porque o seu prazo não pode ser inferior a um ano, decide o tribunal suspender a execução da pena de prisão de um ano e seis meses aplicada ao arguido por três anos. É manifesto que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada não é, por si só, suficiente nem satisfaz as exigências de prevenção e o reforço na comunidade no cumprimento da norma jurídica violada. Dificilmente se pode discutir com a ideia de ser justo o ressarcimento do dano sofrido pelo lesado por parte do arguido, nos termos do artigo 51.º do Código Penal. No geral, tem-se aceite esta condição como adequada, contando que obedeça a um princípio de razoabilidade, não devendo ser fixada uma obrigação que ao condenado seja, previsivelmente, impossível cumprir. Atendendo à idade do arguido, que o mantém, previsivelmente, no mercado laboral durante largos anos, a ganhar, pelo menos, o salário mínimo disponível, ou os rendimentos acima da média que atestou, e atendendo à justeza da condição como forma final e última de tentativa de reparação do mal do crime causado à vítima, somos de entender que deverá o arguido, no prazo de da suspensão, efectuar pagamento à ofendida. Assim sendo, entende o Tribunal subordinar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento pelo arguido à ofendido metade da quantia apropriada de 23.031,10 €, ou seja, €11.515,55 (onze mil, quinhentos e quinze euros e cinquenta e cinco cêntimos), no prazo da suspensão, a contar do trânsito em julgado da presente sentença, disso fazendo prova nos autos. Por sua vez, quanto à perda de vantagens patrimoniais, refere a decisão recorrida: Uma vez que a mesma foi requerida pelo Ministério Público, sendo ainda obrigatória - mesmo quando o valor já integra a indemnização civil judicialmente pedida e atribuída ao lesado pelo mesmo facto (cfr. AUJ STJ de 11 de Abril de 2024, Proc. N.º 1105/18.7T9PNF.P1-A.S1, in dgsi.pt) - e subtraída a qualquer critério de oportunidade ou utilidade, nos termos previstos no art.º 110.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, decreta-se a perda a favor do Estado das vantagens do facto ilícito típico de abuso de confiança agravado, com a consequente condenação do arguido no pagamento ao Estado da quantia de 23.031,10 €. Ora, desde já se diga que a subordinação da suspensão da execução da pena de prisão à condição de pagamento à ofendida de determinado montante e a declaração de perda de vantagens são realidades distintas e com objectivos também distintos. Como decorre do artº 51º do CP, a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres destinados a reparar o mal do crime, de entre os quais se destaca o dever de pagar, dentro de certo prazo, no todo ou em parte, uma indemnização ao lesado. Temos, pois, subjacente a esta suspensão condicionada, um cariz reparador dos prejuízos sofridos com o cometimento do crime. Por sua vez, a perda de produtos e vantagens, regulada no artº 110º do CP visa colocar o agente na situação patrimonial em que se encontraria se não houvesse sido praticado o facto ilícito, de molde a contrariar a motivação económica que esteve na origem da prática criminosa, que deverá ser combatida com medidas de carácter patrimonial, designadamente, através da apropriação dos proventos obtidos. Com efeito, como referido no Acordão Uniformizador de Jurisprudência 5/202410a sua finalidade assenta, pois, na prevenção geral e especial, na medida em que deve assegurar que os agentes que praticam factos ilícitos ficam privados de todos os proventos e benefícios obtidos com essa actividade. Só desta forma se garante o brocardo “o crime não compensa”, o que não tem sido conseguido exclusivamente com a aplicação da pena. Acresce que, e quanto à sua natureza jurídica, como se refere no mesmo aresto, trata-se de uma providência sancionatória, com propósitos de prevenção, quer geral, quer especial, na medida em que funciona como verdadeiro travão à prática de novos ilícitos típicos, uma vez que retira aquilo que, por vezes, é o principal estímulo do crime – o lucro. Por outro lado, permite transmitir de forma clara e evidente à comunidade a mensagem de que o crime não pode compensar. Ora, o facto de a decisão recorrida condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento de determinada quantia ao lesado simultaneamente declarar perdido a favor do Estado as vantagens obtidas com a prática de um facto ilícito típico, in casu o crime de abuso de confiança agravado, não significa que se esteja a responsabilizar duplamente o arguido. Na verdade, considerando as distintas finalidades e naturezas acima referidas, é bom de ver que o carácter sancionatório da pena de prisão (ainda que suspensa na sua execução e condicionada ao pagamento de determinada quantia à ofendida) está ausente do mecanismo de perda de vantagens. Como referido no Acordão da Relação do Porto de 29.06.202211no modelo, que é o nosso, de mera restauração de uma ordem patrimonial conforme ao direito, o confisco não é uma pena. Está em causa, apenas, corrigir uma situação patrimonial ilícita que não goza de tutela jurídica. O mecanismo dirige-se contra os próprios bens, sem qualquer juízo de censura da acção ou omissão individual que lhes está subjacente. Precisamente por esta ordem de razões, como bem se assinalou na decisão recorrida, a decisão referente à perda de vantagens, posto que requerida pelo Ministério Público, está subtraída a qualquer juízo de oportunidade ou utilidade, não podendo o juiz deixar de a decretar na sentença. Assim sendo, improcede também este segmento do recurso. * III- Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo recorrente AA confirmando na íntegra a decisão recorrida. * Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s (artºs 513º do CPP e 8º nº 9 do RCP, por referência à Tabela III anexa ao mesmo). Notifique. * Lisboa, 3 de Dezembro de 2025 Lara Martins Rui Miguel Teixeira João Bártolo _______________________________________________________ 1. Neste acórdão é utilizada a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, no entanto, nas citações, a grafia do texto original 2. De acordo com o estatuído no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995. Cf. também Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, e Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 7ª ed., pág. 89. 3. Cf Acordão do STJ 7/95 para fixação de jurisprudência de 19.10.1995 4. No processo 982/20.6 PBFIG.C1, www.dgsi.pt/jtrc.nsf 5. Cf. a este propósito AC.RP.05.06.2024 no processo 466/21.5 PAVNG.P1, www.dgsi.pt/jtrp.nsf 6. No processo 649/22.0 PBOER.L1 7. No processo 101/17.6 SULSB.L1, disponível em www.dgsi.pt/jtrl.nsf 8. Prieto-Castro y Fernandiz e Gutiérrez de Cabiedes, citado por Euclides Dâmaso Simões, Prova Indiciária (Contributos Para o Seu Estudo e Desenvolvimento em Dez Sumário e Um Apelo Premente), Revista Julgar nº 2 pg 203 ss 9. www.dgsi.pt/nsf.jstj 10. Diário da República, 1ª Série de 09.05.2024 11. No processo 638/17.7 IDPRT.P2, www.dgsi.pt/jtrp.nsf |