Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4906/2007-7
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: COMPETÊNCIA TERRITORIAL
CONHECIMENTO OFICIOSO
INCOMPETÊNCIA RELATIVA
OMISSÃO
NULIDADE PROCESSUAL
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/05/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- A apreciação oficiosa da excepção de incompetência territorial, nos termos do artigo 110.º/1 do Código de Processo Civil, deve ser reservada para os casos em que os autos forneçam os ‘ elementos necessários’.
II- Tal não ocorre quando, em face do requerimento inicial de arrolamento, a determinação da competência obriga a ponderar, nos termos os artigo 83.º/1, alínea a), o local onde se situam os bens a arrolar, o tribunal onde será proposta a acção, tendo em conta o domicílio dos requeridos (artigos 85.º e 87.º) ou o local de cumprimento da obrigação de entrega dos bens (artigo 74.º).
III- A omissão do dever de apreciar a incompetência territorial não determina a anulação dos actos subsequentes praticados a não ser que tal omissão tenha exercido influência no exame e decisão da causa.
IV- Esta interferência não é decorrência automática da verificação formal daquela omissão, exigindo a prova de uma efectiva interferência no resultado da causa.
(AG)
Decisão Texto Integral:
I – S.[…] Ldª,
requereu contra

R.[…],tt
P.[…]
e
C.[…] Ldª,
procedimento cautelar de arrolamento.

Alegou para o efeito que o primeiro requerido, na qualidade de comissionista, colaborou com a requerente na promoção do aluguer e venda de gruas a que a requerente se dedica.

No âmbito da sua actividade, o primeiro requerido entregava gruas a clientes que angariava, para que as examinassem ou experimentassem antes de procederem à sua aquisição ou aluguer; em relação às gruas que alugava, o primeiro requerido ficava com a função de cobrar a contraprestação e remetê-la à requerente.

Foi assim que procedeu ao aluguer de duas gruas, uma a cada um dos restantes requeridos, as quais se encontram em obras situadas, respectivamente, em Mafra e Cascais. No entanto, o primeiro requerido, ausentou-se para parte incerta, deixando de lhe entregar as contraprestações, temendo a requerente pelo destino das referidas gruas.

O arrolamento foi decretado sem audiência contraditória.

Citada a requerida C.[…], depois de efectuado o arrolamento da grua de que era detentora, deduziu oposição ao arrolamento, arguindo, além do mais, a nulidade decorrente do facto de o tribunal não ter conhecido oficiosamente da sua incompetência territorial.

Em seu entender, se acaso tal excepção tivesse sido oficiosamente apreciada, o processo teria sido remetido para o tribunal territorialmente competente, não sendo proferida a decisão que ordenou o arrolamento da grua.

Por tal motivo, tendo sido omitida a prática de um acto que a lei previa, devem anular-se os actos subsequentes, entre os quais a decisão de arrolamento.

Foi indeferida a arguida nulidade com fundamento em que, na ocasião em que foi proferida a decisão cautelar, não constavam do processo elementos bastantes para conhecer da excepção de incompetência territorial.

A requerida agravou deste despacho, concluindo que os autos dispunham de elementos suficientes para que fosse conhecida a incompetência relativa, pelo que, tendo sido omitida a pertinente decisão, ocorreu nulidade processual nos termos do art. 201º do CPC.

Não houve contra-alegações.

II – Decidindo:

1. Cumpre fundamentalmente apreciar se, na data em que foi proferida a decisão de arrolamento, existiam ou não nos autos elementos bastantes para se conhecer da excepção de incompetência territorial que depois foi declarada. Além disso, em termos subsidiários, importa apreciar os efeitos decorrentes da eventual omissão da apreciação da referida excepção dilatória.

Alega a agravante que, fundando-se o pedido de arrolamento das gruas no seu direito de propriedade, a determinação do tribunal territorialmente competente deveria fazer-se com recurso ao critério geral constante do art. 85º do CPC. Considerando que dois dos três requeridos estavam domiciliados em Mafra e que a sede da agravante se situava em Cascais, a competência territorial nunca poderia ser atribuída ao Trib. Judicial de Viseu.

Esta conclusão resultava evidente dos autos, pelo que deveria ter sido conhecida oficiosamente a incompetência relativa e ordenada a remessa dos autos para o tribunal julgado competente, abstendo-se o tribunal a quo de decretar o arrolamento.

2. O agravo não pode ser provido.

Concorrem para a negação do provimento duas linhas argumentativas: uma centrada na apreciação dos elementos que estavam disponíveis na ocasião em que o juiz proferiu a decisão cautelar; outra, de carácter complementar, ligada à natureza e efeitos da eventual omissão de apreciação imediata de incompetência territorial e seus efeitos.

2.1. Quanto à primeira questão:

2.1.1. Nos termos do art. 110º, nº 1, als. a) e b), do CPC, a incompetência territorial deve ser conhecida oficiosamente sempre que os autos forneçam os elementos necessários.

Relativamente ao arrolamento, determina o art. 83º, nº 1, al. a), que a competência pertence, alternativamente:
- Ao tribunal do lugar onde a acção deva ser proposta;
- Ao tribunal do lugar onde os bens se encontrem.

Em casos, como o presente, em que a providência foi decretada sem audiência contraditória e em que, por isso, nem poderia contar-se com elementos trazidos pela contraparte, a apreciação imediata da referida excepção estava naturalmente dependente do confronto entre os elementos apresentados pela requerente e os critérios legais determinativos da competência territorial.

Ora, se acaso o presente arrolamento estivesse na exclusiva dependência de uma acção de natureza real, maxime de uma acção de reivindicação, não havia dúvidas de que, face ao requerimento inicial, era manifesta a incompetência territorial do Trib. Judicial de Viseu.

Com efeito, não existindo para a acção real relativa a bens móveis um critério específico (o qual, nos termos do art. 73º do CPC, apenas abarca acções sobre imóveis), a determinação da competência far-se-ia com recurso ao critério geral constante do art. 85º, nº 1 (a partir do domicílio dos requeridos). Assim, residindo os requeridos em áreas abarcadas por outras comarcas e nenhum deles na área da comarca de Viseu, era manifesto que o Trib. Judicial de Viseu não deteria competência territorial para apreciar o arrolamento, tal como não a teria para conhecer da acção principal. Por outro lado, considerando que na área da comarca de Mafra estavam domiciliados dois dos requeridos, a competência para o arrolamento poderia ser atribuída, por esse critério, ao Trib. Judicial de Mafra, nos termos dos arts. 85º, nº 1, e 87º, nº 1.

Já de acordo com o critério de localização dos bens a arrolar, ao abrigo do qual também poderia determinar-se a competência territorial, nos termos do art. 83º, nº 1, al. a), a requerente poderia optar entre o Trib. Judicial de Mafra e o Tribunal Judicial de Cascais, uma vez que em cada uma das respectivas áreas se encontrava uma das gruas cujo arrolamento se pretendia.

Em suma, na eventualidade de o arrolamento ser instrumental em relação a uma acção mediante a qual se pretendesse fazer valer o direito de propriedade da requerente sobre as gruas, era segura a incompetência territorial do Trib. Judicial de Viseu, sendo a competência atribuída ou ao Trib. Judicial de Mafra ou ao Trib. Judicial de Cascais.

2.1.2. Todavia, ante o requerimento inicial, a definição deste pressuposto processual não se tornava tão evidente. A requerente aludia ao seu direito de propriedade sobre as gruas. Mas, para além de não ter assinalado no requerimento qual a acção que iria instaurar, aludiu ainda a um contrato estabelecido com o primeiro requerido (que qualifica de seu comissionista) e a um contrato em que surgem como sujeitos passivos os restantes requeridos.

O requerimento inicial não prima pela clareza quanto à descrição da realidade em que se funda a pretensão de arrolamento, nem quanto à qualificação jurídica da relação ou das relações ao abrigo das quais duas gruas de que é proprietária passaram a ser utilizadas em obras que o segundo e terceira requerida levam a cabo. Ainda assim, dentro do condicionalismo próprio de um procedimento cautelar, não decorre do requerimento inicial que o nexo de instrumentalidade e de dependência relativamente à acção principal se estabeleça única e exclusivamente a partir da invocação do direito de propriedade. Ao invés, a motivação em que a requerente assentou a pretensão de arrolamento não afasta de todo a possibilidade de ser instrumental em relação a uma acção declarativa sustentada numa relação obrigacional complexa integrando o referido contrato de comissão celebrado com o primeiro requerido e a cedência decorrente de um contrato de aluguer celebrado por este, em representação da requerente, com o segundo e terceiro requeridos.

Trata-se de uma perspectiva que encontra no requerimento suficiente base de sustentação, justificando que o arrolamento pudesse ser encarado pelo tribunal a quo também como medida cautelar antecipatória relativamente a um pedido de restituição tendo como causa de pedir o incumprimento ou a extinção daqueles contratos.

Apreciado, assim, sob este outro prisma o pressuposto da competência territorial, já a incompetência do Trib. Judicial de Viseu não era irremediavelmente posta de lado. É que, então, a determinação do tribunal competente poderia fazer-se também com ponderação do critério previsto no art. 74º, nº 1, na parte em que nele se prevê o lugar do cumprimento da obrigação.

Sob estoutro ângulo de observação, continuaria a ser viável impetrar os Trib. Judiciais de Mafra e de Cascais, pois que nas respectivas áreas se encontravam os bens a arrolar, nos termos do art. 83º, nº 1, al. a). Mas igualmente seria possível optar pelo Tribunal Judicial de Viseu, nos termos do art. 74º, nº 1.

Aplicando ao contrato de comissão normas do contrato de mandato, constitui obrigação do primeiro requerido (comissionista) entregar à requerente o que recebeu no exercício do contrato (art. 1161º, al. e), do CC). Por seu lado, centrando a acção no contrato de locação, recai sobre o locatário a obrigação de restituir a coisa locada, nos termos do art. 1038º, al. i), do CC.
Em face da ausência de norma específica ou de convenção das partes referente ao local onde deve ser cumprida a obrigação de entrega de coisa móvel, determina o art. 773º do CC que deve ocorrer no lugar onde a coisa se encontrava na data da conclusão do negócio.

Deste modo, sem embargo da persistência do critério de fixação da competência para o arrolamento a partir da localização dos bens a arrolar (o que, como se disse, nos conduziria, em alternativa, ao Trib. Judicial de Mafra ou de Cascais) ou com base no domicílio dos requeridos (reconduzindo-nos ao Trib. Jud. de Mafra), da conjugação entre o art. 773º do CC e o art. 74º, nº 1, do CPC, decorre também a possibilidade de optar pelo Trib. Judicial de Viseu, tendo em conta que aqui se situa a sede da requerente, onde presumivelmente se encontrariam as gruas antes de terem sido cedidas ao segundo e à terceira requerida.

2.1.3. Pode, assim, concluir-se que aquando da prolação da decisão liminar não existiam nos autos elementos que inequivocamente excluíssem a competência territorial do Trib. Judicial de Viseu.

Deste modo, devendo o tribunal guiar-se por padrões de segurança, na apreciação oficiosa da incompetência territorial, nos termos do art. 110º, nº 1, do CPC, improcede a arguição da nulidade fundada na omissão do despacho declarativo da incompetência territorial.

2.2. Quanto à segunda questão:

2.2.1. Ainda que porventura se pudesse asseverar que, na ocasião em que o Tribunal decretou o arrolamento, estavam reunidos os “elementos necessários” para que o Mº Juiz a quo apreciasse oficiosamente a incompetência territorial do Trib. Judicial de Viseu, nos temos do art. 111º, nº 1, do CPC, nem assim se produziriam os efeitos anulatórios pretendidos pela agravante.

2.2.2. Nos termos do art. 201º, nº 1, a omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreva só produz a nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade possa influir no exame ou decisão da causa.

Inexiste norma jurídica que prescreva expressamente a nulidade. Por seu lado, a verificação de uma nulidade processual não se basta com uma putativa omissão do dever de declarar a incompetência territorial, exigindo-se que a omissão tenha influído no exame e decisão da causa.

Para tanto não bastaria a constatação de que a decisão cautelar foi proferida pelo Trib. Judicial de Viseu, devendo sê-lo por outro tribunal. Tal constatação nada nos diz quanto aos efeitos que uma alegada omissão de apreciação oficiosa da incompetência produziu no resultado final.

Nem em termos formais, nem sequer em termos substanciais é possível asseverar que o resultado seria diverso se acaso a providência tivesse sido submetida a outro tribunal.

Acresce que a pretendida anulação da tramitação constituiria um efeito que não encontra justificação plausível na natureza e função da excepção dilatória de incompetência territorial.

O modo como se encontra regulado este pressuposto deixa bem evidente a natureza secundária dos interesses que, dentro da orgânica judiciária, subjazem aos critérios de distribuição da competência em função do território.

Na verdade, ao invés de provocar a absolvição da instância, a declaração de incompetência relativa determina tão só a remessa dos autos para o tribunal que for julgado competente (arts. 111º, nº 3, e 493º, nº 2), sem que em caso algum implique a invalidação da tramitação processual anterior. Ao invés, mesmo quando a incompetência territorial é manifesta, os autos prosseguem no tribunal para onde o processo é remetido a partir do ponto em que se encontravam.
Ora, se a declaração de incompetência territorial não afecta a validade dos actos tramitados no tribunal onde o processo foi instaurado, não se encontra no regime legal base para sustentar uma generalizada invalidade dos actos praticados nos casos em que, apesar de a incompetência ser manifesta e ser de conhecimento oficioso, o juiz omita a sua declaração.

2.3. Assim, em síntese:

- A apreciação oficiosa da excepção de incompetência territorial, nos termos do art. 110º, nº 1, do CPC, deve ser reservada para os casos em que os autos forneçam os “elementos necessários”.

- Tal não ocorre quando, em face de requerimento inicial de arrolamento, a determinação da competência obriga a ponderar, nos termos do art. 83º, nº 1, al. a), o local onde se situam os bens a arrolar, o tribunal onde será proposta a acção, tendo em conta o domicílio dos requeridos (arts. 85º e 87º), ou o local de cumprimento da obrigação de entrega dos bens (art. 74º).

- A omissão do dever de apreciar a incompetência territorial não determina a anulação dos actos subsequentemente praticados, a não ser que tal omissão tenha exercido influência no exame e decisão da causa.

- Esta interferência não é decorrência automática da verificação formal daquela omissão, exigindo a prova de uma efectiva interferência no resultado da causa.


IV – Em conclusão:

Face ao exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo, mantendo a decisão recorrida.
Custas a cargo da agravante.
Notifique.
Lisboa, 5-6-07

(António Santos Abrantes Geraldes)

(Maria do Rosário Morgado)

(Rosa Maria Ribeiro Coelho)