Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
27175/20.0T8LSB-A.L1-8
Relator: MARIA DO CÉU SILVA
Descritores: DECISÃO ARBITRAL
EXECUÇÃO
COMUNICABILIDADE DA DÍVIDA
INCIDENTE
ADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1 - Não ter o tribunal recorrido ponderado a posição da exequente quanto à questão da inadmissibilidade do incidente de comunicabilidade, não por a exequente não se ter pronunciado, mas por essa pronúncia ter escapado aos olhos do tribunal recorrido, não constitui nulidade do despacho recorrido.
2 - A conjugação dos arts. 550º nº 2 al. a), 703º nº 1 al. a), 704º, 705º, 729º e 730º do C.P.C. leva-nos a presumir que, se o legislador quisesse excluir a dedução do incidente de comunicabilidade da dívida na execução baseada em decisão arbitral, não empregaria, no art. 741º nº 1 do C.P.C., o termo “sentença”.
3 - A admissibilidade do incidente da comunicabilidade apenas quando a dívida conste de título diverso da sentença encontra a sua razão de ser no art. 34º nº 3 do C.P.C., pelo que não está em conformidade com o espírito do legislador interpretar o termo “sentença” empregue no art. 741º nº 1 do C.P.C. como abrangendo a decisão arbitral.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa

No presente incidente de comunicabilidade deduzido por A… contra I…, na ação executiva que aquela move contra C…, a exequente interpôs recurso do despacho pelo qual foi indeferido o incidente de comunicabilidade de dívida por inadmissibilidade legal.
Na alegação de recurso, a recorrente pediu que seja declarada a nulidade da decisão recorrida; que seja admitido definitivamente o incidente de comunicabilidade da dívida; e que seja desaplicada a norma que se retira do nº 1 do art. 741º do C.P.C., se interpretada no sentido de incluir as sentenças dos tribunais arbitrais no seu âmbito de exclusão, pelo menos nas situações em que o cônjuge do executado não está vinculado pela convenção de arbitragem, por violação do disposto nos arts. 20º e 209º nº 2 da C.R.P.
A recorrente formulou as seguintes conclusões:
«(1) O presente recurso vem interposto da Decisão Recorrida, na qual o douto Tribunal a quo indeferiu o Incidente de Comunicabilidade da dívida deduzido pela Recorrente.
(2) A Decisão Recorrida foi proferida no seguimento do Despacho para Pronúncia, de 06.10.2021, no qual o Tribunal a quo concedeu à Recorrente um prazo de 10 dias para se pronunciar sobre a (in)admissibilidade do presente Incidente de Comunicabilidade.
(3) Em face (i) da data de envio para a Recorrente do Despacho para Pronúncia – 07.10.2021 –, (ii) do prazo de 10 dias concedido pelo Tribunal a quo para a Recorrente se pronunciar, (iii) do disposto no artigo 248.º, n.º 1 do CPC (em particular na sua parte final) e (iv) do disposto na alínea b) do artigo 279.º do CC, conclui-se que o prazo para a aqui Recorrente se pronunciar sobre a (in)admissibilidade de dedução do presente Incidente de Comunicabilidade ao abrigo do disposto no artigo 741.º, n.º 1 do CPC terminava no dia 21.10.2021.
(4) Sucede que o Tribunal a quo não respeitou o prazo por si concedido, tendo decidido a questão da (in)admissibilidade do presente Incidente de Comunicabilidade antes de decorrido o referido prazo – fê-lo no dia 20.10.2021 –, coartando assim à Recorrente o seu direito ao contraditório.
(5) A Decisão Recorrida configura, assim, uma decisão surpresa, atentatória do direito de acesso à justiça, previsto no artigo 20.º da CRP, e do direito ao exercício do contraditório, previsto no artigo 3.º, n.º 3 do CPC.
(6) A ocorrida violação do princípio do contraditório consubstancia uma nulidade, nos termos do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, na medida em que foi omitida uma formalidade que a lei prescreve (cfr. artigo 3.º, n.º 3 do CPC), e da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, que deve ser invocada em sede de recurso, ao abrigo do disposto nos n.ºs 1, alínea d), e 4 do artigo 615.º do CPC, e que desde já se argui para todos os efeitos legais.
(7) Pelo que deve a Decisão Recorrida ser revogada e substituída por outra que declare verificada a nulidade da Decisão Recorrida por violação do princípio do contraditório.
(8) Em todo o caso – e salvo o devido respeito –, o Tribunal a quo equivoca-se na sua apreciação de Direito sobre a (in)admissibilidade do Incidente de Comunicabilidade deduzido pela Recorrente.
(9) O Tribunal a quo adota uma interpretação meramente literal do teor do n.º 1 do artigo 741.º do CPC – que, para mais, não é correta –, sem considerar os elementos sistemático e teleológico de interpretação da lei, e em contraciclo com a jurisprudência pacífica dos nossos tribunais superiores, que entendem ser admissível a dedução do incidente de comunicabilidade da dívida ao abrigo daquele preceito mesmo quando o título executivo seja uma sentença – vd., entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12.03.2019, proferido no âmbito do processo n.º 342/09.0TBCTB-J.C1, mencionado supra.
(10) Com efeito, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores tem assinalado que o ónus de demanda dos dois cônjuges pressuposto pelos artigos 34.º, n.º 3 e 741.º, n.º 1 do CPC apenas se constitui detetando-se uma verdadeira oportunidade processual para fazer intervir o terceiro no processo: não existindo oportunidade processual para convocar o terceiro ao processo, não se pode ter como verificado, coerentemente, um efeito preclusivo de o fazer no futuro, nomeadamente em sede de ação executiva.
(11) Neste contexto, os nossos tribunais superiores têm adotado uma interpretação restritiva do disposto no artigo 741.º, n.º 1 do CPC, advogando que, não tendo havido, até então, oportunidade (processual) para espoletar a comunicabilidade da dívida, o mencionado preceito deve ser interpretado no sentido de ser admissível a dedução do incidente de comunicabilidade da dívida ainda que o título executivo que serve de base à execução seja uma sentença judicial.
(12) Por maioria de razão, a dedução do incidente de comunicabilidade da dívida, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 741.º do CPC, é admissível quando o título executivo seja uma sentença arbitral, porquanto, nestes casos, não se verifica a teleologia justificativa da limitação imposta pelo n.º 1 do artigo 741.º do CPC, i.e.: a da imposição ao credor exequente do ónus de, querendo a comunicabilidade da dívida, demandar ambos os cônjuges em sede de ação declarativa, de modo a obter um título executivo contra os dois cônjuges.
(13) Com efeito, atentas as limitações, impostas pelo disposto no artigo 36.º da LAV, à intervenção de terceiros no processo arbitral, não é descortinável qualquer ónus de demanda conjunta dos cônjuges sempre que um deles não esteja vinculado pela convenção de arbitragem e seja, nessa medida, um terceiro.
(14) A acrescer, note-se que a letra do n.º 1 do artigo 741.º do CPC não é concludente, porquanto se constata que o nosso CPC refere-se frequentemente – para não dizer quase sempre – a «sentença» no seu sentido mais estrito: isto é, apenas para incluir as sentenças dos Tribunais Estaduais.
(15) Na economia do CPC, o termo «sentença» tende a referir-se às sentenças dos Tribunais Estaduais e não às sentenças dos Tribunais Arbitrais.
(16) Assim, o próprio elemento literal da interpretação – numa análise prima facie – aponta para uma interpretação do artigo 741.º do CPC no sentido de apenas se referir às sentenças dos Tribunais Estaduais, e não às sentenças dos Tribunais Arbitrais.
(17) Em face do exposto é manifesta a admissibilidade do incidente deduzido pela Recorrente.
(18) Acresce que a Recorrente não só tinha o ónus de demandar o Executado no Tribunal Arbitral, como se encontrava legal e contratualmente impedida, em face da convenção de arbitragem constante do Acordo Parassocial e das regras legais de competência dos Tribunais Estaduais contempladas no CPC, de demandar a aqui Recorrida na Ação Arbitral, mas também de intentar uma ação declarativa, junto dos Tribunais Estaduais, contra o Executado e a Recorrida de forma a obter a comunicabilidade da dívida.
Vejamos:
(19) Primeiro, a Recorrente tinha o direito – rectius, o ónus, como veremos –, nos termos da convenção de arbitragem constante do Acordo Parassocial, de demandar o Executado, por qualquer litígio emergente do Acordo Parassocial, junto de um Tribunal Arbitral.
(20) Entendimento diverso implicaria, além do desrespeito da «palavra dada», uma manifesta derrogação do disposto no artigo 1.º da LAV.
(21) Mas também do disposto na CRP, em particular nos seus artigos 20.º – limitando, para lá do que é constitucionalmente admissível, o direito de acesso da Recorrente ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva – e 209.º, n.º 2 – porquanto, ao aceitar-se uma interpretação extensiva do disposto no n.º 1 do artigo 741.º do CPC nos termos formulados pelo Tribunal a quo, estar-se-ia a admitir uma limitação, sem justificação, da competência dos Tribunais Arbitrais, mas também a retirar força e valor às sentenças arbitrais, impedindo-as de beneficiarem das regras de comunicabilidade das dívidas conjugais.
(22) Pelo que o disposto no artigo 741.º, n.º 1 do CPC deve ser interpretado no sentido de não incluir as sentenças arbitrais no seu âmbito de exclusão, pelo menos nas situações – como é o caso de que nos ocupamos nos presentes autos – em que o cônjuge do executado não está vinculado pela convenção de arbitragem, devendo uma interpretação diferente motivar a desaplicação da norma que se retira do n.º 1 do artigo 741.º do CPC, porquanto consubstanciaria uma interpretação normativa que se espera que o Tribunal não venha a realizar, atendo o disposto no art. 204.º da CRP, mas que se tal ocorrer, será uma interpretação inconstitucional passível de se repetir noutros casos, o que justificará a intervenção do Tribunal Constitucional, em sede de recurso.
(23) Pelo que, desde já, se suscita a inconstitucionalidade da referida interpretação extensiva do disposto no artigo 741.º, n.º 1 do CPC, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da CRP e no n.º 2 do artigo 72.º da Lei do Tribunal Constitucional.
(24) Segundo, a Recorrente tinha também o ónus de o fazer, o que lhe era imposto pela natureza contratual e vinculativa da convenção de arbitragem.
(25) Esta obrigação é, aliás, corroborada pelo disposto no artigo 1.º da LAV e pelo disposto no artigo 96.º, alínea b) do CPC, que prescreve a incompetência absoluta do Tribunal em situações de preterição do Tribunal Arbitral.
(26) Terceiro, a natureza contratual da convenção de arbitragem implica também que o poder jurisdicional dos árbitros se encontra limitado às partes na convenção de arbitragem – artigo 406.º, n.º 2 do CC –, não podendo assim uma ação arbitral incidir sobre terceiros – como é o caso da aqui Recorrida – que não se encontram vinculados à mesma convenção de arbitragem – vd., a este respeito, os escritos de Mariana França Gouveia, Curso de Resolução Alternativa de Litígios, 3.ª Edição, Almedina, 2019, pp. 128-129; Menezes Cordeiro, Tratado da Arbitragem, Almedina, 2016, p. 336; Manuel Pereira Barrocas, anotação ao artigo 36.º, in Lei de Arbitragem Comentada, 2.ª edição, Almedina, 2018, p. 141; Elsa Dias Oliveira, Arbitragem Voluntária: Uma Introdução, 2020, p. 34; Manuel Pereira Barrocas, Manual de Arbitragem, 2ª edição, 2013, p. 144; Lebre de Freitas, “Algumas implicações da natureza da convenção de arbitragem” in Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, volume II, 2002, p. 626; e ainda os seguintes arestos: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08.09.2011, proferido no âmbito do processo n.º 3539/08.6TVLSB.LL.S1; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11.01.2011, proferido no âmbito do processo n.º 3539/08.6TVLSB.L1-7; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.03.2015, proferido no âmbito do processo n.º 7666/13.0TBOER.L1-1); e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.01.2019, proferido no âmbito do processo n.º 28/14.3TBOHP.C1.S1), todos já mencionados supra.
(27) A Recorrida não subscreveu o Acordo Parassocial e, por isso, não se encontrava vinculada à convenção de arbitragem, pelo que não podia ter sido – como não o foi – demandada na Ação Arbitral que condenou o Executado.
(28) A narrativa seguida pela Recorrida no sentido de que a Recorrente devia ter convidado a ora Recorrida para o processo arbitral não colhe, porquanto a competência e jurisdição do Tribunal Arbitral é sempre limitada pela convenção de arbitragem, pelo que não podia incidir sobre terceiros que não subscreveram ou aderiram à convenção de arbitragem.
(29) Se a ora Recorrida tivesse tempestivamente subscrito ou aderido à convenção de arbitragem, poderia e teria sido demandada na arbitragem; não o tendo feito, o Tribunal Arbitral não tinha competência e jurisdição sobre a ora Recorrida.
(30) Esta narrativa da Recorrida é particularmente perniciosa: no fundo, o que a Recorrida sustenta é que deveria ter sido demandada ou chamada a intervir perante um tribunal incompetente.
(31) Por outras palavras, de acordo com essa narrativa, a Recorrente teria o ónus de demandar ou chamar a intervir a Recorrida perante um tribunal incompetente: como é manifesto, não existe um ónus de colocar uma ação num Tribunal incompetente, seja ele Estadual ou Arbitral, muito menos quando isso comporta uma violação de uma obrigação contratual (in casu, a convenção de arbitragem) assumida de boa-fé.
(32) Está assim em causa a reserva de competência jurisdicional dos Tribunais Estaduais.
(33) Em suma: não existe um ónus de intentar uma ação arbitral contra um terceiro que pela convenção de arbitragem não se encontra vinculado, do mesmo modo que não é descortinável um ónus de intentar uma ação declarativa contra o Executado e a Recorrida junto dos Tribunais Estaduais, para tanto desconsiderando as regras legais de competência dos Tribunais Estaduais e o vínculo que para a Recorrente resulta da convenção de arbitragem; não existe, como é manifesto, um ónus de colocar uma ação num Tribunal incompetente, seja ele Estadual ou Arbitral, muito menos quando isso comporta uma violação de uma obrigação contratual (in casu, a convenção de arbitragem) assumida de boa-fé.
(34) Por tudo, o facto de a Recorrente apenas ter alegado a comunicabilidade da dívida em sede de ação executiva não pode suscitar o efeito preclusório resultante do n.º 1 do artigo 741.º do CPC, dado que só agora se encontra a Recorrente habilitada a suscitar a comunicabilidade da dívida, sem, com isso, preterir o convencionado pelas partes no Acordo Parassocial e incorrer numa manifesta violação das regras legais de competência dos Tribunais Estaduais.
(35) Conclui-se assim, na esteia da Jurisprudência Superior, ser necessária uma interpretação do artigo 741.º, n.º 1 do CPC conforme à Constituição, no sentido de não incluir as sentenças arbitrais no seu âmbito de exclusão, pelo menos nas situações em que o cônjuge do executado não está vinculado pela convenção de arbitragem, sob pena de denegação do acesso à tutela jurisdicional efetiva, postulado pelo artigo 2.º do CPC e pelo artigo 20.º da CRP, e do disposto no artigo 209.º, n.º 2 da CRP, relativamente à tutela e dignidade constitucional dos Tribunais Arbitrais.
(36) Como tal, deverá ser proferida nova decisão pelo Tribunal ad quem, revogando a Decisão Recorrida, que, conhecendo do mérito nos termos do artigo 665.º, n.º 1 do CPC, admita o Incidente de Comunicabilidade deduzido pela Recorrente, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 741.º do CPC.
(37) Em face do exposto, através das presentes alegações de recurso, e pelos fundamentos acima enunciados, peticiona-se que a Decisão Recorrida seja declarada nula em linha com o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, bem como que seja revogada e substituída por uma outra, ao abrigo do artigo 665.º, n.º 1 do CPC, que, conhecendo do mérito, defira o presente Incidente de Comunicabilidade deduzido pela Recorrente.»
 A requerida respondeu à alegação da recorrente, tendo formulados as seguintes conclusões:
«A. A sentença proferida pelo douto Tribunal a quo e objeto do presente recurso, não se encontra ferida de qualquer nulidade.
B. Não houve qualquer desrespeito pelo direito da Recorrente ao exercício do princípio do contraditório, previsto no n.º 3 do artigo 3.º do CPC,
C. Aquando da configuração do incidente, a Recorrente pronunciou-se já quanto à sua admissibilidade.
D. Mantendo agora em sede de recurso alegações que são uma reprodução quase exata da posição assumida na sua petição.
E. Não fosse isso suficiente, depois de ter sido notificada da oposição deduzida pela Recorrida, a Recorrente pronunciou-se, efetivamente, ao abrigo do contraditório, mediante requerimento apresentado a 11.06.2021 (referência Citius n.º 29509940).
F. No referido requerimento, a Recorrente manifesta-se, exercendo o contraditório, quanto às questões que entende pertinentes,
G. não se tendo pronunciado quanto à questão da admissibilidade do incidente de comunicabilidade da dívida, no requerimento por si apresentado, certamente por entender que tal não seria pertinente, uma vez que já o tinha feito anteriormente.
H. Neste sentido, nunca se poderá afirmar que a Recorrente não teve oportunidade de exercer o seu direito ao contraditório relativamente à questão ora sub judice, isto é, o incidente de comunicabilidade da dívida.
I. Para que a Sentença proferida pudesse ser considerada uma decisão surpresa e consequentemente estivesse ferida de nulidade, seria necessário que se estivesse a pronunciar quanto a uma questão que não tivesse sido configurada pela parte ou relativamente à qual não tivesse tido oportunidade de exercer o contraditório – o que não aconteceu.
J. Face ao supra exposto só nos resta concluir que, ao contrário do que a Recorrente pretende fazer crer, não se verifica qualquer violação do princípio do contraditório, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do CPC, nem a sentença proferida se encontra ferida de nulidade, pelo que deve improceder o recurso.
Não obstante,
K. O título executivo na origem dos presentes autos é uma sentença arbitral, que, por sua vez, é uma sentença condenatória, equiparando-se às decisões dos tribunais estaduais, conforme prevê o artigo 705.º, n.º 2 do CPC.
L. É aliás por se tratar de sentença condenatória que é um título executivo (cfr. 703.º, n.º 1, alínea a) do CPC).
M. E é nesse sentido que o legislador faz referência à sentença no n.º 1 do artigo 741.º do CPC, referindo-se à sentença enquanto título executivo, o que por sua vez engloba as sentenças dos tribunais estaduais e dos tribunais arbitrais, não havendo qualquer fundamento legal para uma interpretação em sentido estrito.
N. Tendo isto em consideração, o legislador limitou, no artigo 741.º, n.º 1 do CPC, a possibilidade de o exequente deduzir um incidente de comunicabilidade da dívida, apenas quando esta conste de título diverso de sentença.
O. Esta limitação prende-se com a necessidade de tutela do cônjuge em relação ao qual a comunicabilidade é arguida, de modo a que o mesmo possa não só se pronunciar quanto à comunicabilidade da dívida, como também, participar na produção de prova e fase de discussão, uma vez que tem interesse em contradizer, garantindo-se que possa exercer o seu direito ao contraditório de forma atempada, antes do trânsito em julgado,
P. E evitar que pudesse ser imposto ao cônjuge em sede executiva, uma sentença que não produz efeitos de caso julgado em relação a si (artigos 36.º e 42.º, n.º 7 da LAV, 3.º, 55.º a contrario e 621.º do CPC), relativamente à qual o cônjuge nunca poderia exercer um contraditório pleno, uma vez que teria os fundamentos para embargos de executado fortemente limitados (cfr. Artigos 787.º do CPC, 729.º e 730.º do CPC).
Q. Tudo isto porque o credor tem a possibilidade de, em sede declarativa, optar por demandar apenas o devedor ou demandar conjuntamente o devedor e o seu cônjuge, e, não o tendo feito, vê precludido o seu direito de o fazer posteriormente.
R. Ao contrário do que alega, a Recorrente teve este poder de escolha.
S. A Recorrente não viu vedada a possibilidade de invocar a comunicabilidade da dívida em sede declarativa pelo simples facto de a Recorrida não ter subscrito uma convenção arbitral, não havendo qualquer negação do acesso à tutela jurisdicional efetiva.
T. É certo que a intervenção de terceiros no tribunal arbitral é sempre voluntária e não é possível forçar um terceiro a aderir à arbitragem.
U. Contudo, a Recorrente tinha conhecimento do casamento entre a Recorrida e o Executado já antes da celebração da convenção de arbitragem, conforme resulta do próprio acordo parassocial junto como documento 27 de petição de comunicabilidade e “aquando da entrada do Fundo de Reestruturação Empresarial (FRE) no capital da CCM, em julho de 2013.”
V. E já sabia, quando escolheu celebrar a convenção de arbitragem, que em caso de incumprimento, o Executado poderia tornar-se seu devedor.
W. Aquando do incumprimento deste e antes do recurso à via judicial, a Recorrente sabia muito bem que pretendia avançar judicialmente contra o Executado, com vista à sua condenação ao pagamento de uma quantia certa e que, em caso de procedência, havia a possibilidade de nascer na esfera jurídica do Executado, uma dívida.
X. A Recorrente poderia ter optado por delinear uma ação contra o Executado e a Recorrida, apresentando como causa de pedir a violação do acordo parassocial e o casamento em comunhão de adquiridos, concluindo com um pedido de condenação de ambos.
Y. Liberdade esta que a própria reconhece no parágrafo 5.º da página 11 das suas alegações de recurso.
Z. Prosseguindo nestes moldes junto do Tribunal Arbitral, poderia ter convidado a Recorrida a aderir à arbitragem, nos termos do artigo 36.º da LAV – o que não fez.
AA. Mediante a propositura de uma ação contra ambos e com a causa de pedir acima indicada, o Tribunal Arbitral ter-se-ia considerado incompetente, por falta de subscrição da convenção arbitral por uma das partes, não se pronunciando sobre o mérito.
BB. Em alternativa, poderia ter optado por ultrapassar a não adesão da Recorrida à arbitragem, através da demanda de ambos os cônjuges junto dos tribunais estaduais, em cumprimento do disposto no artigo 34.º, n.º 3, 2ª parte do CPC que estabelece que as ações emergentes de facto praticado por um dos cônjuges que afetem bens comuns ou próprios do outro, devem ser intentadas contra ambos.
CC. Aqui, os tribunais estaduais nunca se declarariam incompetentes, nem tão pouco julgariam improcedente qualquer exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral, precisamente pelo modo como a causa de pedir e o pedido seriam apresentados e por uma das partes não ter aderido à convenção arbitral.
DD. Não haveria incompetência dos tribunais estaduais, mas sim dos tribunais arbitrais.
EE. O processo visado no acórdão invocado pela própria Recorrente no último parágrafo da página 7 das suas alegações, distingue-se da situação em causa nos presentes autos, porque nele não se visava, nem era previsível ao longo do processo de inventário, que o Executado viesse a ser devedor, uma vez que se pretendia apenas definir o quinhão de cada um dos interessados e não uma condenação ao pagamento.
FF. O acórdão em causa não exclui a aplicabilidade do n.º 1 do artigo 741.º do CPC por causa da mera ilegitimidade do cônjuge no processo de inventário, mas sim porque aquando da instauração do processo de inventário não era previsível que dali surgisse uma dívida que fosse suscetível de ser comunicável e, portanto, o credor não tinha a possibilidade de delinear uma relação material controvertida que o permitisse demandar o seu cônjuge.
GG. E é precisamente este o raciocínio que a jurisprudência emprega nas suas decisões.
HH. Improcede também o argumento invocado pela Recorrente, quanto à ilegitimidade da Recorrida em sede declarativa, pois tal como disposto no artigo 30.º, n.º 3, in fine do C.P.C., para efeitos de determinação da legitimidade processual é a relação material controvertida, tal como configurada pelo Autor, que releva.
II. E aqui a Recorrente tinha liberdade de configurar a ação nos termos que melhor lhe aprouvesse, arguindo nomeadamente a comunicabilidade da dívida, o que levaria a que a Recorrida tivesse interesse direto em contradizer, conforme disposto no artigo 30.º, n.º 1 in fine do C.P.C.
JJ. É inclusivamente defendido entre a doutrina portuguesa que a necessidade de demandar ambos os cônjuges é uma situação de litisconsórcio necessário, porque o litisconsórcio tem de acompanhar o direito substantivo, que nesta matéria prevê a responsabilidade patrimonial de ambos os cônjuges pelo pagamento da dívida (cfr. 1695.º do CC);
KK. Mesmo considerando a possibilidade de entre os cônjuges haver um litisconsórcio voluntário e não necessário, o Autor e o Réu têm o ónus de definir o âmbito subjetivo da ação declarativa, sendo unânime que após esta escolha, a dívida eventualmente comunicável converte-se em própria.
LL. Face ao exposto, a aplicação do artigo 741.º, n.º 1 do CPC aos presentes autos e consequente inadmissibilidade legal do incidente de comunicabilidade da dívida não coloca em causa o direito da Recorrente de acesso à tutela jurisdicional efetiva, nem viola o disposto nos artigos 2.º do CPC e 20.º da CRP.
Ainda que assim não se entenda, o que se aduz por mera cautela e dever de patrocínio,
MM. A convenção de arbitragem não foi imposta à Recorrente.
NN. A Recorrente tinha a liberdade contratual de não celebrar qualquer convenção de arbitragem ou ter solicitado que a Recorrente fizesse parte do mesmo, dada a previsibilidade de, surgindo um litígio, ser peticionado o pagamento de montantes ao Executado.
OO. Mas ao abrigo da sua liberdade contratual, escolheu não fazê-lo.
PP. A entender-se que havia uma impossibilidade legal de conhecimento da questão da comunicabilidade em sede declarativa, tal não lhe foi imposto, mas sim foi criado por si própria.
QQ. Foi a Recorrente que limitou, por sua própria vontade, o recurso aos tribunais arbitrais.
RR. Concordar com o raciocínio da Recorrente, criaria uma situação contra legem, porque 1) se estaria a admitir um incidente de comunicabilidade da dívida numa ação executiva que tem por base uma sentença – o que se encontra vedado por lei através do artigo 741.º, n.º 1 do CPC -, 2) porque se estaria a forçar a Recorrida a ser vinculada por uma sentença que não produz quaisquer efeitos sobre si, uma vez que não está abrangida pelo caso julgado (3.º, 55.º a contrario e 621.º do CPC), 3) estar-se-ia a admitir uma execução com um fim e limites que extravasam o título que tem por base, e 4) porque a sentença em causa é arbitral e a Recorrida não aceitou sujeitar-se à arbitragem.
SS. Nos termos do artigo 36.º da LAV, a Recorrida não pode ser forçada a intervir num processo arbitral sem o seu consentimento e a decisão arbitral não a pode vincular,
TT. Consequentemente, em sede executiva não se pode sequer equacionar a hipótese de que uma sentença arbitral a possa vincular, pois seria manifestamente contrário ao disposto nos artigos 36.º e 42.º, n.º 7 da LAV, 3.º, 55.º a contrario e 621.º do CPC,
UU. Até porque este cenário colocaria a Recorrida numa situação mais gravosa do que aquela em que se encontraria se tivesse sido forçada a intervir no processo arbitral sem consentimento, porque estaríamos a forçá-la a vincular-se a uma decisão de um tribunal arbitral, com a agravante de nem sequer poder exercer o contraditório, nem em fase declarativa nem agora em sede de execução, face à forte limitação dos fundamentos para embargos de executado, decorrente dos artigos 729.º e 730.º do CPC.
VV. Face ao exposto, entende-se que o Tribunal a quo andou bem ao decidir pela inadmissibilidade do incidente de comunicabilidade da dívida, não merecendo qualquer reparo.
WW. Pelo que também nesta parte deve improceder o recurso, mantendo-se a sentença recorrida.»
Apreciando a arguição da nulidade da decisão recorrida, o tribunal recorrido pronunciou-se nos seguintes termos:
“Ora, compulsados os autos, verifica-se que, efectivamente, aquando da prolação da sentença – 20.10.2021 – ainda não havia decorrido integralmente o prazo de 10 dias concedido à requerente, para se pronunciar quanto à eventual inadmissibilidade do presente incidente, conforme despacho de fls. 518.
Todavia, bem realça a apelada em sede de contra-alegações, a questão da admissibilidade do presente incidente de comunicabilidade, foi alvo de pronúncia pela própria requerente no requerimento inicial (veja-se o art. 6.º e os artigos 51.º e seguintes do requerimento).
Tal questão foi igualmente discutida pela requerida na sua oposição ao incidente (veja--se art. 7.º e ss. da oposição), oposição regularmente notificada à requerente, sendo que a mesma não estava impedida de se pronunciar imediatamente sobre tal questão, nos termos do art. 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.
Assim sendo, a decisão sob recurso não pode ser considerada uma decisão surpresa, isto é, uma questão totalmente inesperada ou surpreendente para a parte, mostrando-se outrossim discutida nos articulados, razão pela qual entende o Tribunal que a decisão em causa não padece da nulidade invocada.”
São as seguintes as questões a decidir:
- da nulidade da decisão recorrida; e
- da inadmissibilidade do incidente de comunicabilidade.
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Com interesse para a decisão, resulta dos autos o seguinte:
1 - No dia 11 de junho de 2021, a exequente apresentou requerimento do qual consta o seguinte:
“… tendo sido notificada da Oposição ao Incidente de Comunicabilidade da Dívida apresentada pela Requerida… (“Oposição”)1, vem, muito respeitosamente, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 3.º, n.º 3 e 415.º do Código de Processo Civil (“CPC”), expor e, a final, requerer o seguinte:

38. Por fim, a Exequente impugna todas as demais conclusões tecidas pela Requerida na sua Oposição, e reitera tudo quanto foi explanado nos artigos 51.º a 71.º do Requerimento Inicial no respeitante à admissibilidade jurídica do pedido.”
2 - No dia 6 de outubro de 2021, foi proferido despacho do seguinte teor:
“Notifique a requerente para, em 10 dias, se pronunciar quanto à eventual inadmissibilidade do presente incidente de comunicabilidade, atento o disposto no art. 741.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.”
3 - Por notificação elaborada a 9 de outubro de 2021, foi a requerente notificada nos termos ordenados.
4 - A decisão recorrida foi proferida a 20 de outubro de 2021.
5 - Do relatório dessa decisão consta o seguinte:
“Em sede de contestação, para além do mais, invocou a requerida a inadmissibilidade da dedução do incidente de comunicabilidade da dívida em sede executiva, alegando que o título executivo na origem dos presentes autos é uma sentença arbitral e que esta é, por sua vez, uma sentença condenatória, equiparando-se às decisões dos tribunais estaduais, conforme prevê o artigo 705.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
Tendo isto em consideração, o legislador limitou, no artigo 741.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, a possibilidade de o exequente deduzir um incidente de comunicabilidade da dívida, apenas quando esta conste de título diverso de sentença, uma vez que neste cenário, qualquer uma das partes – Exequente e Executado - já poderia e deveria ter invocado a comunicabilidade em sede declarativa, nomeadamente através da demanda de ambos os cônjuges, sob pena de o trânsito em julgado da decisão precludir o seu exercício.
Notificada para se pronunciar quando à invocada excepção, a requerente silenciou.
Cumpre apreciar.”
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A recorrente arguiu a nulidade do despacho recorrido com fundamento no disposto no art. 615º nº 1 al. d) do C.P.C., nos termos do qual “é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Por força do art. 613º nº 3 do C.P.C., aquela disposição é aplicável aos despachos com as devidas adaptações.
A causa de nulidade da sentença prevista na referida disposição legal está diretamente relacionada com o art. 608º nº 2 do C.P.C., segundo o qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
A recorrente afirmou que o tribunal recorrido decidiu a questão da inadmissibilidade do incidente de comunicabilidade antes de decorrido o prazo concedido para ela se pronunciar.
“É postulado tradicional, que o próprio Supremo tem várias vezes proclamado: dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se (…). A reclamação por nulidade tem cabimento quando as partes ou os funcionários judiciais praticam ou omitem actos que a lei não admite ou prescreve; mas se a nulidade é consequência de decisão judicial, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infracção de disposição de lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam-se por meio de recursos (…) e não por meio de arguição de nulidade de processo” (Alberto dos Reis, Código Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 424)
“A arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou formalidade, o meio próprio para reagir, contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente”.
“Se a justificação dos postulados é fácil, nem sempre é fácil fazê-los funcionar com segurança. Há casos nítidos em que a aplicação dos referidos princípios não dá lugar a embaraços.”
“Há outros casos em que o funcionamento concreto dos postulados jurisprudenciais levanta dúvidas. São os casos em que por trás da irregularidade cometida está um despacho, mas este não contem uma pronúncia expressa sobre a irregularidade” (Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2º, pág. 507).
“… são possíveis três situações bastante distintas:
- Aquela em que a prática do acto proibido ou a omissão do acto obrigatório é admitida por uma decisão judicial; nesta situação, só há uma decisão judicial;
- Aquela em que o acto proibido é praticado ou o acto obrigatório é omitido e, depois dessa prática, é proferida uma decisão; nesta situação, há uma nulidade processual e uma decisão judicial;
- Aquela em que uma decisão dispensa ou impõe a realização de um acto obrigatório ou proibido e em que uma outra decisão decide uma outra matéria; nesta situação, há duas decisões judiciais.
No primeiro caso - como aliás resulta expressamente da passagem transcrita de Alberto dos Reis -, o meio de reacção adequado é a impugnação da decisão através de recurso.”
“No segundo caso, o que importa considerar é a consequência da nulidade processual na decisão posterior. Quer dizer: já não se está a tratar apenas da nulidade processual, mas também das consequências da nulidade processual para a decisão que é posteriormente proferida.
Finalmente, no terceiro caso, há que considerar a forma de impugnação das duas decisões”.
“O objecto do recurso é sempre uma decisão impugnada. Portanto, ou há vícios da própria decisão recorrida - hipótese em que o recurso é procedente - ou não há vícios da decisão impugnada - situação em que o recurso é improcedente. O tribunal de recurso não pode conhecer isoladamente de nulidades processuais, mas apenas de decisões que dispensam actos obrigatórios ou que impõem a realização de actos proibidos e das consequências noutras decisões da eventual ilegalidade da dispensa ou da realização do acto.
É, aliás, porque o objecto do recurso é sempre a decisão impugnada e porque o tribunal ad quem só pode conhecer desse objecto que se deve entender que uma decisão-      -surpresa é nula por excesso de pronúncia. A opção é a seguinte: ou se entende que a decisão-surpresa é nula - isto é, padece de um vício que se integra no objecto do recurso e de que o tribunal ad quem pode conhecer - ou se entende que não há uma nulidade da decisão, mas apenas uma nulidade processual - situação em que o tribunal ad quem de nada pode conhecer, porque, então, tudo o que conheça extravasa do objecto do recurso.” - Miguel Teixeira de Sousa, Blog do IPPC, 28/01/2019, Jurisprudência 2018 (163) acessível em https://blogippc.blogspot.com/2019/01/jurisprudencia-2018-163.html
O não ser proporcionada à parte a oportunidade de exercer o contraditório constitui uma nulidade processual que se comunica ao despacho recorrido, implicando a nulidade deste por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º nº 1 al. d) do CPC., dado que o tribunal recorrido se pronunciou sobre questão de que não podia conhecer antes de garantido o contraditório (www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 23 de junho de 2016, processo 1937/15.8T8BCL.S1).
Nos termos do art. 3º nº 3 do C.P.C., “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
“O respeito pelo princípio do contraditório é postulado pelo direito a um processo equitativo, previsto no nº 4 do artigo 20º da CRP. Este princípio é hoje entendido como a garantia dada à parte, de participação efetiva na evolução da instância, tendo a possibilidade de influenciar todas as decisões e desenvolvimentos processuais com repercussões sobre o objeto da causa” (Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Os Artigos da Reforma, Volume I, anotação ao art. 3º).
“… a regra do contraditório deixa de estar exclusivamente associada ao direito de defesa, no sentido negativo de oposição à actuação processual da contraparte, para passar a significar um direito de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo litígio, mediante a possibilidade de influírem em todos os elementos que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão” (Acórdão do Tribunal Constitucional 19/2010).
“A audição excepcional e complementar das partes, fora dos momentos processuais normalmente idóneos para produzir alegações de direito, só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas susceptíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não for exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela” (Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. 1, 2ª edição, pág. 33).
É certo que o tribunal recorrido decidiu a questão da inadmissibilidade do incidente de comunicabilidade antes de decorrido o prazo concedido para a exequente se pronunciar, mas certo é também que essa concessão de prazo se ficou a dever a lapso manifesto do tribunal recorrido, uma vez que a exequente já se tinha pronunciado sobre a questão no requerimento apresentado a 11 de junho de 2021, ao reiterar “tudo quanto foi explanado nos artigos 51.º a 71.º do Requerimento Inicial no respeitante à admissibilidade jurídica do pedido”.
Constando do despacho recorrido que, “notificada para se pronunciar quando à invocada excepção, a requerente silenciou”, é evidente que o tribunal recorrido parte de dois pressupostos que não se verificam:
- o prazo concedido para a exequente se pronunciar já havia decorrido;
- em momento algum, a exequente se pronunciou sobre a questão da inadmissibilidade do incidente de comunicabilidade.
Não há violação do princípio do contraditório, uma vez que a exequente se pronunciou sobre a questão antes de o tribunal recorrido decidir.
O que há, no bom rigor, é falta de consideração, no despacho recorrido, da pronúncia da exequente.
“Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, anotação ao art. 668º).
Assim, não ter o tribunal recorrido ponderado a posição da exequente quanto à questão da inadmissibilidade do incidente de comunicabilidade, não por a exequente não se ter pronunciado, mas por essa pronúncia ter escapado aos olhos do tribunal recorrido, não constitui nulidade do despacho recorrido.
Assim, improcede a arguição da nulidade do despacho recorrido.
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Nos termos do art. 741º nº 1 do C.P.C., “movida execução apenas contra um dos cônjuges, o exequente pode alegar fundamentadamente que a dívida, constante de título diverso de sentença, é comum; a alegação pode ter lugar no requerimento executivo ou até ao início das diligências para venda ou adjudicação, devendo, neste caso, constar de requerimento autónomo, deduzido nos termos dos artigos 293º a 295º e autuado por apenso”.
O art. 9º do C.C. dispõe o seguinte:
“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
Comecemos por analisar o termo “sentença” empregue no art. 741º nº 1 do C.P.C.
Nos termos do art. 703º nº 1 do C.P.C., “à execução apenas podem servir de base:
a) as sentenças condenatórias;
b) os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;
c) os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;
d) os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva”.
Aos requisitos da exequibilidade da sentença se refere o art. 704º do C.P.C.
Conforme resulta do disposto no art. 705º do C.P.C., “são equiparados às sentenças, sob o ponto de vista da força executiva, os despachos e quaisquer outras decisões ou atos da autoridade judicial que condenem no cumprimento duma obrigação”; e “as decisões proferidas pelo tribunal arbitral são exequíveis nos mesmos termos em que o são as decisões dos tribunais comuns”.
A equiparação das decisões arbitrais às decisões dos tribunais comuns estabelecida no art. 705º do C.P.C. é quanto à sua exequibilidade.
Por força do art. 550º nº 2 al. a) do C.P.C., “emprega-se o processo sumário nas execuções baseadas em decisão arbitral ou judicial nos casos em que esta não deva ser executada no próprio processo”.
O art. 729º do C.P.C. enuncia os fundamentos de oposição à execução baseada em sentença e, por sua vez, o art. 730º do C.P.C. enuncia os fundamentos de oposição à execução baseada em decisão arbitral.
A conjugação destas normas leva-nos a presumir que, se o legislador quisesse excluir a dedução do incidente de comunicabilidade da dívida na execução baseada em decisão arbitral, não empregaria, no art. 741º nº 1 do C.P.C., o termo “sentença”.
A admissibilidade do incidente da comunicabilidade apenas quando a dívida conste de título diverso da sentença encontra a sua razão de ser no art. 34º nº 3 do C.P.C., segundo o qual “devem ser propostas contra ambos os cônjuges… as ações emergentes de facto praticado por um deles, mas em que pretenda obter-se decisão suscetível de ser executada sobre bens próprios do outro”.
A questão da comunicabilidade da dívida não pode ser discutida na execução baseada em sentença, porque era na ação declarativa que essa questão deveria ter ficado definida.
Nos termos do art. 36º nº 1 da Lei da Arbitragem Voluntária, “só podem ser admitidos a intervir num processo arbitral em curso terceiros vinculados pela convenção de arbitragem em que aquele se baseia, quer o estejam desde a respetiva conclusão, quer tenham aderido a ela subsequentemente. Esta adesão carece do consentimento de todas as partes na convenção de arbitragem e pode ser feita só para os efeitos da arbitragem em causa.”
Há, sem dúvida alguma, diferenças entre a ação declarativa e o processo arbitral.
Não está, pois, em conformidade com o espírito do legislador, interpretar o termo “sentença” empregue no art. 741º nº 1 do C.P.C. como abrangendo a decisão arbitral.
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso, revogando o despacho recorrido e, em sua substituição, julgando improcedente a exceção da inadmissibilidade do incidente da comunicabilidade da dívida. 
Custas da apelação pela recorrida.

Lisboa, 26 de maio de 2022
Maria do Céu Silva
Teresa Sandiães
Octávio Diogo