Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4819/17.5T8LSB-A.L1-1
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: AGENTE DE EXECUÇÃO
BASE DE DADOS
ACESSO
LIMITES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Não se afastando, em abstrato, a possibilidade de acesso a outras bases de dados, privadas, pelo agente de execução (art. 749º, nº7 do NCPC), considera-se que esse acesso não tem justificação quando significa e acarreta uma acentuada intromissão na vida privada pela amplitude das diligências pretendidas, tendo por objeto várias entidades, empresas de telecomunicações e outra, sem que o exequente cuide, minimamente, de comprovar no processo que, previamente à instauração da execução ou na pendência desta, diligenciou com vista à averiguação sobre o património do devedor, como é exigível, particularmente nos casos em que o exequente é uma empresa de acentuada dimensão no domínio da venda e gestão de crédito a particulares, sendo legítimo inferir que tem uma estrutura material e humana capaz de suportar essa atividade investigatória
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa
Ação
Execução

Exequente/reclamante/apelante
C…, sucursal em Portugal da sociedade anónima francesa C… SA.

Executado/reclamado/apelado
BM….

Incidente
O exequente apresentou o requerimento de fls. 18, peticionando que em face do “resultado da penhora de bens móveis frustrada a fls.”, “se digne ordenar a notificação da solicitadora de execução, no sentido de a mesma proceder à notificação dos serviços/departamentos Vodafone, da NOS e da MEO para que possa apurar se o executado, possui telefone/telemóvel, ou televisão pré-paga, e à EDP para virem informar se possui algum contrato de energia/luz/gás, em caso afirmativo a indicação da morada que consta como sendo da residência do executado, com recurso ao arrombamento, mais informando que o exequente porá à disposição os meios necessários para a remoção dos bens”.

Decisão
Sobre esse requerimento incidiu o despacho de fls. 20, proferido em 07-12-2017, com o seguinte teor:
“Fls.24:
Indefere-se o requerido, uma vez que as bases de dados disponíveis para consulta com vista à realização da penhora encontram-se expressamente previstas no art. 749.° do Código de Processo Civil, não resultando da letra da lei que outras entidades, nomeadamente empresas de natureza privada que tenham contratado com o executado a prestação de serviços, estejam obrigadas a fornecer elementos pessoais dos seus clientes, com vista à referida finalidade.
Neste particular, a regra quanto ao domicílio dos cidadãos é a sua inviolabilidade, por força do nº1 do art. 34º da Constituição, estando o seu acesso, nomeadamente por parte das autoridades públicas, sujeito a regras de excepção.
Caso não seja possível apurar a existência de bens nos termos do citado preceito legal, deverá o Sr. Agente de Execução proceder nos termos do art. 750º do Código de Processo Civil, ou, caso não seja apurado o paradeiro do executado, proceder à sua citação edital, verificados os respectivos pressupostos.
Notifique e comunique”.

Recurso
Não se conformando o exequente apelou, formulando as seguintes conclusões:
“Em conclusão, portanto, o despacho recorrido, ao indeferir o que requerido foi pelo exequente em 1ª instância, ora recorrente aos 22 de Novembro de 2017 e consequentemente ao indeferir o que, face ao dito requerimento, a solicitadora de execução designada nos autos requereu aos 05/12/2017, a fls. ,  violou o disposto no artigo 417º do Código Civil, pelo que, por violação do referido preceito, deve o presente recurso ser julgado procedente e provado e despacho recorrido ser revogado e substituído por acórdão que ordene, e consequentemente autorize, a solicitadora de execução a oficiar às entidades referidas com vista à obtenção da indicação da morada do executado em 1ª instância, ora recorrido, desta forma se fazendo JUSTIÇA”.

Deferida que foi a reclamação apresentada do despacho proferido pelo tribunal de primeira instância que não admitiu o recurso interposto por, em síntese, se tratar “de um despacho de mero expediente”, admitido que se mostra o recurso [ [1]  ], cumpre, então, apreciar.

II. FUNDAMENTOS DE FACTO
Relevam as seguintes incidências processuais que os autos documentam, conforme fls. 88 a 94:
1. Na ação executiva “não foi possível saber do paradeiro do executado” tendo-se tentado, sem êxito, efetivar a penhora no local indicado como sendo a residência do executado, conforme cópia do auto constante de fls. 88 a 90, aí se consignando a informação prestada no sentido de que o executado há “cerca de seis meses deixou aquela habitação para ir morar com uma namorada”, desconhecendo a atual morada do executado.  
2. Realizaram-se diligências com vista à penhora do vencimento do executado, tendo a entidade patronal informado “que este se encontra a efectuar descontos para um processo de execução fiscal e que se encontra de baixa, conforme resposta da referida entidade”, aguardando a agente de execução “a data prevista de termo dos descontos no vencimento do executado atualmente em curso”.
3. Conforme recibo de vencimento cuja cópia consta de fls. 92 -v, o vencimento ilíquido do executado, em setembro de 2019, com a categoria de profissional de armazém, foi de 580,00€ e, com acréscimos alusivos a subsídio de alimentação e prémios, no valor líquido de 624,63€.  
4. Sendo a penhora fiscal no valor de 104,11€ com referência a outubro de 2018 conforme documento de fls. 92.

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 635º e 639º do NCPC, diploma a que aludiremos quando não se fizer menção de origem – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 5º, nº3.
No caso, a única questão a decidir no processo é esta:
Desconhecendo-se o paradeiro do executado, pode o credor exequente solicitar no processo a intervenção do tribunal com vista a “ordenar a notificação” da solicitadora de execução para que a mesma proceda à notificação de entidades privadas (Vodafone, NOS, MEO e EDP) para prestar informações sobre contratos eventualmente celebrados com o executado para, em caso afirmativo, por via da indicação da morada do executado, lograr efetuar-se a penhora de bens?

2. O tribunal de primeira instância deu resposta negativa, em nosso entender com razão.
Basicamente, o exequente considera admissível a solicitação dos elementos em causa às entidades que enuncia porquanto sufraga o entendimento de que não se coloca qualquer óbice a que tais entidades prestem as informação pretendidas, a saber, as empresas de telecomunicações “para que se possa apurar se o executado possui telefone/telemóvel, ou televisão pré-paga”, a EDP para informar se o executado “possui algum contrato de energia/luz/gás, em caso afirmativo a indicação da morada que consta como sendo a da executada”, ancorando-se num parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República [ [2] ] e num acórdão do TRC de 28-06-2016 [ [3]  ], neste último se considerando que, ponderando os interesses em presença, se justifica que para realização do interesse do credor e para salvaguarda da realização da justiça se quebre o segredo profissional.
As informações pretendidas configuram dados pessoais na aceção do art. 4º, nº1 do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados) [ [4]  ] [ [5] ].
Como recorrentemente afirmado em situações similares, equacionam-se no processo como interesses conflituantes, por um lado, o segredo profissional, por outro, o interesse do exequente na efetivação do seu direito de crédito, por via da realização coerciva da prestação e o interesse na boa administração da justiça.
Saliente-se que o que o exequente peticionou ao tribunal e que foi objeto de despacho de indeferimento não corresponde, rigorosamente, à pretensão que o mesmo exequente identifica nas alegações de recurso, e cuja formulação é esta, como consta do corpo das alegações:
“Daqui pois a razão que o recorrente entende lhe assiste no presente recurso, devendo o Tribunal ordenar, autorizando consequentemente a solicitadora de execução designada a oficiar às entidades referidas no requerimento que nos autos apresentou o ora recorrente a fls. , aos 22 de Novembro de 2017, com vista a procurar identificar a morada do executado, ora recorrido, BM…”.
Mas ainda que se reconduza a pretensão do exequente a tal formulação, aceitando-se, pois, que o que o exequente pretende não é apurar se o executado é ou não cliente dessas entidades e se tem ou não qualquer contrato com as mesmas mas, tão-somente, saber se tais entidades têm conhecimento da morada do executado, necessariamente por via de contratos celebrados, no âmbito de uma relação negocial e, em caso afirmativo, que transmitam essa informação ao processo, concedendo o tribunal autorização ao agente de execução para efetuar, nessa sede, as diligências pertinentes, ainda assim temos essa pretensão por inadmissível, porque manifestamente excessiva no contexto dos autos.
O art. 749º, sob a epígrafe “[d]iligências prévias à penhora”, dispõe como segue:
“1 - A realização da penhora é precedida das diligências que o agente de execução considere úteis à identificação ou localização de bens penhoráveis, observado o disposto no n.º 2 do artigo 751.º, a realizar no prazo máximo de 20 dias, procedendo este, sempre que necessário, à consulta, nas bases de dados da administração tributária, da segurança social, das conservatórias do registo predial, comercial e automóvel e de outros registos ou arquivos semelhantes, de todas as informações sobre a identificação do executado junto desses serviços e sobre a identificação e a localização dos seus bens.
2 - As informações sobre a identificação do executado referidas no número anterior apenas incluem:
a) O nome, o número de identificação fiscal e o domicílio fiscal relativamente às bases de dados da administração tributária;
b) O nome e os números de identificação civil ou de beneficiário da segurança social, relativamente às bases de dados das conservatórias do registo predial, comercial e automóvel e de outros registos ou arquivos semelhantes ou da segurança social, respetivamente.
3 - A consulta direta pelo agente de execução às bases de dados referidas no n.º 1 é efetuada em termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça e, quando esteja em causa matéria relativa a bases de dados da administração tributária ou da segurança social, deve ser aprovada igualmente pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças ou da segurança social, respetivamente, de acordo com os requisitos exigíveis pelo Sistema de Certificação Eletrónica do Estado - Infraestrutura de Chaves Públicas.
4 - A regulamentação referida no número anterior deve especificar, em relação a cada consulta, a obtenção e a conservação dos dados referentes à data da consulta e à identificação do respetivo processo executivo e do agente de execução consultante.
5 - Quando não seja possível o acesso eletrónico, pelo agente de execução, aos elementos sobre a identificação e a localização dos bens do executado, os serviços referidos no n.º 1 devem fornecê-los pelo meio mais célere e no prazo de 10 dias.
6 - Para efeitos de penhora de depósitos bancários, o Banco de Portugal disponibiliza por via eletrónica ao agente de execução informação acerca das instituições legalmente autorizadas a receber depósitos em que o executado detém contas ou depósitos bancários.
7 - A consulta de outras declarações ou de outros elementos protegidos pelo sigilo fiscal, bem como de outros dados sujeitos a regime de confidencialidade, fica sujeita a despacho judicial de autorização, aplicando-se o n.º 2 do artigo 418.º, com as necessárias adaptações.
8 - Apenas nos casos em que o exequente seja uma sociedade comercial que tenha dado entrada num tribunal, secretaria judicial ou balcão, no ano anterior, a 200 ou mais providências cautelares, ações, procedimentos ou execuções, é devida uma remuneração pelos serviços prestados na identificação do executado e na identificação e localização dos seus bens, às instituições públicas e privadas que prestem colaboração à execução nos termos deste artigo, cujo quantitativo, formas de pagamento e de cobrança e distribuição de valores são definidos por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça”.
Pressupondo-se que, no caso, o agente de execução, no exercício das suas funções, já acedeu às bases de dados públicas, identificadas no nº 1 do referido preceito [ [6] ], temos que podia, no âmbito das diligências prévias à penhora, aceder ainda a outros dados sujeitos a regime de confidencialidade, acesso que está condicionado a prévia autorização do tribunal – nº7 do preceito.
É essa pretensão que o exequente formula e que o juiz apreciou, no exercício das suas competências (art. 723º, nº1, alínea d).
Não se afastando, em abstrato, a possibilidade de acesso a outras bases de dados, privadas, pelo agente de execução, temos que esse acesso não tem justificação quando, como aqui acontece, significa e acarreta uma acentuada intromissão na vida privada pela amplitude das diligências pretendidas, tendo por objeto várias entidades, empresas de telecomunicações e outra, sem que o exequente cuide, minimamente, de comprovar no processo que, previamente à instauração da execução ou na pendência desta, diligenciou com vista à averiguação sobre o património do devedor, como é exigível – cfr. o art. 724º, nº1, alínea i) e o art. 750º –, particularmente nos casos, como o presente, em que o exequente é uma empresa de acentuada dimensão no domínio da venda e gestão de crédito a particulares, sendo legítimo inferir que tem uma estrutura material e humana capaz de suportar essa atividade investigatória [ [7] ].
Não sendo irrelevante que essa pretensão seja formulada num contexto em que, como resulta da factualidade dada por assente, já foram realizadas diligências prévias de penhora particularmente intrusivas, não se alcançando, por exemplo, qual o motivo pelo qual foram juntas ao processo comprovativos da situação de baixa médica do executado [ [8]  ] [ [9] ].
Em suma, num juízo de ponderação, próprio do princípio da proporcionalidade, na dimensão da relação meio -fim, entendemos que não se justifica o deferimento da pretensão formulada, como entendeu o tribunal de primeira instância.
                                                        *
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo o despacho recorrido.
Custas pela apelante.
Notifique.
Lisboa, 2019-05-14

Isabel Fonseca
Maria Adelaide Domingos
Ana Isabel Pessoa


[1] Concluindo-se como segue: “Pelo exposto, defere-se à reclamação, admitindo-se o recurso interposto pelo exequente, do despacho proferido em 07-12-2017, cuja cópia consta de fls. 20 destes autos de reclamação, recurso que é de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.
                                                           *
Mais se determina, atento o disposto no art. 643º nº6, que se requisite ao tribunal de primeira instância os seguintes elementos e informações, necessárias à apreciação do recurso e da sua utilidade:
- Envio de certidão alusiva ao requerimento executivo, incluindo o título executivo;
- Informação sobre se já é conhecido o paradeiro do executado e se foi feita a penhora de bens e em que termos;
- Informação sobre o estado da execução;
- Envio de suporte informático das alegações de recurso do exequente, uma vez que esta Relação não opera com o CITIUS e o ficheiro enviado não admite processamento de texto.
Notifique o exequente e cumpra-se, enviando ao tribunal de primeira instância cópia da presente decisão”.  
[2] Parecer nº 21/2000, de 16/06/2000, in DR, II Série, de 28/08/2000.
[3] O acórdão aludido não se encontra publicado nas bases da DGSI, sendo que a cópia junta pelo exequente está ilegível, pelo que, inexistindo elementos confirmativos alusivos a esse aresto, temos por irrelevante a referência feita nas alegações de recurso.
[4] Artigo 4º
Definições
Para efeitos do presente regulamento, entende-se por:
1)
«Dados pessoais», informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular”.
[5] Confrontar o que dispunha o art. 3º, alínea a) da Lei de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 67/98 de 26 de outubro, retificada pela Declaração nº 22/98 de 28/11 e alterada pela Lei nº 103/2015 de 24-08).
[6] Essa informação não consta destes autos de recurso mas não custa aceitar que assim seja perante as tentativas de penhora já efetuadas, sem êxito.
[7] Saliente-se que o legislador é particularmente exigente na ponderação da tramitação subsequente da ação executiva, nos casos em que não são encontrados bens penhoráveis, como decorre do art. 750º, cuja ratio é, precisamente, evitar o prolongamento artificial de processos executivos, o que pode acontecer nas situações em que se eternizam as diligências tendentes à averiguação sobre bens.     
[8] Como se sabe, discute-se a admissibilidade da junção ao processo executivo de recibo de vencimento do executado, pelo conjunto de informações que tal documento pode evidenciar, algumas perfeitamente desnecessárias para salvaguarda dos interesses em causa – por exemplo, a referência a seguros médicos –, como se deu nota, por exemplo, na deliberação nº 923/2016 de 31 de maio, da Comissão Nacional de Proteção de Dados, em que, perante solicitação de pronúncia dessa entidade formulada por uma entidade empregadora, a CNPD deliberou “não ser de autorizar as entidades empregadoras a facultar aos solicitadores e agentes de execução os dados pessoais constantes do recibo de vencimento dos seus trabalhadores que sejam partes em processo judicial de natureza civil” (acessível no site respetivo).  
[9] Não há indicação no processo que o agente de execução cuidou de, junto da entidade patronal do executado, averiguar da residência deste, já que conhece essa entidade; novamente, parte-se do pressuposto que essa averiguação até terá sido feita.