Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
458/2008-2
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: CONTRATO DE FINANCIAMENTO BANCÁRIO
RESERVA DE PROPRIEDADE
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/28/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I O Ministério Público é parte legitima para intentar acção inibitória com vista à condenação na abstenção do uso de cláusulas contratuais gerais.
II A legitimidade ad causam do Ministério Público advem-lhe dos artigos 26º, nº1, alínea c) da LCCGerais e 20º da LDConsumidor.

III Não é nula a cláusula que possibilita ao mutuante adquirir a propriedade do bem que irá financiar, fazendo registar a seu favor a reserva da respectiva propriedade, propriedade essa de que efectivamente é titular.

IV Não é nula a cláusula contratual que permite a cessão de créditos inserta no contrato de mútuo estabelecido entre o Apelado e os consumidores finais, na medida em que a mesma não afasta nem isenta aquele das suas obrigações, antes o torna solidário no seu cumprimento com o eventual cessionário, havendo assim um reforço das garantias do mutuário e não uma diminuição, ou quiça, a sua completa desprotecção, já que não se afasta a aplicação do diposto nos artigos 512º e 533º do CCivil, no que tange à solidariedade e ao seu regime de aplicação.
V É de todo em todo inútil declarar a nulidade da cláusula relativa ao foro convencional, quer para os contratos celebrados pelo Apelado antes do início da vigência da Lei 14/2006, de 26 de Abril, quer decretar a proíbição da sua inclusão nos contratos celebrados após a entrada em vigor da mesma, já que o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº12/2007, in DR I Série de 6 de Dezembro de 2007 veio por termo a todas as questões suscitadas impondo a aplicação daquela Lei às acções instauradas após a sua entrada em vigor, ainda que reportadas a litígios derivados de contratos celebrados antes desse início de vigência com cláusula de convenção de foro de sentido diverso.
(APB)

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I O Ministério Público veio intentar a presente acção declarativa, sob a forma de processo sumária, contra Banco (…), S.A., pedindo:
- que seja decretada a proibição do Réu constituir e registar a seu favor reserva de propriedade de veículos automóveis através do recurso à compra e venda da viatura objecto de um contrato de financiamento;
- a condenação do Réu a abster-se de utilizar em todos os contratos que de futuro venha a celebrar com os seus clientes as cláusulas contratuais gerais n°12, relativa à cessão da posição contratual, e n° 14, relativa ao foro convencional, especificando-se na sentença o âmbito de tal proibição;
- a condenação do Réu a dar publicidade a tal proibição e a comprovar nos autos essa publicidade, em prazo a determinar na sentença, sugerindo que a mesma seja efectuada em anúncio a publicar em dois dos jornais diários de maior tiragem editados em Lisboa e no Porto, durante três dias consecutivos;
- que seja remetido ao Gabinete de Direito Europeu certidão da sentença, para os efeitos previstos na Portaria n°1093, de 6 de Setembro.
Alegou, para tanto que: 1) a exigência pelo Réu de uma reserva de propriedade a seu favor sobre os veículos automóveis cuja aquisição financia é uma conduta interdita por lei e gravemente prejudicial ao consumidor que celebra o contrato de crédito e adquire a viatura, dado que nos contratos celebrados por aquele nada consta relativamente à constituição de reserva de propriedade, no objecto social do Réu não está englobada a capacidade de celebrar contratos de compra e venda de viaturas automóveis, a constituição e levantamento da reserva acarretam custos para o consumidor, o ónus de reserva de propriedade impede que o consumidor possa vender a viatura sem autorização do Réu e importa o averbamento ao título de registo de propriedade de mais um proprietário, o que diminui o valor do veículo, podendo o Réu salvaguardar o seu crédito exigindo outras garantias; 2) que a cláusula relativa à cessão da posição contratual é proibida, nos termos previstos no art.° 18°, alínea 1) do D.L. n° 446/85, de 25/10, porquanto atribui ao Réu a possibilidade de ceder os seus direitos contratuais a terceiro não identificado no contrato, sem o acordo do aderente; 3) e ainda que a cláusula relativa ao foro convencional é proibida, nos termos previstos no art.° 19°, alínea g) do D.L. n° 446/85, de 25/10, porquanto a atribuição de competência exclusiva à comarca de Lisboa é susceptível de envolver graves inconvenientes para os clientes do Réu que residam ou tenham sede noutras comarcas, sobretudo nas mais longínquas, nos termos elencados no art.°42º da petição inicial.

Porque em sede de contestação o Réu arguiu a excepção de ilegitimidade do Autor no que tange ao primeiro dos pedidos formulados, veio tal excepção a ser conhecida no despacho saneador, pela sua improcedência, tendo tal despacho sido objecto de recurso de Agravo por banda daquele, o qual apresentou as seguintes conclusões :
- Para a propositura de acção inibitória com fundamento no artigo 10°, alínea c), da Lei 24/96, de 31 de Julho, impõe-se que a prática comercial cuja proibição se pede na acção inibitória seja expressamente proíbida por lei.
- Não há lei que expressamente proíba o Réu em 1a Instância, ora recorrente, de seguir a prática de constituir e registar a seu favor reserva de propriedade sobre os veículos automóveis através de recurso à compra e venda da viatura objecto do financiamento, à garantia do próprio financiamento que o Réu concede ao abrigo dos contratos de mútuo que celebra para efeitos de aquisição, pelos mutuários, de tais veículos.
- Acresce que a lei expressamente prevê a possibilidade de constituição de reserva de propriedade à garantia de financiamento concedido para a aquisição de bens de consumo, como ressalta do disposto na alínea f) do n° 3 do artigo 6° e no n° 3 do artigo 7° do Decreto-Lei 359/91, de 21 de Setembro.
- Para ter legitimidade na propositura de acções inibitórias com base e fundamento na alínea c) do artigo 10° da Lei 24/96, de 31 de Julho, impõe-se a indicação da lei ou leis que proíbam a prática comercial que se pretende ver proibida.
- O Autor na presente acção, ora recorrido, não indicou nos autos – e não o pode fazer, porque não existe lei que expressamente proíba a prática seguida pelo Réu recorrente, cuja proibição constitui o pedido formulado em primeiro lugar na acção.
- O despacho recorrido, na parte objecto do presente recurso, violou, assim, o disposto na alínea c) do artigo 10° da Lei 24/96, de 31 de Julho, o disposto na alínea f) do n° 3 do artigo 6° do Decreto-Lei 359/91, de 21 de Setembro e o disposto no artigo 7°, n° 3, do citado Decreto-Lei 359/91, bem, como também o disposto no artigo 26°, n°s. 1, 2 e 3, do Código de Processo Civil.

Nas contra alegações o Autor pugnou pela improcedência do recurso e foi mantido o despacho recorrido.

A final foi produzida sentença a julgar a acção improcedente, da qual, inconformado, recorreu o Autor, formulando as seguintes conclusões:
- A reserva de propriedade só pode ser estipulada e registada a favor do transmitente, nos termos do art. 409° do Código Civil, não existindo no ordenamento jurídico nacional base legal para que a reserva seja feita a favor da entidade que financiou a aquisição do bem.
É certo que no art. 6°, n° 3 al. f) do Dec-Lei n° 359/91 se prevê que fique a constar do contrato de financiamento o acordo sobre a reserva de propriedade. No entanto, aquela norma respeita a situações em que o vendedor, proprietário do bem, mantém essa qualidade por efeito da reserva, ao mesmo tempo que financia a aquisição através de alguma das formas previstas no art. 2, não podendo aquela norma aplicar-se às situações previstas no art. 12, em que o crédito é concedido por um terceiro para financiar o bem adquirido ao vendedor.
Esta prática é lesiva dos interesses dos consumidores, sendo a aludida cláusula de reserva de propriedade proibida e por isso subsumívei à al. b) do n° 1, do art. 10° da Lei n° 24/96.
- Nos termos do art. 18° do Dec-Lei n° 446/85, de 25 de Outubro é absolutamente proíbida a cláusula na qual se consagra, a favor de quem as predisponha, a possibilidade de cessão da posição contratual, de transmissão de dívidas ou de subcontratar, sem o acordo da contraparte, salvo se a identidade do terceiro constar do contrato inicial.
A situação em apreço nos autos não reúne o conjunto de pressupostos para que se possa enquadrar neste normativo legal, pelo que é nula, não se aplicando aqui o disposto nos arts. 512° e 533° do Código Civil, uma vez que a lei especial derroga a lei geral.
- Não é supervenientemente inútil decretar a proibição de inclusão da cláusula relativa ao foro convencionado nos contratos anteriormente celebrados à entrada em vigor da Lei n° 14/06, de 26 de Abril, já que a questão não é consensual quanto à constitucionalidade ou inconstitucionalidade da Lei n° 14/2006, de 26 de Abril, quando interpretada no sentido das alterações introduzidas no Código de Processo Civil, designadamente, as relativas à competência territorial, serem aplicáveis às acções entradas em juízo após a sua entrada em vigor, ainda que as partes hajam firmado pacto de competência anteriormente por violação dos princípios da proporcionalidade, da segurança e da nao retroactividade da lei restritiva.
A cláusula relativa ao foro convencional porque atribui exclusivamente competência à comarca de Lisboa, para dirimir os conflitos emergentes do contrato, constitui um impedimento indirecto do acesso ao direito por parte dos consumidores, para o qual não existe justificação, pelo que se enquadra no art. 19°, al. g) do DecLei n° 446785, de de 25 de Outubro.





Nas contra alegações o Réu pugna pela manutenção do julgado, mantendo a posição já defendida nos autos no que tange à ilegitimidade do Autor (Ministério Público) para suscitar a questão da proíbição da constituição de reserva de propriedade do bem a adquirir por banda do Réu/Apelado, mantendo interesse no conhecimento do recurso de Agravo oportunamente interposto, remetendo neste e nos demais pontos impugnados para o parecer do Exº Senhor Professor Doutor Menezes Cordeiro que a favor da sua tese fez juntar e que faz fls 122 a 202.

II Põem-se como problemas a resolver no âmbito dos recursos interpostos: 1) Em sede de recurso de Agravo, saber se o Autor (Ministério Público) tem ou não legitimidade para intentar a presente acção no que tange ao primeiro dos pedidos formulados, isto é, o que visa que seja decretada a proibição do Réu constituir e registar a seu favor reserva de propriedade de veículos automóveis através do recurso à compra e venda da viatura objecto de um contrato de financiamento; 2) Em sede de Apelação, saber se a sentença deverá ser revogada por se verificar a nulidade das cláusulas postas em crise na acção.

A sentença sob recurso deu como assentes os seguintes factos:
- A Ré é uma sociedade anónima, que tem por objecto social o exercício da actividade bancária e a realização de todas as operações permitidas aos bancos pela lei actual ou futura.
- No exercício da sua actividade, a Ré dedica-se a financiar a aquisição de viaturas automóveis.
- Se um consumidor se dirigir a um comerciante de automóveis que trabalhe com a Ré, com intenção de adquirir determinada viatura mediante o pagamento em prestações, o comerciante apresenta-lhe uma proposta de crédito da Ré, sendo informado, de acordo com o montante a financiar, com base numa tabela de coeficientes, da prestação a pagar, de acordo com o montante emprestado, duração do contrato e seguros.
- Na sede da Ré é analisada a proposta pelo Departamento de Análise de Crédito, podendo ser tornadas as seguintes decisões: recusa, exigência de garantias adicionais ( fiador ), aprovação.
- No caso de aprovação, tal decisão é comunicada via fax, sms ou e-mail ao comerciante, mencionando-se nessa aprovação se é feita com ou sem reserva de propriedade.
- Se o comerciante tiver ligação à Internet, liga-se ao site da Ré (www.(...).pt ) e imprime o contrato, cujos espaços em branco se encontram preenchidos, com excepção do espaço destinado à assinatura do mutuário, podendo o contrato ter duas variantes: 1- Contrato de mútuo sem fiador; 2- Contrato de mútuo com fiador.
- No acto é também imprimida uma minuta para exercício do direito de revogação.
- No caso de não existir ligação à Internet, por deslocação pessoal ou correio, são remetidos os contratos referidos em 6..
- Caso seja exigida reserva de propriedade sobre o veículo, na posse do contrato assinado pelo mutuário, o comerciante junta-lhe cópia do B.I., cartão de contribuinte, recibo do vencimento ou última declaração de IRS, recibo de telefone, água ou luz, e dois requerimentos para declaração de registo de propriedade.

- Um impresso será preenchido de forma a constar como comprador a Ré e como vendedor a pessoa que figure no registo automóvel como titular do direito de propriedade.
- Outro impresso será preenchido de forma a constar como vendedor a Ré e como comprador o mutuário, sendo constituída reserva de propriedade a favor da Ré.
- Até 30 de Novembro de 2002 a Ré celebrou 260.407 operações de crédito, destas 208.003 tinham reserva de propriedade a favor da Ré.
- Dos contratos celebrados até 30 de Novembro de 2002 encontram-se ainda em vigor 84.632, dos quais 77.667 têm reserva de propriedade a favor da Ré.
- No contrato celebrado nada consta quanto à constituição de reserva de propriedade a favor da Ré.
- O requerimento – declaração para registo de propriedade tem um custo para o consumidor de 61,74 euros.
- O requerimento – declaração para registo de propriedade com reserva de propriedade tem um custo para o consumidor de 119,74 euros.
- Tal ónus de reserva de propriedade impede que o consumidor em caso de necessidade financeira ou por mera opção de pretender trocar ou comprar outra viatura, possa vender a viatura sem autorização da Ré e importa o averbamento ao titulo de registo de propriedade de mais um proprietário.
- No final do contrato o consumidor para levantar a reserva de propriedade terá que despender 61,74 euros.
- A Ré pode exigir outras garantias para salvaguardar o crédito que concedeu, incluindo a hipoteca do veículo e a reserva de propriedade sobre o veículo.
- A Ré entrega aos consumidores que pretendem celebrar o contrato de financiamento um impresso análogo ao que foi junto como documento n° 7 e 8, a fls. 25 a 30.
- Na posse desse impresso o consumidor limita-se a assinar.
- Junto com o contrato encontram-se impressas as cláusulas a ele respeitantes.
- As cláusulas insertas nos impressos que titulam o contrato de financiamento foram previamente elaboradas e são apresentadas, já impressas, aos interessados na celebração do contrato.
- Aos consumidores apenas é concedida a possibilidade de aceitar, ou não, esse clausulado, estando-lhes vedada a possibilidade de, através de negociação, por qualquer forma o alterar.
- Tal contrato-tipo destina-se, ainda, a ser utilizado pela R. no futuro, para contratação com qualquer consumidor interessado na celebração de um contrato de mútuo.
- Na cláusula 12a do referido contrato, constante do verso dos impressos, estabelece-se que:
“12. Cessão da Posição Contratual
Fica desde já autorizada a cessão da posição contratual do Banco Mais para efeitos de refinanciamento desta, mas mantendo sempre o Banco (…), solidariamente com o cessionário, as obrigações que para ela derivam do presente contrato relativamente ao Mutuário.”.
- Na cláusula 14a do referido contrato, constante do verso dos impressos, estabelece-se que:
“14. Foro Convencional
Para todas as questões emergentes do presente contrato estipula-se como competente o foro da comarca de Lisboa com expressa renúncia a qualquer outro.”.
- A atribuição de competência exclusiva à comarca de Lisboa pode determinar para os clientes da Ré que residam ou tenham sede noutras comarcas a necessidade de se deslocarem a Lisboa, a deslocação de um advogado da área da sua residência a Lisboa e a apresentação das testemunhas num Tribunal em Lisboa em acções que sigam a forma de processo sumaríssimo.
- A Ré tem 18 delegações, situadas em todo o território nacional, incluindo as ilhas.
- A Ré, obtendo embora o acordo do consumidor para a constituição da reserva de propriedade, não faz mencionar no título escrito do contrato a constituição dessa reserva de propriedade.
- A Ré tem a sua sede em Lisboa e e apenas na sua sede que são analisadas todas as propostas de financiamento remetidas à Ré, tomando então o departamento de análise de crédito da Ré a decisão de recusar ou acertar a proposta e de exigir garantias adicionais, designadamente a constituição de reserva de propriedade sobre o veículo e a constituição de fiança, a prestar por um ou por mais do que um fiador.
- No exercício da sua actividade e no que respeita à apreciação das propostas para concessão de crédito que lhe são submetidas com vista à aquisição pelo mutuário de veículo, a Ré tem em atenção e consideração a estrutura de rendimentos do proponente.
- Quer seja constituída reserva de propriedade a favor da Ré, quer não seja constituída reserva de propriedade sobre o veículo a favor da Ré, a Ré exige sempre que quando o duplicado do contrato lhe é remetido assinado pelo mutuário o mesmo seja sempre acompanhado de cópias do bilhete de identidade, do cartão de contribuinte, do recibo de vencimento e/ou da última declaração de IRS do mutuário, bem como até de recibo de telefone, água ou luz, para efeitos de comprovação dos elementos constantes da proposta que para a concessão do crédito lhe foi submetida.
- Os dois impressos, de modelo aprovado pela Conservatória do Registo Automóvel, para registo de transferência de veículo automóvel constituição de reserva de propriedade só são enviados à Ré aquando da constituição da reserva de propriedade em seu favor, sendo um dos referidos requerimentos assinado pelo ante-proprietário do veículo que o mutuário pretende adquirir, como vendedor, e o segundo assinado, como comprador, pelo mutuário.
- É em Lisboa, no Departamento de Análise de Crédito da Ré, que são tomadas todas as decisões no que respeita à recusa ou aprovação da concessão de crédito, de financiamento, para a aquisição de veículos automoveis.
- Todas as contas bancárias onde são feitas as transferências que constituem os pagamentos das prestações dos contratos de mútuo que a Ré celebra são sediadas em Lisboa.
- O requerimento – declaração para registo de hipoteca tem um custo de 61,74 euros.
- O cancelamento do registo de hipoteca tem um custo de 61,74 euros.
- Dada a habitual prática de venda de veículos automóveis usados, os veículos registados previamente em nome de uma entidade que dá de aluguer veículos sem condutor, bem como os veículos objecto de aquisição através de empresas gestoras de frotas, no valor comercial real de qualquer veículo automóvel já não tem influência o número de proprietanos que consta do respectivo registo, interessando apenas o ano de construção do veículo e o seu estado de conservação e manutenção.
- É a Ré que é contactada para efeitos de concessão de financiamentos, não sendo a Ré que toma a iniciativa de contactar os mutuários, sendo que os clientes da Ré podem subscrever e aceitar ou não os termos e condições em que a Ré se dispõe a conceder-lhes o financiamento.
- No exercício da sua actividade a Ré tem necessidade de se financiar ou sendo o refinanciamento a obtenção de fundos através da cessão de créditos, designadamente através da celebração de operações de “securitização”.
- Nos contratos objecto da cessão de posição contratual prevista na
cláusula n° 12, identificada no art.° 36° da petição inicial, é a R. que continua a fazer todos os contactos com o cliente, na sequência de um acordo de prestação de serviços que para o efeito a Ré celebra com o cessionário.
- Os escritórios das delegações da Ré espalhados pelo país não possuem serviços de contencioso, os quais estão centralizados no local da sede da Ré, em Lisboa.
- A Ré tem a sua sede em Lisboa e tem todo o seu serviço de contencioso localizado na sua sede.
- A não fixação da competência convencional em Lisboa pode determinar a necessidade de a Ré se deslocar para fora de Lisboa, a deslocação de um advogado da área da sua sede a outras comarcas, a contratação de um advogado na área doutras comarcas e a apresentação das testemunhas fora do Tribunal de Lisboa em acções que sigam a forma de processo sumaríssimo.

1.Do Agravo interlocutório interposto pelo Réu.

Insurge-se o Réu contra o despacho saneador, na parte em que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade do Autor no que tange ao primeiro dos pedidos formulados, uma vez que, na sua tese, para a propositura de acção inibitória com fundamento no artigo 10°, alínea c), da Lei 24/96, de 31 de Julho, impõe-se que a prática comercial cuja proibição se pede na acção inibitória seja expressamente proíbida por lei, o que não acontece no caso sub judice, uma vez que inexiste Lei que expressamente proíba o Réu, aqui Agravante, de seguir a prática de constituir e registar a seu favor reserva de propriedade sobre os veículos automóveis através de recurso à compra e venda da viatura objecto do financiamento, à garantia do próprio financiamento que o Réu concede ao abrigo dos contratos de mútuo que celebra para efeitos de aquisição, pelos mutuários, de tais veículos.

Vejamos.

Antes de mais analisemos o contrato que está na génese da presente acção, bem como sobre o regime jurídico que lhe é aplicável.

Assim.

O Agravante, tal como resulta da matéria dada por assente, é uma sociedade anónima, que tem por objecto social o exercício da actividade bancária e a realização de todas as operações permitidas aos bancos pela lei actual ou futura sendo que no exercido da sua actividade dedica-se a financiar a aquisição de viaturas automóveis, pelo que se um consumidor se dirigir a um comerciante de automóveis que com aquele trabalhe e tenha a intenção de adquirir determinada viatura mediante o pagamento em prestações, o comerciante apresenta-lhe uma proposta de crédito do Réu/Agravante, sendo informado, de acordo com o montante a financiar, com base numa tabela de coeficientes, da prestação a pagar, de acordo com o montante emprestado, duração do contrato e seguros.

Daqui deflui que é apresentado um contrato “standart” ao consumidor final, contendo todas as cláusulas já pre-definidas pelo Agravante, limitando-se aquele a dar o seu consentimento, sem que tenha a possibilidade de as discutir.

Os contratos de crédito ao consumo são, assim, contratos de adesão, já que, a par de cláusulas específicas que exprimem a particularidade de cada contrato, contêm cláusulas pré-determinadas destinadas à massa dos consumidores e que não são passíveis de negociação individualizada (“É aquele em que um dos contraentes, não tendo a menor participação na preparação das respec­tivas cláusulas, se limita a aceitar o texto que o outro contraente oferece, em massa, ao público interessado” – Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, 262.).

A este tipo contratual, aplica-se o regime das cláusulas contratuais gerais prevenido no DL 466/85, de 25 de Outubro, alterado pelo DL 220/95, de 31 de Agosto e pelo DL 249/99, de 7 de Julho, contendo tais contratos, por via de regra, “Cláusulas preparadas genericamente para valerem em relação a todos os contratos singulares de certo tipo que venham a ser celebrados nos moldes próprios dos chamados contratos de adesão”, cfr Galvão Telles, “Direito das Obrigações” – 6ª edição, 75.

Todavia, aquela Lei prevê, como não poderia deixar de ser, mecanismos processuais destinados à tutela dos interessados contra eventuais cláusulas contratuais gerais iníquas, insertas nesses mesmos contratos: acção com vista à declaração da sua nulidade e a acção inibitória, como deflui dos normativos insertos no capítulo VI subordinado à epígrafe «Disposições Processuais», maxime, nos seus artigos 24º e 25º.

No que à economia do presente recurso concerne, fixemo-nos na acção inibitória prevenida naquele supra apontado artigo 25º onde se predispõe «As cláusulas contratuais gerais, elaboradas para utilização futura, quando contrariem o disposto nos artigos 15º, 16º, 18º e 22º podem ser proíbidas por decisão judicial, independentemente da sua inclusão efectiva em contratos singulares.», acrescentando-se no artigo 26º, nº1, alínea c) que «A acção destinada a obter a condenação na abstenção do uso ou da recomendação de cláusulas contratuais gerais só pode ser intentada (…) Pelo Ministério Público, oficiosamente, (….)».

Por outra banda, resulta do artigo 20º da LDConsumidor que «(…) incumbe também ao Ministério Público a defesa dos consumidores no âmbito da presente lei e no quadro das respectivas competências, intervindo em acções administrativas e cíveis tendentes à tutela dos interesses individuais homogéneos, bem como interesses difusos dos consumidores (…)».

Ora, in casu, a acção inibitória foi proposta oficiosamente pelo Ministério Público, uma vez que, além do mais, entendeu, na sua tese, que o Réu/Agravante, ofende os direitos dos consumidores ao fazer constituir e registar a seu favor a reserva de propriedade sobre os veículos cuja compra efectua para subsequentemente financiar a sua venda a terceiros.

Daqui se abarca, com mediana clareza, que o aporema não reside, em sede processual, – na legitimidade –, como foi equacionado pelo Agravante, mas antes em sede substantiva.

Se não.

Resulta do normativo inserto no artigo 26º, nº3 do CPCivil, no que à noção de legitimidade diz respeito, que «Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados do interesse relevante para o efeito de legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.».

Ora, o Autor/Agravado na sua Petição Inicial aponta como violadora dos direitos dos consumidores finais a constituição pelo Agravante da reserva de propriedade dos veículos cuja compra efectua para financiar e, assim sendo, competindo-lhe de forma genérica a defesa dos direitos dos consumidores, o que vem assumido naquele supra apontado articulado, é óbvio que a questão não se coloca em sede de legitimidade ad causam, mas antes em sede de legitimidade substantiva, isto é, se a prática apontada ao Agravante é ou não violadora daqueles direitos.

Neste conspectu, não há qualquer censura a fazer à decisão recorrida, mantendo-se a mesma quanto à legitimidade ad causam do Autor ora Agravado.

2. Do recurso de Apelação

Impugna o Autor, aqui Apelante, a decisão recorrida uma vez que a mesma a julgou totalmente improcedente.

A)No que tange ao primeiro dos pedidos formulados, isto é, que fosse decretada a proibição do Réu constituir e registar a seu favor reserva de propriedade de veículos automóveis através do recurso à compra e venda da viatura objecto de um contrato de financiamento, alega em abono da sua tese que aquela reserva só pode ser estipulada e registada a favor do transmitente, nos termos do art. 409° do Código Civil, não existindo no ordenamento jurídico nacional base legal para que a reserva seja feita a favor da entidade que financiou a aquisição do bem.

Tal afirmação é, todavia, destituída de qualquer razão.

Resulta do normativo inserto no artigo 6º, nº3, alínea f) do DL 359/91 de 21 de Setembro que «O contrato de crédito que tenha por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações deve indicar ainda: (…) O acordo sobre a reserva de propriedade. (…)», conjugado com o normativo inserto no artigo 7º, nº3 e 4 deste mesmo diploma, de onde se extrai que a omissão daquele acordo não gera, por si só, a invalidade do contrato de crédito, mas apenas a inexigibilidade daquela cláusula de reserva de propriedade, sendo certo que a nulidade do contrato apenas poderá ser arguída pelo consumidor e nunca pelo mutuante o qual se presume sempre imputável pela referida omissão.

Daqui deflui que o contrato de concessão de crédito que tenha por objecto o financiamento para aquisição de bens e/ou serviços cujo pagamento venha a ser efectuado em prestações, deverá indicar o acordo sobre a reserva de propriedade, de onde se poder concluir (e dever, dizemos nós), que o Apelado não só pode mas deve, como forma de garantir a satisfação do seu crédito, fazer constituir e registar a seu favor aquele ónus, posto que é ele, afinal e também, o proprietário dos bens a financiar.

Se a constituição da reserva de propriedade a favor do Apelado não constar do contrato de mútuo, tal omissão apenas poderá conduzir à inexigibilidade da mesma e não, como pretende o Apelante à nulidade da cláusula que a estipulou.

A entender-se ex adversu seria limitar o princípio basilar do direito das obrigações (onde nos movemos), qual é o da liberdade contratual previsto no artigo 405º, nº1 do CCivil.

Acresce ainda a circunstância de, face a tais disposições legais, não se poder assacar que se esteja perante uma prática comercial expressamente proíbida pela Lei, por forma a subsumir-se a actuação do Apelante no disposto nas alíneas b) e c) do artigo 10º, nº1, da Lei 24/96 (Lei de Defesa do Consumidor), tal como se concluiu, e bem, na sentença sob recurso, aliás porque, como resultou da matéria dada como provada: «Caso seja exigida reserva de propriedade sobre o veículo, na posse do contrato assinado pelo mutuário, o comerciante junta-lhe cópia do B.I., cartão de contribuinte, recibo do vencimento ou última declaração de IRS, recibo de telefone, água ou luz, e dois requerimentos para declaração de registo de propriedade.»; «Um impresso será preenchido de forma a constar como comprador a Ré e como vendedor a pessoa que figure no registo automóvel como titular do direito de propriedade.»; «Outro impresso será preenchido de forma a constar como vendedor a Ré e como comprador o mutuário, sendo constituída reserva de propriedade a favor da Ré.»

Queremos nós dizer que no caso sub specie nem sequer se põe em causa que a propriedade do veículo não coincida na mesma pessoa jurídica que fez constituir e registar a seu favor a reserva de propriedade, isto é, o Apelado.

Ora, daqui deflui a sem razão do Apelante, já que a questão levantada não foi a de se declarar a nulidade de cláusula que estipulou a reserva, para o mutuante, da propriedade do bem que financiou, mas antes a da declaração de nulidade da cláusula que possibilita ao mutuante adquirir a propriedade do bem que irá financiar, fazendo registar a seu favor a reserva da respectiva propriedade, propriedade essa de que efectivamente é titular, o que manifestamente não ofende o disposto no artigo 280º do CCivil, cfr neste sentido Fernando Gravato de Morais, in Contratos de Crédito ao Consumo, Almedina, 2007, 321 e seguintes e inter alia o Ac STJ de 27 de Setembro de 2007 (Relator Cons Santos Bernardino), in www.dgsi.pt.

Efectivamente, não há na Lei qualquer disposição de carácter imperativo que impossibilite ao Réu a aquisição de bens, nem tão pouco que o impossibilite, caso venha a adquiri-los de posteriormente proceder ao financiamento da sua venda a terceiro, reservando para si a propriedade do mesmo.

Aliás, só ao proprietário é lícito reservar para si a propriedade da coisa transmitida, não se compreendendo que quem não seja proprietário o possa fazer, maxime, aquele que seja mero financiador da coisa a transmitir, cfr neste sentido os Ac STJ de 12 de maio de 2005 (Relator Cons Araújo de Barros) e de 27 de Setembro de 2007 (Relator Cons Santos Bernardino), in www.dgsi.pt.

Improcedem, por aqui, as conclusões de recurso quanto a este particular.

B) No que se refere ao segundo pedido que visava a condenação do Réu a abster-se de utilizar em todos os contratos que de futuro viesse a celebrar com os seus clientes as cláusulas contratuais gerais n°12, relativa à cessão da posição contratual, e n° 14, relativa ao foro convencional, especificando-se na sentença o âmbito de tal proibição, também falece a razão ao Apelante.

1. Quanto à cláusula 12. referente à possibilidade de cessão da posição contratual do Apelado.

Dispõe a aludida cláusula que «Fica desde já autorizada a cessão da posição contratual do Banco Mais para efeitos de refinanciamento desta, mas mantendo sempre o Banco Mais, solidariamente com o cessionário, as obrigações que para ela derivam do presente contrato relativamente ao Mutuário.».

Na tese defendida pelo Apelante uma vez que nos termos do artigo 18° do DL n° 446785, de 25 de Outubro é absolutamente proíbida a cláusula na qual se consagra, a favor de quem as predisponha, a possibilidade de cessão da posição contratual, de transmissão de dívidas ou de subcontratar, sem o acordo da contraparte, salvo se a identidade do terceiro constar do contrato inicial e não reunindo a situação em apreço nos autos o conjunto de pressupostos para que se possa enquadrar naquele normativo legal, seria a mesma nula, não se aplicando aqui o disposto nos artigos 512° e 533° do Código Civil, uma vez que a Lei especial derroga a Lei geral.

Nada de mais falacioso.

Se por um lado estamos de acordo que o normativo inserto no artigo 18º, alínea l) do DL n° 446785, de 25 de Outubro, estabelece a nulidade das cláusulas contratuais gerais que «Consagrem a favor de quem as predisponha, a possibilidade de cessão da posição contratual (…) salvo se a identidade do terceiro constar do contrato inicial.», já não concordamos com a conclusão que o Apelante daí faz retirar uma vez que, a cessão de créditos prevista no contrato de mútuo estabelecido entre o Apelado e os consumidores finais, não afasta nem isenta aquele das suas obrigações, antes o torna solidário no seu cumprimento com o eventual cessionário.

Há, assim, ao contrário do que defendido em sede de conclusões de recurso, um reforço das garantias do mutuário e não uma diminuição, ou quiça, a sua completa desprotecção, já que não se afasta a aplicação do diposto nos artigos 512º e 533º do CCivil, no que tange à solidariedade e ao seu regime de aplicação, pois a cessão da posição contratual prevista no contrato é apenas para efeitos de refinanciamento do Apelado e não para toda e qualquer outra situação, mantendo-se sempre este como co-obrigado.

Improcedem as conclusões quanto a este ponto.

2. Quanto à cláusula 14. referente ao foro convencional

A cláusula 14. do contrato junto pelo Apelante com a sua Petição Inicial, sob a epígrafe «Foro Convencional», predispunha «Para todas as acções emergentes do presente contrato estipula-se como competente o foro da comarca de Lisboa com expressa renuncia a qualquer outro.».

A sentença sob recurso esgrimindo a alteração legislativa operada pela Lei 14/2006 de 26 de Abril que alterou a redacção do artigo 74º, nº1 do CPCivil (que tornou inadmissivel a inclusão deste tipo de clausulado), bem como com o facto de ter notificado o Apelado para juntar aos autos cópias de contratos celebrados após a entrada em vigor daquela Lei, de onde resultou que a mesma havia sido abolida, julgou supervenientemente inútil o pedido neste particular.

Todavia, o Apelante insurgiu-se contra tal decisão uma vez que na sua óptica não é supervenientemente inútil decretar a proibição de inclusão da cláusula relativa ao foro convencionado nos contratos anteriormente celebrados à entrada em vigor da Lei 14/06, de 26 de Abril, já que a questão não é consensual quanto à constitucionalidade ou inconstitucionalidade da Lei 14/2006, de 26 de Abril, quando interpretada no sentido das alterações introduzidas no Código de Processo Civil, designadamente, as relativas à competência territorial, serem aplicáveis às acções entradas em juízo após a sua entrada em vigor, ainda que as partes hajam firmado pacto de competência anteriormente por violação dos princípios da proporcionalidade, da segurança e da nao retroactividade da lei restritiva e, assim sendo, a cláusula relativa ao foro convencional porque atribui exclusivamente competência à comarca de Lisboa, para dirimir os conflitos emergentes do contrato, constitui um impedimento indirecto do acesso ao direito por parte dos consumidores, para o qual não existe justificação, pelo que se enquadra no artigo 19°, alínea g) do DL 446/85, de de 25 de Outubro.

Aqui chegados cumpre-nos dizer que até estaríamos de acordo com o raciocínio expendido pelo Apelante, não fora a questão do foro convencional e inconstitucionalidades apontadas, já ter sido dilucidada pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº12/2007, in DR I Série de 6 de Dezembro de 2007 da seguinte forma «As normas dos artigos 74º, nº1, e 110º, nº1, alínea a), ambos do Código de Processo Civil, resultantes da alteração decorrente do artigo 1º da lei 14/2006, de 26 de Abril, aplicam-se às acções instauradas após a sua entrada em vigor, ainda que reportadas a litígios derivados de contratos celebrados antes desse início de vigência com cláusula de convenção de foro de sentido diverso.».

Daqui se assaca que é de todo em todo inútil declarar quer a nulidade de tal cláusula, quer para os contratos celebrados pelo Apelado antes do início da vigência daquela Lei, quer decretar a proíbição da sua inclusão nos contratos celebrados após a entrada em vigor da mesma, já que, o aludido aresto veio por termo a todas as vexatas quaestios suscitadas.

As conclusões de recurso claudicam assim in totum.

III Destarte, nega-se provimento ao Agravo interposto pelo Réu, mantendo-se o despacho recorrido e no que tange à legitimidade do Agravante em ser demandado e no que ao primeiro pedido concerne, julgando-se improcedente a Apelação interposta pelo Autor, mantendo-se, em consequência, a sentença recorrida.

Custas do Agravo pelo Agravante sendo a Apelação sem custas, por delas estar isento o Apelante nos termos do artigo 2º, nº1 alínea a) do CCJudiciais.


Lisboa, 28 de Fevereiro de 2008


(Ana Paula Boularot)
(Lúcia de Sousa)
(Luciano Farinha Alves)