Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
23184/09.8T2SNT.L1-8
Relator: LUÍS CORREIA DE MENDONÇA
Descritores: ARRENDAMENTO
DIREITO DE PREFERÊNCIA
PENHORA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/30/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: -O arrendatário de um arrendamento de duração limitada tem direito de preferência na compra e venda judicial do locado.
-Qualquer situação locatícia constituída após a penhora é inoponível à execução, caducando automaticamente após a venda executiva.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


Na execução para pagamento de quantia certa que C moveu contra A, veio aquele desistir da instância

Prosseguiu o processo sob impulso dos credores. No auto de Abertura de Propostas em Carta Fechada compareceu F, o qual, invocando a qualidade de arrendatário, declarou que pretendia exercer o direito de preferência, com fundamento no contrato de arrendamento cuja cópia havia junto aos autos com o requerimento de fls.48 a 56.

O tribunal indeferiu a pretensão do interveniente.

Inconformado, interpôs o interveniente competente recurso cuja minuta concluiu da seguinte forma:

A)-A decisão sob recurso indeferiu a pretensão do Requerente, aqui Recorrente, de preferir na venda executiva na qualidade de arrendatário do imóvel, por se entender que o mesmo não tinha legitimidade para preferir na venda do imóvel penhorado nos autos como arrendatário, determinando o prosseguimento dos termos da venda atendendo à proposta mais elevada, apresentada pela sociedade  G.
B)-A pretensão de preferir pela proposta de maior valor do Recorrente foi indeferida, quando, na verdade, face aos factos dados como provados e ao quadro legal aplicável, a mesma teria necessariamente que proceder.
C)-Pois, nos termos do art.º 1091º do Código Civil, o arrendatário tem direito de preferência “Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos;”, como aqui sucede com o Recorrente.
D)-É certo que no caso ajuizado verifica-se de facto que a penhora foi efectuada em data anterior ao início da relação de arrendamento, e que decorre do disposto no art. 819º do CC, “sem prejuízo das regras do registo, são ineficazes em relação ao exequente os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados”;
E)-NO ENTANTO, o que resulta deste preceito é que a penhora gera - APENAS - a indisponibilidade do bem penhorado relativamente ao processo executivo.
F)-A única consequência desta inoponibilidade é tão só a de que o arrendamento em nada pode obstar ou afectar a finalidade da acção executiva.
G)-Ora, sendo o contrato de arrendamento válido e tendo, por conseguinte, o Recorrente o legítimo direito legal de preferência na sua esfera jurídica, não se vê como o exercício desse legítimo direito afecte a finalidade da execução,
H)-Tendo em conta que a finalidade da execução é ressarcir o Exequente por via do património da Executada e que ele/ arrendatário manifestou o seu propósito de preferir pelo valor da proposta mais elevada apresentada na venda executiva!
I)-Acresce que, por outro lado, quando tomou conhecimento de que a casa tinha sido penhorada e estava em venda nestes autos, o arrendatário aqui Recorrente veio a fls. 48 dos autos comunicar a existência do contrato de arrendamento para efeito de eventual exercício do direito de preferência nessa condição.
J)-Nada lhe foi dito em contrário, antes pelo contrário, por comunicação datada de 12/07/2016, o Recorrente foi notificado pelo Sr. Agente de Execução da data designada para a abertura de propostas, nos termos do 819º do Código do Processo Civil.
K)-Em conformidade, o Recorrente, interessado em adquirir o imóvel para si, compareceu no acto e manifestou a sua intenção de preferir pelo valor proposto mais elevado para a aquisição do imóvel, ao invés de apresentar ele próprio uma proposta em carta fechada em igualdade de circunstâncias – o que certamente faria caso em algum momento tivesse sido advertido que não lhe era reconhecido qualquer direito de preferência.
L)-Face ao supra exposto, actua com manifestamente abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o tribunal que, após o Recorrente ter comunicado que era arrendatário do imóvel e poderia vir a querer preferir na sua venda, o notifica para comparecer à diligência de abertura de propostas e o admite a manifestar a sua intenção
de preferir, sem nunca o informar que não lhe reconhecia legitimidade para tanto; e depois vem esse mesmo Tribunal, mais tarde, e depois de já estar terminada a diligência e ele não ter condições de apresentar uma proposta em carta fechada como qualquer outro interessado, notificá-lo de que a sua pretensão era indeferida por se entender que o arrendamento era inoponível à execução, e ordenando o prosseguimento dos autos com a venda ao proponente de maior valor;
M)-Concluindo, a decisão sub judice fez errada interpretação e aplicação da lei, com violação do disposto nos artºs 334º e 819º do Código Civil, bem como dos art.ºs 195º e ss. do CPC, devendo ser dado provimento ao recurso e ser revogada a decisão recorrida, com a consequente deferimento da pretensão do Recorrente ou - pelo menos – da anulação do acto de diligência de abertura de propostas e sua repetição de forma a que o Recorrente possa apresentar a sua proposta em igualdade de circunstâncias com os demais proponentes.
NESTES TERMOS, e com o mui douto e sempre invocado suprimento de V.Exas., deve ao presente recurso ser dado provimento, revogando-se o despacho recorrido e substituindo-o por outro que defira a pretensão do Recorrente ( ou, pelo menos, e sem conceder ) que determine a repetição da diligência de abertura de propostas viciada.
Decidindo, assim, farão V. Exas. uma vez mais a necessária JUSTIÇA!

Não foram apresentadas contra-alegações.

São três as questões a decidir.
1.ª-Tem o arrendatário de um arrendamento de duração limitada direito de preferência na compra e venda do locado?
2.ª-Pode exercê-lo na venda judicial?
3.º-Que efeitos atribuir à venda executiva? 

É a seguinte a facticidade relevante para a resolução do recurso:

i)-C. moveu contra A execução para pagamento da quantia de € 17. 397,92.
ii)-Foi penhorado, no dia 15 de Outubro de 2009, o imóvel a que alude o Auto de Penhora de fls. 13 e 14.
iii)-Em 2 de Dezembro de 2011 o exequente desistiu da instância.
iv)-Os credores reclamantes D, M e I requereram o prosseguimento a execução para venda do imóvel penhorado.
v)-Em 13 de Julho 2016, o recorrente, para efeitos de eventual exercício do direito legal de preferência, requereu a junção aos autos do Contrato de Arrendamento que consta de fls. 49 a 51.
vi)-No Auto de Abertura de Propostas em Carta Fechada, datado de 28 de Setembro de 2016, compareceu F. , o qual, invocando a qualidade de arrendatário, declarou que pretendia exercer o direito de preferência, com fundamento no contrato de arrendamento cuja cópia havia junto aos autos.
vii)-O tribunal indeferiu a pretensão do interveniente.

Do mérito.

1.º–Dispõe o artigo 1091.º, n.º 1, al. a) do CC que o arrendatário tem direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais  de três anos.
Referindo-se a este artigo dizem Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge: ‘’Considerando a arrumação sistemática do artigo 1091 do CC, a letra da lei e a inexistência de norma de sentido contrário, o direito de preferência do arrendatário aqui consagrado refere-se a todos os contratos sujeitos à disciplina do arrendamento urbano , sejam eles para fim habitacional ou para fim não habitacional ou para fim não habitacional , tenham eles prazo certo ou duração indeterminada’’ (Arrendamento Urbano, , 3.ª ed., 2009:431)
Como é sabido o RAU continha regime diferente. ‘’apesar do carácter aparentemente genérico do artigo 47.º do RAU, é líquido que a preferência atribuída por esta norma aos arrendatários urbanos não existe no caso dos arrendamentos mencionados nas alíneas a) a e), inclusive, do n.º 2 do artigo 5.º do RAU, como também resulta excluída dos arrendamentos de duração limitada , atento o teor dos art.ªs 99.º, n.º 2, 117.º , n.º 2, 121.º e 123.º do RAU’’ (Agostinho Cardoso Guedes, O Exercício do Direito de Preferência, Porto, 2006:174; também Jorge Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 3:ª ed., Coimbra, 1997:240 e Maria Olinda Garcia, A Nova Disciplina do Arrendamento Urbano , Coimbra, 2006:27).
Não restam, pois dúvidas que o recorrente é titular de direito de preferência.

2.ª–A venda pode revestir sete modalidades elencadas no artigo 811.º CPC. Uma delas é a venda mediante propostas em carta fechada.
Dado tratar-se neste caso de uma venda judicial pode discutir-se se a venda prevista no artigo 1091.º, n.º 1, alínea a) do CC é abrangida por aquela.
Pensamos que a questão se relaciona com a natureza da venda executiva.
Discute-se se a venda judicial é um contrato de direito privado, de direito público ou misto de direito privado e de direito público (Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, Coimbra, 1970:252 ss).
Como ensina Lebre de Freitas, ‘’a sujeição da venda executiva ao regime geral da compra e venda leva a caracterizá-lo como um contrato especial de compra e venda com características de acto de direito público’’ (A Acção Executiva, 5.ª ed., Coimbra, 2009:346).
Sendo aplicáveis à venda executiva duma maneira geral todas as regras comuns (cfr., porém, artigos 824.º CC e 825.º CPC) e atenta a necessidade de não desfigurar a posição do preferente/adquirente que actua como particular favorecido, nada se opõe a que as normas de direito substantivo relativas à legitimação do arrendatário como preferente sejam aplicáveis à venda judicial.

3.ª–A terceira questão consiste em saber que efeitos se devem atribuir à venda executiva.
Dispõe o artigo 819.º CC que ‘’sem prejuízo das regras do registo , são inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados’’
Com a penhora o executado perde os seus poderes directos sobre os bens, o poder de detenção e de fruição (se a penhora a compreende). Fala-se a propósito da aplicação do princípio da indisponibilidade material absoluta dos bens penhorados. Se quanto à disposição material dos bens o princípio é o referido, quanto à disposição jurídica a regra é a da livre disponibilidade do direito ‘’apenas com a limitação da ineficácia dos respectivos actos , para com a execução, independentemente de  declaração judicial, isto é, tendo-se os actos como válidos e eficazes em todas as direcções menos em relação à execução. Para a qual são havidos como se não existissem’’ ;’’só a figura da ineficácia relativa dá a exacta configuração das coisas e lhe fixa os seus verdadeiros efeitos jurídicos’’(Anselmo de Castro, op. cit:151/152).

Como ensina Castro Mendes ‘’este valor jurídico só se mantém até à venda executiva ; com esta o acto deixa de ser meramente ineficaz em relação à execução, ou inoponível nesta, para se tornar totalmente ineficaz’’. (Direito Processual Civil, 3.ª Vol, Lisboa, 1989:463).

Preceitua o artigo 824.º, n.º 2 do CC: ‘’Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como os demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo’’.

Por aplicação desta norma, diz-nos Pedro Romano Martinez, o contrato de locação também pode caducar ’’pois à venda da coisa locada em processo executivo não se aplica o princípio emptio non tollit locatum (art. 1051 do CC) , pelo que o comprador em venda executiva adquire o bem livre de ónus e encargos, em que se incluem as limitações decorrentes de contratos de arrendamento. Mesmo entendendo que o arrendamento não se qualifica como direito real, a ratio do n.º 2 do artigo 824.º do CC é a de os bens vendidos judicialmente serem transmitidos sem encargos, entre ao quais se se inclui a vinculação decorrente do arrendamento’’ (Da Cessação do Contrato, 2.ª ed., Coimbra, 2006:327).

Ora, quer se considere a dimensão real do arrendamento quer tão-só a dimensão obrigacional do contrato que o substancia, o que importa é saber se o contrato que formalizou a sua criação ocorreu antes ou depois da penhora.

O Supremo Tribunal de Justiça vem decidindo uniformemente no sentido assumido no sumário do acórdão de 5 de Fevereiro de 2009, in: www.dgsi.pt: qualquer situação locatícia - registada ou não - constituída após o registo de hipoteca, arresto ou penhora é inoponível ao comprador do imóvel em sede de venda judicial, na justa medida em que após a concretização desta caduca automaticamente.

No caso sujeito foi penhorado, em 09.11.2009, o imóvel identificado no auto de fls.13 e 14, objecto da venda judicial mediante abertura de propostas em carta fechada.

O requerente F invocou a qualidade de arrendatário com base no contrato de arrendamento cuja cópia se mostra junta a fls.49 a 51, celebrado em 20.12.2011, figurando, na qualidade de senhorio, N (na qualidade de procurador de L, executada nestes autos).

Quer isto dizer, como sublinha o primeiro grau, que o contrato de arrendamento invocado para efeitos do exercício do direito de preferência foi celebrado em data posterior à da penhora que incidiu sobre o imóvel objecto de tal contrato.

O acto de oneração do executado queda então, como dissemos, inoponível na execução.

Bem andou a primeira instância ao indeferir a pretensão do recorrente.

Uma última palavra para dizer que não faz qualquer sentido imputar ao tribunal uma conduta abusiva, sendo certo que a figura do abuso de direito não se aplica ao exercício (aliás correcto e justo) da função jurisdicional 

Pelo exposto, acordamos em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.



Lisboa, 30.03.2017



Luís Correia de Mendonça
Maria Amélia Ameixoeira
Rui Moura
Decisão Texto Integral: