Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8989/2006-2
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: JULGADO DE PAZ
COMPETÊNCIA MATERIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I A não consagração na Lei n° 78/2001 de forma expressa, da competência exclusiva dos julgados de paz não aponta, no sentido da competência alternativa, porque tal não resulta nem do seu espirito, nem tão pouco da sua letra, sendo nossa firme convicção que a intenção legislativa foi atribuir tal exclusividade aos apontados órgãos, sendo esta a interpretação que mais se coaduna com o disposto no artigo 9º, nº1 do CCivil.
II Os Julgados de Paz de Lisboa são os órgãos competentes, além do mais, para o conhecimento das acções tendentes à efectivação da responsabilidade civil extra contratual, proveniente de acidente de viação, com a limitação decorrente do artigo 8º daquela Lei, espartilhada às questões cujo valor não exceda a alçada do Tribunal de primeira instância.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA


I M intentou contra COMPANHIA DE SEGUROS, SA, acção declarativa com processo sumaríssimo no Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 1.291, 39, quantia esta proveniente dos danos sofridos no seu veículo, por via de um acidente de viação cuja culpa exclusiva atribui à condutora do veículo seguro na Ré

O Tribunal, a final, produziu sentença a julgar-se materialmente incompetente para o conhecimento da acção, uma vez que se entendeu, ser a mesma da competência exclusiva dos Julgados de Paz, tendo absolvido a Ré da instância.

Inconformado com tal decisão, recorreu o MP, apresentando as seguintes conclusões:
- A Lei n° 78/2001, de 13 de Julho, que regula a competência e funcionamento dos julgados de paz e a tramitação dos processos da sua competência, não consagra qualquer norma de competência exclusiva aos julgados de paz, ao contrário dos projectos de lei que foram discutidos nos trabalhos preparatórios.
- A actuação dos julgados de paz está vocacionada para permitir a participação cívica dos interessados e para estimular a justa composição dos litígios por acordo das partes (cfr. artigo 2°, n° 1 da Lei n° 78/2001).
- Os julgados de paz apenas podem julgar as acções referidas no artigo 9° da citada Lei 78/ 2001, desde que o seu valor nao exceda a alçada do tribunal de 1ª instância e no decurso das mesmas não sejam suscitados incidentes processuais, nem requerida prova pericial.
- Tal regime aliado às demais particularidades dos julgados de paz não autorizam, salvo melhor opinião, concluir com segurança que aqueles são detentores de competência exclusiva para tais acções em face do actual quadro jurídico.
- Os julgados de paz foram criados com carácter experimental e circunscritos apenas a algumas comarcas.
- Com a entrada em vigor da Lei n° 78/2001, de 13 de Julho não foram adoptadas quaisquer alterações ao Código de Processo Civil e à Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais relativas aos julgados de paz.
- A não consagração na Lei n° 78/2001 de forma expressa, de competência exclusiva dos julgados de paz, a inércia legislativa, apesar das tomadas de posição do Conselho de Acompanhamento, no sentido de isso ser posto em letra de lei, o carácter experimental dos julgados de paz, a instalação dos mesmos limitada a algumas comarcas e a falta de previsão da representação do Estado, apontam, no sentido da competência alternativa.
- Atribuindo-se, assim, aos julgados de paz uma competência material alternativa, com as virtualidades de meio de aliviar a consabida sobrecarga dos tribunals judiciais, onde avultam razões de eficácia do sistema e a atribuição ao demandante da liberdade da escolha entre os dois tribunais.
- «O reconhecimento de que dois tribunais (um julgado de paz e um tribunal judicial) têm idêntica competência material não implica qualquer entorse aos princípios gerais, uma vez que pertencem a estruturas jurisdicionais diferentes.» (Parecer n° 10/2005 da Procuradoria Geral da República).
- À luz destes argumentos entedemos que a competência material dos julgados de paz é optativa relativamente aos tribunais judiciais com competência territorial concorrente, cabendo, assim, ao demandante escolher entre um e outro tribunal.
- O tribunal de pequena Instância Cível de Lisboa é competente para apreciar a decidir a acção dos autos.
- No caso em apreço, a Autora escolheu o Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa, pelo que a acção deverá ser apreciada a decidida neste TPIC, e não nos julgados de paz.
- Assim, foram violadas as regras de competência material do tribunal, nomeadamente, os artigos 211° da Constituição da República Portuguesa, 66° do Código de Processo Civil e 101° da Lei de Organizaçã e Funcionamento dos Tribunais Judiciais em conjugação com a Lei n° 78/2001, de 13 de Julho.

Não houve contra alegações e foi sustentada a decisão recorrida.
II A única questão que se nos põe no âmbito do presente recurso é a de saber se, no caso sub juditio, o Tribunal recorrido tem ou não competência para o conhecimento da presente acção, ou se tal competência, como se decidiu, deverá ser deferida, exclusivamente, aos Julgados de Paz.

No que à economia do recurso concerne, mostra-se assente que:
- A Autora, na Petição Inicial formulou contra a Ré o seguinte pedido (sic) "(...) deve a presente acção ser julgada procedente, por provada, condenando-se a R.a pagar à A. a quantia de € 1.291, 39 respeitantes aos danos materiais decorrentes do acidente de viação. ".

É com base neste petitório formulado pela Autora que teremos de analisar, além do mais, a competência do Tribunal.

Vejamos então.

A competência dos tribunais em geral é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fracciona e reparte o poder jurisdicional, que tomado em bloco, pertence ao conjunto dos tribunais, cfr Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 88 e 89.

Desta definição, podemos passar para uma classificação de competência, a qual em sentido abstracto ou quantitativo, será a medida da sua jurisdição, ou seja a fracção do poder jurisdicional que lhe é atribuída, ou, a determinação das causas que lhe cabem; em sentido concreto ou qualitativo, será a susceptibilidade de exercício pelo tribunal da sua jurisdição para a apreciação de uma certa causa, cfr Manuel de Andrade, ibidem e Miguel Teixeira de Sousa, A Competência e Incompetência dos Tribunais Comuns, 7.

Assim, a incompetência será a «insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida da jurisdição suficiente para essa apreciação. Infere-se da lei a existência de três tipos de incompetência jurisdicional: a incompetência absoluta, a incompetência relativa e a preterição do tribunal arbitral.», cfr Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, 128.

No caso sub juditio a questão suscitada, pretende-se com a incompetência absoluta do Tribunal recorrido, em razão da matéria.

Dispõe o normativo inserto no artigo 66º do CPCivil (em consonância com o artigo 211º da CRP «Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.») «São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.», acrescentando o artigo 67º «As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada.».

Os tribunais integram, assim, diversas ordens - a que a Constituição chama categorias (no citado artigo 211º) e aos tribunais da organização judiciária comum atribui a lei competência, genérica e competência especializada (para aqui não tem relevância a competência especifica, determinável em razão da forma de processo - artigos 72º a 77º da LOTJ e 69º do CPCivil) e o confronto destas duas resolve-se através do critério estabelecido naquele artigo 67º do CPCivil.

Assim: «As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada», de onde deflui que as causas que por ela não forem atribuídas a alguma jurisdição especial, são da competência do Tribunal comum e a competência dos Tribunais especializados se fixa e se conhece directamente, mediante a análise dos dispositivos que lhes atribuem a mesma, ao passo que a Competência dos Tribunais comuns, nos é dada por via indirecta ou por exclusão, sendo constituída pela «parte sobrante».

Veja-se, neste conspectu, o que consagra o artigo 213º, nº1 da CRPortuguesa - «Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas as outras ordens judiciais» - acrescentando o nº2 que «Na primeira instância pode haver tribunais com competência específica e tribunais especializados para o julgamento de matérias determinadas», sendo que estes princípios têm consagração a nível da orgânica judiciária no artigo 18º, nº1, da Lei nº. 3/99, de 13 de Janeiro onde se prevê serem da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

Ora, dispõe o artigo 6º, nº1 da Lei 78/2001, de 13 de Julho «A competência dos julgados de paz é exclusiva a acções declarativas.», especificando o seu artigo 8º a limitação da competência em razão do valor, a qual está espartilhada às questões cujo valor não exceda a alçada do Tribunal de primeira instância (o que é o caso da presente acção).

O artigo 9º daquela mesma Lei, enumera, nas suas várias alíneas, quais os temas (agora em razão da matéria) que são da competência daqueles órgãos, competência essa exclusiva, sem prejuízo do surgimento de uma eventual dependência a um Tribunal de competência cível, se forem suscitados incidentes e/ou for requerida prova pericial (artigos 41º e 59º, nº3 da mesma Lei), sendo certo que esta dependência, não é determinante, a se, para retirar àquele Julgado o cariz de exclusividade, já que, o mesmo poderá acontecer noutro tipo de acções, vg, em acção declarativa instaurada como sumária no competente juízo cível nos termos do artigo 99º da LOFTJ, atento o seu valor, mas que por via de eventual pedido reconvencional deduzido pelo Réu, passe a ordinária, devendo, neste caso, passar a correr numa vara cível, de harmonia com o disposto nos artigos 97º, nº1, alínea a) da LOFTJ, 308º, nº2, 221º e 220º, alínea a) do CPCivil (aqui também nos surge uma «dependência», determinada pelo valor, e que irá impor a nível de processado outras garantias quer nível de prazos, quer a nível de produção de prova (número de testemunhas), formalismo de audiência e posteriormente, uma ou duas instâncias de recurso, enquanto ali é determinada quer por intercorrências processuais, quer por diligências probatórias periciais, que influirão, igualmente, nos formalismos subsequentes, oferecendo às partes maiores garantias de defesa, mas essa «dependência» é afinal o apanágio da unicidade do sistema jurisdicional).

o que tange à vocação daqueles órgãos para a participação cívica dos interessados e para estimular a justa composição dos litígios por acordo das partes – artigo 2º, nº1 da Lei 78/2001, de 13 de Novembro – salvo o muito e devido respeito, não serve tal constatação legal, para daí fazer retirar a conclusão que a sua competência é opcional, porque também os Tribunais Judiciais apelam à participação cívica, através dos princípios da cooperação e do dever de boa fé processual, insertos nos artigos 266º e 266º-A, do CPCivil e decorre, inequivocamente, do normativo inserto no artigo 652º, nº2 deste mesmo diploma, aplicável a todas as formas de processo, que a tentativa de conciliação é obrigatória, de onde o legislador ter privilegiado o acordo das partes (quanto a direitos disponíveis, como é óbvio), como forma de composição dos litígios: a participação cívica e a justa composição do litigio através de acordo, não é apanágio da actuação dos Julgados de Paz, sendo antes apanágio da actuação de todo e qualquer órgão jurisdicional, desde que as Leis aplicáveis o permitam (veja-se que em processo criminal, por exemplo, nem sempre é possível a desistência de queixa ou a renúncia desta, as quais só operam nos casos previstos no artigo 116º do CPenal).

Também o argumento do carácter experimental dos Julgados de paz não nos impressiona, uma vez que o legislador optou igualmente noutras situações, por regimes experimentais, cuja aplicação é circunscrita, por ora, a um pequeno conjunto de Tribunais. Referimo-nos à criação do regime processual civil de natureza experimental, introduzido pelo DL 108/06 de 8 de Julho aplicável, apenas, nos Tribunais referidos no artigo único da Portaria 955/06, de 13 de Setembro e não se diga que aqui a parte terá a faculdade de optar entre o regime simplificado e instituído por aquele diploma e outro decorrente da aplicação das regras gerais, face ao que dispõe o seu artigo 1º «O presente decreto-lei aprova um regime processual experimental aplicável a acções declarativas cíveis a que não corresponda processo especial e a acções especiais para o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos.».

Veja-se que aqui, o legislador não procedeu a qualquer alteração ao CPCivil, tendo regulado naquele mesmo diploma, o processado de tais acções, o que significa a desnecessidade de modificações do corpo base da Lei, porque a legislação especial que cria o tipo de processo, poderá prever a mesma, aliás de harmonia com o que aquele compêndio processual prevê no normativo inserto no artigo 462º, sob a epígrafe “(Domínio de aplicação do processo ordinário, sumário e sumaríssimo)”, onde se lê «(…) não havendo procedimento especial (...)».

Poder-se-á constatar que o legislador, face ao aumento do número de processos e às questões de morosidade processual, a fim de descongestionar os Tribunais e tornar a resolução dos litígios de baixa densidade mais célere, tem ensaiado várias ordens de soluções, o que não significa, que com esses ensaios sejam facultadas às partes mais opções de litigância, oferecendo-lhes a possibilidade múltipla de litigarem neste ou naquele Tribunal ou Julgado de Paz, ou utilizando este ou aquele meio processual, sob pena de se frustrar a intenção legislativa que é a da diminuição da movimentação processual e consequente descongestionamento dos órgãos judiciais.

Ainda se acrescenta, ex abundanti, que a tese sustentada pelo Digníssimo Agravante, quanto à não previsão da intervenção do Estado neste tipo de acções, aponta, no sentido da competência alternativa, também não colhe, nem serve de ponto de partida para a desconsideração daqueles órgãos como jurisdicionais, uma vez que, nos Tribunais Arbitrais, o Estado não tem qualquer intervenção – a mesma não tem qualquer previsão legal, cfr LAV (Lei 31/86, de 29 de Agosto) – e ninguém põe em causa (em termos de princípio) a sua natureza de «outra ordem judicial» (na letra da Lei Fundamental, artigo 213º, nº1) e a sua competência exclusiva, desde que as partes assim o convencionem, de harmonia com o preceituado nos artigos 1º e 2º daquele diploma.

A não consagração na Lei n° 78/2001 de forma expressa, da competência exclusiva dos julgados de paz não aponta, no sentido da competência alternativa, porque tal não resulta nem do seu espirito, nem tão pouco da sua letra, sendo nossa firme convicção que a intenção legislativa foi atribuir tal exclusividade aos apontados órgãos, sendo esta a interpretação que mais se coaduna com o disposto no artigo 9º, nº1 do CCivil.

In casu, a Autora pretende a efectivação da responsabilidade civil da Ré, por via do acidente de viação ocorrido em que foram intervenientes, ela própria e a segurada desta, de onde a questão decidenda se integrar no artigo 9º, nº1, alínea h), da Lei 78/2001 de 13 de Julho «Os julgados de paz são competentes para apreciar e decidir: h) As acções que respeitem à responsabilidade civil contratual e extracontratual; (…)».

Daqui decorre, que os Julgados de Paz de Lisboa são os órgãos competentes para o conhecimento das acções tendentes à efectivação da responsabilidade civil extra contratual, proveniente de acidente de viação, e por isso os competentes para apreciar a presente acção (é nossa opinião já expressa nos Acórdãos desta secção, proferidos nos processo 3364/05, de 5 de Maio de 2005, in www.dgsi.pt, e 9246/06 de 30 de Novembro de 2006, em que fomos Relatora, que existe competência exclusiva dos Julgados de Paz (embora neste último Acórdão a competência fosse deferida ao Tribunal Cível, por a questão se integrar na excepção a que alude a última parte da alínea a) do nº1 do artigo 9º da Lei 78/2001, de 13 de Setembro), vide neste sentido cfr o Ac STJ de 4 de Março de 2004 (Relator Cons Neves Ribeiro), ibidem, confrontar também Cardona Ferreira, in Julgados de Paz Organização e Funcionamento, 28, sem prejuízo da constatação de jurisprudência em sentido contrário).


Assim sendo, as conclusões improcedem in totum.

III Destarte, nega-se provimento ao Agravo, confirmando-se a decisão recorrida.

Sem custas.

Lisboa, 19 de Dezembro de 2006

(Ana Paula Boularot)
(Lúcia de Sousa)
(Luciano Farinha Alves)