Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1519/22.8T8CSC.L1-4
Relator: SÉRGIO ALMEIDA
Descritores: RETRIBUIÇÃO
TEMPO DE REFEIÇÃO
TRABALHO SUPLEMENTAR
TRABALHO NOCTURNO
SUBSÍDIO DE TURNO
ACORDO DE EMPRESA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: I. No âmbito do Acordo de Empresa celebrado entre a Stagecoach Portugal Transportes Rodoviários, Lda, e a FESTRU — Feder. dos Sind. de Transportes Rodoviários e Urbanos, publicado no BTE, 1ª, n.º 1/97, as retribuições resultantes das clausulas 45/1/b e 46 têm fundamentos e fins distintos.
II. No caso de haver lugar ao pagamento de trabalho suplementar por a empregadora ter olvidado que a hora da refeição conta como tempo de trabalho, o trabalho suplementar a ressarcir é o que respeita à última hora da atividade, que é a que vai para além do período normal de trabalho, e não a hora da refeição.
 (sumário da autoria do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa.

I.
A) Autor (A.) e recorrido: AA
Ré (designada por R.) e recorrente: Scotturb - Transportes Urbanos, Lda.
O A.., com os fundamento na prestação de trabalho por turnos, pede a final o pagamento das seguintes quantias, com fundamento na, acrescidas de juros moratórios:
· 24.223,92€ a título de trabalho prestado em dias de descanso semanal;
· 9.909,78€ a título de trabalho prestado na hora de refeição;
· 8.439,66€ a título de subsídio de turno;
· 1.500,76€ referente à média anual dos valores auferidos a título de trabalho nocturno auferidos com carácter de regularidade nos anos de 2014 a 2016, 2018 e 2019.
Não havendo acordo, a R. contestou, defendendo que (i) o Autor não prestava trabalho por turnos, mas antes em horário móvel; (ii) o A. nunca prestou mais de cinco dias de trabalho por semana; (iii) o A. apenas recebeu com a regularidade de 11 meses por ano a prestação designada subsídio nocturno, mas não a de trabalho nocturno em dia feriado; (iv) a integração da remuneração do trabalho nocturno não ocorre no subsídio de Natal.
Em despacho saneador foi a Ré absolvida do pedido de condenação no pagamento de 500,25€, a título de diferencial do subsídio de Natal, referente à média anual dos valores auferidos a título de trabalho nocturno auferidos com carácter de regularidade nos anos de 2014 a 2016, 2018 e 2019.
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Efetuado  julgamento, o Tribunal a final decidiu julgar a ação “parcialmente procedente, por parcialmente provada, e em consequência:
A. Condenar a Ré SCOTTURB – Transporte Urbanos Lda. no pagamento ao Autor AA da quantia de 9.909,16€ (nove mil, novecentos e nove euros e dezasseis cêntimos), a título de pagamento de trabalho suplementar, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal de 4%, até integral pagamento;
B. Condenar a Ré SCOTTURB – Transporte Urbanos Lda. no pagamento ao Autor AA da quantia de 6.034,64€ (seis mil e trinta e quatro euros e sessenta e quatro cêntimos), a título de subsídio de turno, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal de 4%, até integral pagamento;
C. Condenar a Ré SCOTTURB – Transporte Urbanos Lda. no pagamento ao Autor AA das diferenças de retribuição de férias e de subsídio de férias relativas aos anos de 2015 a 2017, 2019 e 2020, correspondentes às quantias que se venham a apurar como média dos montantes recebidos por este, a título de remuneração do trabalho nocturno, incluindo subsídio nocturno, nos anos de 2014 a 2016, 2018 e 2019, acrescidas de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal de 4%, até integral pagamento, a liquidar oportunamente;
D. Absolver a Ré SCOTTURB – Transporte Urbanos Lda. do demais peticionado”.
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B) A R. não se conformou e recorreu, formulando estas conclusões:
A. A hora diariamente concedida para a refeição do A. é ficcionada como tempo de trabalho pela Cláusula 21.ª, n.º 4, do AE aplicável, determinando que “…o tempo gasto para refeição é para todos os efeitos considerado tempo de trabalho.”
B. O texto desse segmento daquela cláusula não pode permitir uma interpretação que habilite essa ficção de tempo de trabalho além do necessário a remunerar o tempo gasto na refeição como se tempo normal de trabalho se tratasse.
C. Levar à letra a equiparação do tempo de refeição como tempo de trabalho “… para todos os efeitos …”, sem mais, possibilitaria resultados incongruentes e imprevisíveis face à vontade dos outorgantes daquele instrumento de regulamentação colectiva do trabalho.
D. A contabilização do tempo de refeição para efeitos da sua remuneração como tempo de trabalho suplementar, ou seja, além da ficção de tempo de trabalho para sua normal remuneração, permitiria ainda que o trabalhador auferisse uma majoração retributiva que se funda numa especial penosidade advinda desse modo de realização do trabalho que não ocorreu nem se pode presumir por alguma causa ficcionado.
E. Ao tomar a sua refeição durante aquele período o A. não foi privado do seu tempo de descanso, nem se viu obrigado a suportar a realização da sua prestação com maior intensidade por força da sua continuação além do tempo de trabalho programado, como é característica do trabalho suplementar(conforme ponto 7, dos factos provados e fls. 14 a 112 dos autos).
F. O literalismo dessa interpretação nos obrigaria a considerar tal ficção de “tempo de trabalho” no cômputo dos limites legais do tempo de trabalho suplementar diário e anual (previstos, em especial, na Cláusula 23.ª, n.º 4, AE) limitando a sua real prestação ou, ao invés, ultrapassando os sus limite e expondo a R. ao procedimento contraordenacional correspondente, o que também não é resultado admissível.
G. Se causa houvesse para equiparar o tempo de refeição a tempo de trabalho suplementar, as partes outorgantes tê-lo-iam dito expressamente, conforme fizeram no n.º 11, da Cláusula 54.ª, do AE, a propósito dos tempos de deslocação gastos pelos trabalhadores poderem sere remunerados como trabalho normal (se realizados aquém do período normal de trabalho diário), ou como trabalho suplementar (se realizados além desse período), o que bem se compreende.
H. Não resulta assente que o A. tenha realizado ou ficado adstrito à realização da prestação de trabalho durante o período de refeição consignado no seu horário de trabalho ou para além do seu período normal de trabalho diário, o que é pressuposto do direito à remuneração por trabalho suplementar que, por não se verificar, impetra a revogação da sentença na parte em condenou no seu pagamento.
I. Assim sendo, deve aquela ficção de tempo de trabalho ser levada em conta apenas com a finalidade de remuneração o período destinado às refeições do A. como se de tempo de trabalho normal de tratasse.
J. Consequentemente, o A., ora Recorrido, terá direito a receber a quantia total de 6.604,96 € remuneração do tempo de refeição como tempo de trabalho normal (e não a de 9.909,16 € como tempo de trabalho suplementar), nos termos que resultam do cálculo constante da tabela vertida no ponto 13, das alegações acima.
K. A R. foi condenada a pagar ao A. o subsídio de turno convencionado na alínea b), do n.º 1, da Cláusula 45.ª, o AE aplicável, no valor de Eur. 48,38 “… para os trabalhadores que fazem três turnos rotativos, ou mesmo dois, desde que nesta última situação esteja incluído o turno nocturno, a partir de Julho de 1996; …”, em virtude de o A. suportar a maior penosidade de parte do período dos seus turnos ocorrer durante a laboração em período nocturno (negrito nosso).
L. Conforme assente sob os pontos 9. e 10., dos factos provados, sucede que o A. já vinha auferindo um subsídio nocturno contrapartida da sua prestação de trabalho nocturno, como constante dos recibos de vencimento a fls. 22 v. e 75 v., dos autos.
M. O subsídio nocturno foi até recebido regular e periodicamente nos anos de 2014 a 2016 e de 2018 a 2019, conforme admitido (vide antepenúltimo §, de pág. 20, da sentença), condenando a R., sob a alínea c), da sua decisão, a pagar as diferenças de retribuição de férias e de subsídio de férias as quantias que se venham a apurar como médias desses montantes naqueles anos.
N. Ora, como é de meridiana Justiça, o A. não pode ser remunerado duas vezas pela mesma causa (a prestação de trabalho em período nocturno), sob pena de incorrer num enriquecimento sem causa à custa da ora R., o que não é admissível.
O. Assim, nos períodos em que o A. haja auferido subsídio nocturno, apenas lhe deverá ser pago o subsídio de turno convencionado na alínea a), do n.º 1, da Cláusula 45.ª, o AE aplicável, no valor de Eur. 33,42 “… para os trabalhadores que fazem dois turnos rotativos, excluindo o nocturno, a partir de Julho de 1996;…”, uma vez que o pagamento do subsídio nocturno já remunerou a maior penosidade da laboração do A. em período nocturno.
P. Consequentemente, o A. ora Recorrido, terá direito a receber a quantia total de 4.160,00 € a título de subsídio mensal de turno, incluindo a prestação de Natal, conforme previstos nas alíneas a) ou b), do n.º 1, da Clausula 45.ª do AE (e não 6.304, 46 €) consoante haja, ou não, auferido subsídio mensal nocturno no mesmo período, conforme resulta do confronto com os documentos a fls. 22 v. a 75 v., dos autos, bem como do cálculo constante da tabela sob o ponto 10., da alegações acima.
Remata pedindo a revogação parcial da decisão e a sua absolvição de parte do pedido, como acima alegado.
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O A. não contra-alegou.
O DM do Ministério Público teve vista e emitiu parecer pugnando pela confirmação da sentença.
A R. respondeu ao parecer.
Foram colhidos os competentes vistos.
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II
A) É sabido e tem sido jurisprudência uniforme a conclusão de que o objecto do recurso se limita em face das conclusões insertas nas alegações do recorrente, pelo que, em princípio, só abrange as questões aí contidas, como resultado, aliás, do disposto nos artigos 635/4, 639/1 e 2, 608/2 e 663 do CPC.
Deste modo o objecto do recurso consiste em saber se é devida a retribuição do trabalho suplementar e do subsídio de turno nos termos em que o Tribunal a quo o entendeu.
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São estes os factos apurados nos autos:
1. O Autor está sindicalizado no Sindicato dos Trabalhadores de Transportes Rodoviários e Urbanos de Portugal, por sua vez, filiado na FECTRANS;
2. A Ré é uma empresa que se dedica ao transporte público de passageiros com o seu centro operacional em Adroana, actuando nas zonas de Sintra, Cascais e Oeiras;
3. Através de contrato de trabalho a termo certo, o Autor foi admitido ao serviço da Ré em 20 de Fevereiro de 2012, para sob as suas ordens, direcção e fiscalização lhe prestar a sua actividade de abastecedor de carburantes, tendo as partes alterado a sua categoria profissional para motorista de pesados em 22 de Maio de 2017;
4. Autor e Ré, na Cláusula 4.ª do contrato de trabalho, estabeleceram que: «1. O Segundo Contraente prestará um horário semanal de 40 horas, dividido em cinco jornadas diárias de oito horas, em regime de horário rotativo. 2. O horário de trabalho do segundo Contraente poderá ser organizado de acordo com o regime de adaptabilidade previsto e regulado nos artigos 205º e seguintes do Código de Trabalho. 3. O Segundo Contraente gozará as folgas relativas ao dia de descanso semanal obrigatório e de descanso semanal obrigatório de modo fixo ou rotativo».
5. Em 6 de Maio de 2021, com efeitos imediatos, o Autor denunciou o seu contrato de trabalho junto da Ré;
6. O Autor nunca deu o seu acordo, verbal ou escrito, para prestar o seu trabalho em regime de turnos, nem para que fosse estabelecido um regime especial de horário por turnos que permitisse que o período de trabalho fosse superior a quarenta horas semanais, em cinco dias;
7. A Ré concedia diariamente ao Autor uma hora para refeição, mas não a considerava como tempo de trabalho;
8. Durante a relação laboral o Autor praticou os horários de trabalho que constam de fls. 94 a 112, que se dão por integralmente reproduzidas;
9. O Autor auferiu os montantes que constam dos respectivos recibos de vencimento/remuneração, que constam de fls. 22v a 75v, que se dão aqui por integralmente reproduzidos;
10. O subsídio nocturno é a remuneração especial do trabalho nocturno.
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De Direito
Dispõe o art.º 258 do Código do Trabalho, sob a epígrafe "princípios gerais sobre a retribuição", que 1 - Considera-se retribuição a prestação a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito em contrapartida do seu trabalho. 2 - A retribuição compreende a retribuição base e outras prestações regulares e periódicas feitas, direta ou indiretamente, em dinheiro ou em espécie. 3 - Presume-se constituir retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador. 4 - À prestação qualificada como retribuição é aplicável o correspondente regime de garantias previsto neste Código".
Escrevendo no âmbito da LCT Mário Pinto, Pedro Furtado Martins e António Nunes de Carvalho, in Comentário às Leis do Trabalho, vol. I, ed. Lex, 1994, 247, apontavam à retribuição as seguintes características:
a) prestação patrimonial;
b) regular e periódica;
c) devida pelo empregador ao trabalhador;
d) como contrapartida da actividade por este prestada.
Os elementos essenciais que se surpreendem na noção de retribuição são:
a) a contrapartida da atividade do trabalhador – cfr. art.º 258/1 do CT2009 - faltando o sinalagma da actividade, o empregador em regra não tem de a prestar – vg períodos de faltas, greves e suspensão do contrato;
b) periódica (art.º 258/2 CT2009);
c) eminentemente de caráter pecuniário (art.º 258/2 e 259). Podem ter uma componente em espécie, que não excede a parte em dinheiro (art.º 259/2).
Há, por outro lado, prestações que não fazem parte do conceito de retribuição (veja-se o Ac. do TRL de 19-11-2008 – disponível, como todos citados sem menção da fonte, em www.dgsi.pt: “I- São elementos essenciais do conceito de retribuição, que se retiram do art. 249º do CT e seguintes (que corresponde, com poucas alterações, ao que constava do art. 82º e seguintes da LCT), a obrigatoriedade das prestações, a sua regularidade e periodicidade e a correspetividade ou contrapartida entre as prestações do empregador e a situação de disponibilidade do trabalhador. I- Todos estes elementos são de verificação cumulativa, pelo que a falta de um deles descaracteriza a prestação como retributiva. (…) VI- Tanto na vigência da LCT como na do Código do Trabalho há que recorrer às disposições convencionais colectivas que criam certas prestações para analisar o respectivo regime e se ver se as mesmas integram ou não a base de cálculo de certas prestações o conceito de retribuição”).
Com efeito, nada impede o empregador de efetuar transferências a favor dos trabalhadores sponte sua, sem obrigação, seja por entender ser um ato de justiça, seja como forma de motivação ou por outra razão qualquer (ou até sem razão alguma). Será o caso de gratificações, prémios não acordados por bons resultados da empresa, prestações relacionadas com o mérito profissional e assiduidade do trabalhador, e até formas de participação nos lucros, como planos de aquisição de ações. São meras liberalidades (cfr. art.º 260/1).
Acrescente-se que os pagamentos efetuados por terceiros (vg gorjetas de clientes) e remunerações não relacionadas com a contrapartida da prestação da atividade ficam igualmente excluídos. Como também ficam excluídas, em regra, as transferências destinadas a pagar encargos que o trabalhador suporta – ou é de esperar que suporte – pelo mero facto de trabalhar, como ajudas de custo, despesas de transporte, abonos de instalação, abonos de falhas, abonos de viagem e subsídios de refeição (art.º 260/1/a e 2). Na verdade, se tomarmos este ultimo por exemplo, verificamos que o trabalhador paga, em princípio, mais por ter de comer fora de casa do que pagaria se adquirisse e confeccionasse os seus alimentos; justifica-se, pois, que a diferença seja suportada pelo empregador, mas já não que este pague tal prestação no chamado 13º mês.
Mas ainda há determinadas transferências que não compõem a retribuição em sentido próprio, não obstante terem um elemento remunerador; são aquelas que visam compensar uma certa situação de esforço, penosidade ou risco acrescido, uma situação especial, que não tem de se verificar sempre (a situação) e que só se justifica (a transferência) enquanto a dita situação se mantém (neste sentido veja-se os Ac. do TRP de 14/04/2008: “O princípio da irredutibilidade da retribuição, contido no art. 122º al. d) do Código do Trabalho, respeita tão só à retribuição estrita, não incluindo as parcelas correspondentes a maior esforço ou penosidade do trabalho ou a situações de desempenho específicas (como é o caso da isenção do horário de trabalho), ou a maior trabalho (como ocorre quando se verifica a prestação de trabalho suplementar), ou à prestação de trabalho em condições mais onerosas, em quantidade ou esforço (caso do trabalho por turnos), o mesmo sucedendo com as prestações decorrentes de factos relacionados com a assiduidade do trabalhador, cujo pagamento não esteja antecipadamente garantido”; e do Supremo Tribunal de Justiça de 25/09/2002: “I - O subsídio de exclusividade apenas é devido enquanto persistir a situação que lhe serve de fundamento, não implicando violação do princípio da irredutibilidade da retribuição o não pagamento daquele subsídio na sequência de válida determinação da entidade patronal no sentido de cessação da prestação de trabalho em regime de exclusividade. (…) III - Determinada pela entidade patronal a cessação desse regime, deixou de ser devido, para o futuro, o correspondente subsídio, sem que tal represente violação do princípio da irredutibilidade da retribuição”).
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Vejamos agora em especial o caso.
Do trabalho suplementar
Considerou a sentença recorrida:
“(…) O Autor peticiona o pagamento da quantia de 9.909,78€, a título de remuneração do trabalho suplementar, defendendo que, por desempenhar funções num horário por turnos e sendo a hora da refeição considerada como hora de trabalho, trabalhou sempre uma hora por dia além do seu período normal de trabalho.
A Ré limita a respectiva oposição à negação de que o Autor prestasse trabalho por turnos, o que já se afastou supra.
 A Cl.ª 21.ª, n.º 4, do AE, determina que :«No trabalho por turnos o trabalhador terá direito a um período mínimo de uma hora por dia para refeição. O tempo gasto na refeição é para todos os efeitos considerado tempo de trabalho.»
Perante a regra de que o tempo de refeição é para todos os efeitos considerado tempo de trabalho, é de constatar que os turnos em que o Autor prestou trabalho têm a duração de 9h.
Importa realçar a irrelevância da questão de saber se o Autor prestou ou não trabalho no tempo de refeição, uma vez que o IRCT em presença ficciona que o período mínimo (e não máximo) de uma hora por dia para refeição consubstancia tempo de trabalho, pelo que, diante da ficção em apreço, o intérprete não carece de fazer apelo a qualquer factualidade integradora.
De acordo com a Cl.ª 21.ª, n.º 3, do AE, o período de trabalho do Autor não pode ser superior a quarenta horas semanais, sendo que o contrato de trabalho define que a jornada diária tem 8h.
Nestes termos, em cada dia de prestação de trabalho o Autor prestou trabalho durante uma hora além do período normal de trabalho.
Deflui da Cl.ª 23.ª, n.º 1, do AE, embora sem previsão expressa quanto ao trabalho por turnos, que se considera trabalho suplementar, para o horário fixo, o prestado fora do período normal de trabalho normal diário ou, para o horário móvel, o prestado para além da duração diária do trabalho normal, pelo que seja por analogia, seja por referência à norma do Código do Trabalho, haverá também lugar ao pagamento de trabalho suplementar no horário por turnos.
Por seu turno, resulta da Cl.ª 47.ª do AE que o «trabalho suplementar será remunerado com os seguintes adicionais sobre o valor da hora normal: a) 50% para a primeira hora; b) 75% para as restantes.»
(…) o Autor auferia a seguinte retribuição base mensal:
(…) Recorrendo à fórmula constante da Cl.ª 49.ª, integrando as diuturnidades, ao abrigo da Cl.ª 42.ª, é de concluir que o Autor tem direito a receber a quantia de 9.909,16 €”.
A R. insurge-se, defendendo que
“Levar à letra a equiparação do tempo de refeição como tempo de trabalho “… para todos os efeitos …”, sem mais, possibilitaria resultados incongruentes e imprevisíveis face à vontade dos outorgantes daquele instrumento de regulamentação colectiva do trabalho. A contabilização do tempo de refeição para efeitos da sua remuneração como tempo de trabalho suplementar, ou seja, além da ficção de tempo de trabalho para sua normal remuneração, permitiria ainda que o trabalhador auferisse uma majoração retributiva que se funda numa especial penosidade advinda[1] desse modo de realização do trabalho que não ocorreu nem se pode presumir por alguma causa ficcionado. Ao tomar a sua refeição durante aquele período o A. não foi privado do seu tempo de descanso, nem se viu obrigado a suportar a realização da sua prestação com maior intensidade por força da sua continuação além do tempo de trabalho programado, como é característica do trabalho suplementar(conforme ponto 7, dos factos provados e fls. 14 a 112 dos autos). O literalismo dessa interpretação obrigar-nos-ia a considerar tal ficção de “tempo de trabalho” no cômputo dos limites legais do tempo de trabalho suplementar diário e anual (previstos, em especial, na Cláusula 23.ª, n.º 4, AE) limitando a sua real prestação ou, ao invés, ultrapassando os sus limite e expondo a R. ao procedimento contraordenacional correspondente, o que também não é resultado admissível. Se causa houvesse para equiparar o tempo de refeição a tempo de trabalho suplementar, as partes outorgantes tê-lo-iam dito expressamente, conforme fizeram no n.º 11, da Cláusula 54.ª, do AE, a propósito dos tempos de deslocação gastos pelos trabalhadores poderem sere remunerados como trabalho normal (se realizados aquém do período normal de trabalho diário), ou como trabalho suplementar (se realizados além desse período), o que bem se compreende. Não resulta assente que o A. tenha realizado ou ficado adstrito à realização da prestação de trabalho durante o período de refeição consignado no seu horário de trabalho ou para além do seu período normal de trabalho diário, o que é pressuposto do direito à remuneração por trabalho suplementar que, por não se verificar, impetra a revogação da sentença na parte em condenou no seu pagamento. Assim sendo, deve aquela ficção de tempo de trabalho ser levada em conta apenas com a finalidade de remuneração o período destinado às refeições do A. como se de tempo de trabalho normal de tratasse”.
Vejamos.
O que a R. diz, por outras palavras, é: remunere-se a hora do almoço nos termos gerais, como resulta do IRCT.
Pois sim; e então? É que, salvo o devido respeito, não é isso que está em causa.
Com efeito, não é pela hora do almoço que a R. é condenada: é pela nona hora, a ultima do dia, aquela em que o trabalhador presta atividade sem que o devesse fazer, porquanto o seu período normal de trabalho é de 8 horas a contar com o tempo do almoço e já findou. Com efeito, na altura em que almoça, presumivelmente na 4ª ou 5ª hora, o trabalhador está no seu PNT, ao contrário do que acontece na derradeira hora do dia.
Portanto é puramente falacioso argumentar com aquilo o que o trabalhador fez ou deixou de fazer à hora do almoço; o que interessa é a ultima hora. E a R. não pode pretender que, por pagar o tempo do almoço, tudo se passa como se a dita nona hora voltasse a estar dentro do PNT. Não está: continua a estar fora do PNT, com todas as consequências.
Assim, a sentença decidiu bem.
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Do subsídio de turno
Quanto a isto entendeu a sentença recorrida:
“O A. peticiona 8.439,66 €, a título de subsídio de turno. A única objecção que a Ré coloca ao pagamento do subsídio do trabalho por turnos previsto na Cl.ª 45.ª, n.º 1, do AE prende-se com o entendimento de que o Autor não prestava trabalho por turnos, o que já se encontra ultrapassado. Dado que não se provou que o A. prestasse trabalho em contexto de laboração contínua (posto que o período de funcionamento do estabelecimento onde labora é inferior às 24h), é de aplicar a al. b) do n.º 1, do AE, ou seja, o valor a considerar, em euros, é de 48,38€ e não de 66,84€. Ademais, destinando-se o subsídio de turno a compensar a penosidade de tal modo de prestação do trabalho, é justificável a fixação de montantes diferentes consoante a exposição a horários mais difíceis, tanto mais quando o Autor laborava em período nocturno. Considerando que o A. prestou trabalho entre 20-02-2012 e 06-05-2021, o montante a pagar computa-se em 6.034,64€, incluindo subsídio de férias e de Natal (…)”.
Insurge-se a R., nestes termos:
“Conforme assente sob os pontos 9. e 10., dos factos provados, o A. já vinha auferindo um subsídio nocturno contrapartida da prestação de trabalho nocturno (…). O subsídio nocturno foi até recebido regular e periodicamente nos anos de 2014 a 2016 e de 2018 a 2019, (…) condenando (a sentença) a R., sob a alínea c), da sua decisão, a pagar as diferenças de retribuição de férias e de subsídio de férias as quantias que se venham a apurar como médias desses montantes naqueles anos. Ora, (…) o A. não pode ser remunerado duas vezes pela mesma causa (a prestação de trabalho em período nocturno), sob pena de incorrer num enriquecimento sem causa à custa da R. (…). Assim, nos períodos em que o A. haja auferido subsídio nocturno, apenas lhe deverá ser pago o subsídio de turno convencionado na al. a), do n.º 1, da Clª 45.ª, do AE aplicável, no valor de 33,42 € “… para os trabalhadores que fazem dois turnos rotativos, excluindo o nocturno, a partir de Julho de 1996;…”, uma vez que o pagamento do subsídio nocturno já remunerou a maior penosidade da laboração do A. em período nocturno. O A. terá direito a receber o total de 4.160,00 € a título de subsídio mensal de turno, incluindo a prestação de Natal, conforme previstos nas al. a) ou b), do n.º 1, da Clª 45.ª do AE (e não 6.304, 46 €) consoante haja, ou não, auferido subsídio mensal nocturno no mesmo período”.
Vejamos.
A ré pretende que a quantia devida ao trabalhador será, alternativamente, ou a título de pagamento de turno ou pela prestação de trabalho noturno. Com efeito, desenvolvendo o seu pensamento, refere em resposta ao parecer do Ministério Público que “existe entre eles uma parcial sobreposição na parte onde a causa do pagamento do subsídio de turno se confunde com a causa do pagamento do subsídio noturno”, invocando para tal as cláusulas 45/1/b e 46 do acordo de empresa aplicável.
Dispõem as referidas cláusulas pertinentes do AE entre a Stagecoach Portugal Transportes Rodoviários, L.da, e a FESTRU — Feder. dos Sind. de Transportes Rodoviários e Urbanos, publicado no BTE, 1ª, n.º 1/97:
Cláusula 45ª
Retribuição do trabalho por turnos
1 — As remunerações certas mínimas constantes no anexo II são acrescidas, para os trabalhadores que prestem serviço em regime de turnos, dos seguintes subsídios:
a) 6400$ para os trabalhadores que fazem dois turnos rotativos, excluindo o nocturno, a partir de Julho de 1996; 6700$ a partir de 1 de Janeiro de 1997;
b) 9270$ para os trabalhadores que fazem três turnos rotativos, ou mesmo dois, desde que nesta última situação esteja incluído o turno nocturno[2], a partir de Julho de 1996; 9700$ a partir de 1 de Janeiro de 1997;
c) 12 850$ para os trabalhadores que fazem três turnos rotativos em regime de laboração contínua, a partir de Julho de 1996; 13 400$ a partir de Janeiro de 1997.
2 — Entende-se por turno nocturno o que se prolonga para além das 24 horas ou que venha a ter início entre o período compreendido entre as 0 e as 8 horas.
3 - (…)
4 – (…)
Cláusula 46ª
Remuneração por trabalho nocturno
O trabalho nocturno será remunerado com o acréscimo de 25 % em relação à remuneração a que dá direito o trabalho equivalente prestado durante o dia.
A questão a apurar consiste apenas em saber se se verifica a aludida justaposição.
Com efeito, se a retribuição prevista na cl.ª 45ª/1/b retribui toda a prestação nocturna (ou ao menos aquilo que a 46ª pretende retribuir) então estaremos perante um pagamento duplicado e sem fundamento.
Vejamos ainda algumas clausulas do IRCT.
Clausula 18ª/3:
3. Poderão ser praticados os seguintes tipos de horário de trabalho:
a) Horário fixo;
b) Horário móvel;
c) Horário de turnos.
Cláusula 21ª
Trabalho em horário de turnos
1 — Considera-se horário por turnos todo aquele que é prestado em horário fixo  com rotação contínua ou descontínua.
Cláusula 24ª
Trabalho nocturno
O trabalho prestado entre as 20 horas de um dia e as 7 horas do dia seguinte é considerado trabalho nocturno.
Deste normativo resulta, a nosso ver, que as remunerações em causa visam retribuir situações diversas, uma a simples prestação de trabalho noturno (24ª e 46ª), a qual pode ser efetuada no âmbito de um horário ou móvel, outra a penosidade decorrente da prestação da atividade em turno noturno.
Aliás, nem faria sentido a sua duplicação (e não cabe ao interprete presumir que quem redigiu o texto não se soube exprimir adequadamente, art.º 9/3, CC., considerando a natureza dos instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho, IRCT).
Temos assim por bom e avisado o douto parecer do MP quando defende que “A remuneração por trabalho noturno (prevista na cláusula 46 do AE) e o subsídio de turno (previsto na cláusula 45 do AE), são prestações retributivas distintas, com fundamentos e finalidades diferentes, que não se confundem nem se sobrepõem. Pelo que, a circunstância do trabalhador autor receber subsídio noturno não tem qualquer relevância quanto ao valor do subsídio de turno a que também tem direito. O que importa, para a aplicação da al. b) do n.º 1 da cl.ª 45 do AE, por comparação com a alínea a) da mesma cláusula, é que o trabalho por turnos abranja, também, o período noturno. Sendo assim, como acontece no caso dos autos, é totalmente irrelevante que o trabalhador receba a retribuição por trabalho noturno, a qual, naturalmente, também lhe é devida”.
Assim é, pelo que o recurso improcede.
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DECISÃO
Pelo exposto, o Tribunal julga improcedente o recurso e confirma a sentença recorrida.
Custas do recurso e da ação pela R.

Lisboa, 06 de março de 2024
Sérgio Almeida
Paula Santos
Leopoldo Soares

[1] Cheio do acórdão
[2] Cheio do acórdão