Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9173/20.5T8LRS.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
MORATÓRIA
COVID-19
CONTRATO DE ALD
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: I. O Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26.3, alterado pelo Decreto-Lei n.º 26/2020, de 16.6, que aprova “medidas excecionais de apoio e proteção de famílias, empresas, instituições particulares de solidariedade social, associações sem fins lucrativos e demais entidades da economia social, por força dos impactos económicos e financeiros da contração da atividade económica decorrente da pandemia da doença COVID -19”, só abrange, relativamente aos devedores pessoas singulares, operações de crédito hipotecário, locação financeira de imóveis destinados à habitação e crédito aos consumidores, para educação.
II. Embora um contrato de ALD de viatura automóvel, com direito de compra do locado pelo locatário, possa consubstanciar uma operação de crédito para os efeitos previstos no Decreto-Lei n.º 10-J/2020, não se enquadra no âmbito da moratória prevista neste diploma, se o locatário for uma pessoa singular (não empresário em nome individual).
III. Ao contrato de ALD de viatura automóvel não é aplicável a providência cautelar de entrega judicial prevista no art.º 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24.6 (regime jurídico da locação financeira).
IV. À pretensão de apreensão cautelar de viatura locada em regime de ALD quadra a tutela cautelar comum, concedida nos termos dos artigos 362.º a 376.º do CPC, a qual pressupõe, além da demonstração da probabilidade séria da existência do direito carecido de proteção (fumus boni iuris), a demonstração de fundado receio de que o direito venha a sofrer de lesão grave ou dificilmente reparável (periculum in mora).
V. Quanto ao periculum in mora, o locador do automóvel deve alegar e demonstrar indiciariamente fundado receio de que não conseguirá obter do locatário/requerido a reparação da lesão do seu direito, designadamente por insuficiência do património do requerido ou perigo de desaparecimento ou diminuição relevante dessa garantia patrimonial.
VI. Ainda que se considere que o direito que há que garantir é o direito à restituição da viatura locada, a antecipada restituição só se justificará se se indiciar fundado receio de extravio, de destruição ou de séria danificação do bem locado.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 06.11.2020 M, S.A, intentou contra ARTUR, o presente procedimento cautelar comum, requerendo a providência cautelar não especificada traduzida na apreensão imediata da viatura automóvel da marca Mercedes-Benz modelo GLE Coupé 350D 4-Matic, com a matrícula (…) e respetivos documentos.
Em síntese, a requerente alegou que no âmbito da sua atividade celebrou com o requerido, em 20.02.2018, um contrato de aluguer de longa duração (ALD), pelo prazo de 60 meses, tendo por objeto a viatura suprarreferida, a qual é propriedade da requerente. O contrato foi incumprido pelo requerido, por falta de pagamento dos alugueres devidos, desde 05.04.2020. Após insucesso de interpelação para pagamento dos alugueres em dívida, a requerente resolveu o contrato, mas o requerido manteve-se em poder do veículo, pese embora ter sido interpelado para proceder à entrega do mesmo. A utilização do veículo pelo requerido causa-lhe desgaste, desvalorizando-o, além de que a requerente se encontra privada de rentabilizar o veículo, sua propriedade, nomeadamente realizando novo contrato de aluguer ou vendendo-o.
Tendo o contrato de ALD em causa sido celebrado com opção de compra, a requerente defende a similitude com a locação financeira e, por isso, ser-lhe aplicável o regime previsto no art.º 21.º do Dec-Lei n.º 145/95, de 24.06, com a redação que lhe foi dada pelo Dec.-Lei n.º 30/2008, de 25.02, para assim concluir pela antecipação do juízo sobre o mérito da causa nos termos do n.º 7 do citado art.º 21.º - com inversão do contencioso - e pela possibilidade de disposição imediata da viatura a apreender nos termos do n.º 6 do mesmo artigo.
Citado, o requerido apresentou oposição, no essencial defendendo ser-lhe aplicável a moratória estabelecida pelo Dec.-Lei n.º 10-J/2020, de 26.03, alterado pelo Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16.06, com o inerente diferimento do pagamento das prestações contratuais até março de 2021, direito que o requerido regularmente exerceu junto da requerente, pelo que entende ser ilícita a resolução contratual que esta pretendeu operar, assim concluindo pelo indeferimento da providência.
A convite do tribunal a quo a requerente pronunciou-se acerca da matéria da defesa apresentada pelo requerido, defendendo a licitude da resolução contratual que levou a cabo, por entender ser inaplicável ao requerido o regime legal que este invocou em seu benefício.
Por entender que os autos estavam dotados de todos os elementos necessários à decisão, sem necessidade de mais prova, em 14.01.2021 o tribunal a quo proferiu sentença, na qual indeferiu o procedimento cautelar.
A requerente apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
A) O presente recurso vem interposto da sentença que julgou improcedente o procedimento cautelar, uma vez que entendeu não se encontrarem verificadas as condições para a resolução por incumprimento do contrato de ALD celebrado entre a Recorrente e o Recorrido, em virtude das disposições legais previstas no DL 10- J/2020.
B) Na prática, O Tribunal a quo julgou não se verificado um dos requisitos exigidos para o decretamento de um procedimento cautelar, nomeadamente a probabilidade séria da existência do direito – “fumus boni iuris”.
C) Não concordando com a fundamentação e decisão do Tribunal a quo, as presentes alegações incidem sobre os seguintes temas:
i. Não aplicação do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 02 de Junho (doravante “DL 133/2009) ao contrato de ALD n.º 120120 celebrado entre a Recorrente e o Recorrido;
ii. Impossibilidade do Recorrido aderir à moratória legal prevista no DL 10-J/2020 por falta de preenchimento dos requisitos previstos para o efeito
D) A Recorrente e o Recorrido celebraram o contrato de ALD n.º 12012 referente à locação do veículo da marca Mercedes-Benz, modelo GLE Coupé 350 D 4-Matic, com a matrícula (…).
E) Em resultado do supra referido contrato o Recorrido ficou obrigado a liquidar junto da Recorrente 60 alugueres, o valor de compra e venda, bem como os respetivos portes e seguro automóvel associados a cada aluguer.
F) O valor total do contrato cifra-se em EUR 97.044,60 (noventa e sete mil e quarenta e quatro euros e sessenta cêntimos)
G) O artigo 2.º, n.º 1, alínea c) do DL 133/2009 prevê que o Regime Jurídico do Crédito ao Consumo não é aplicável a “Contratos de crédito cujo montante total de crédito seja inferior a (euro) 200 ou superior a (euro) 75 000”.
H) Assim, mesmo adotando a posição do Tribunal a quo que o contrato de ALD em apreço é passível de se considerar como um contrato de concessão de crédito, este estaria excluído do âmbito de aplicação do DL 133/2009, razão pela qual a decisão recorrida deverá ser alterada em conformidade, uma vez que tal análise jurídica terá impacto nos pontos posteriores.
Continuando,
I) A sentença sub judice incluiu o Recorrido e o contrato de ALD em análise na moratória prevista no DL 10-J/2020.
J) Por discordar do entendimento da decisão proferida pelo Tribunal a quo, a Recorrente irá proceder à análise do âmbito de aplicação do DL 10-J/2020. Esta análise dividir-se-á no momento antes e depois da alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 26/2020 de 16 de junho.
K) O Tribunal a quo entendeu que o contrato de ALD n.º 120120 está incluído pelas operações abrangidas no artigo 3.º, n.º 1 do DL 10-J/2020 (redação inicial) e não se encontra previsto nas exclusões presentes no n.º 2 do mesmo artigo. Quanto a este ponto, não há qualquer reparo a fazer quanto à interpretação efetuada na respetiva decisão.
L) Assim, em traços gerais, conclui-se que os contratos de ALD são afetados pelo DL 10-J/2020, nos termos da sua redação inicial.
M) Contudo, no entendimento da aqui Recorrente, o Tribunal a quo não aplicou corretamente o artigo 2.º, n.º 2, alínea a) do DL 10-J/2020, na redação inicial.
N) Na decisão ora recorrida, o Tribunal a quo interpretou as condições previstas no n.º 2 do artigo 2.º como alternativas quando na realidade são cumulativas.
O) O artigo em apreço previa na sua redação inicial três requisitos cumulativos, a saber:
i. As pessoas singulares,
ii. relativamente a crédito para habitação própria permanente que,
iii. à data de publicação do presente decreto-lei, preencham as condições referidas nas alíneas c) e d) do número anterior, tenham residência em Portugal e estejam em situação de isolamento profilático ou de doença ou prestem assistência a filhos ou netos, conforme estabelecido no Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na sua redação atual, ou que tenham sido colocados em redução do período normal de trabalho ou em suspensão do contrato de trabalho, em virtude de crise empresarial, em situação de desemprego registado no Instituto do Emprego e Formação Profissional, I. P., bem como os trabalhadores elegíveis para o apoio extraordinário à redução da atividade económica de trabalhador independente, nos termos do artigo 26.º do referido decreto-lei, e os trabalhadores de entidades cujo estabelecimento ou atividade tenha sido objeto de encerramento determinado durante o período de estado de emergência, nos termos do artigo 7.º do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março.
P) Contudo, na sentença recorrida olvida um dos requisitos, nomeadamente o facto do contrato em apreço não ser um crédito para habitação própria permanente, mas sim um contrato de ALD de um veículo automóvel.
Q) Não se pode dissociar os três requisitos previstos no artigo, com vista à aplicação do mesmo.
R) Assim, no entendimento da Recorrente, apesar do Recorrido preencher dois dos três requisitos, este não é e não pode ser considerado beneficiário da moratória instituída no DL 10-J/2020, ao contrário do entendimento do Tribunal a quo. Mais,
S) O Decreto-Lei n.º 26/2020, de 16 de junho, veio introduzir alterações ao DL 10- J/2020, nomeadamente aos artigos 2.º e 3.º deste diploma legal.
T) Na atual redação do artigo 2.º, n.º 2 do DL 10-J/2020 foi retirada a menção a “crédito para habitação própria permanente”, pelo que nada obsta que o Recorrido seja incluído nas “entidades beneficiárias”.
U) Contudo, o Decreto-Lei n.º 26/2020, de 16 de junho, também trouxe uma alteração no artigo 3.º, o qual introduziu um novo n.º 2 que veio delimitar as operações abrangidas pelo DL 10-J/2020 aplicáveis às pessoas singulares.
V) No caso em apreço o contrato de ALD n.º 120120 não incide sobre um crédito hipotecário e não está abrangido pelo DL 133/2009, conforme já supra exposto.
W) Acresce que, o bem locado não visa a edução, formação académica ou profissional do Recorrido (nada foi alegado nesse sentido), pelo que o contrato de ALD estaria sempre excluído do âmbito do aplicação do DL 10-J/2020 (caso fosse aplicável o DL 133/2009).
X) Ora, à luz da atual redação do DL 10-J/2020, o Recorrido não poderá igualmente beneficiar do regime previsto quanto à moratória legal.
Y) Nesta alteração legislativa, o legislador procurou precisar os casos abrangidos pela moratória legal, com vista a não existirem segundas interpretações.
Z) No entanto, tanto na antiga como na atual redação, o contrato de ALD n.º 120120 não está abrangido pela moratória legal prevista no DL 10-J/2020, uma vez que num primeiro momento tal prorrogativa só se aplicava ao crédito para habitação permanente e num segundo momento a crédito habitação e a crédito aos consumidores, nos termos do DL 133/2009. Continuando,
AA) Apesar de compreensível as várias considerações tecidas pelo Tribunal a quo sobre a atuação da Recorrente durante o processo de adesão à moratória, há que salientar que a rápida entrada em vigor da legislação, resultante da pandemia da doença COVID-19, tornou-a de difícil adaptação face à limitação de capital humano da Recorrente (cujos trabalhadores também foram abrangidos pelas medidas de teletrabalho).
BB) Sem prejuízo, cumpre salientar que a resposta da Recorrente foi enviada para o endereço eletrónico previsto no contrato, em virtude das limitações introduzidas com o RGPD.
CC) No entanto, o DL 10-J/2020 não prevê uma adesão automática ao regime da moratória em caso de ausência ou demora na resposta das instituições. Tal solução comportaria uma situação abusiva na medida que bastaria qualquer cliente de uma instituição efetuar o pedido para “tentar a sua sorte”, mesmo que não preenchesse qualquer requisito legal para o efeito, tal como ocorre no caso em apreço.
DD) Assim, entende a aqui Recorrente que a decisão proferida pelo Tribunal a quo deverá ser alterada, em virtude da mesma se ter baseado numa interpretação incorreta do DL 10-J/2020. Acresce que,
EE) O decretamento de um procedimento cautelar está dependente do preenchimento de dois requisitos essenciais e legalmente previstos no artigo 362.º do CPC.
FF) O n.º 2 do artigo já referido exige que o pedido da Requerente seja fundado num direito já exigente ou direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, que se traduz na expressão “fumus boni iurus”. Por sua vez, o n.º 1, primeira parte, do mesmo artigo exige que o pedido da Requerente seja fundado num receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, que se traduz na expressão “periculum in mora
GG) Face ao exposto, não se aplicando o DL 10-J/2020 ao Recorrido e ao contrato ALD n.º 120120, dúvidas não existem que o Recorrido incumpriu os termos contratualmente acordados com a Recorrente, tendo deixado de liquidar os alugueres e demais encargos desde março de 2020, conforme facto assente n.º 7.
HH) Salvo o devido respeito pelo entendimento diverso do Tribunal a quo, a Recorrente logrou provar a existência do seu direito em lhe ser restituído o veículo objeto do contrato de ALD, uma vez que tinha o direito de resolver o contrato, atendendo ao incumprimento do Recorrido.
II) É igualmente importante salientar que, face às similitudes existentes entre o contrato de ALD e o contrato de locação financeira, não é descabido aplicar o regime vertido no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de junho (Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira), que não exige ao locador/requerente do procedimento cautelar o preenchimento dos dois requisitos supra referidos, com vista ao decretamento da respetiva providência. Por fim,
JJ) A sentença proferida pelo Tribunal a quo não se pronunciou quanto ao segundo requisito necessário para o decretamento da providência cautelar, a saber “periculum in mora”, pelo que não poderão as presentes alegações de recurso versar sobre uma temática não debatida pelo Douto Tribunal a quo.
KK) Contudo, saliente-se somente que a sentença recorrida, deu como provado no ponto 10 que “A utilização do veículo causa-lhe desgaste, desvalorizando-o, e o simples decurso do tempo fá-lo perder valor comercial [trata-se de facto notório, decorrente das regras da experiência da vida].”
LL) Acresce que, face à decisão que ora se recorre, a Recorrente viu-se obrigada a constituir, em um seguro automóvel sobre o veículo sub judice, à sua custa, com vista a evitar que o mesmo circulasse sem seguro na via pública, podendo causar danos a terceiros, ao Estado português (responsabilidade subsidiária do Fundo de Garantia Automóvel) e à própria Recorrente, face à possibilidade deste se transformar em sucata em resultado de um acidente, conforme Documento n.º 1.
MM) Face ao supra exposto e com o devido respeito pelo Tribunal a quo, entende a aqui Recorrente que a sentença deverá ser revogada e substituída por outra que decrete o procedimento cautelar.
A apelante terminou pedindo que fosse dado provimento ao recurso, devendo, em consequência, ser revogada a sentença proferida pelo tribunal a quo, com as devidas consequências.
Juntou um documento.
O apelado contra-alegou, tendo rematado com as seguintes conclusões:
a) Conforme os factos dados como assentes e constantes em 1 a 21 dos factos provados, que por motivos de economia processual aqui se dão por integralmente reproduzidos, bem andou o Tribunal a quo ao entender que no caso em apreço há lugar à aplicação do regime estabelecido no Decreto-Lei nº10-J/2020, de 26 de Março, na redacção dada pelo Decreto-Lei 26/2020, de 16 de Junho;
b) Conforme a decisão recorrida o contrato em apreço nos autos “é na sua estrutura lógica e na sua funcionalidade social assimilável à locação financeira e configura-se como financiamento, estando sujeito ao Regime Jurídico do Crédito ao Consumo”;
c) Encontrando-se inserido na categoria de contratos previstos no art. 3º, nº1 do Decreto-Lei 10-J/2020, de 26 de Março, alterado pelo Decreto-Lei 26/2020, de 16 de Junho;
d) Diploma que, no âmbito da situação da pandemia do COVID-19 em curso desde Março de 2020, pretende proteger os beneficiários de operações de financiamento de qualquer incumprimento contratual decorrente daquela situação pandémica;
e) Tal como decorre do preâmbulo do diploma supra citado na sua versão original, “neste período de incerteza e complexidade, todos os agentes, públicos e privados, são convocados para garantir a sustentabilidade da nossa economia, dos rendimentos dos nossos cidadãos e das nossas empresas; Nestes termos, é aprovada uma moratória, até 30 de setembro de 2020, que prevê a proibição da revogação das linhas de crédito contratadas, a prorrogação ou suspensão dos créditos até fim deste período. Garante-se a continuidade do financiamento às famílias e empresas e previne-se eventuais incumprimentos resultantes da redução da atividade económica (...).”,
f) Por seu turno, o Decreto-Lei 26/2020, de 16 de Junho, que veio alterar o diploma, ampliando o seu âmbito de aplicação, esclarece e reforça no seu preâmbulo que “(…) a pandemia da doença COVID-19 provocou impactos significativos nos rendimentos de muitas famílias, na atividade das empresas e das entidades do setor social, suscetíveis de criar potenciais constrangimentos na capacidade de cumprimento pontual das suas obrigações”;
g) E continuando reforça aquele preâmbulo que “por essa razão, o Governo adotou, através do Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26 de março, uma moratória geral de cumprimento de obrigações perante o sistema bancário, aumentando a liquidez e a tesouraria imediata dos beneficiários através do diferimento temporário do momento do cumprimento dessas obrigações”;
h) Ou seja, com o regime legal decorrente do diploma supra citado, mais não se pretendeu do que atribuir aos contratos de crédito em geral uma moratória que protegesse a parte beneficiária do financiamento, impedindo o incumprimento de obrigações decorrente da situação pandémica em curso;
i) Devendo ser este o princípio e o espírito à luz do qual o diploma deve ser interpretado e o seu regime aplicado, como bem fez o Tribunal a quo;
j) O nº1 do art. 3º daquele diploma, previsto já na sua versão original e com a mesma redação, constitui precisamente a consagração do princípio geral de protecção dos beneficiários de financiamento nos contratos de crédito, que o legislador pretendeu assegurar;
k) Sendo que, o nº2 daquela norma, introduzido com Decreto-Lei 26/2020, de 16 de Junho, mais não é do que uma ampliação do âmbito de aplicação do diploma;
l) Contrariamente ao entendimento que a recorrente agora sustenta, não se tratam, pois, de previsões cumulativas, nem aquele art. 3º pode ser interpretado no sentido de excluir da sua aplicação o contrato em apreço nos autos;
m) Com a providência requerida, a recorrente pretendia evitar um prejuízo decorrente da falta de pagamento das prestações por parte do recorrido, cujo valor o Tribunal a quo quantificou para efeitos de valor da causa em € 66.495,00, considerando aquele Tribunal que “tal será o valor do prejuízo que se quer evitar e que corresponde ao valor actual do bem cuja entrega se pretende, indicado pela Requerente sem qualquer oposição do Requerido”;
n) Por outro lado, conforme documento junto à PI pela recorrente com o nº1, o valor de aquisição da viatura é de € 61.951,22, acrescido de IVA, pelo que, contrariamente ao entendimento da recorrente, o valor do contrato que deve ser considerado para efeitos da matéria em discussão é inferior ao montante de € 75.000,00 constante do art. 2º, c) do Decreto-Lei 133/2009;
o) De resto e contrariamente ao pretendido pela recorrente, mesmo que por mera hipótese académica se considerasse que o contrato em apreço nos autos teria um valor superior a € 75.000,00, tal nunca afastaria a sua natureza de contrato de crédito, que, como tal, se encontra abrangido pela moratória legal a que validamente aderiu o recorrido;
p) Nem as determinações previstas no art. 3º do Decreto-Lei 10-J/2020, de 26 de Março, alterado pelo Decreto-Lei 26/2020, de 16 de Junho são de aplicação cumulativa, sendo o nº1 daquela disposição legal, precisamente, a consagração do princípio geral de protecção dos beneficiários de financiamento nas operações de crédito concedidas pela recorrente, as quais o diploma pretende assegurar;
q) Pelo que improcede o entendimento da recorrente quanto à interpretação que deve ser dada ao Decreto-Lei 10-J/2020, de 26 de Março, alterado pelo Decreto-Lei 26/2020, de 16 de Junho, a qual não afasta o contrato em apreço do seu âmbito de aplicação, como bem entendeu o Tribunal a quo, considerando que o recorrido reúne todas as condições para adesão à moratória legal;
r) Caso a recorrente entendesse, como agora sustenta, que não se encontram reunidas as condições para adesão à moratória legal por parte do recorrido, o que só por mera hipótese académica se admite, deveria ter procedido em conformidade com o estabelecido no nº4, do art. 5º do Decreto-Lei 10-J/2020, de 26 de Março, alterado pelo Decreto-Lei 26/2020, de 16 de Junho, o que não fez;
s) Limitando-se a, como bem conclui o Tribunal a quo, nas comunicações remetidas ao recorrido a “responder-lhe como se o mesmo tivesse pedido uma reestruturação do contrato, recusando-a. (veja-se o facto 21 e o texto nele transcrito)”;
t) Além de que, em qualquer circunstância, tal resposta sempre pecaria por extemporânea, pelo que o direito do recorrido se teria sempre por reconhecido, sendo ilícita a resolução operada pela recorrente;
u) Efectivamente, o recorrido remeteu a sua comunicação à recorrente em 26-06- 2020 (veja-se facto 20), tendo esta enviado a sua resposta apenas em 22-07- 2020 (veja-se facto 21), ou seja, quase um mês após a recepção da comunicação, pelo que a sua resposta sempre pecaria por extemporânea, face ao regime estabelecido no nº4, do art. 5º do Decreto-Lei 10-J/2020, de 26 de Março, alterado pelo Decreto-Lei 26/2020, de 16 de Junho;
v) Não podendo, sequer, serem admitidas as justificações apresentadas nas suas alegações quanto ao meio pelo qual responderam e quanto à extemporaneidade da sua resposta;
w) Justificações, que de resto nem sequer foram apresentadas na resposta da recorrente à oposição em sede de autos principais, nos quais o recorrido alegara precisamente a extemporaneidade da comunicação da recorrente, caso a mesma fosse entendida como indicadora do não preenchimento das condições para adesão à moratória legal;
x) O recorrido actuou de forma válida e nos termos legais, contrariamente à recorrente que, citando uma vez mais a decisão recorrida, apresentou “uma conduta desviante da boa fé que se exige aos contraentes em todos os momentos da relação contratual, podendo configurar-se como um exercício abusivo do direito”;
y) Pelo que, não merece a decisão recorrida reparo, nem censura.
O apelado terminou pedindo que a decisão recorrida fosse confirmada.
Por se vislumbrar a possibilidade de o recurso ser julgado procedente, o que determinaria a necessidade de esta Relação se pronunciar sobre matéria que havia sido considerada prejudicada pelo tribunal a quo, o relator ouviu as partes, nos termos do disposto no art.º 665.º n.º 3 do CPC.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
Previamente, há que apreciar a admissibilidade do documento apresentado pela apelante, e a que se refere na conclusão LL).
Como é sabido, a apresentação de prova documental em sede de recurso está sujeita a fortes restrições. Dispõe o n.º 1 do art.º 651.º do CPC que “as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
A necessidade decorrente do julgamento proferido na 1.ª instância refere-se a inesperada abordagem de aspetos do litígio introduzida na ação pela sentença, que o recorrente quererá contrariar.
Já as situações excecionais a que se refere o art.º 425.º traduzem-se na impossibilidade, objetiva ou subjetiva, de a parte ter juntado o documento até ao encerramento da discussão na primeira instância.
Porém, os documentos deverão destinar-se a provar ou a fazer contraprova em relação a factos que tenham sido alegados na primeira instância, nos articulados normais ou nos supervenientes (artigos 423.º n.º 1, 588.º n.º 1), tendo como limite temporal o encerramento da discussão na primeira instância (art.º 611.º n.º 1 do CPC).
O tribunal ad quem tem por missão apreciar a decisão alvo do recurso (artigos 627.º, n.º 1, 639.º e 640.º), averiguar da bondade do decidido, à luz do objeto da causa tal como ele ficou definido na primeira instância perante o tribunal a quo. Assim, não cabe ao tribunal ad quem pronunciar-se sobre factos novos, não levados a julgamento perante a primeira instância. Só assim não será relativamente a situações muito particulares, como factos respeitantes a pressupostos processuais ou, v.g., uma transação da ação celebrada entre as partes (neste sentido, Rui Pinto, “Notas ao Código de Processo Civil”, 2014, 1.ª edição, páginas 265, 435 e 437; na jurisprudência, v.g., acórdãos do STJ, de 26.5.2015, processo n.º 2056/12.4TTLSB.L1.S1, e de 05.5.2015, processo n.º 3820/07.1TVI.SB.L2.S1; acórdão da Relação de Lisboa, de 26.3.2015, processo n.º 3820/07.1TVI.SB.L2.S1; acórdão da Relação do Porto, de 23.10.2014, processo n.º 1629/13.2TBLSD.P1; acórdão da Relação de Coimbra, de 15.9.2015, processo n.º 889/10.5TBFIG.C1; em sentido diverso, acórdão da Relação de Guimarães, de 25.11.2013, processo n.º 7348/12.0TBBRG.G1).
Com o documento apresentado na apelação a recorrente pretende provar que após a prolação da sentença recorrida, face à improcedência da providência cautelar, a requerente celebrou um contrato de seguro respeitante à viatura objeto do processo, para se proteger das consequências de um eventual acidente.
O documento em causa visa, assim, demonstrar um facto novo, ocorrido após o encerramento da discussão na primeira instância e que, nos termos supra expostos, não pode ser tomado em consideração por este tribunal ad quem.
Face ao exposto, haverá que, nos termos dos artigos 443.º n.º 1 do CPC e 27.º n.ºs 1 e 4 do RCP, retirar do processo o documento n.º 1, anexo à alegação da apelante e condenar a apelante em multa que, tudo ponderado, se fixa em 2 UC.
Resolvida esta questão preliminar, as questões objeto deste recurso são as seguintes: se ao crédito invocado pela requerente é aplicável o regime de moratória previsto pelo Dec.-Lei n.º 10-J/2020, de 26.3, com a redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16.6; no caso de resposta negativa a esta questão, se se verificam os pressupostos da providência cautelar requerida e, em caso afirmativo, da inversão do contencioso.
Primeira questão (aplicabilidade do regime de moratória previsto pelo Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26.3, com a redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 26/2020, de 16.6)
O tribunal a quo deu como provada a seguinte
Matéria de facto
1. - A Requerente é uma sociedade comercial anónima que tem por objecto, entre outras, a actividade de locação financeira mobiliária e de aluguer de viaturas sem condutor [cfr. certidão permanente com o código 7448-2174-7832].
2 - No exercício da actividade da Requerente esta e o Requerido subscreveram em 20/02/2018, o escrito que se encontra a fls. 8vº-11, que se dá por reproduzido, intitulado “Contrato de Aluguer de Longa Duração” ao qual foi atribuído o nº 120120 [cfr. documento nº 1 do requerimento inicial e acordo das partes].
3 – (…) através do qual a Requerente se obrigou a ceder e cedeu ao Requerido o uso e fruição, mediante retribuição, do veículo automóvel da marca Mercedes-Benz, modelo GLE Coupé 350D 4-Matic e com matrícula (…) [cfr. documento nº 1 do requerimento inicial e acordo das partes].
4 – (…) pelo prazo de 60 meses, pelo valor total de € 76.200,00 (IVA incluído), e com opção de compra no final, pelo montante de € 15.240,00 (IVA incluído) [cfr. documento nº 1 do requerimento inicial e acordo das partes].
5 - Aquele veículo automóvel foi pela Requerente adquirido e pago, em 04/01/2017, à fornecedora “Mercedes-Benz Comercial, Unipessoal, Lda.”, pelo preço total de € 127.000,00 (IVA incluído) [cfr. documento nº 2 do requerimento inicial e acordo das partes].
6 - O Requerido assumiu, entre outras, a obrigação de pagar à Requerente a quantia mensal de € 1.208,86 (IVA incluído) e de suportar todas as despesas e encargos inerentes à utilização e circulação do veículo [cfr. documento nº 1 do requerimento inicial e acordo das partes].
7 - Até Março de 2020 o Requerido efectuou o pagamento mensal das quantias a que se obrigou [acordo das partes].
8 - Em 26/08/2020, a Requerente enviou uma carta registada com aviso de recepção ao Requerido, interpelando-o ao pagamento das quantias relativas aos meses de Abril a Agosto de 2020, no prazo de 15 (quinze) dias, sob pena de a mora se converter em incumprimento definitivo e de o contrato se considerar automática e imediatamente rescindido, e com a indicação das respectivas consequências, designadamente a obrigação de proceder à imediata devolução do veículo automóvel [cfr. documento nº 3 do requerimento inicial e acordo das partes].
9 - Esgotado o prazo de 15 dias, o Requerido não liquidou qualquer montante, nem procedeu à entrega voluntária do veículo, situação que se mantém [confissão do Requerido].
10 - A utilização do veículo causa-lhe desgaste, desvalorizando-o, e o simples decurso do tempo fá-lo perder valor comercial [trata-se de facto notório, decorrente das regras da experiência da vida].
11 - O Requerido é sócio gerente da sociedade comercial “S, Lda”, com o NIPC 510805531 [cfr. certidão permanente com o código de acesso 8144-8453-8073].
12 - O Requerido é remunerado enquanto gerente da sociedade “S, Lda”, para a qual trabalha, o que constitui a sua fonte de rendimentos [acordo das partes, e complementarmente documentos nºs 2 e 3 da oposição - fls. 39vº e 40].
13 - A “S., Lda” dedica-se unicamente à exploração do estabelecimento de diversão nocturna discoteca “…”, sito na Rua Cintura do Porto de Lisboa, (…), freguesia de Alcântara, concelho de Lisboa [acordo das partes, e complementarmente documento nº 1 da oposição - fls.26vº ss.].
14 - Estabelecimento este que é explorado no âmbito de contrato de concessão de uso privativo de parcela do domínio público, nº07-ES/GD 2015 [cfr. documento nº 1 da oposição - fls.26vº ss.].
15 - O espaço onde funciona o estabelecimento discoteca “…” foi concebido, estruturado e organizado para funcionar unicamente como discoteca, não sendo viável, nem funcional, o desenvolvimento no mesmo de outra actividade [acordo das partes].
16 - Em 22/03/2020 a discoteca explorada pela sociedade “S, Ldª” encerrou ao público e mantém-se encerrada desde então, na decorrência das determinações legais que têm vindo a ser sucessivamente fixadas no âmbito das medidas destinadas ao combate à pandemia do COVID-19 [acordo das partes].
17 - Em 01/04/2020, o Requerido remeteu à Requerente e-mail, do endereço electrónico ... @gmail.com, do seguinte teor:
CONTRATO 120120
Exmos Srs
Relativamente ao meu contrato acima identificado, venho expor e solicitar o seguinte:
Infelizmente, devido ao Estado de Emergência, a minha atividade está encerrada há 3 semanas, o que está a condicionar totalmente a minha tesouraria.
Estou a tentar obter liquidez, por outras vias, incluindo o apoio disponibilizado pelo Governo, para honrar as minhas diversas responsabilidades.
Assim, solicito uma moratória para todos os valores vencidos e a vencer, pelo período de três meses.
Agradeço a vossa compreensão.
Com os melhores cumprimentos,
Artur (…)” [acordo das partes, complementado por documento 4 da oposição – fls. 40vº].
18 - Em 17/04/2020 a Requerente respondeu àquele e-mail do Requerido, para o endereço electrónico (…) @.PT informando que:
Caro Cliente,
No seguimento do seu pedido, e dadas as circunstâncias absolutamente excecionais que estamos a viver, a MBF está na disponibilidade de proceder à alteração temporária das condições contratadas.
Neste sentido, apresentamos as novas condições de pagamento que serão aplicáveis no período abaixo indicado, relativamente às quais agradecemos que nos confirme o seu acordo, por favor, o mais rapidamente possível:
Período compreendido: 05-04-2020 e 05-06-2020 - redução da mensalidade durante 3 meses
Contrato Tipo - 120120  ALD
Viatura -  GLE
Matrícula - (…)
Mensalidade Financeira Atual - 35meses x 980,27€l
Mensalidade Financeira Renegociada -  3 meses x (174,78€ +178,09+178,09€ + 32 mesesx 1.095,67€
Nota: Valores Sem IVA.
Mais informamos que a redução de renda, no prazo acima indicado, não obsta ao normal pagamento do valor correspondente ao prémio do seguro (o qual será devido para garantia da manutenção do seguro), nem dos serviços que se encontram associados ao pagamento das mensalidades. Agradecemos a sua colaboração, bem como a rápida resposta a este email com a confirmação da aceitação das novas condições, de forma a processarmos este pedido. A sua confirmação da aceitação destes termos, valerá como declaração negocial entre as partes, a qual não poderá ser futuramente oponível de parte a parte.” [acordo das partes, complementado com documentos 5 e 6 da oposição – fls. 41 e vº].
19 – O Requerido apenas tomou conhecimento desse e-mail da Requerente em 26/06/2020 após contacto telefónico do mesmo para a Requerente [acordo das partes, complementado com documento nº 6 da oposição].
20 - Em 26/06/2020 o Requerido remeteu novo e-mail à Requerente, do endereço electrónico (...)@gmail.com, do seguinte teor:
Exma Sra ...,
Obrigado pela resposta.
Na sequência da decisão do governo comunicada esta semana, o estabelecimento continua encerrado até indicação contrária.
Tendo entrado em vigor o Dec-Lei 26/2020, de 16 de junho, prevendo a possibilidade de moratória pública extensível à generalidade dos contratos de crédito, solicito a adesão à mesma, até 31 de março de 2021, salvaguardando assim eventuais atrasos na autorização do governo para a reabertura do estabelecimento comercial no qual presto trabalho.
Para o efeito, anexo certidões da situação contributiva e tributária.
Com os melhores cumprimentos,
Artur (…)” [acordo das partes, complementado pelo documento nº 7 da oposição].
21 - Em 22/07/2020 a Requerente respondeu ao pedido formulado pelo Requerido, para o endereço electrónico ... @gmail.com, no seguinte teor :
Caro cliente, No seguimento do seu pedido de reestruturação do contrato, vimos informar que a mesma foi recusada. Lamentamos informar V. Exa. não ser possível dar seguimento ao pedido que nos foi formulado, pelo que damos o seu/vosso pedido como concluído/encerrado.
Encontramo-nos ao dispor para qualquer esclarecimento adicional que considerem necessário.
Com os nossos melhores cumprimentos.” [acordo das partes, complementado pelo documento nº 8 da oposição].
O Direito
Na sua oposição à providência cautelar o requerido, sem negar a existência do contrato de aluguer de longa duração invocado pela requerente, nem as obrigações contratuais que dele lhe advinham, alegou que a sua obrigação beneficiava da moratória prevista pelo Dec.-Lei n.º 10-J/2020, de 26.3, na redação que lhe foi conferida pelo Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16.6.
Pese embora a oposição da requerente, o tribunal a quo acolheu a tese do requerido – e, consequentemente, indeferiu a providência cautelar.
Vamos, pois, avaliar o acerto da decisão recorrida.
A 11.3.2020 a Organização Mundial de Saúde qualificou a emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID -19 como uma pandemia internacional, constituindo uma calamidade pública.
Através do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18.3, foi declarado o estado de emergência em Portugal. O estado de emergência foi regulamentado pelo Decreto n.º 2-A/2020, de 20.3, que aprovou um conjunto de medidas excecionais e extraordinárias, fortemente limitativas das atividades dos cidadãos, das empresas e das instituições.
Para fazer face aos constrangimentos decorrentes desse estado de coisas excecional, foram aprovados vários diplomas legais, direcionados para determinadas áreas e setores.
Entre eles conta-se o Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26.3.
Conforme se enuncia no seu art.º 1.º, n.º 1, este diploma tem por objeto e âmbito estabelecer “medidas excecionais de apoio e proteção de famílias, empresas, instituições particulares de solidariedade social, associações sem fins lucrativos e demais entidades da economia social, por força dos impactos económicos e financeiros da contração da atividade económica decorrente da pandemia da doença COVID -19”.
Para além de um regime atinente à concessão de garantias pessoais do Estado e de garantias mútuas, regido pelos capítulos III e IV do diploma, este concentra-se, conforme a síntese formulada no n.º 2 do art.º 1.º, em medidas de proteção e apoio à liquidez e tesouraria que têm como finalidade o diferimento do cumprimento de obrigações dos beneficiários perante o sistema financeiro.
Sobre a determinação das entidades beneficiárias, rege o art.º 2.º, que aqui se transcreve:
Entidades beneficiárias
1 — Beneficiam das medidas previstas no presente decreto-lei as empresas que preencham cumulativamente as seguintes condições:
a) Tenham sede e exerçam a sua atividade económica em Portugal;
b) Sejam classificadas como microempresas, pequenas ou médias empresas de acordo com a Recomendação 2003/361/CE da Comissão Europeia, de 6 de maio de 2003;
c) Não estejam, a 18 de março de 2020, em mora ou incumprimento de prestações pecuniárias há mais de 90 dias junto das instituições, ou estando não cumpram o critério de materialidade previsto no Aviso do Banco de Portugal n.º 2/2019 e no Regulamento (UE) 2018/1845 do Banco Central Europeu, de 21 de novembro de 2018, e não se encontrem em situação de insolvência, ou suspensão ou cessão de pagamentos, ou naquela data estejam já em execução por qualquer uma das instituições;
d) Tenham a situação regularizada junto da Autoridade Tributária e Aduaneira e da Segurança Social, na aceção, respetivamente, do Código de Procedimento e de Processo Tributário e do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, não relevando até ao dia 30 de abril de 2020, para este efeito, as dívidas constituídas no mês de março de 2020.
2 — Beneficiam igualmente das medidas previstas no presente decreto-lei:
a) As pessoas singulares, relativamente a crédito para habitação própria permanente que, à data de publicação do presente decreto-lei, preencham as condições referidas nas alíneas c) e d) do número anterior, tenham residência em Portugal e estejam em situação de isolamento profilático ou de doença ou prestem assistência a filhos ou netos, conforme estabelecido no Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na sua redação atual, ou que tenham sido colocados em redução do período normal de trabalho ou em suspensão do contrato de trabalho, em virtude de crise empresarial, em situação de desemprego registado no Instituto do Emprego e Formação Profissional, I. P., bem como os trabalhadores elegíveis para o apoio extraordinário à redução da atividade económica de trabalhador independente, nos termos do artigo 26.º do referido decreto-lei, e os trabalhadores de entidades cujo estabelecimento ou atividade tenha sido objeto de encerramento determinado durante o período de estado de emergência, nos termos do artigo 7.º do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março; e
b) Os empresários em nome individual, bem como as instituições particulares de solidariedade social, associações sem fins lucrativos e as demais entidades da economia social, exceto aquelas que reúnam os requisitos previstos no artigo 136.º do Código das Associações Mutualistas, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 59/2018, de 2 de agosto, que, à data de publicação do presente decreto-lei, preencham as condições referidas nas alíneas c) e d) do n.º 1 e tenham domicílio ou sede em Portugal.
3 — Beneficiam, ainda, das medidas previstas no presente decreto-lei as demais empresas independentemente da sua dimensão, que, à data de publicação do regime, preencham as condições referidas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1, excluindo as que integrem o setor financeiro.
4 — Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se que fazem parte do setor financeiro os bancos, outras instituições de crédito, sociedades financeiras, instituições de pagamento, instituições de moeda eletrónica, intermediários financeiros, empresas de investimento, organismos de investimento coletivo, fundos de pensões, fundos de titularização, respetivas sociedades gestoras, sociedades de titularização, empresas de seguros e resseguros e organismos públicos que administram a dívida pública a nível nacional, com estatuto equiparado, nos termos da lei, ao das instituições de crédito.
5 — As empresas, pessoas singulares e outras entidades previstas nos números anteriores são adiante designadas de «entidades beneficiárias».
Quanto às operações abrangidas pelo regime, rege o art.º 3.º:
“Operações abrangidas
1 — O presente capítulo aplica-se a operações de crédito concedidas por instituições de crédito, sociedades financeiras de crédito, sociedades de investimento, sociedades de locação financeira, sociedades de factoring e sociedades de garantia mútua, bem como por sucursais de instituições de crédito e de instituições financeiras a operar em Portugal, adiante designadas por «instituições», às entidades beneficiárias do presente decreto-lei.
2 — O presente capítulo não se aplica às seguintes operações:
a) Crédito ou financiamento para compra de valores mobiliários ou aquisição de posições noutros instrumentos financeiros, quer sejam garantidas ou não por esses instrumentos;
b) Crédito concedido a beneficiários de regimes, subvenções ou benefícios, designadamente fiscais, para fixação de sede ou residência em Portugal, incluindo para atividade de investimento, com exceção dos cidadãos abrangidos pelo Programa Regressar;
c) Crédito concedido a empresas para utilização individual através de cartões de crédito dos membros dos órgãos de administração, de fiscalização, trabalhadores ou demais colaboradores”.
O conteúdo da moratória concedida está estabelecido no art.º 4.º:
Moratória
1 — As entidades beneficiárias do presente decreto-lei beneficiam das seguintes medidas de apoio relativamente às suas exposições creditícias contratadas junto das instituições:
a) Proibição de revogação, total ou parcial, de linhas de crédito contratadas e empréstimos concedidos, nos montantes contratados à data de entrada em vigor do presente decreto-lei, durante o período em que vigorar a presente medida;
b) Prorrogação, por um período igual ao prazo de vigência da presente medida, de todos os créditos com pagamento de capital no final do contrato, vigentes à data de entrada em vigor do presente decreto-lei, juntamente, nos mesmos termos, com todos os seus elementos associados, incluindo juros, garantias, designadamente prestadas através de seguro ou em títulos de crédito;
c) Suspensão, relativamente a créditos com reembolso parcelar de capital ou com vencimento parcelar de outras prestações pecuniárias, durante o período em que vigorar a presente medida, do pagamento do capital, das rendas e dos juros com vencimento previsto até ao término desse período, sendo o plano contratual de pagamento das parcelas de capital, rendas, juros, comissões e outros encargos estendido automaticamente por um período idêntico ao da suspensão, de forma a garantir que não haja outros encargos para além dos que possam decorrer da variabilidade da taxa de juro de referência subjacente ao contrato, sendo igualmente prolongados todos os elementos associados aos contratos abrangidos pela medida, incluindo garantias.
2 — As entidades beneficiárias das medidas previstas nas alíneas b) e c) do número anterior podem, em qualquer momento, solicitar que apenas os reembolsos de capital, ou parte deste, sejam suspensos.
3 — A extensão do prazo de pagamento de capital, rendas, juros, comissões e demais encargos referidos nas alíneas b) e c) do n.º 1 não dá origem a qualquer:
a) Incumprimento contratual;
b) Ativação de cláusulas de vencimento antecipado;
c) Suspensão do vencimento de juros devidos durante o período da prorrogação, que serão capitalizados no valor do empréstimo com referência ao momento em que são devidos à taxa do contrato em vigor; e
d) Ineficácia ou cessação das garantias concedidas pelas entidades beneficiárias das medidas ou por terceiros, designadamente a eficácia e vigência dos seguros, das fianças e/ou dos avales.
4 — A aplicação da medida prevista no n.º 1 a créditos com colaterais financeiros abrange as obrigações do devedor de reposição das margens de manutenção, bem como o direito do credor de proceder à execução das cláusulas de stop losses.
5 — No que diz respeito a empréstimos concedidos com base em financiamento, total ou parcial, ou garantias de entidades terceiras sediadas em Portugal, as medidas previstas no n.º 1 aplicam -se de forma automática, sem autorização prévia dessas entidades, nas mesmas condições previstas no negócio jurídico inicial.
6 — A prorrogação das garantias, designadamente de seguros, de fianças e/ou de avales referidos nos números anteriores não carece de qualquer outra formalidade, parecer, autorização ou ato prévio de qualquer outra entidade previstos noutro diploma legal e são plenamente eficazes e oponíveis a terceiros, devendo o respetivo registo, quando necessário, ser promovido pelas instituições, com base no disposto no presente decreto -lei, sem necessidade de apresentação de qualquer outro documento e com dispensa de trato sucessivo”.
O procedimento de acesso à moratória está regulado no art.º 5.º:
“Acesso à moratória
1 — Para acederem às medidas previstas no artigo anterior, as entidades beneficiárias remetem, por meio físico ou por meio eletrónico, à instituição mutuante uma declaração de adesão à aplicação da moratória, no caso das pessoas singulares e dos empresários em nome individual, assinada pelo mutuário e, no caso das empresas e das instituições particulares de solidariedade social, bem como das associações sem fins lucrativos e demais entidades da economia social, assinada pelos seus representantes legais.
2 — A declaração é acompanhada da documentação comprovativa da regularidade da respetiva situação tributária e contributiva, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 2.º
3 — As instituições aplicam as medidas de proteção previstas no artigo anterior no prazo máximo de cinco dias úteis após a receção da declaração e dos documentos referidos nos números anteriores, com efeitos à data da entrega da declaração, salvo se a entidade beneficiária não preencher as condições estabelecidas no artigo 2.º
4 — Caso verifiquem que a entidade beneficiária não preenche as condições estabelecidas no artigo 2.º para poder beneficiar das medidas previstas no artigo anterior, as instituições mutuantes devem informá-lo desse facto no prazo máximo de três dias úteis, mediante o envio de comunicação através do mesmo meio que foi utilizado pela entidade beneficiária para remeter a declaração a que se refere o n.º 1 do presente artigo”.
Decorre do regime supra exposto que os beneficiários do regime da moratória pública são pessoas singulares, empresas, empresários em nome individual, instituições particulares de solidariedade social, associações sem fins lucrativos e as demais entidades da economia social – desde que se encontrem nas situações indicadas no n.º 2 do art.º 2.º do diploma.
As operações abrangidas pela moratória em causa são operações de crédito, emanadas de entidades do setor financeiro, indicadas no n.º 1 do art.º 3.º.
Quando o beneficiário for uma pessoa singular (excluindo empresário em nome individual), apenas são abrangidos pela moratória créditos para habitação própria permanente, conforme resulta, explicitamente, do art.º 2.º, n.º 2, al. a).
Aliás, tal resulta evidenciado no Preâmbulo do Dec.-Lei, que aqui se transcreve, na parte relevante:
As consequências para a economia exigem a adoção de medidas urgentes tendo em vista a proteção das famílias portuguesas, em matéria de crédito à habitação própria permanente, e das empresas nacionais para assegurar o reforço da sua tesouraria e liquidez, atenuando os efeitos da redução da atividade económica. Os empresários em nome individual, as instituições particulares de solidariedade social, as associações sem fins lucrativos, bem como as demais entidades da economia social são também abrangidos por este regime de proteção”.
É certo que o requerido invocou junto da requerente e, nestes autos, a redação introduzida no Dec.-Lei n.º 10-J/2020 pelo Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16.6.
Contudo, esse diploma apenas visou, quanto aos devedores pessoas singulares, alargar o regime da moratória a cidadãos residentes no estrangeiro, alargar os critérios de elegibilidade atendendo à situação económica do agregado familiar do devedor e passar a integrar neste regime as operações de crédito hipotecário e as operações de crédito ao consumo para efeitos de formação ou educação.
Veja-se o Preâmbulo do diploma:
O regime passa a ser aplicável também a cidadãos que não tenham residência em Portugal, abrangendo assim os cidadãos emigrantes.
Em acréscimo, estabelece que os fatores de quebra de rendimentos podem verificar-se, não apenas no mutuário, mas também em qualquer dos membros do seu agregado familiar, prevendo um novo fator de elegibilidade associado à quebra comprovada de rendimento global do agregado de pelo menos 20 %, de forma a proteger mutuários que não se enquadrem nas outras situações já abrangidas.
Clarifica-se ainda que requisito da regularidade da situação contributiva e tributária apenas é exigível quando a entidade beneficiária esteja sujeita a essa obrigação.
A atualização do diploma prevê ainda a ampliação da moratória a todos os contratos de crédito hipotecário, bem como ao crédito aos consumidores para finalidade de educação, incluindo para formação académica e profissional”.
Em conformidade, e na parte que para aqui releva, o n.º 2 do art.º 2.º do Dec.-Lei n.º 10-J/2020 passou a ter a seguinte redação:
2 — Beneficiam das medidas previstas no presente decreto-lei as pessoas singulares que, à data de publicação do presente decreto-lei, preencham as condições referidas nas alíneas c) e d) do número anterior, tenham ou não residência em Portugal e estejam, ou façam parte de um agregado familiar em que, pelo menos, um dos seus membros esteja, numa das seguintes situações:
a) Situação de isolamento profilático ou de doença, conforme estabelecido no Decreto-Lei n.º 10 -A/2020, de 13 de março, na sua redação atual;
b) Prestação de assistência a filhos ou netos, conforme estabelecido no Decreto -Lei n.º 10 -A/2020, de 13 de março, na sua redação atual;
c) Redução do período normal de trabalho ou suspensão do contrato de trabalho, em virtude de crise empresarial;
d) Situação de desemprego registado no Instituto do Emprego e Formação Profissional, I. P.;
e) Trabalhadores elegíveis para o apoio extraordinário à redução da atividade económica de trabalhador independente, nos termos do artigo 26.º do Decreto-Lei n.º 10 -A/2020, de 13 de março, na sua redação atual;
f) Trabalhadores de entidades cujo estabelecimento ou atividade tenha sido objeto de encerramento determinado durante o período de estado de emergência ou durante a situação de calamidade por imposição legal ou administrativa; ou
g) Quebra temporária de rendimentos de, pelo menos, 20 % do rendimento global do respetivo agregado familiar em consequência da pandemia da doença COVID -19”.
E o n.º 2 do art.º 3.º passou a ter a seguinte redação:
2 — O presente capítulo aplica-se às seguintes operações de crédito quando contratadas por entidades beneficiárias que sejam pessoas singulares:
a) Crédito hipotecário, bem como a locação financeira de imóveis destinados à habitação;
b) Crédito aos consumidores, nos termos do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 junho, na sua redação atual, para educação, incluindo para formação académica e profissional”.
Reportemo-nos ao caso dos autos.
O regime da moratória legal que estivemos a analisar aplica-se a operações de crédito.
Será o contrato sub judice uma operação de crédito?
Acerca disto o tribunal a quo respondeu afirmativamente, discorrendo aprofundadamente, nos termos que aqui se transcrevem:
O contrato, pelas características que apresenta, constitui efectivamente, tal como a nomenclatura que lhe foi dada, um contrato de aluguer de veículo automóvel de longa duração atenta a tipicidade social que lhe é reconhecida, tratando-se, porém, de contrato atípico por não ter na ordem jurídica regime legal próprio.
É praticamente consensual que ao contrato de Aluguer de Longa Duração (ALD), se aplicam, desde logo, as cláusulas estabelecidas pelos contraentes, as disposições do DL nº 354/86, de 23/10 (com as alterações introduzidas pelo DL nº 373/90, de 27/11 e pelo DL nº 44/92, de 31/03), bem como as normas gerais do contrato de locação e as disposições gerais relativas aos contratos.
Na doutrina existem teses diversas sobre o tipo contratual inominado ou atípico de ALD.
A saber : “O contrato de aluguer de longa duração de automóveis novos é um contrato indirecto em que o tipo de referência é o aluguer e o fim indirecto é o da venda a prestações com reserva de propriedade.
Qualificar este contrato simplesmente como contrato de aluguer de automóveis ou como contrato de venda de venda a prestações com reserva de propriedade resulta, em qualquer dos casos, no desrespeito pela vontade contratual” (Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Almedina, 1995, pág. 245).
O fim indirecto que é tido em vista pelos contraentes é conseguido através da conjugação de estipulações típicas dos contratos de aluguer e de venda a prestações com reserva de propriedade, gerando-se um verdadeiro contrato misto (que nada tem “de reprovável ou de nocivo”, resultando sim, “num enriquecimento importante da liberdade contratual, da capacidade de escolha pelas partes dos meios jurídicos para a satisfação dos seus interesses, e num aumento dos meios jurídicos disponíveis no comércio” - ob. cit. pág. 245-246). Configura-se, assim, o aluguer de longa duração “sob a forma de uma locação acoplada de uma promessa unilateral de uma proposta irrevogável de venda” (Teresa Anselmo Paz, “Revista Portuguesa de Direito do Consumo”, nº 14, págs. 125-126).
Paulo Duarte, in “Estudos de Direito do Consumidor - Centro de Direito do Consumo”, nº 3, 2001 (em Estudo que se estende pelas págs. 301 a 327), rejeita as teses do contrato misto e do contrato indirecto, realçando a afinidade do ALD com o contrato de locação financeira, o qual encontra o seu regime no Decreto-Lei nº 149/95 de 24/06 [com as alterações introduzidas pelo DL nº 265/97, de 02/10 (rectificado no DR, I série, de 31/10/97), pelo DL nº 285/2001, de 3/11, e pelo DL nº 30/2008, de 25/2], embora admita diferenças de regime, professando que no plano funcional dos interesses o ALD constitui uma “operação de natureza similar ou com resultados económicos equivalentes aos da locação financeira” (cfr. pág. 324 do citado Estudo), sendo peremptório o seu entendimento quanto a que não se trata de contrato de locação, pois as rendas visam a amortização do preço da coisa, não sendo a simples contrapartida da fruição temporária do bem como é típico da locação (cfr. artº 1022º do Código Civil).
Diz “Do que se trata, portanto, não é de remunerar o locador pela concessão temporária do gozo da coisa locada, mas de reembolsá-lo da quantia que adiantou na sua aquisição, acrescida dos juros remuneradores da intermediação financiadora em que, afinal, se traduz a sua intervenção” (cfr. pág. 310 do citado Estudo), acabando por concluir estar-se em presença de um contrato de crédito, explanando “(…) para que de um contrato de crédito se possa falar, o que, em cada caso, importa é que se trate de um instrumento técnico-jurídico capaz de permitir que alguém conceda temporariamente a outrem o poder de compra de que este não dispõe. Só então se poderá dizer que se está perante um “acordo de financiamento semelhante” aos esquemas contratuais listados no art. 2º/1-a) do RJCC.
Pois bem, à luz deste entendimento, parece-me que o ALD é passível de se considerar como um contrato de concessão de crédito. Sendo que a concessão de crédito opera, no ALD, por meio do fraccionamento (e inerente diferimento) da execução da obrigação de o mandante (o “locatário”) reembolsar o mandatário (o “locador”) da despesa efectuada na aquisição do bem objecto do contrato” (cfr. mencionado Estudo págs. 317 e 318).
E assim considera aplicável ao ALD o regime jurídico que regula o crédito ao consumo, à data do mencionado Estudo regulado pelo DL nº 359/91, 21/09, alterado pelo DL nº 101/2000, de 02/06.
Já Gravato Morais, in “Contratos de Crédito ao Consumo”, 2007, pág. 57, afirma “O contrato de aluguer de longa duração pode conter uma promessa (unilateral ou bilateral) de venda ou até uma proposta irrevogável de venda inserida na própria locação.
(…)
O locador, durante o período de vigência do negócio, concede ao outro o gozo temporário de um bem móvel e percebe não só a soma relativa à aquisição, mas ainda o lucro financeiro.
No seu termo, o objecto encontra-se integralmente pago, pelo que naturalmente o locatário tem todo o interesse na sua aquisição. Depois de manifestar essa vontade ao locador, proceder-se-á à venda — só aqui se transferindo a propriedade do bem — por um preço pré-determinado, em regra equivalente ao valor do objecto à data do aluguer de longa duração. A possibilidade de aquisição da coisa, que se encontra integralmente paga no termo do prazo, está consagrada no art. 3°, al. a), parte final do DL nº359/91. O negócio está previsto no art. 2°, nº1, al. a), in fine DL nº 359/91”.
Pese embora a posterior alteração legislativa, com a entrada em vigor do DL nº 133/2009, de 02/06, que expressamente revogou o DL nº 359/91, de 21/09, assim como os diplomas que subsequentemente o alteraram, em termos conceptuais mantém-se inteiramente válida a doutrina expendida por aqueles autores, que referenciamos por expressivos podendo ainda ver-se Gravato Morais in “Manual da Locação Financeira”, pág. 53, Teresa Anselmo Vaz, in “Alguns Aspectos do Contrato de Compra e Venda a Prestações e Contratos Análogos”, pág. 77, e Rui Pinto Duarte, in “Escritos sobre Leasing e Factoring”, pág. 168.
Também a Jurisprudência, estribada em abundante doutrina, vêm entendendo que nos casos em que está estabelecida – como ocorre no caso em apreço – a opção de compra ou contrato-promessa de compra e venda ainda que unilateral, o ALD é assimilável ao contrato de locação financeira (a opção de compra final seria o lugar paralelo do “preço residual” na locação financeira) e deve ser enquadrado no regime jurídico do crédito ao consumo como modalidade de financiamento, porquanto, independentemente de o ALD ser concebido como um contrato misto indirecto ou como uma pluralidade de contratos interligados numa relação de coligação funcional, o mesmo não se mostra assimilável ao contrato de locação em geral porque o valor da retribuição contempla, em regra, uma componente destinada à amortização do preço da coisa locada que excede o que corresponderia ao mero gozo, e porque se convenciona a aquisição do bem pelo locatário para o termo do prazo do contrato (mediante inclusão de promessa de compra e/ou venda ou uma proposta irrevogável de venda), o qual tenderá a ficar integralmente pago com a liquidação da ultima renda.
E por isso, a figura, tal como desenhada, revela inegáveis afinidades com o contrato de locação financeira, integrando-se sob os aspectos económico-financeiro e funcional no campo dos contratos de crédito ao consumo ou operações similares.
E na verdade é como tal que o mesmo é reconhecido pelo sistema jurídico, pois o DL nº 133/2009, de 02/06, relativo ao Regime Jurídico do Crédito ao Consumo, no domínio que nos ocupa apenas exclui do seu âmbito de aplicação “os contratos de locação de bens móveis, de consumo duradouro, que não prevejam o direito ou a obrigação de compra da coisa locada, seja no próprio contrato, seja em contrato separado” (cfr. artº 2º nº 1 al. d).
Aqui chegados é já cristalino que o contrato celebrado entre as partes – de aluguer por 60 meses de um veículo automóvel, adquirido pela Requerente locadora para o colocar à disposição do Requerido locatário, mediante uma retribuição mensal e com opção de compra a final – é na sua estrutura lógica e na sua funcionalidade social assimilável à locação financeira e configura-se como financiamento, estando sujeito ao Regime Jurídico do Crédito ao Consumo”.
Tanto a requerente como o requerido aceitaram que o contrato sub judice constituiu um instrumento de financiamento da aquisição de uma viatura automóvel por parte do requerido, efetuado sob a forma de um contrato de aluguer, cujas rendas, associadas ao valor residual acordado, permitiriam a aquisição da propriedade da viatura, pelo locatário, no final da execução do contrato.
Da matéria de facto provada não resulta que o contrato sub judice está conexionado com a aquisição da viatura em causa por parte da requerente por encomenda ou a pedido do requerido. Note-se que o contrato de ALD data de 20.02.2018 (n.º 2 da matéria de facto) e a viatura foi adquirida pela requerente em 04.01.2017, um ano antes (n.º 5 da matéria de facto).
Contudo, a circunstância de, ainda assim, na espécie em causa se prever o direito de, no final do contrato, o requerido exercer a opção de compra da viatura, aproxima este contrato do de locação financeira, regulado pelo Dec.-Lei n.º 149/95, de 24.7, com as alterações publicitadas (art.º 1.º: “locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados”).
E, como bem nota o tribunal a quo, o legislador apenas afasta do regime do crédito ao consumo os contratos de locação de bens móveis que não prevejam o direito ou a obrigação de compra da coisa locada (art.º 2.º, n.º 1, al. d) do Dec.-Lei n.º 133/2009, de 02.6). Sendo irrelevante, para este juízo qualificativo, o facto de o regime de crédito ao consumo previsto no Dec.-Lei n.º 133/2009 não ser aplicável ao contrato sub judice, por o valor do contrato exceder € 75 000,00 (n.º 4 da matéria de facto, art.º 2.º n.º 1 al. c) do Dec.-Lei n.º 133/2009).
Aceita-se, pois, que para os efeitos previstos no regime jurídico da moratória de que temos estado a tratar, o contrato sub judice constitui uma operação de crédito.
Por outro lado, o requerido reúne, do ponto de vista subjetivo, as condições para ser beneficiário do regime da aludida moratória, na medida em que, tendo como a sua fonte de rendimentos a remuneração como gerente (n.º 12 da matéria de facto), a empresa onde o requerido trabalha (e de cuja sociedade proprietária é, aliás, sócio-gerente – n.ºs 11 e 13 da matéria de facto) foi encerrada na sequência das determinações legais (Decreto n.º 2-A/2020, de 20.3) que têm vindo a ser sucessivamente fixadas no âmbito das medidas destinadas ao combate à pandemia do COVID-19 (n.º 16 da matéria de facto).
Porém, como se viu, a dívida que o requerido contraiu junto da requerente não se destinou à aquisição de habitação, não é um crédito garantido por hipoteca, nem se destina à educação.
É evidente que o legislador cingiu a sua excecional intromissão na execução de relações jurídicas privadas a situações em que estejam em risco determinados interesses que sinalizou como de particular importância: no caso das pessoas singulares, o direito à habitação e o direito à educação do devedor ou dos seus mais próximos.
Não é o caso do interesse do ora requerido no uso e futura titularidade de uma viatura automóvel.
Pelo que o contrato sub judice não é abrangido pelo regime de moratória previsto no Dec.-Lei n.º 10-J/2020, de 26.3.
É certo que, nos termos do n.º 2 do art.º 5.º do Dec.-Lei n.º 10-J/2020, a requerente deveria comunicar ao requerido a não concessão da moratória, no prazo de três dias úteis após ter recebido o pedido do requerido. E a requerente não respeitou tal prazo, tendo até, aquando da resposta dada ao primeiro pedido formulado pelo requerido, enviado a resposta para endereço eletrónico diferente daquele que tinha sido utilizado pelo requerido (cfr. n.ºs 17, 18, 20 e 21 da matéria de facto). De todo o modo, o incumprimento desse procedimento de resposta (quanto à forma e ao prazo) não tem a virtualidade de transformar o requerido em beneficiário da moratória, uma vez que, como vimos, o seu contrato não se enquadra nas categorias que por ela são abrangidas. O desrespeito pelo aludido procedimento de resposta apenas poderá (para além da responsabilidade civil por prejuízo eventualmente causado ao requerido em virtude da violação dessas obrigações legais acessórias) fazer a requerente incorrer na responsabilidade contraordenacional prevista no art.º 8.º do Dec.-Lei n.º 10-J/2020 (“Supervisão e sanções  1 - O Banco de Portugal é responsável pela supervisão e fiscalização do regime de acesso à moratória previsto no presente decreto-lei. 2 - O incumprimento, pelas instituições previstas no n.º 1 do artigo 3.º, dos deveres previstos no presente decreto-lei ou na regulamentação adotada pelo Banco de Portugal para a sua execução, constitui contraordenação punível nos termos do artigo 210.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, na sua redação atual, sendo aplicável ao apuramento da respetiva responsabilidade contraordenacional o regime substantivo e processual previsto naquele Regime Geral).
Nesta parte, pois, a apelação é procedente.
Segunda questão (pressupostos da providência requerida)
Resulta dos factos provados que a partir de abril de 2020, inclusive, o requerido incumpriu a obrigação de pagamento das rendas que, nos termos do contrato de ALD que havia celebrado com a requerente, deveria pagar mensalmente até perfazer as 60 prestações acordadas (n.ºs 4, 6 e 7 dos factos provados). Em 26.8.2020 a requerente enviou ao requerido uma carta em que o interpelava para efetuar o pagamento das quantias relativas aos meses de abril a agosto de 2020, no prazo de 15 dias, sob pena de a mora se converter em incumprimento definitivo e de o contrato se considerar automática e imediatamente rescindido, e com a indicação das respetivas consequências, designadamente a obrigação de proceder à imediata devolução do veículo automóvel (n.º 8 dos factos provados). Esgotado o prazo referido, o requerido não liquidou qualquer montante, nem procedeu à entrega voluntária do veículo, situação que se mantém (n.º 9 dos factos provados).
Por esse motivo, a requerente instaurou o presente procedimento cautelar, tendo em vista obter a apreensão do mencionado veículo automóvel.
Embora tenha instaurado um procedimento cautelar não especificado, a requerente suscitou a questão da aplicabilidade ao contrato destes autos do mecanismo tutelar previsto no regime jurídico da locação financeira, isto é, a providência cautelar de entrega judicial prevista no art.º 21.º do Dec.-Lei n.º 149/95, de 24.6 (com as alterações publicitadas).
O citado art.º 21.º tem a seguinte redação:
Providência cautelar de entrega judicial
1 - Se, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este, após o pedido de cancelamento do registo da locação financeira, a efectuar por via electrónica sempre que as condições técnicas o permitam, requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente.
2 - Com o requerimento, o locador oferece prova sumária dos requisitos previstos no número anterior, excepto a do pedido de cancelamento do registo, ficando o tribunal obrigado à consulta do registo, a efectuar, sempre que as condições técnicas o permitam, por via electrónica.
3 - O tribunal ouvirá o requerido sempre que a audiência não puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência.
4 - O tribunal ordenará a providência requerida se a prova produzida revelar a probabilidade séria da verificação dos requisitos referidos no n.º 1, podendo, no entanto, exigir que o locador preste caução adequada.
5 - A caução pode consistir em depósito bancário à ordem do tribunal ou em qualquer outro meio legalmente admissível.
6 - Decretada a providência e independentemente da interposição de recurso pelo locatário, o locador pode dispor do bem, nos termos previstos no artigo 7.º
7 - Decretada a providência cautelar, o tribunal ouve as partes e antecipa o juízo sobre a causa principal, excepto quando não tenham sido trazidos ao procedimento, nos termos do n.º 2, os elementos necessários à resolução definitiva do caso.
8- São subsidiariamente aplicáveis a esta providência as disposições gerais sobre providências cautelares, previstas no Código de Processo Civil, em tudo o que não estiver especialmente regulado no presente diploma.
9 - O disposto nos números anteriores é aplicável a todos os contratos de locação financeira, qualquer que seja o seu objecto”.
A tutela cautelar em causa visa proteger os interesses de mercado associados a esta nova forma de financiamento, reduzindo os riscos para o locador com a deterioração ou perda da coisa locada (cfr. Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 4.ª edição, 2019, Almedina, p. 144), permitindo que, ainda que só indiciariamente extinta a relação contratual, o bem locado passe rapidamente para o domínio do locador, que poderá imediatamente dele dispor, mesmo que a providência não ultrapasse o umbral da provisoriedade. Como diz Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, “[o] efeito antecipatório subjacente à providência é, nesta sede, particularmente sublimado, em clara ultrapassagem dos princípios da instrumentalidade e da provisoriedade que informam os procedimentos cautelares em geral, já que (se deferida) se permite, através dela, obter antecipadamente o mesmo efeito material (entrega do bem) e o mesmo efeito jurídico (cancelamento do registo) que normalmente só seriam alcançados com a ação principal” (Direito Processual Civil, vol. I, 3.ª edição, 2019, Almedina, pp. 348 e 349).
Sempre se dirá que, sendo a locação financeira uma operação de financiamento, em que muitas vezes o locador não chega sequer a ter qualquer contacto com o bem locado (o que justifica que, nos termos do art.º 12.º do Dec.-Lei n.º 149/95, o locador não responda pelos vícios do bem locado), o interesse do locador no direito de propriedade sobre o bem que adquire não incide sobre o aproveitamento das qualidades da coisa, mas sobre a possibilidade de esse direito garantir o retorno dos fundos que investiu no equipamento (cfr. Rui Pinto Duarte, “Aspectos contratuais do aluguer, da locação financeira e de outros contratos afins à face da lei portuguesa”, Fisco, 1993, p. 67, apud Fernando de Gravato Morais, União de Contratos de Crédito e de Venda Para o Consumo, 2004, Almedina, p. 442, nota 53). Daí que esta específica providência cautelar não visa propriamente tutelar um interesse centrado num direito real, com as suas múltiplas dimensões de uso, fruição e disposição (art.º 1305.º do CC), mas um interesse de retorno de um investimento objeto de um contrato de financiamento.
Mais se realça que o especial regime de proteção dos interesses do locador financeiro justifica que a locação financeira deva constar no registo automóvel, conforme decorre dos artigos 5.º n.º 1 al. d) do Dec.-Lei n.º 54/75, de 12.02 e 3.º n.º 5 do Dec.-Lei n.º 149/95, de 24.6 (na redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 30/2008, de 25.02).
A requerente, contudo, defende que a aplicabilidade ao caso destes autos do regime cautelar da locação financeira resultaria da já acima citada similitude entre o ALD e a locação financeira e isentaria a requerente da demonstração do segundo pressuposto da providência cautelar não especificada: o periculum in mora.
Com efeito, a tutela cautelar comum, concedida nos termos dos artigos 362.º a 376.º do CPC, pressupõe, além da demonstração da probabilidade séria da existência do direito carecido de proteção (fumus boni iuris - art.º 368.º n.º 1 do CPC), a demonstração de fundado receio de que o seu direito venha a sofrer de lesão grave ou dificilmente reparável (art.º 362.º n.º 1 do CPC).
Ora, quanto à aplicabilidade aos contratos de ALD da providência cautelar de entrega judicial concedida pelo legislador ao locador financeiro, a jurisprudência tem dado resposta negativa, desde logo com base no princípio da legalidade dos meios processuais (cfr. artigos 2.º n.º 2 e 193.º do CPC).
Veja-se, v.g., o expendido no acórdão desta Relação, de 26.02.2015, processo 1617/14.1T8SNT.L1-6 (consultável, como todos os que adiante se citarão, em www.dgsi.pt):
Renovando a tese já constante da p.i., argumenta [o apelante] que o contrato de aluguer de longa duração celebrado entre as partes, vulgarmente designado contrato de ALD, apresenta grandes afinidades com a locação financeira, sendo pois um contrato similar a este e, não tendo um regime jurídico próprio, deve entender-se que lhe são subsidiariamente aplicáveis as regras próprias do contrato de locação financeira, dada a proximidade entre os dois tipos contratuais, até porque, segundo doutrina que invoca, “parece haver uma essencial homogeneidade jurídico-estrutural entre as duas figuras”.
Ponderada a argumentação da apelante, não cremos que lhe assista razão, neste aspecto.
Não que coloquemos em causa as considerações tecidas sobre a afinidade ou similitude entre o contrato de ALD e o contrato de locação financeira, quando é estipulado naquele o direito ou a obrigação de compra da coisa locada, funcionando então também como contratos de crédito e não meros contratos de aluguer e, nessa medida, também não questionando a jurisprudência do STJ, constante do Ac. de 25.10.2011 (relator Alves Velho), citada pela recorrente na conclusão D) das alegações. Muito pelo contrário não temos dúvidas em aderir a esta jurisprudência, nos termos da qual «o denominado “contrato de aluguer de longa duração (ALD)” configura um contrato atípico, integrado por estipulações dos contraentes no exercício da liberdade e autonomia contratual, que se caracteriza pela revelação de afinidades com o contrato de locação financeira, integrando-se sob os aspectos económico-financeiro e funcional no campo dos contratos de crédito ao consumo ou operações similares».
(…)
Mas desse plano, do direito substantivo, sobre a afinidade, similitude ou homogeneidade jurídico-estrutural dos regimes jurídicos do contrato atípico de ALD e de locação financeira, não pode, salvo melhor opinião, extrapolar-se para a aplicabilidade da providência cautelar prevista no art.º 21º do DL 149/95 – diploma que prevê o regime jurídico da locação financeira – ao contrato de ALD.
Por isso não acompanhamos o Ac. do TRÉvora de 08.03.2007 (relator Eduardo Tenazinha), invocado pela recorrente na conclusão E) das suas alegações, até porque no mesmo se parte de um pressuposto, o de que o objecto do contrato invocado era susceptível de locação financeira, para a partir daí basear toda a fundamentação no regime jurídico do contrato de locação financeira. Quando não é esse facto – o objecto, veículo automóvel, poder ser objecto de qualquer dos contratos, ALD e locação financeira – que determina o regime processual aplicável, antes deve tal regime processual ser determinado em face do direito que se pretende fazer valer e do regime jurídico modelador do contrato celebrado entre as partes.
Com efeito, vigora em termos de direito processual um princípio de legalidade, nos termos do qual o direito de acesso aos tribunais e a realização do direito subjectivo deve efectuar-se através da “acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção” cfr. art 2º nº 2. Assim, não existindo um procedimento cautelar típico especialmente previsto para “acautelar o efeito útil da acção”, quando está em causa o exercício dos direitos conferidos no âmbito de um contrato de ALD, não é possível o recurso à providência cautelar prevista no art.º 21º do DL 149/95 para o contrato de locação financeira. Com efeito, nesta matéria, se o propósito do legislador fosse o de permitir aos contraentes do contrato de ALD poderem usar do procedimento cautelar que está consagrado para o contrato de locação financeira, não teria deixado de consagrar esse propósito, ou alterando o DL 149/95 ou alterando o regime jurídico da actividade de aluguer de veículos de passageiros sem condutor. Mas não o tem feito, apesar das sucessivas alterações ao referido DL 149/95 e de, ainda recentemente, ter revogado o regime jurídico desta actividade de aluguer de veículos sem condutor, que estava consagrado no DL 354/86 de 26.10 (com sucessivas alterações posteriores) consagrando um novo regime dessa actividade no DL 181/2012 de 06.08, não pode deixar de se concluir que não é esse o propósito do legislador. Aliás, se dúvidas existissem, elas eram dissipadas por este último diploma pois nele o legislador expressamente excluiu a sua aplicabilidade aos “contratos de prestação de serviços de aluguer de longa duração, também designados de ALD ou renting” (cfr. art.º 1º nº 2 al. c) do citado DL 181/2012.
Nesta medida, não existindo um procedimento cautelar típico especialmente previsto para a requerente acautelar o efeito útil da acção, em que visa fazer valer o seu direito emergente de um contrato de ALD, deve concluir-se que a forma ou via processual adequada é o procedimento cautelar comum, previsto no art.º 362º e segs, pelo que improcedem as conclusões A) a I) das alegações da recorrente, sendo negativa a resposta à primeira questão supra equacionada”.
O regime cautelar da locação financeira tem natureza excecional face ao regime cautelar comum, não acarretando aplicação analógica (art.º 11.º do CC).
Exposto isto, dúvidas não há que se indicia o direito da requerente à restituição da viatura que entregara ao requerido. Com efeito, tendo o requerido faltado ao pagamento das rendas em dívida, permanecendo em dívida mesmo após a interpelação admonitória que a requerente lhe fez, a requerente resolveu o contrato, daí lhe advindo, nos termos contratuais e legais, o direito à restituição do veículo.
Quanto aos termos contratuais, veja-se o teor das seguintes cláusulas do contrato outorgado pelas partes, que constitui o documento n.º 1 do requerimento inicial:
Cláusula 14.ª – Rescisão
1. O locador poderá rescindir o presente Contrato sempre que o locatário incorra em incumprimento definitivo de alguma das suas obrigações, o que se verificará após o envio pelo locador ao locatário de comunicação indicando as obrigações do locatário não cumpridas pontualmente e intimando-o ao respectivo cumprimento em 8 (oito) dias, sem que o locatário proceda ao cumprimento pretendido nesse prazo.
(…)
4. No caso de rescisão do Contrato pelo locador, o locatário deverá proceder à imediata restituição do veículo em perfeito estado de conservação, nos termos da Cláusula 11.ª, n.º 2.
5. Sem prejuízo do disposto no número anterior, em caso de rescisão do Contrato pelo locador, este terá direito a conservar seus os alugueres vencidos e pagos, a receber os alugueres vencidos e não pagos, acrescidos de juros de mora e de eventuais encargos, despesas e comissões devidas, e a receber um montante indemnizatório igual a 50% dos alugueres vincendos até ao termo do prazo do aluguer, sem prejuízo do direito do locador de exigir a reparação integral dos seus prejuízos”.
Na lei, veja-se o disposto nos artigos 406.º n.º 1, 432.º n.º 1, 433.º, 434.º, 808.º n.º 1, 795.º n.º 1, 1041.º n.º 1, 1043.º n.º 1, 1047.º do CC.
Está, pois, indiciado o primeiro pressuposto da concessão da providência requerida, isto é, a existência do direito invocado pela requerente, o direito à restituição do veículo locado.
Vejamos, agora, se se verifica o segundo pressuposto exigido, o já acima mencionado “periculum in mora”.
A existência de fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito constitui requisito comum às medidas cautelares atípicas.
Tal receio tanto se pode manifestar antes de proposta a ação como na sua pendência. Em qualquer dos casos, pode o requerente solicitar a adoção da medida que julgue mais adequada a acautelar o efeito útil que pretenda ver satisfeito ou reconhecido através do processo principal. A finalidade específica das providências cautelares é precisamente a de evitar a lesão grave e dificilmente reparável proveniente da demora na tutela da situação jurídica, isto é, obviar ao periculum in mora.
A este respeito, no que concerne à apreensão de automóveis no âmbito de providências cautelares não especificadas, em situações idênticas à invocada nestes autos (garantir a restituição do automóvel pelo locatário, uma vez cessado o contrato), podem descortinar-se, no essencial, duas posições.
A primeira defende que os interesses do locador do automóvel têm natureza exclusivamente patrimonial, pelo que a sua violação pode ser ressarcida, se não por reconstituição natural, pelo menos por meio do pagamento de uma indemnização pecuniária (artigos 566.º, 1044.º e 1045.º do Código Civil). Assim, o requerente/locador deve alegar e provar existir fundado receio de que não conseguirá obter do locatário/requerido a reparação da lesão do seu direito, designadamente, por exemplo, dada a insuficiência do património deste ou o perigo do desaparecimento ou diminuição relevante dessa garantia patrimonial. Para tal não chegará a simples invocação e prova de que o requerido deixou de pagar as rendas e/ou se furta a restituir o veículo e que o mesmo se degrada com o tempo e o uso (cfr., v.g., acórdão da Relação do Porto, 27.11.2003, processo 0335609; ac. da Rel. de Lisboa, 30.3.2004, 10813/2003-7; Porto, 21.12.2004, 0426453; Lisboa, 14.4.2005, 3047/2005-8; Porto, 08.11.2005, 0524432; Lisboa, 04.7.2006, 5235/06-2; Porto, 19.4.2007, 0731622; Lisboa, 08.01.2008, 7956/2007-1; Porto, 11.9.2008, 0736163; Lisboa, 23.4.2009, 5937/08.6TBOER.L1-2; Lisboa, 08.10.2009, 3432/08.2TBTVD-A-L1-8; Coimbra, 28.4.2010, 319/10.2TBPBL.C1; Coimbra, 07.9.2010, 713/09.1T2AND.C1; Coimbra, 19.10.2010, 358/10.3T2ILH.C1; Lisboa, 10.02.2011, 5638/10.5TBOER.L1-6; Lisboa, 15.12.2011, processo 746/11.8TVLSB-A.L1-2, subscrito pelo ora relator e pelo Exm.º 2.º adjunto; Coimbra, 13.11.2012, 460/12.7T2ILH.C1; Coimbra, 01.10.2013, 589/13.4T2AVR.C1; Guimarães, 15.10.2013, 716/13.1TBFAF.G1; Porto, 26.01.2016, 7401/15.8T8VNG.P1).
Dando eco a esta corrente jurisprudencial veja-se, na doutrina, Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, ob. cit., p. 146, nota 391.
Tal posição não é, porém, consensual. Parte significativa da jurisprudência defende que o direito que, no essencial, o locador/requerente pretende acautelar é o seu direito de propriedade, o direito ao uso, fruição e disposição de um bem que lhe pertence, o automóvel, direito esse que não é relevantemente reparado mediante o pagamento de uma indemnização; e a conduta relapsa do locatário/requerido bastará para dar como suficientemente indiciado o sério risco de esse direito ser irremediavelmente violado (cfr., v.g., Relação do Porto, 30.10.2003, 0334866; Porto, 06.5.2004, 043252; Porto, 11.11.2004, 0434300; Évora, 08.3.2007, 94/07-3; Évora, 24.4.2008, 820/08-3; Porto, 18.6.2008, 0833386; Porto, 24.9.2009, 4481/09.9TBMAI.P1; Évora, 21.10.2009, 1105/09.8TBOER.E1; Évora, 14.4.2010, 46/10.0TBABF.E1; Lisboa, 12.10.2010, 5549/09-7; Lisboa, 18.11.2010, 339/10.7TBSSB.L1-8; Lisboa, 26.02.2015, 1617/14.1T8SNT.L1-6; Porto, 20.4.2017, 575/17.5T8VNG.P1; Lisboa, 06.7.2017, 978/17.5T8CSC.L1-2; Porto, 07.01.2019, 903/17.3T8VNG.P1).
Também releva a tese defendida no acórdão da Relação de Coimbra, de 28.11.2018, processo 3440/17.2T8LRA.C1, no qual se realçou que, sendo o direito a acautelar o da restituição da coisa locada ao locador, constituiria periculum in mora relevante o fundado receio de dissipação ou ocultação do veículo a restituir, por parte do locatário.
Conforme se disse, a decretação da providência cautelar (não especificada) pressupõe a existência de fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito. Só esta justifica a urgente, provisória e por vezes não contraditada intromissão do tribunal na esfera jurídica do requerido, correndo-se o risco de se praticar um ato posteriormente qualificado de injustificado (artigos 363.º, 366.º, 374.º n.º 1 do Código de Processo Civil).
Apenas merecem a tutela provisória consentida pelo procedimento cautelar comum as lesões graves que sejam simultaneamente irreparáveis ou de difícil reparação. Quanto aos prejuízos materiais, “o critério deve ser bem mais restrito do que o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física ou moral, uma vez que, em regra, aqueles são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva” (cfr. Abrantes Geraldes, Temas da reforma do processo civil, III volume, 2.ª edição, Almedina, páginas 84 e 85.). Relativamente a este último tipo de danos, deverão ser ponderadas “as condições económicas do requerente e do requerido e a maior ou menor capacidade de reconstituição da situação ou de ressarcimento dos prejuízos eventualmente causados” (Abrantes Geraldes, citado, pág. 85).
A requerente é uma sociedade que tem por objeto, entre outras, a atividade de locação financeira e o aluguer de veículos automóveis. Assim, o automóvel a apreender constitui um bem cujo significado se reduz ao seu valor económico, seja na vertente de bem transacionável, seja de bem capaz de produzir um determinado rendimento enquanto bem locável. Estão em causa, assim, interesses meramente pecuniários, cuja lesão (emergente da perda do veículo ou da demora na sua recuperação) pode ser perfeitamente reparada mediante a prestação de uma indemnização em dinheiro (art.º 566.º do Código Civil). Reparação essa aliás expressamente prevista no contrato (cláusula geral 14.ª. n.º 5, supratranscrita) e no regime da locação (artigos 1044.º e 1045.º do Código Civil).
Note-se que a circunstância de o veículo perder valor ao longo do tempo, seja pela perda de “modernidade” das suas características, seja pelo seu desgaste, é fator normal, que necessariamente é tido em consideração pela locadora na fixação das contrapartidas pecuniárias que cobra aos locatários, nomeadamente na avaliação do valor residual do veículo para efeitos de exercício da opção de compra pelo locatário.
Assim, a reparabilidade da lesão afere-se pela suficiência ou insuficiência do património do requerido ou pelo perigo do desaparecimento ou diminuição relevante dessa garantia patrimonial (art.º 601.º do Código Civil).
Ainda que se considere que o direito que há que garantir é o direito à restituição da viatura locada, a antecipada restituição só se justificaria se se indiciasse fundado receio de extravio, de destruição ou de séria danificação da mesma.
Ora, sobre estes aspetos nada se mostra indiciado, nem foi alegado.
Note-se que o requerido contactou a requerente antes de deixar de pagar as rendas, para, invocando a situação decorrente da pandemia do coronavírus SARS-CoV-2, solicitar uma moratória nos pagamentos. Tendo até, num segundo contacto, enviado documentação atinente à situação justificativa invocada.
Não há indícios de que o requerido pretende extraviar a viatura, ou que lhe dá uma utilização temerária ou imprudente. Mais, a recusa em entregar a viatura parece alicerçar-se na convicção de que o requerido teria direito à moratória legal supracitada.
O facto de o requerido ter deixado de receber a remuneração de gerente da sociedade de que é sócio não basta para dar como indiciado de que não terá património bastante para garantir os seus compromissos pessoais.
Por último, afigura-se-nos que, conforme ponderado no acórdão da Relação de Lisboa de 06.7.2017, processo 987/17.5T8CSC.L1-2, esta providência cautelar comum não conferiria ao requerente, contrariamente ao regime cautelar da locação financeira, a plena disponibilidade do automóvel em causa, devendo a viatura ser entregue a fiel depositário, ainda que eventualmente a própria requerente pudesse ser investida nessa qualidade, e ficando a viatura impedida de circular (vide expressamente neste sentido, quanto à apreensão de veículo onerado com hipoteca ou reserva de propriedade, o art.º 22.º n.º 1 do Dec.-Lei n.º 54/75, de 12.02) - pelo que a tutela cautelar do direito a imediato e pleno exercício dos direitos do locador sobre o automóvel, reclamada pelos defensores da segunda corrente jurisprudencial acima mencionada, ficaria algo aquém do ambicionado.
Em suma, a providência cautelar improcede, por falta de indiciação do pressuposto de periculum in mora.
DECISÃO
Pelo exposto:
a) Julga-se a apelação improcedente e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida, embora com fundamentação diversa;
b) Nos termos dos artigos 443.º n.º 1 do CPC e 27.º n.ºs 1 e 4 do RCP, ordena-se a retirada do processo do documento n.º 1, anexo à alegação da apelante, e condena-se a apelante em 2 UC de multa.
As custas da apelação, na vertente das custas de parte, são a cargo da apelante, que nela decaiu (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC).

Lisboa, 13.5.2021
Jorge Leal
Nelson Borges Carneiro
Pedro Martins