Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
358/2007-8
Relator: CAETANO DUARTE
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
SUCESSÃO NA POSIÇÃO CONTRATUAL
ARRENDAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/12/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Autorizado pelo senhorio a realização de obras no local arrendado, na sequência de solicitação dos inquilinos,  referindo ele que os arrendatários “ podiam fazer as obras desde que não lhe pedissem dinheiro”, provando-se ainda que o senhorio viu as obras depois da sua conclusão, não podem, ele ou aqueles que lhe sucederam na posição contratual, deixar de ser condenados como litigantes de má fé pela acção de despejo movida contra os arrendatários com fundamento em obras não autorizadas susceptíveis de preencher a previsão constante do artigo 64.º/1, alínea d) do R.A.U.

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

Maria […] e Bernardino […], representado pelos seus herdeiros Maria […], Ana […] e a referida Maria […], propuseram acção de despejo com processo sumário pedindo a condena­ção de Américo […] e Raquel […] entregar-lhes de imediato e totalmente devoluto o 3º andar esquerdo do prédio […]. Alegam ser proprietários do referido andar e terem-no dado de arrendamento aos Réus que efectuaram obras no locado, sem sua autorização, as quais alteraram a disposição interna e externa do andar.

Contestaram os Réus, excepcionando a caducidade do direito dos Autores pedirem a resolução do contrato por terem tido conhecimento das obras em 1989 e só terem pro­posto a acção em 2004 e que todas as obras foram feitas com conhecimento do Autor Ber­nardino que dizia aos inquilinos para fazerem as obras porque ele não as podia fazer por serem caras.

Responderam os Autores à matéria da excepção.

Tendo falecido o Autor Bernardino, procedeu-se à habilitação dos seus herdeiros, já identificados acima.

Proferido despacho saneador, em que se relegou para o final o conhecimento da excepção de caducidade e não foi elaborada base instrutória, procedeu-se ao julgamento com as formalidades legais e foi proferida a sentença de fls. 200 a 206 em que se julgou a acção improcedente e se absolveram os Réus do pedido. Desta sentença, vem o presente recurso de apelação interposto pelos Autores.

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Os apelantes alegam, em resumo:
- Baseou-se a decisão no facto de ter sido dado como provado que o Autor Bernardino, há cerca de 12 ou 13 anos, no átrio de entrada do prédio, ,ter auto­rizado verbalmente a realização das obras que viu, depois de realizadas;
- Há contradições nos depoimentos das testemunhas dos Réus em que o julgador baseou a sua convicção quanto à matéria de facto pois F.[…] e S.[…] afirmaram que A.[……] estava presente na “reunião” e esta última disse não ter estado na mesma;
- E a testemunha F.[…] diz que S.[…] já estava na “reunião” quando ele chegou enquanto a referida S.[…9 diz precisamente o contrário, ou seja, que foi o F.[…] o primeiro (dos dois) a chegar;
- Daqui se pode concluir que, ou não houve qualquer “reunião” ou, se a houve, estas testemunhas não estiveram presentes;
- Os apelantes não litigaram com má fé.
Os apelados contra-alegaram, dizendo:
- A matéria de facto foi bem valorada pelo juiz a quo  não se podendo retirar dos depoimentos das testemunhas F.[…] e S.[…] as ilações pretendidas pelos apelantes;
- Os apelantes tinham conhecimento da falta de veracidade do que alegaram pelo que litigaram com má fé.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

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Foram dados como provados os seguintes factos:

1- Por acordo escrito celebrado entre o Autor Bernardino e o Réu marido, foi cedida por aquele a este a utilização, para habitação, da fracção correspondente ao 3º andar esquerdo do prédio sito na Rua […] pelo prazo de 6 meses renovável, com início em 1 de Novembro de 1973, mediante a retribuição mensal de 2.700$00, a pagar no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que dissesse respeito;
2- Retribuição que era no valor de € 97,60 no ano de 2004;
 3-  O prédio em questão […] é constituído por rés-do-chão, primeiro, segundo e terceiro andares, lados direito e esquerdo;
4-   A Câmara Municipal […9 solicitou aos Autores a realização de obras no prédio atrás indicado;
5- Os Réus demoliram os muretes em alvenaria que separavam a cozinha da  marquise da fracção indicada;
6- E arrancaram todo o envidraçado que se encontrava
por cima dos muretes;
7- E retiraram as portas de acesso à referida marquise;
8- E demoliram tudo o que era construção em tijolo desde o envidraçado ao tecto;
9- Deixando de existir a construção que antes separava a cozinha da marquise;
10-    Passando estas, cozinha e marquise, a constituir um espaço único;
11-    Os Réus instalaram também no locado um sistema de aquecimento, tipo lareira,  que consome lenha;
  12- E, para saída do fumo, os Réus furaram a placa, em tijolo e cimento, que separa o tecto do piso e o telhado;
13- E furaram, ainda, o próprio telhado para colocação de um tubo para a saída de fumo e gases provenientes da combustão do referido sistema de aquecimento;
14- Em data indeterminada do ano de 1989, os Réus, em conjunto com outros residentes no mesmo prédio, “arrendatários” dos Autores, solicitaram ao Autor Bernardino consentimento para realizarem obras nas fracções respectivas;
15- Tendo os Réus solicitado autorização para demolir os muretes e a porta envidraçada que separavam a cozinha da marquise do 3º andar esquerdo;
16- Bem como para instalar o sistema de aquecimento já referido;
  17- O Autor autorizou a realização das obras atrás referidas pelos Réus, afirmando que os “arrendatários” podiam fazer as obras desde que não lhe pedissem dinheiro;
  18- O Autor Bernardino viu as obras atrás descritas depois de realizadas no andar dos autos;
  19- E veio a autorizar a realização das mesmas obras referidas atrás noutros andares após a sua conclusão pelos Réus;
20- Tendo solicitado aos Réus que fizessem chegar a porta envidraçada acima indicada à sua moradia em Queijas;
21- O que os Réus fizeram com a ajuda dum terceiro;

22-    O Autor Bernardino veio a realizar obras idênticas na cozinha de uma outra fracção do prédio que estava ocupada por uma sua filha;

23.  Os Autores recusaram fazer no prédio obras respeitantes a canalizações de águas e esgotos, instalação eléctrica, eliminação de infiltrações e humidades, e reparações no estuque e pintura de paredes e tectos;

24.   Tendo um morador de um prédio vizinho apresentado a questão do estado do prédio dos autos à Protecção Civil de Oeiras;

25.     Os Réus realizaram as obras acima indicadas na cozinha porque tal facilitava a abertura da porta do frigorífico;

26.      A instalação do sistema de aquecimento visou colmatar as infiltrações, frio e humidade da fracção habitada pelos Réus;

27.     Quando o Autor Bernardino se deslocou à fracção habitada pelos Réus, antes da instauração da presente causa, estes impediram a respectiva entrada.
***

O âmbito do recurso define-se pelas conclusões dos apelantes ( artigos 684º n.º 3 e 690º n.º 1 do Código de Processo Civil). Nos presentes recursos há que decidir se:
- deve ser alterada a matéria de facto;
- se os apelantes agiram com má fé.

Antes de mais, há que apreciar se, na sentença, os ora apelantes foram efectivamente condenados como litigantes de má fé. Na fundamentação da sentença, o juiz a quo aprecia a litigância dos apelantes e considera que a mesma revela manifesta má fé concluindo que os mesmos devem ser condenados na multa de € 250,00 como litigantes de má fé. No entanto, na parte decisória, nada se diz quanto à litigância de má fé e os apelantes não são expressamente condenados no pagamento da referida multa. Quid juris?

Analisando, dum ponto de vista estritamente formal, a sentença recorrida, verificamos que a mesma se encontra dividida em 4 partes: Relatório, Motivação de facto, Motivação de direito e Decisão. Formalmente, apenas o que consta da última parte, denominada expressamente como “decisão”, é que poderá ser considerado como fazendo parte da decisão do tribunal. Mas, se lermos a parte final da parte anterior (“motivação de direito”), verificamos que o julgador fundamenta as razões porque os Autores devem ser condenados como litigantes de má fé e conclui com a indicação da multa que lhes deve ser aplicada. Não restam dúvidas que o juiz a quo pretendeu condená-los como litigantes de má fé e, mais do que isso, fixou o valor da multa respectiva. O mesmo é dizer que, apesar da imperfeição formal de não ter transcrito na parte decisória a condenação em multa, não há dúvidas que era essa a intenção do julgador. Se outra razão não existisse para assim entender, teríamos a favor desta interpretação o facto de ambas as partes terem aceite esta condenação sem suscitar a questão de formalmente não constar na parte decisória. Entendemos, por isso, que se deve considerar que a sentença condena os Autores, como litigantes de má fé, na multa de € 250,00.

Os apelantes impugnam a matéria de facto dada como provada por, em seu entender, os depoimentos das testemunhas F.[…] e S.[…] apresentarem contradições entre si. Destas contradições, tiram a conclusão que ou não existiu reunião no átrio do prédio ou as referidas testemunhas não assistiram a essa reunião. De qualquer das formas, não podia ser dado como provado o que se passou nessa “reunião”.

As contradições apontadas pelos apelantes dizem respeito à ordem de chegada daquelas duas testemunhas à reunião (o F.[…] diz que a S.[…] já lá estava quando chegou e a S.[…] diz que chegou depois do F.[…]) e à presença de A.[…] (ambos referem que a mesma esteve presente na reunião e esta afirma não ter assistido à mesma). As contradições são evidentes mas isso não significa que invalidem por completo o depoimento das testemunhas. Temos de considerar que os depoimentos foram prestados mais de 12 anos após a citada “reunião” e que a mesma se processou de modo informal na entrada do prédio ao fim da tarde. Por outras palavras, o tempo decorrido e a hora a que se processou o encontro na entrada do prédio justificam perfeitamente que se detectem pequenas discrepâncias nos depoimentos das testemunhas. Atendendo à hora, em que normalmente o trânsito de habitantes do prédio pela entrada do mesmo é muito grande, é natural que as pessoas não fixem com exactidão quem chegou primeiro e possam fazer algumas confusões sobre quem esteve presente. O que levantaria suspeitas sobre os depoimentos das testemunhas seria precisamente a inexistência de contradições pois, ao fim de 12 anos, a concordância total entre os depoimentos faria suspeitar de “preparação dos depoimentos”.

Para mais, o importante quanto à reunião é saber se a mesma se verificou e qual foi o seu resultado. Ora, dos depoimentos prestados em audiência, resulta claramente que, no átrio de entrada do prédio, se deu um encontro entre o então senhorio e vários inquilinos e que aquele aceitou que estes fizessem obras nos andares desde que não lhe pedissem para as pagar. Não nos parece, por isso, que se deva alterar a matéria de facto provada.

Os apelantes defendem que não litigaram com má fé porque se limitaram a assumir a posição processual de seu pai, após o seu falecimento e acreditaram que este tinha dito a verdade. Este argumento dos apelantes é contraditório e não pode ser aceite. Em primeiro lugar quem é condenado como litigante de má fé é o “Autor” independentemente de saber se, na data da sentença, este autor se chama Bernardino […], Maria do […] ou Maria das […]. E, ao admitir que acreditaram que o pai tinha dito a verdade, estão a assumir aquilo que foi defendido pelo autor na petição inicial pelo que não podem vir agora dizer que só entraram no processo em fase posterior. O que resulta dos autos é que o autor (posição que se transmite do autor inicial para os seus sucessores habilitados) distorceu a verdade para obter um fim que sabia não ser lícito e essa actuação não pode deixar de ser considerada com o reveladora de má fé.
Em resumo:

O depoimento das testemunhas, prestado 12 anos depois da ocorrência dos factos e referente a uma reunião informal na entrada do prédio a hora de ponta, apresenta naturalmente algumas discrepâncias que o não podem invalidar.

Ao suceder ao autor inicial, os ora apelantes assumiram a sua posição e, consequentemente, “herdaram” a má fé processual com que este agiu ao propor a acção.
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Termos em que acordam negar provimento ao recurso, confirmando, na íntegra, a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.

     Lisboa, 12 de Julho de 2007

José Albino Caetano Duarte
António Pedro Ferreira de Almeida
José Fernando Salazar Casanova