Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2467/13.8TBCSC.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: HABILITAÇÃO
PARTE FALECIDA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Falecendo o autor da acção em que é Ré a sua mãe, a habilitação desta para com ela prosseguir a causa não é possível, já que passaria a ser simultaneamente Autora e Ré na mesma acção.
Mas nada impede a habilitação do pai, a título incidental, para substituir o falecido na posição activa do litígio.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


Nos presentes autos em que era Autor M... e Ré M..., foi proferido despacho a fls. 863 com seguinte teor:
“Do falecimento do Autor, e do requerimento de seu pai, H..., para em seu lugar prosseguir na acção:

A presente acção foi interposta por M... contra sua mãe M..., tendo como causa de pedir um contracto de doação de títulos de crédito feita por uma das avós do Autor a seu favor, e que a R. terá gerido e feito seus.

Assim, o pedido de condenação da Ré no pagamento de 325.850,32 euros, acrescido de juros moratórios vencidos desde 1990 tem por base um contracto de doação de que é donatário/beneficiário o aqui Autor.

Na pendencia da acção, a 16-06-2016, o Autor veio a falecer no estado de solteiro, maior, sem descendentes, sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade - cfr. certidão de fls. 812 e segts.

Em regra, o falecimento de uma das partes é causa de suspensão da instância, nos termos dos arts. 269.º, n.º 1 al. a) e 270.º do CPC, sendo porém causa de extinção da instância quando, nos termos do n.º 3 do referido art. 269.º, torne impossível ou inútil a continuação da lide.

No caso concreto, e conforme a certidão supra mencionada, o Autor deixou como únicos herdeiros a aqui Ré M..., na qualidade de sua mãe, e o seu pai H..., requerente do incidente de habilitação de herdeiros do A.

Ora, como parece evidente, a Ré enquanto herdeira do Autor, passou a ser titular, juntamente com o pai daquele, dos direitos que o A. falecido se arroga na presente acção.

Por outro lado, sendo dois os herdeiros do A. falecido, concretamente os seus pais, a sua representação em juízo exige a habilitação de todos os seus herdeiros (e não apenas do pai) para, em seu nome, prosseguirem a acção. O que no caso concreto não é possível, uma vez que a herdeira já figura como Ré, não podendo assumir ambas as vestes em simultâneo na mesma acção.
  
Do exposto resulta que, passando a Ré a ser titular dos direitos que o Autor falecido se arroga na acção, e devendo igualmente ser habilitada na qualidade de Autora, quando já figura como Ré, ocorre uma manifesta impossibilidade superveniente da lide- art. 277º, al. e) do NCPC.

Assim, conforme acórdão do STJ de 15-03-2012, consultado em www.dgsi.pt, " A alínea e) do artigo 287º do Código de Processo Civil prende-se com o princípio da estabilidade da instância que se inicia com a formulação de um pedido consistente numa pretensão material com solicitação da sua tutela judicial (pretensão processual) aquele decorrente de um facto jurídico causal (essencial ou instrumental) da qual procede (causa de pedir). A lide torna-se impossível quando sobrevêm circunstâncias que inviabilizam o pedido, não em termos de procedência/mérito mas por razões conectadas com o mesmo já ter sido atingido por outro meio, ou (acrescentamos nós) não podendo sê-lo na causa pendente. Torna-se inútil se ocorre um facto, ou uma situação, posterior à sua instauração que implique a desnecessidade se sobre ela recair pronúncia judicial por falta de efeito."
Pelo exposto, e ao abrigo do art. 277º, al. e) do NCPC, declara-se extinta a instância, por impossibilidade superveniente da lide.

Inconformado recorre o habilitando, concluindo que:
A)O presente Recurso vem interposto da sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, que decidiu declarar extinta a instância, por impossibilidade superveniente da lide, ao abrigo do disposto no artigo 277.°, al. e) do NCPC;
B)Assim, entendeu o Tribunal que tendo o Autor falecido e deixado como únicos herdeiros a mãe, Ré na presente acção e o pai, requerente do incidente de habilitação de herdeiros do Autor e, sendo dois os herdeiros do Autor, exige-se a habilitação de todos os herdeiros;
C)Porém, e passando a Ré a ser titular dos direitos do Autor falecido na presente acção e, sendo já Ré, ocorre uma manifesta impossibilidade superveniente da lide, razão pela qual declarou o Tribunal a extinção da instância;
D)Ora, não obstante o respeito que lhe merece tal decisão, a verdade é que com a mesma não podemos concordar, porquanto, se é verdade que a mãe do Autor não pode ser simultaneamente Ré e Autora na acção, também é verdade que a conclusão que dai retirou o Tribunal não foi a correta;
E)Porquanto, a Lei não exige que todos os herdeiros sejam habilitados para prosseguirem a acção mas apenas que o sejam aqueles que o possam ser;
F)Isto porque, a habilitação incidental respeita apenas à transmissão da posição jurídica litigiosa, a qual não tem que coincidir com a transmissão universal dos direitos do falecido e, esta é a posição assumida pelos nossos Tribunais Superiores, veja-se, nomeadamente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo nº 90/08.8TBSCG-A.L 1-1, de 02-11-2010.
G)Assim, se o Tribunal andou bem ao considerar que a Ré não pode ser habilitada para prosseguir a acção, mal andou ao considerar que o pai não poderia, sozinho, prosseguir com a mesma;
H)Porquanto, a decisão correta seria que o pai pode e deve ser habilitado para ocupar a posição do Autor;
I)Razão pela qual, não existindo qualquer facto que determine a impossibilidade superveniente da lide, errou o Tribunal a quo ao declarar a extinção da instância.
J)Porquanto, o que deveria ter decidido era, primeiro a suspensão da instância e, posteriormente, a habilitação do ora recorrente para prosseguir a acção na posição do Autor falecido.
K)Ao não decidir assim, errou o Tribunal na aplicação do direito, por violação do disposto nos artigos 269.°, nº 1, al. a), 270.°, 353.°, 260.° e 262.°, a) do C. P. Civil.
L)Deve ser concedido provimento ao RECURSO, devendo a douta Sentença ser substituída por outra que determine a habilitação do ora recorrente para prosseguir a acção na posição do Autor falecido e ordenando-se o prosseguimento dos ulteriores termos do processo.

A Ré contra-alegou sustentando a bondade da decisão recorrida.

Cumpre apreciar.

Está em causa apurar se é admissível a habilitação de herdeiros para ocuparem a posição do falecido autor, quando um de tais herdeiros é já Réu na mesma acção.

O Mº juiz a quo entendeu que não, já que a mesma pessoa não poderá ocupar simultaneamente as posições de Autor e Ré na mesma acção.
Este ponto não se discute, dada a sua evidência. Contudo, a questão não se esgota aqui.
Como se refere no acórdão desta Relação de Lisboa de 02/11/2010, mencionado na apelação, “a habilitação-incidental tem como desiderato promover a substituição da parte primitiva pelo sucessor na situação jurídica litigiosa, ocorrendo uma modificação subjectiva da instância (art. 270°, a), do C.P.C.), mediante a legitimação sucessiva do sucessor, enquanto tal e para a causa, ficando o seu efeito limitado a esta última, pois que o sucessor é habilitado não erga omnes, mas perante o litigante com o qual pleiteava o falecido.
“Importante, porém, é não olvidar nunca que a substituição ( modificação subjectiva da instância) de uma das partes opera-se no âmbito de uma relação jurídica processual complexa, que é independente da relação material e que se estabelece sempre entre determinados sujeitos [ as partes, a saber, autor/s e réu/s) , tendo um objecto (o pedido) e uma causa de pedir (...).
Postas estas breves e sintéticas considerações, manifestamente, não é de conceber que, precisamente porque o requerido do incidente de habilitação "B" ,ocupa o lugar de réu na acção principal, possa agora e através da sua habilitação e colocação no lugar da autora/falecida da acção principal, passar a ocupar na referida relação jurídica processual, concomitantemente e também, o lugar de autor.
Ou seja, no âmbito de uma relação iurídica processual, não é concebível que uma parte ocupe, em simultâneo, dois dos três elementos subjectivos ( cada uma das partes e o Estado, sendo este representado pelo Juiz, e no exercício duma função de soberania, a função jurisdicional) que uma tal relação jurídica comporta e integra ( a de autor e de réu ).
Que assim é decidiu já o STJ no Ac, de 2/6/1964, in BMJ, 138, pág. 298, ao considerar que" falecida a autora de acção intentada contra 2 dos seus filhos, não podem ser habilitados para, em seu lugar ocuparem a posição de autores, os seus filhos que nela figuram como réus, mas apenas os restantes ".
Na mesma e douta decisão, a coadjuvar a apontada conclusão, considerou-se, e bem, que a habilitação incidental respeita tão só à transmissão da posição jurídica litigiosa, a qual não tem que coincidir com a transmissão universal dos direitos do falecido.”

Nada obsta a que o habilitando (pai do falecido autor) que não ocupava qualquer posição na causa possa vir a ser habilitado, sucedendo na posição do falecido autor, para com ele prosseguir o processo os seus termos. A Ré, mãe do Autor, é que não poderá ser habilitada já que tal a colocaria simultaneamente como Autora e Ré do mesmo processo.

Não se justifica pois que se declare, como no despacho recorrido, a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide, pelo menos relativamente ao ora recorrente H...

Por outro lado, nada obsta a que um dos sucessores seja habilitado para ocupar a posição processual da parte falecida, desacompanhado do outro sucessor. Isto porque a legitimidade do sucessor se afere nos termos da relação material controvertida como a configurou o falecido autor.

Refere a este propósito Abílio Neto, “Código de Processo Civil Anotado” pág. 507, que “esta forma de habilitação (que se distingue da habilitação principal e da habilitação legitimidade) visa colocar o sucessor no lugar que o falecido ou o transmitente ocupavam em processo pendente. Daí que a sentença de habilitação não disponha de alcance geral, limitando-se os seus efeitos ao processo em que se originou o incidente: o sucessor habilitou-se ou foi habilitado, não erga omnes, mas apenas perante o litigante com o qual pleiteava o falecido ou o cedente”.

Também Lebre de Freitas segue esta mesma perspectiva, quando refere no seu “Código de Processo Civil Anotado” 1º, pág. 635:
“O ac. do STJ de 2.6.64, BMJ, 138, p. 298, julgou que, falecida a autora da acção intentada contra dois dos seus filhos, não podem ser habilitados, para em seu lugar, ocuparem a posição de autores, os filhos que nela figuram como réus, mas apenas os restantes.
“Baseou-se a decisão em que habilitação incidental respeita tão-só à transmissão da posição jurídica  litigiosa, a qual não tem de coincidir com a transmissão universal dos direitos do falecido, a que respeita a acção autónoma de habilitação”.

No caso estamos perante a habilitação incidental, por falecimento de uma das partes no decurso da causa, pelo que nada obsta à mesma.
Contudo, a recorrida adianta um último argumento (que, note-se, nunca foi mencionado na decisão recorrida). Alega que “dado o carácter pessoal da doação, não é possível a qualquer parte substituir-se ao beneficiário da doação em caso de falecimento do mesmo, porquanto a própria natureza da doação pressupõe um carácter intransmissível dos direitos em causa”.

Cita como exemplo, o art. 949º nº 1 do Código Civil. Este preceito contudo, nada tem a ver com a transmissão para os sucessores do falecido donatário, mas com a determinação deste ou do objecto da doação efectuada por mandato.

No caso dos autos, o falecido autor arrogava-se donatário de uma avó, dirigindo a acção contra a sua mãe, imputando-lhe ter-se locupletado com os bens doados.

Discordamos da tese da recorrida de que os bens doados têm um carácter intransmissível.

Uma vez que integrem o património do donatário, os bens doados são transmissíveis por morte aos seus herdeiros, como decorre de várias disposições legais, como por exemplo o art. 965º do Código Civil no tocante às cláusulas modais inseridas no contrato de doação.

Conclui-se assim que:
Falecendo o autor da acção em que é Ré a sua mãe, a habilitação desta para com ela prosseguir a causa não é possível, já que passaria a ser simultaneamente Autora e Ré na mesma acção.
Mas nada impede a habilitação do pai, a título incidental, para substituir o falecido na posição activa do litígio.

Termos em que se julga procedente a apelação, revogando-se o despacho recorrido na parte em que declarou extinta a instância, por impossibilidade superveniente da lide.
Custas pela recorrida.



LISBOA, 21/9/2017


António Valente
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Decisão Texto Integral: