Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6370/2006-2
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: INTERVENÇÃO PROVOCADA
LITISCONSÓRCIO
SUBSTITUIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE
Sumário: I - A parte que requeira a intervenção principal, consoante o nº 1 do art. 325 do CPC, pretenderá chamar à causa determinada pessoa que nos termos do art. 320 do mesmo Código pudesse intervir espontaneamente; pode, pois, o R. provocar o chamamento de uma pessoa para intervir em litisconsórcio voluntário ou necessário ao seu lado ou ao lado do A., bem como em coligação ao lado do A..
II – O art. 329 do mesmo Código transmite-nos mera especialidade de procedimento em relação ao regime geral do incidente cuja motivação envolvente deriva do facto de se tratar de intervenção passiva suscitada pelo réu.
III – Se os RR. consideram inexistir fundamento para serem demandados, daí pugnando pela sua absolvição do pedido, defendendo caber a responsabilidade pelos prejuízos sofridos pelo A. a outrem cuja intervenção principal como RR. pretendem, não perspectivam nenhuma situação de litisconsórcio – perspectivam, antes, uma situação equivalente a uma “substituição passiva”, já que os eventuais devedores não seriam eles, RR., mas o terceiro que por eles é chamado, não sendo admissível a intervenção principal provocada.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I – A. A. intentou acção declarativa com processo ordinário contra «B.a.», Bb., «Bbb.», Bbbb. e Bbbbb.
Na contestação apresentada requereram os RR. que fosse chamado a intervir nos autos como R., ao abrigo do disposto no art. 325 do CPC, H….
Tendo o tribunal de 1ª instância indeferido tal requerimento, desse despacho agravaram os RR./requerentes, concluindo pela seguinte forma a respectiva alegação de recurso:
1- Os recorrentes solicitaram a Intervenção de H. alegando que propôs ao recorrente Bbbb. a exposição ao público de viaturas usadas “Mercedes”, atenta a localização privilegiada do stand da Ré B. – zona da Caparica e zona balnear.
2- Ficou acordado que o H. pagaria ao rec. Bbbb. uma comissão na ordem dos 750 a 1000 Euros, por cada veículo vendido.
3- O Horácio transportou e colocou no stand B. diversos veículos para exposição.
4- O R. Bbbb. e a referida Sociedade eram comissionistas na venda dos veículos.
5- O veículo id. era do H., que detinha a posse e propriedade do mesmo.
6- A B. . era mera detentora precária do veículo id nos autos.
7- Em 2002 a P. J do Porto – Inspector J. e outros – iniciou investigação sobre a actividade do H..
8- O Ministério Público no Douto Tribunal Castro Daire – Inquérito 1193/02. 8 JA PRT – SITVV – Instrução 65/02.7 TACDR ordenou a detenção do H. que foi preso durante meses.
9- Apurou-se nesse Inquérito que no dia 10/02/02 em Alicante – Espanha foi subtraído a I. o Mercedes A……
10- O H., nas instalações da sua oficina, extraiu do veículo a placa de identificação A2552-EM e colocou a placa 58-52-LA.
11- O H. pediu chaves ao concessionário da Mercedes na Guarda.
12- O H.o procedeu ao registo a seu favor do direito de propriedade do veículo.
13- Logo de seguida decidiu proceder à venda.
14- Colocou o veículo adulterado no stand B. , onde foi vendido ao Autor...
15- O preço de 27.000 € foi entregue pelo Bbbb. ao H. arts. 348 a 356 da Acusação.
16- O H. recebeu do rec. Bbbb. o valor do negócio, pelo que tem todo o interesse que aquele seja chamado aos autos.
17- Se algum hipotético prejuízo resultar da presente acção para os recorrentes, estes têm o direito de o fazer recair sobre o chamado foi este que recebeu os 27.000 EUROS do Autor...
Daí a necessidade e oportunidade da sua intervenção nos autos.
Não foram juntas aos autos contra-alegações.
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II - Definindo as conclusões das alegações o âmbito do recurso – arts. 684, nº 3, e 690, nº 1, do CPC – a questão que cumpre apreciar é a da admissibilidade, no caso dos autos, da intervenção principal provocada de H., chamado pelos aqui agravantes, RR. no processo, para intervir no mesmo ao lado destes.
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III - Com interesse para a decisão há que salientar a seguinte factualidade ocorrida no âmbito do processo:
1 – A. intentou acção declarativa com processo ordinário contra «B. .», Bb. , «Bbb, Lda.», Bbbb. e Bbbbb. pedindo que:
A) Se declare nulo o contrato de compra e venda do veículo automóvel de matrícula 58-52-LA e, em consequência sejam os Réus solidariamente condenados:
I- A restituir ao Autor o valor pago por este aquando da celebração do contrato de compra e venda do veículo automóvel de matrícula 58-52-LA, nos termos do previsto no artigo 898.° do CC, no montante de Euros 26.935,00, à qual deverá acrescer uma quantia devida a título de juros moratórios contados desde 3 de Outubro de 2003 até efectivo e integral pagamento;
II - A pagarem ao Autor uma indemnização no valor de Euros 20.325,00 (vinte mil, trezentos e vinte cinco euros) a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida dos respectivos juros legais moratórios, calculados à taxa legal e contados desde a citação até efectivo e integral pagamento;
III - A pagarem ao Autor a indemnização que se vier liquidar em ampliação do pedido ou em execução de sentença nos precisos termos descritos nos artigos 68 a 78, acrescida dos respectivos juros legais moratórios, calculados à taxa legal e contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.
2 – Alegou o A., resumidamente, que as 1ª e 3ª RR., agindo com dolo, adquiriram e promoveram a alienação de um automóvel de marca «Mercedes», modelo C 220 CDI, adulterado nos seus elementos de identificação, veículo que o A. veio a comprar à 1ª R., mas que era propriedade de um terceiro, vindo a ser apreendido pela Polícia Judiciária, tendo o A. sofrido danos; que os 2º e 4ºs RR., gerentes, respectivamente, da 1ª e 3ª RR. são, igualmente, responsáveis para com o A. pelos danos a este causados.
3 – Na contestação apresentada os RR. afirmaram que o R. Bbbb. e a R. «B.» eram meros comissionistas, expondo ao público viaturas usadas da marca «Mercedes» que H. pretendia vender, pertencendo o veículo dos autos, à semelhança de outros, ao referido H. a quem foi entregue o preço, recebendo os RR. a correspondente comissão pela venda e desconhecendo a proveniência do veículo.
4 – Nesta mesma peça processual, depois de defenderem que se impõe a absolvição do pedido relativamente a todos os RR., estes, dizendo que o faziam «à cautela», requereram a intervenção provocada do mencionado H., nos termos «do art. 325 e ss C.P.C.», alegando que foi este quem alterou os elementos da viatura e quem a depositou no stand da R. para exposição ao público, sendo os RR. alheios a tais factos e devendo ser aquele Horácio responsabilizado perante o A. pela eventual procedência da acção.
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IV – 1 - A intervenção principal visa permitir a participação de um terceiro que é titular (activo ou passivo) de uma situação subjectiva própria, mas paralela à alegada pelo A. ou pelo R. – art. 321 do CPC. O interveniente tanto pode fazer valer um direito – intervenção activa – como pode defender-se perante a invocação de um direito alheio – intervenção passiva.
A intervenção principal provocada é admissível nas seguintes hipóteses:
- quando qualquer das partes pretenda fazer intervir na causa um terceiro como seu associado ou da parte contrária (art. 325, nº 1);
- quando o autor queira provocar a intervenção de um réu subsidiário contra quem pretenda dirigir o pedido (art. 325, nº 2).
Não sendo, manifestamente, a situação dos autos, a segunda apresentada verifiquemos se ela se integra na primeiramente referida.
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IV – 2 - Nos termos do nº 1 do art. 325 do CPC qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com direito a intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária; de acordo com o nº 3 do mesmo artigo o autor do chamamento alega a causa deste e justifica o interesse que através dele pretende acautelar.
Começa, pois, este incidente com um requerimento apresentado pela parte que pretenda chamar à causa determinada pessoa, devendo naquele requerimento alegar e justificar a legitimidade do chamado e que ele está, face à causa principal, em alguma das situações previstas no art. 320 do CPC. «Impõe-se ao chamante o ónus de indicar a causa do chamamento e alegar o interesse que, através dele, pretende acautelar, como forma de clarificar liminarmente as situações a que o incidente se reporta e permitir ajuizar com segurança da legitimidade e do interesse em agir de quem suscita a intervenção e de quem é chamado a intervir na causa» - Lopes do Rego, «Comentários ao Código de Processo Civil», pag. 248.
A parte que requeira a intervenção principal, consoante o nº 1 do art. 325 do CPC, pretenderá chamar à causa principal determinada pessoa que nos termos do art. 320 do mesmo Código pudesse intervir espontaneamente.
O art. 320 prevê a intervenção como parte principal daquele que, em relação ao objecto da causa, tiver um interesse igual ao do A. ou do R., nos termos dos arts. 27 e 28 (respectivamente litisconsórcio voluntário e necessário), ou daquele que nos termos do art. 30 pudesse coligar-se com o A..
Pode, pois, o R. provocar o chamamento de uma pessoa para intervir em litisconsórcio voluntário ou necessário ao seu lado ou ao lado do A., bem como em coligação ao lado do A..
De qualquer modo, a «intervenção na lide de alguma pessoa como associado do réu pressupõe um interesse litisconsorcial no âmbito da relação controvertida, cuja medida da sua viabilidade é limitada pela latitude do accionamento operado pelo autor, não podendo intervir quem lhe seja alheio» - Bbb., «Os Incidentes da Instância», pag. 108.
Com a reforma do CPC operada por força do dl 329-A/95, de 12-12, unificou-se o tratamento processual das situações susceptíveis de integrarem quer o chamamento à demanda – que se encontravam tipificadas no art. 330 do CPC – quer a intervenção principal provocada passiva a requerimento do réu, englobando todos os casos em que certa obrigação comporte pluralidade de devedores, ou em que existam garantes da obrigação a que a causa se reporta, tendo o réu interesse atendível em os chamar à demanda, quer para propiciar a dedução de defesa conjunta, quer para acautelar o eventual direito de regresso ou sub-rogação que lhe possa assistir. Assim, reconduzem-se a uma figura processual unitária todas as situações em que ao réu é lícito chamar a intervir na causa, a título principal, outros devedores da obrigação por que é demandado, por se ter entendido não existirem diferenças estruturais entre aquelas situações (ver Lopes do Rego, obra citada, pags. 244 e 251).
Na sequência da unificação de tratamento acima aludida, o actual CPC, no seu art. 329, sob o título de «Especialidades da intervenção passiva suscitada pelo réu», dispõe que o chamamento de condevedores ou do principal devedor, suscitado pelo réu que nisso mostre interesse atendível é deduzido obrigatoriamente na contestação (ou no prazo desta, se o réu não pretender contestar) e que tratando-se de obrigação solidária e sendo a prestação exigida na totalidade a um dos condevedores, pode o chamamento ter, ainda, como fim a condenação na satisfação do direito de regresso que lhe possa vir a assistir».
Sublinhe-se que este art. 329 veicula mera especialidade de procedimento em relação ao regime geral do incidente cuja motivação envolvente deriva do facto de se tratar de intervenção passiva suscitada pelo réu.
«Trata-se, em suma, de um meio processual susceptível de ser implementado pelo réu com vista a fazer intervir, na posição de réus, outros sujeitos passivos da relação jurídica material controvertida que à acção serve de causa de pedir.
Ao invés do que ocorre na intervenção acessória provocada, em que se chama ao processo, numa posição passiva, o titular de uma relação jurídica conexa com a que se discute na acção, com a intervenção passiva em análise visa-se colocar no processo, como réu, ao lado do réu primitivo, um dos sujeitos passivos da relação jurídica material controvertida que à acção serve de causa de pedir» - Bbb., obra citada, pags.122- 123.
Refira-se que quando o CPC, no seu art. 329, alude ao chamamento de condevedores ou do principal devedor, suscitado pelo R. que nisso mostre interesse atendível, aquele termo condevedor abrange o cônjuge responsável por dívida comum, o devedor solidário, o devedor de obrigação indivisível, o devedor conjunto. Do chamamento do principal devedor trata-se quando é demandado como R., e tem essa iniciativa, o fiador que goza do benefício da excussão prévia, o sócio da sociedade civil ou da sociedade comercial em nome colectivo, o sócio comanditado da sociedade comercial em comandita. Do chamamento do principal devedor se trata, ainda, quando é demandado como R. e tem idêntica iniciativa, o fiador que seja principal pagador, o avalista ou o sócio da sociedade irregular (ver Lebre de Freitas, «Código de Processo Civil, Anotado», vol. I, pags. 579-580).
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IV – 3 - Reconduzindo-nos ao caso dos autos, atendendo ao que acabámos de expor, conclui-se que a situação alegada pelos RR. não se situa dentro dos parâmetros definidos na lei para a intervenção principal provocada.
Não se vislumbra, atentos os fundamentos da acção e as razões aduzidas pelos requerentes para justificar o chamamento no requerimento em que o formularam que o H., em relação ao objecto da causa, tenha um interesse próprio igual ao dos RR., nos termos dos arts. 27 e 28 do CPC – por outras palavras que, atenta a situação desenhada, o chamado intervenha em litisconsórcio voluntário ou necessário ao lado dos RR..
O A. refere-se a uma venda de coisa alheia pela 1ª R. (procedendo com dolo) ao A., com intervenção da 3ª R. e responsabilização, na qualidade de gerentes, dos 2º e 4ºs RR., resultando a sua pretensão daquela compra e venda nos concretos termos por si desenhados.
Os RR., salientando a sua posição de meros comissionistas, referem ser alheios a anomalias e viciação da viatura, «devendo ser o chamado Horácio responsabilizado perante o A. pela eventual procedência da acção». Consideram inexistir fundamento para serem demandados - daí pugnarem pela sua absolvição do pedido – cabendo a responsabilidade pelos prejuízos sofridos pelo A. ao mencionado H..
Os RR. não perspectivam nenhuma situação de litisconsórcio – perspectivam uma situação equivalente a uma “substituição passiva”, já que os eventuais devedores não seriam eles, RR., mas o terceiro que é chamado.
Não se afigura que no caso se perfile uma pluralidade de partes com unicidade da relação material controvertida – os RR. e o chamado não ocupam, no âmbito da mesma relação material controvertida, uma posição passiva perante o A.. A vingar a versão apresentada pelos RR. os mesmos não estariam obrigados à realização de qualquer prestação para com o A..
Não estamos, perante uma situação de existência de «condevedores» (os RR. e o chamado não são, no âmbito da mesma relação material controvertida, devedores do A.) ou em que o chamado seja (também naquele âmbito) o principal devedor; não se trata de obrigação solidária em que a prestação tenha sido exigida na totalidade a um dos «condevedores», pelo que não faz sentido a referência a direito de regresso por parte da agravante.
Conclui-se, deste modo, que a intervenção principal provocada requerida pelos agravantes não é admissível, improcedendo as conclusões daqueles.
Não há, pois, lugar ao requerido chamamento.
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V - Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao agravo, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela agravante.
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Lisboa, 19 de Outubro de 2006

Maria José Mouro
Neto Neves
Isabel Canadas