Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2859/2007-6
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: HERANÇA JACENTE
DÍVIDA
HERDEIRO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/19/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: 1 - Pelos encargos da herança é directamente responsável, nos termos dos artigos 2068º e 2069º do Código Civil, a massa patrimonial que constitui a herança, em cujo âmbito a lei inclui, para além dos bens deixados, os bens sub – rogados no lugar de bens da herança por meio de troca directa, o preço dos bens da herança alienados, os bens adquiridos com dinheiro ou valores da herança e os frutos dos bens hereditários percebidos até à partilha.
2 - Como, só em caso de indeterminação dos respectivos actuais titulares, uma qualquer massa patrimonial proveniente da esfera de pessoa falecida pode ser enquadrada no artigo 6º do Código de Processo Civil e só nesse caso disporá de personalidade judiciária, embora seja desprovida de personalidade jurídica, significa isso que, fora dos casos especialmente previstos na lei, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros. É um caso de litisconsórcio necessário.
3 – Porque, à data da propositura da acção, já se encontravam determinados os herdeiros, ainda que a herança não estivesse partilhada, não poderiam os titulares dos direitos correspondentes aos encargos da herança intentar a acção contra a herança mas sim contra os herdeiros.
6 – Exigindo a lei a intervenção de todos os interessados, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade (artigo 28º, n.º 1 CPC).
(F.G.)
Decisão Texto Integral: Agravo 2859-2007
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1.
Os Ases [ ] intentaram a presente acção declarativa de condenação com processo sumária contra [M D], que identificam como cabeça de casal de [J M], afirmando dever-lhe a Ré, à data da petição inicial, a quantia de € 6.674,16, pelo facto de, no exercício da sua actividade comercial, haver fornecido ao referido [J. M. ] diversos materiais, que este não liquidou na sua totalidade.

Não formula o correspondente pedido de condenação da Ré a pagar-lhe determinada quantia, mas tão só requer, após escrever que "deve, portanto a Ré à Autora, nesta data, a quantia total de € 6.674.16 (€ 6.087,74 + € 586,42)", que "(...) se digne mandar citar a Ré. para contestar, a presente acção, no prazo legal, sob pena de não o fazendo ser condenada no pedido ... ".

A Ré contestou, invocando a sua ilegitimidade e impugnando os factos articulados pela Autora.

Notificada, nos termos do artigo 508°-A do Código de Processo Civil, para em dez dias providenciar pelo suprimento da excepção dilatória de preterição de litisconsórcio necessário, requerendo a intervenção principal dos demais herdeiros, a Autora veio dizer ter intentado a acção contra a herança jacente, não deduzindo o respectivo incidente para o qual fora convidada.

Verifica-se, assim, que (i) a petição inicial não tem pedido e (ii) que não foi satisfeito o convite ao aperfeiçoamento.

Apreciando as consequências destes factos, considerou o despacho recorrido, que a total inexistência de pedido determinava a ineptidão da petição inicial, nos termos do artigo 193° n° 2 alínea a) do CPC, mas, tendo a Ré compreendido o pedido que deveria ter sido formulado, não podia julgar-se esta excepção procedente (artigo 193º, n.º 3 CPC).

Quanto à excepção de ilegitimidade passiva, a solução era diferente. Com efeito, ao invés do que afirmou no seu requerimento, a Autora, em lado algum da petição inicial, se referiu à herança, como sendo a devedora, nem sequer referindo que [J. M. ] falecera, mas tão só, no intróito, que a Ré era cabeça de casal (não da herança, mas de [J. M. ], que não afirma, em lado algum, ter falecido).

Acrescenta ainda o despacho recorrido que, em parte alguma da petição inicial, refere a Autora que a herança que este terá deixado, (presumindo-se que faleceu e que a cabeça de casal o é da sua herança), se encontra jacente, pelo que, com os fundamentos aduzidos no despacho, veio a julgar a Ré, por preterição de litisconsórcio necessário, parte ilegítima e, em consequência, absolveu a mesma da instância.

Inconformada, recorreu a Autora, formulando as seguintes conclusões:
1ª – Não sendo recorrível o despacho proferido ao abrigo do disposto no artigo 508º do CPC e, atendendo aos princípios da aquisição processual e da economia processual, pode e deve a petição inicial ser aperfeiçoada no sentido que então é material e juridicamente possível, e não apenas no único sentido apontado no despacho de 11/07/2006.
2ª – As deficiências da petição inicial sobre a identificação do réu efectivo, foram supridas com o requerimento de 13/07/2006, no sentido de a acção ter sido instaurada contra a herança jacente de [J. M. ], representada pelo cônjuge sobrevivo, por ser desconhecida a aceitação da mesma.
3ª – Com o requerimento de 13/07/2006, foi dado cumprimento ao despacho de 11/07/2006, nos termos permitidos pelo disposto no artigo 508º, n.º 1, alínea b), 2 e 3, do CPC, para que a acção prosseguisse, ao abrigo do disposto no artigo 6º, n.º 1, alínea a) do CPC.
4ª – Com os requerimentos de 1/09/2006 e 21/06/2006, ficaram os autos devidamente informados de quem são os sucessores de [J. M. ].
5ª – Com os ditos requerimentos, ficou a acção em condições de poder prosseguir contra todos os herdeiros de [J. M. ), em virtude de ter cessado a situação inicial de herança jacente.
6ª – O despacho impugnado viola as normas do artigo 660º, n.º 2 do CPC e enferma das nulidades do artigo 668º, n.º 1, alíneas c) e d) do mesmo Código.
7ª – A desconsideração dos elementos que constam dos autos sobre a identificação dos herdeiros e a não promoção das diligências processuais dela decorrentes, violam as normas dos artigos 24º, 28º, 325º, 326º e 508º do CPC, podendo e devendo tais vícios ser supridos mediante reforma do despacho impugnado pelo Tribunal a quo, ao abrigo do disposto no artigo 669º, n. os 2 e 3 do mesmo Código.

Não houve contra – alegações.

O Exc. mo Juiz sustentou o despacho recorrido.
2.
Na 1ª instância, além do que consta do relatório, interessam os seguintes factos:
1º - Tendo sido convidada a Autora, nos termos do artigo 508º, n.º 1, alínea a) do CPC, a providenciar, em dez dias, pelo suprimento da excepção dilatória de preterição de consórcio necessário, requerendo a intervenção principal passiva dos demais herdeiros, veio dizer o seguinte:
“A acção foi intentada contra a herança jacente de [J. M. ], falecido em 10 de Fevereiro de 2004, tendo a ré sido identificada na petição inicial como administradora da herança”.
2º - Foi junta aos autos certidão da escritura de habilitação de herdeiros de [J. M. ], outorgada no dia 23 de Setembro de 2004.
3.
O recurso foi interposto da decisão que julgou existir excepção de ilegitimidade passiva da Ré, por preterição de litisconsórcio necessário, apesar de convite para que a excepção fosse sanada.

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da recorrente, a questão que importa decidir consiste em saber contra quem foi proposta afinal a acção, ou seja, quem é a Ré, na acção, e se esta é, ou não, parte ilegítima.

A questão suscita-se porque a autora, nas alegações, ora diz que a acção foi intentada contra a herança, ora diz que a acção estava em condições de prosseguir contra todos os herdeiros, apesar de ter sido intentada contra a [M. D. ], esposa do de cujus.

Considera, também, que o despacho recorrido enferma das nulidades previstas nas alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 668º CPC.
4.
Quanto às nulidades:
É nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão (alínea c) do n.º 1 do artigo 668º CPC.
Ora, lendo o despacho recorrido, não se verifica, em nosso entender, qualquer oposição no processo lógico, que das premissas de facto e de direito que o julgador tem por apuradas, este extrai a decisão a proferir.
Não existe, pois, a alegada nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 668º CPC.

É também nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (alínea d) do n.º 1 do artigo 668º CPC.
A nulidade prevista nesta alínea está directamente relacionada com o comando que se contém no n.º 2 do artigo 660º CPC.
In casu, não se vislumbra quais as questões suscitadas pela autora, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, que não tenham sido apreciadas.
Não houve assim omissão de pronúncia.
*
Quanto à segunda questão:
Pelos encargos da herança é directamente responsável, nos termos dos artigos 2068º e 2069º do Código Civil, a massa patrimonial que constitui a herança, em cujo âmbito a lei inclui, para além dos bens deixados, os bens sub – rogados no lugar de bens da herança por meio de troca directa, o preço dos bens da herança alienados, os bens adquiridos com dinheiro ou valores da herança e os frutos dos bens hereditários percebidos até à partilha.

“Esta tónica objectivista na determinação da responsabilidade pelos encargos da herança é um reflexo da autonomia patrimonial da herança e do seu carácter de universalidade de direito Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Volume II, 2ª edição, 109.”. O que é sobretudo patente no caso da herança indivisa, em que se está perante um património directamente responsável (artigo 2097º CC) e em que os herdeiros apenas têm de intervir como co - titulares desse património (artigo 2091º CC).

A herança indivisa não é uma pessoa colectiva, isto é, dotada de personalidade jurídica. Assim, e porque nos termos do artigo 6º do Código de Processo Civil só tem personalidade judiciária «a herança cujo titular não esteja determinado» (verbi gratia, a herança jacente), a legitimidade passiva em matéria de responsabilidade por encargos da herança indivisa cabe aos herdeiros como co – titulares de tal património Vaz Serra, RLJ 105º, 208..

Determina, por isso, o n.º 1 do artigo 2091º, que, “fora dos casos previstos nos artigos anteriores, e sem prejuízo do artigo 2078º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros”.

Assim, fora dos casos especialmente previstos na lei, ou seja fora dos casos previstos no artigo 2087º (administração dos bens pelo cabeça de casal), 2088º (exigência de entrega dos bens pelo cabeça de casal e uso de acções possessórias pelo mesmo e pelos herdeiros), 2089º (cobrança de dívidas pelo cabeça de casal), 2090º (venda de bens e satisfação de encargos pelo cabeça de casal) e do imposto pelo artigo 2078º do Código Civil (reivindicação dos bens em poder de terceiro), os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros. É um caso de litisconsórcio necessário. Assim só os herdeiros podem praticar em geral: a disposição dos bens, o pagamento do passivo hereditário, a defesa judicial dos direitos contestados, nomeadamente a cobrança das dívidas activas.

Perante este quadro legal de poderes e faculdades de que os herdeiros ut singuli dispõem em relação aos bens da herança, eles não podem, cada um ou alguns serem accionados com vista ao pagamento de um crédito sobre a herança.

“A limitação da legitimidade substantiva constante deste artigo é motivada pela ideia de curta duração da função de administração do cabeça de casal e de ser lógico e adequado que a cobrança dos créditos seja realizada contra os próprios sucessores do de cujus”.

Reportando-nos ao caso sub judice, verifica-se que, ao invés do que afirmou nas alegações, a Autora, em lado algum da petição inicial, referiu que a herança era a devedora, pois nem sequer referiu que o [J. M. ] falecera, indicando, tão só, no intróito, que a Ré [M. D. ] era cabeça de casal de [J. M. ].

Também, em lado algum da petição inicial, referiu a Autora que a herança que o [J. M. ] terá deixado se encontrava jacente, ou seja, que a herança estava já aberta, mas não fora ainda aceita por nenhum sucessível (artigo 2046º Código Civil).

Aliás, ao contrário do alegado, não se mostra que a acção tenha sido intentada contra a herança jacente, nem o podia ter sido.

É que, só em caso de indeterminação dos respectivos actuais titulares, uma qualquer massa patrimonial proveniente da esfera de pessoa falecida pode ser enquadrada no artigo 6º do Código de Processo Civil e só nesse caso disporá de personalidade judiciária, embora seja desprovida de personalidade jurídica.

Ora, tal como se pode verificar, através da certidão da habilitação notarial, os herdeiros, à data da propositura da acção, já se encontravam determinados, ainda que a herança não estivesse partilhada, razão por que não poderia a acção, por essa razão, ser intentada contra a herança.

Assim, como se referiu, os credores da herança, enquanto esta se mantiver indivisa, têm de exercer contra ela os seus direitos. Não tendo a herança indivisa personalidade jurídica, nem sequer capacidade judiciária, se os titulares dos direitos correspondentes aos encargos tiverem de agir judicialmente – não estando em curso inventário judicial – têm de o fazer contra os herdeiros ou os legatários consoante os casos.

No caso da lei exigir a intervenção de todos os interessados, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade (artigo 28º, n.º 1 CPC).

Porque havia mais herdeiros, para além da [M. D. ], foi a Autora notificada para sanar a petição inicial. Não o fez, afirmando ter intentado a acção contra a herança jacente.

Assim, não tendo sido possível sanar esta excepção, nos termos do artigo 494º, alínea e) e 493º do CPC, por preterição de litisconsórcio necessário, não podia ter deixado de ser julgada, como foi, a Ré [M. D. ] parte ilegítima e, em consequência, absolvida a mesma da instância.
5.
Pelo exposto, negando provimento ao agravo, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela agravante.

Lisboa, 19 de Abril de 2007.
Granja da Fonseca
Pereira Rodrigues
Fernanda Isabel Pereira.