Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1130/11.9YRLSB-7
Relator: LUÍS LAMEIRAS
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/19/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: REVISTA E CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: I – A inteligência de uma decisão contida em sentença estrangeira, como condição para esta poder ser confirmada (artigo 1096º, alínea a), do CPC), comporta um sentido de compreensibilidade, ou de conhecimento exacto, da vontade que naquela se queira ex-primir;
II – Há competência de um tribunal estrangeiro provocada em fraude à lei (artigo 1096º, alínea c), início, do CPC), quando se apure uma manipulação de pressupostos de facto ou de direito com o intuito desviante de evitar a competência daquele que noutras circunstâncias seria o internacionalmente competente;
III – É a doutrina da unilateralidade atenuada aquela que a lei portuguesa acolhe como condição para a sentença estrangeira poder ser confirmada (artigo 1096º, alínea c), final, do CPC); significando reconhecimento às regras de conflitos de outras jurisdições, as quais só claudicam caso colidam com atribuição exclusiva de competência pela ordem jurídica portuguesa;
IV – A existência de caso julgado contrário entre as partes, formado anteriormente à sentença estrangeira, deixou de constituir fundamento de impugnação do pedido de revi-são e confirmação, por via da revogação da alínea f), do artigo 771º, do CPC (redacção do DL nº 38/2003, de 8 de Março), realizada pelo DL nº 303/2007, de 24 de Agosto (artigo 1100º, nº 1, final, do CPC);
V – Os princípios de ordem pública internacional do Estado português que a decisão contida na sentença revidenda não deve “manifestamente” preterir, constituem os alicer-ces essenciais e fundantes da própria ordem jurídica portuguesa; que, de tão decisivos que são, jamais podem ceder (artigo 1096º, alínea f), do CPC).
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1. A… veio requerer contra B… a revisão e confirmação de uma sentença, proferida no Tribunal Real de Jersey, no juízo Samedi, Jersey, nas Ilhas Chanel, no dia 10 de Outubro 2007, e onde, além do mais, consta o seguinte trecho:

« Nesta data, …, o tribunal ordenou que:
(…)
4. B… assinou uma declaração em anexo para transferir a sua parte na propriedade da Casa …, Monchique, Portugal (a “propriedade Portuguesa”) para A…, cada parte suportará as suas próprias despesas relacionadas com a referida transferência. A confirmação deve ser dada à Administração por carta comum »
(doc fls. 32 a 33 e 56 a 57).

Alega que a sentença foi produzida em acção que a requerida propôs a 20 de Junho 2007, naquele tribunal; que nela lhe “foi atribuído … o direito de propriedade total sobre o prédio denominado «Casinha» ou «Restolho de Aveia» ou «Casa …, sito em Monchique, Portugal”; e que a decisão transitou em julgado; terminando a pedir que a mesma seja revista e confirmada pela ordem jurídica portuguesa.[1]

Ademais, apresentou documento contendo a decisão a rever.

2. Opôs-se a requerida; concluindo dever ser recusada a revisão e confirmação da alvitrada sentença. Ao que mais importa, diz que um outro tribunal (o juízo de família do tribunal superior de justiça inglês), antes da sentença revidenda, em 27 de Setembro 2006, proferira decisão sobre o assunto da transferência da parte do questionado imóvel; decisão definitiva, e com força obrigatória, desde 9 de Outubro 2006. Em suma, esta decisão faz caso julgado material; e conferir eficácia à decisão de Jersey, em detrimento desta, do tribunal do Reino Unido, definitiva, conduziria a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português. Por outro lado, o assunto decidendo está coberto por um regulamento comunitário, de harmonia com o qual o tribunal competente para a sua avaliação é o do Reino Unido; e com reconhecimento directo das suas decisões em qualquer estado-membro, sem necessidade de outro qualquer processo. O tribunal de Jersey era incompetente para decidir a transferência (da parte) do imóvel controvertido.

3. O requerente respondeu. Em primeiro, para esclarecer que foi a requerida que o demandou no tribunal de Jersey; a seguir, para excluir as condições próprias do caso julgado; por fim, para acentuar que o espaço de Jersey não pertence à UE, donde, não vinculado por regulamentos da comunidade europeia.

4. Foi facultado o exame do processo (fls. 108).
Produziram alegações o Ministério Público, que se pronunciou no sentido do deferimento do peticionado; e a requerida, que manteve a tese de a revisão da sentença de Jersey dever ser recusada.

5. Questão a decidir.
Foi apresentado documento de que consta a sentença proferida pelo Tribunal Real de Jersey; sendo questão decidenda a de verificar se reunidos se acham todos os requisitos necessários para que ela possa ser revista e confirmada; ou se, ao invés, ocorre algum facto que a impeça de poder ter eficácia na ordem jurídica portuguesa.


            II – Fundamentos

            1. São primordialmente estes os factos que importa considerar:

i. Em 20 de Junho 2007, B… apresentou acção junto do tribunal real de Jersey (doc fls. 14 e 38);
            ii. Nessa acção, em que foi requerido A…, foi proferida sentença, no dia 10 de Outubro de 2007, onde, além do mais, consta o seguinte segmento (doc fls. 32 a 33 e 56 a 57):

            « Nesta data, …, o tribunal ordenou que:
            …
            4. B… assinou uma declaração em anexo para transferir a sua parte na propriedade da Casa …, Monchique, Portugal (a “propriedade Portuguesa”) para A…, cada parte suportará as suas próprias despesas relacionadas com a referida transferência. A confirmação deve ser dada à Administração por carta comum»

iii. B… apôs a sua assinatura sob documento de onde consta, designadamente (doc fls. 35 e 59):

« …
Declaração de B…

Eu, B… (…) comprometo-me perante o Tribunal Real de Jersey a tomar imediatamente as medidas que forem necessárias para transferir a minha parte na propriedade Casa …, Monchique, Portugal, para A….
… »

iv. A sentença proferida não foi objecto de recurso (doc fls. 61 e 62).

2. Enquadramento jurídico-normativo.

2.1. Em princípio, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes que intervieram na acção que a produziu, sem estar revista e depois confirmada (artigo 1094º, nº 1, final, do Código de Processo Civil). Confirmar uma sentença estrangeira, após ter procedido à sua revisão, é conceder-lhe, no Estado do foro, os efeitos que lhe cabem no Estado de origem, como acto jurisdicional, segundo a lei desse mesmo Estado.[2] 

O procedimento da revisão e confirmação tem como causa de pedir a própria sentença revidenda; e opera, em regra, numa lógica estritamente formal;[3] isto é, envolve apenas a verificação da regularidade formal ou extrínseca dela; livre de qualquer apreciação dos fundamentos que contenha.

Para que o pedido de revisão de sentença seja acolhido, e esta confirmada, exige-se, em primeiro lugar, a reunião cumulativa do conjunto dos requisitos que as seis alíneas do artigo 1096º do CPC elencam; esclarecendo o artigo 1101º do modo como o tribunal há-de verificar a respectiva concorrência. Depois, importa considerar os fundamentos da impugnação do pedido; na hipótese, relevando (porventura) a fatispecie contida no artigo 110º, nº 1; e, de toda a forma, importando a sua verificação, em concreto a frustração da confirmação.

2.2. Dito isto.
O 1º dos requisitos é o da autenticidade certa do documento que contém a sentença e o da inequívoca inteligência da decisão (artigo 1096º, alínea a)).
Não foi condição questionada; porém, como de verificação oficiosa (artigo 1101º, início), deter-nos-emos brevemente, e em face da hipótese dos autos, sobre o seu segmento final; o da necessidade de inteligência.
A ideia, neste particular, é a de deixar bem acessível a perceptibilidade; que o trecho decisório se ache exarado em termos perfeitamente entendíveis e que seja claro e compreensível o seu exacto alcance.[4]
Agora, na hipótese concreta dos autos.
A decisão contida na sentença não opera, como o requerente parece querer supor na petição,[5] a transferência (da parte) do direito de propriedade sobre o prédio (sito em Portugal), ainda na esfera da requerida, para a esfera daquele (do requerente). O juízo sentencial pode até ter como pressuposto a atribuição a este daquele direito; mas não mais do que isso; não constitui essa atribuição. É coisa diferente o que evidencia a determinação judicial revidenda – apenas que a requerida assinou uma declaração para transferir a sua parte na propriedade para o requerente; constando, em anexo, essa declaração, cujos termos são (tão-só) os de comprometimento a tomar as medidas necessárias para transferir a parte da propriedade para o requerido.
Neste sentido, a decisão não comporta índole real; estando a sua inte-ligência, no que àquele concreto trecho concerne, apenas num juízo de constata-ção ou de verificação (de apreciação simples) de um facto – o de que a decla-ração foi assinada. Nada mais para lá disso.
Esta, e apenas esta, a chancela do tribunal de Jersey.

O 2º dos requisitos é o do trânsito em julgado (artigo 1096º, alínea b)); o qual se não evidencia faltar, nem a parte requerida põe em causa (artigo 1101º, final); bem ao invés, parecendo claro que a sentença, de facto, se consolidou.

O 3º requisito contém-se na alínea c), do artigo 1096º; é necessário que a sentença revidenda provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei, bem como que não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses.
Vejamos, neste particular. O segmento inicial da norma tem em vista que não possam haver situações, de facto ou de direito, criadas com o intuito fraudulento de evitar a competência do tribunal que, noutras circunstâncias, seria internacionalmente competente; sendo, portanto, uma questão de manipulação i-lícita dos pressupostos; como tal, merecedora de juízo de reprovação; e, na situa-ção, com efeito impeditivo do reconhecimento da sentença estrangeira. Ora, não se intui minimamente o facto, na hipótese concreta (artigo 1101º, final).
Prosseguindo. O segmento final da norma consagra, como vem sendo comummente reconhecido, a doutrina da unilateralidade atenuada; com o signi-ficado de se reconhecer às regras de conflitos de jurisdições uma natureza unila-teral, trate-se de regras da ordem portuguesa, trate-se de regras de ordem estrangeira (em particular, daquela de onde promana a decisão a rever); apenas claudicando (estas) se colidirem com norma atributiva de competência interna-cional exclusiva (naquelas).[6]  Pois bem; na ordem jurídica nacional, não cremos encontrar, acerca da matéria sentenciada, norma atributiva de competência inter-nacional exclusiva aos tribunais portugueses.
Esta, já dissemos, não comporta alcance real. A sentença revidenda (de composição algo complexa para aquilo a que estamos habituados), retrata, no trecho que mais importa, um alcance que nos parece de natureza meramente obrigacional; como dissemos, o que nos parece poder intuir-se é um vínculo (a-penas) prestacional (o “compromisso”) de banda da requerida, de vir a tomar cer-to tipo de comportamentos (as “medidas”) e com o sentido de ir atingir a fina-lidade da transferência do extracto de propriedade, que (ainda) detém, da “Casa ... , Monchique, Portugal”, para o requerente – é a ilação que obte-mos da articulação do extracto sentencial (doc fls. 33 e 57) com a declaração escrita assinada (doc fls. 35 e 59).
É importante lembrar que constitui ónus, da parte requerida, a evi-denciação da carência deste particular requisito (artigo 1101º, final); e que, na hi-pótese, foi (até) a própria requerida a suscitar a acção na jurisdição de Jersey.
Ainda assim; apelando ao Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho de 22 de Dezembro de 2000 (relativo à competência judiciária, ao reconhecimen-to e à execução de decisões em matéria civil e comercial),[7] propugna a requeri-da, na instância revidenda, a incompetência do tribunal real de Jersey.
Vejamos. Incontornável que o território de Jersey não faz parte do espaço da UE. Em matéria de competências exclusivas rege, em particular, o artigo 22º do regulamento comunitário, não enquadrando o caso da sentença revidenda qualquer das fatispecie normativas aí enumeradas. Muito em especial, nem se trata aqui de assunto de direitos reais sobre o imóvel situado em território português (nº 1 do cit artigo 22º); outrossim, como dissemos, assunto adstritivo, de constrangimento, de uma esfera jurídica (da requerida), que está vinculada, e se mostra impelida, a ter de transferir (um extracto de) direito (real) de propriedade sobre o imóvel, para outra esfera jurídica (do requerente). O imóvel sobre que incide o direito real está em território nacional, é certo; mas o assunto controverso não é o desse direito; antes, o de realização do vínculo obrigacional que (este sim) é passível de condicionar o posicionamento daquele direito.
Seja como for, a acção afigura-se-nos obrigacional.
Como dissemos, é a unilateralidade atenuada que se consagra. A assunção da competência (internacional) do tribunal estrangeiro é aceite pela ordem portuguesa; apenas com um limite – o do domínio da competência reservada ou exclusiva da última; que é a ordem do reconhecimento.[8]
Não está demonstrado que o tribunal de Jersey não fosse, segundo as suas próprias atribuições, internacionalmente competente para conhecer da acção que a requerida, junto de si, suscitou. Em face do que, diante de tudo, o argumentário desta, na instância revidenda, improcede.
Havendo de ter por verificado (também) o requisito em apreço.

O 4º dos requisitos reporta-se às excepções de litispendência e de caso julgado, com fundamento em causa afecta a tribunal português, salvo tendo o tribunal estrangeiro prevenido a jurisdição (artigo 1096º, alínea d)). O requisito deve evidenciar-se ou ser suscitado pela parte requerida (artigo 1101º, final).
A este respeito, porém, uma nota particular. No que à alínea c), do artigo 1096º, estritamente concerne, parece óbvia a inexistência de causa alguma afecta a tribunal português; permitindo imediatamente excluir este óbice. Porém. Mantém o artigo 1100º, nº 1, a viabilidade de impugnação por se verificar, em especial, o caso de revisão previsto na alínea g), do artigo 771º. Esta remissão exige, no estado actual, todas as cautelas. O preceito remissivo reportava-se à norma que emergira da revisão do código do DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro; o preceito foi depois alterado pelo DL nº 38/2003, de 8 de Março; e, por fim, substancialmente reformulado pelo DL nº 303/2007, de 24 de Agosto. Em 2003 fez-se transitar a hipótese de a sentença a rever ser contrária a outra, já caso julgado para as partes, antes formado, da antiga alínea g) para uma nova alínea f); em 2007, pura e simplesmente, foi suprimida essa hipótese.[9]  Ou seja, aquele que era o caso prevenido na alínea g), do artigo 771º, para o qual o final do artigo 1100º, nº 1, remetia, hoje não existe; e, por conseguinte, na nossa óptica, havendo de se considerar derrogado este extracto normativo.
Vistas assim as coisas, a respeito do caso julgado, deixou de poder ser fundamento de impugnação do pedido, o caso antes especificado na apontada alínea g) (do artigo 771º), apenas subsistindo essa impugnação no quadro da alínea d) (do artigo 1096º) – tudo na interpretação actual do artigo 1100º, nº 1.
Ainda assim, a requerida apela a um anterior caso julgado; diz que, em tribunal do Reino Unido, foi proferida decisão, tornada definitiva no dia 9 de Outubro 2006, que precisamente definiu o mérito do litígio (a regulação da matéria da transferência da propriedade portuguesa), constituindo caso julgado material entre as partes; e deixando como resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português a eficácia na ordem jurídica nacional da decisão de Jersey. E documenta aquele julgado.
Mas não tem razão; à luz da interpretação que propugnamos.
Mesmo que assim não fôra.
A sentença a que a requerida faz apelo – que se não nega ter sido pro-ferida e ter transitado em julgado precedentemente à revidenda – tem, no trecho que interessa, o seguinte teor (doc fls. 83 a 84 e 89 a 90):

« Ordena-se que após trânsito em julgado do divórcio:

4. Nos termos dos parágrafos 1, 2 e 3 supra, cabe à esposa transferir para o marido, ou à sua ordem, o seu legal e beneficiário interesse do prédio conhecido por …, Monchique, Algarve, Portugal (…) »

A acção terá sido, pois, de dissolução do matrimónio; de divórcio. E nela se reflectindo, ainda e ademais, este concreto reflexo patrimonial. Pois bem. Emanada essa precedente decisão de um tribunal do Reino Unido, como tanto enfatiza a requerida, certamente que o seu reconhecimento na ordem jurídica portuguesa é directo, sem necessidade de recurso a outro tramite; se não tanto no quadro legal do Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho de 27 de Novembro de 2003 (relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental),[10] que expressamente exclui do seu âmbito os efeitos patrimoniais do casamento,[11] ao menos no do Regulamento (CE) nº 44/2001, antes referido (artigo 33º, nº 1)
Questão é que não vemos, nessa decisão e no trecho que releva, a contraditoriedade de julgados, que sempre se exigiria, e era virtual condição para o impedimento da revisão e confirmação do subsequente. E essa contraditoriedade ou, pelo menos incompatibilidade, afigura-se-nos essencial; como aliás se pode intuir da disposição do artigo 675º, nº 1, do CPC (ao fim e ao resto, a razão última, e a inspiração, para um virtual relevo no conflito de casos julgados).
Vejamos. Na decisão do tribunal do Reino Unido escreve-se que “cabe à esposa transferir para o marido” o interesse que detém no imóvel; na decisão do tribunal de Jersey diz-se a requerida assinou a declaração “para transferir a sua parte na propriedade”; e nesta declaração assinada retrata-se o compromisso da requerida “a tomar imediatamente as medidas que forem necessárias para transferir” a sua parte na propriedade do imóvel.
Ou seja, os vários segmentos afiguram-se compatíveis; quase que neles se intuindo alguma sorte de complementaridade sequencial; foi havendo julgados, acordos e compromissos para que, na sequência da dissolução do matrimónio que uniu requerente e requerida, se consolidasse na esfera do primeiro a propriedade (toda) daquele bem imóvel; para tanto se tendo de diligenciar e disso se mostrando instrumental a viabilização das medidas, a encargo da segunda (de molde a transferir os seu direito e interesses, ainda detidos, sobre o questionado bem). É o que, com toda a probabilidade, os autos permitem inferir.
E que não constitui obstáculo à sentença revidenda (de Jersey).

O 5º requisito tem que ver com o acto de citação, na acção de que emana o acto revidendo; bem como com a salvaguarda nela dos basilares enfoques do contraditório e da igualdade de partes (artigo 1096º, alínea e)); não minimamente evidenciado, e nem posto em causa (artigo 1101º, final).

Por fim, o 6º dos requisitos; que a sentença não contenha decisão cujo reconhecimento possa ferir, de maneira forte e concludente (conduza a um resultado manifestamente incompatível) com os princípios da ordem pública internacional do Estado português (artigo 1096º, alínea f)). Requisito de verificação oficiosa (artigo 1101, início). E o qual a requerida, como dissemos, também invoca; se bem que, do nosso ponto de vista, em moldes desenquadrados dos ajustados. Vejamos pois. O quadro da requerida é o de que, ao preterir a decisão do Reino Unido, por via do reconhecimento da de Jersey, se estaria a incorrer no vício aqui tipificado. Não tem razão; porque esse é um problema de (precedência) de casos julgados; e da respectiva harmonia e compatibilidade, como vimos.
O assunto dos princípios de ordem pública internacional do Estado português é outro; e, desde logo, a manifestar-se mediante uma incompatibilidade que deve evidenciar-se de manifesta, quer dizer, óbvia, evidente e frontal.
A este tipo de ditames, fundantes e sustentáculo de toda a arquitectura jurídica, se refere também, por exemplo, o artigo 22º, nº 1, do Código Civil. O seu conteúdo é, contudo, fluido e de muito difícil concretização.
Escrevem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA que a “ordem pública” constitui “um princípio geral, … uma linha mestra, cujo conteúdo positivo terá de ser preenchido pelo julgador na análise de cada caso”.[12]  De seu lado, ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS diz estarem em causa apenas aqueles princípios mesmo fundamentais que, “de tão decisivos que são, não podem ceder, nem sequer nas relações jurídico-privadas plurilocalizadas”.[13]  Por fim, o mestre ALBERTO DOS REIS, citando FERRER CORREIA, e dizendo que nesta matéria o que se exige ao juiz é “o apurar, em cada caso concreto, socorrendo-se do seu senso jurídico, se a aplicação da lei estrangeira considerada competente importaria, na hipótese, um resultado intolerável, quer do ponto de vista do comum sentimento jurídico (bons costumes), quer do ponto de vista dos princípios fundamentais do direito português: algo de inconciliável com as concepções jurídicas que alicerçam o sistema”.[14],[15]
É, então, no reflexo dessas condições fundantes da ordem jurídica por sobre o substrato decisório da sentença revidenda, e no conteúdo do resultado concreto que permita atingir, que se descortina o alcance certo deste requisito. Coisa a que escapa a hipótese dos autos; esta, perspectivada no vínculo a um procedimento conducente a permitir certa transferência, entre duas esferas jurídicas patrimoniais, de um certo direito real; no caso, incidente sobre um bem imóvel.

2.3. Em suma, não se vê que colha qualquer dos argumentos de impugnação formulados pela requerida.

Afiguram-se reunidos, na nossa óptica, os requisitos necessários que o artigo 1096º do CPC enumera; e não ocorre apurado nenhum dos fundamentos de impugnação a que artigo 1100º alude.

A sentença do tribunal real de Jersey, proferida em 10 de Outubro de 2007 e transitada em julgado, acha-se em condições de ser revista; consequen-temente vai também ser confirmada, para ter eficácia na ordem jurídica portu-guesa; mas com o exacto conteúdo que lhe é possível, para lá de toda a dúvi- da, poder descortinar.

            3. As custas da acção são, na íntegra, da responsabilidade da requeri-da, atento o respectivo decaimento (artigo 446º, nºs 1 e 2, do CPC).

            4. Síntese conclusiva.
            É a seguinte a síntese conclusiva que pode ser feita, a propósito do que fica de essencial quanto ao mérito da presente acção de revisão e confirmação:

            I – A inteligência de uma decisão contida em sentença estrangeira, co-mo condição para esta poder ser confirmada (artigo 1096º, alínea a), do CPC), comporta um sentido de compreensibilidade, ou de conhecimento exacto, da vontade que naquela se queira exprimir;
            II – Há competência de um tribunal estrangeiro provocada em fraude à lei (artigo 1096º, alínea c), início, do CPC), quando se apure uma manipulação de pressupostos de facto ou de direito com o intuito desviante de evitar a compe-tência daquele que noutras circunstâncias seria o internacionalmente competente;
            III – É a doutrina da unilateralidade atenuada aquela que a lei portu-guesa acolhe como condição para a sentença estrangeira poder ser confirmada (artigo 1096º, alínea c), final, do CPC); significando reconhecimento às regras de conflitos de outras jurisdições, as quais só claudicam caso colidam com atribui-ção exclusiva de competência pela ordem jurídica portuguesa;
            IV – A existência de caso julgado contrário entre as partes, formado anteriormente à sentença estrangeira, deixou de constituir fundamento de impugnação do pedido de revisão e confirmação, por via da revogação da alínea f), do artigo 771º, do CPC (redacção do DL nº 38/2003, de 8 de Março), realizada pelo DL nº 303/2007, de 24 de Agosto (artigo 1100º, nº 1, final, do CPC);
            V - Os princípios de ordem pública internacional do Estado portu-guês que a decisão contida na sentença revidenda não deve “manifestamente” preterir, constituem os alicerces essenciais e fundantes da própria ordem jurídica portuguesa; que, de tão decisivos que são, jamais podem ceder (artigo 1096º, alínea f), do CPC).

           
III – Decisão
    
            Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o pedido e, em consequência, decidem rever e confirmar, para ter eficácia em Portugal, a sentença proferida no dia 10 de Outubro de 2007, pelo Tribunal Real de Jersey (juízo Samedi, Jersey, ilhas Channel), na acção que no dia 27 de Junho de 2007 a requerida aí interpôs, já transitada em julgado, e onde consta, além do mais, o seguinte segmento decisório:

            “...
B... assinou uma declaração em anexo para transferir a sua parte na propriedade da Casa ..., Monchique, Portugal (a “propriedade Portuguesa”) para A...
...”
(doc fls. 33 e 57).
xxx
            Fixa-se o valor da causa em 30.000,01 € (artigo 315º, nº 2, final, do CPC).
xxx
            Custas a cargo da requerida.

Lisboa, 19 de Junho de 2012

Luís Filipe Brites Lameiras
Jorge Manuel Roque Nogueira
José David Pimentel Marcos
----------------------------------------------------------------------------------------
[1] A referência, no dispositivo da petição, à data de 24 de Março de 2010 resulta inquestionavelmente de um lapso de escrita (artigo 249º do Código Civil).
[2] António Marques dos Santos, “Revisão e confirmação de sentenças estrangeiras no novo Código de Processo Civil de 1997 (alterações ao regime anterior)” in Aspectos do Novo Processo Civil, Lex, 1997, página 105.
[3] Ferrer Correia, “Lições de Direito Internacional Privado (do reconhecimento e execução das sentenças estrangeiras) (aditamentos)”, 1975, página 96.
[4] Sobre a inteligência da decisão, veja-se o esclarecido texto de Alberto dos Reis, “Processos Especiais”, volume II (reimpressão), 1982, página 161.
[5] E, de alguma forma, até transparece (também) da própria oposição da requerida.
[6] António Marques dos Santos, texto citado, página 126; Carlos Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, volume II, 2ª edição, páginas 223 a 224.
[7] O texto do Regulamento encontra-se publicado no jornal oficial das comunidades europeias de 16 de Janeiro de 2001.
[8] Ferrer Correia, obra citada, página 77.
[9] Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, “Código de Processo Civil anotado”, volume 3º, tomo I, 2ª edição, páginas 227 a 228.
[10] O texto do Regulamento encontra-se publicado no jornal oficial das comunidades europeias de 23 de Dezembro de 2003.
[11] Veja-se, em particular, o seu 8º considerando.
[12] “Código Civil anotado”, volume I, 4ª edição, página 69.
[13] Texto citado, página 139.
[14] Obra citada, página 178.
[15] São princípios enformadores e orientadores, fundantes da própria ordem jurídica portuguesa, que de tão decisivos que são, jamais podem ceder; o resultado seria de alguma maneira intolerável, ferindo, de frente, as concepções jurídicas que alicerçam o sistema. São estes que a decisão contida na sentença revidenda não pode preterir, de um modo evidente.