Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8263/19.1T8SNT-A.L1-8
Relator: TERESA SANDIÃES
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
VENDA DE IMÓVEL
HIPOTECA
EXTINÇÃO
USUFRUTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - A aquisição da nua propriedade de um prédio, em processo de insolvência, não podia ter como consequência - como, por lapso, teve - o cancelamento da hipoteca, na sua plenitude.
II - Nos termos do disposto no artº 824º, nº 2 do CC, aplicável às insolvências por efeito do artº 165º do CIRE, com a venda no processo de insolvência ao credor reclamante o que se extingue é a hipoteca incidente sobre o bem adquirido, in casu, a nua propriedade, subsistindo a hipoteca sobre o usufruto. Não podia, pois, a hipoteca sobre o usufruto extinguir-se, uma vez que não foi objeto de apreensão e venda no processo de insolvência e, consequentemente, foi incorretamente lavrado o cancelamento (oficioso) da hipoteca registada sob a Ap. 76 de 10/02/2006 (sublinhe-se, sobre a propriedade plena).
III - Em resultado da referida venda a hipoteca registada sobre a propriedade plena ficou automaticamente limitada, no que se refere ao seu objeto, ao direito de usufruto, por força da compressão decorrente da caducidade do direito real de garantia sobre a nua propriedade.
IV - Mantendo-se o registo de hipoteca sobre o usufruto há que concluir que a executada/embargante continua a ter legitimidade (passiva) para ser demandada pelo exequente, no que respeita à hipoteca que tem por objeto o usufruto, nos termos do disposto no artº 54º, nº 2 do CPC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

Por apenso à execução para pagamento de quantia certa, instaurada por E, S.A., veio a executada Ana S., deduzir oposição à execução por meio de embargos de executado, alegando, em síntese, que:
“(…) foi celebrado um contrato de mútuo com a sociedade Frutas  S., S.A.
Para garantia do bom e pontual pagamento de todas e quaisquer responsabilidades assumidas, A. F. constituiu uma hipoteca voluntária sobre o prédio misto, sito em G., Rua …., descrito na CRP de M. sob o n.º 423 e inscrito na matriz urbano sob o artº 1786 e na matriz rústica sob o artº 30.
A mutuária Frutas S., S.A. foi declarada insolvente no âmbito do processo n.º 0000.
A Caixa …., detentora dos créditos à data, aí reclamou o seu crédito, tendo o mesmo sido reconhecido pelo Administrador da Insolvência.
No mesmo sentido, em 15/12/2015, os proprietários do imóvel anteriormente referido foram declarados insolventes no âmbito do processo n.º 1111, a correr termos no Juízo de Comércio de S..
A exequente, detentora dos créditos à data, reclamou o seu crédito, tendo o mesmo sido reconhecido pelo Administrador da Insolvência.
Desde logo há que ter presente que, sendo declarada a insolvência do devedor autor da hipoteca, e não se verificando os pressupostos dos artigos 120º e 121º do CIRE, as obrigações do insolvente vencem-se e o credor hipotecário passa a ser considerado um credor garantido da insolvência (artigo 47º, n.º 4, al. a) do CIRE).
O credor com garantia real sobre o bem a alienar é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada (artigo 164º, n.º 2 do CIRE).
A exequente apresentou proposta de adjudicação pelo referido bem, no valor de 552.500,00 €, pelo que o mesmo lhe foi adjudicado – Doc. n.º 1.
A venda foi formalizada por escritura pública de compra e venda outorgada a 08/07/2019 – Doc. n.º 2.
Ora, tendo o credor hipotecário reclamado nesse processo de insolvência o seu crédito, visando obter o pagamento com o tratamento preferencial que lhe assiste, e adquirido o referido bem, viu extinguir-se esta sua garantia com a venda do mesmo.
A sua preferência transferiu-se para a aquisição do produto da venda. Razão pela qual, não pode agora a exequente arrogar-se da titularidade da garantia já extinta, para afetar um direito da executada, terceira em relação à obrigação exequenda.”.
Concluiu, pugnando pela procedência da oposição e consequente extinção da execução.
A embargada apresentou contestação, pugnando pela improcedência dos embargos. Para o efeito alegou que
“a hipoteca voluntária registada a favor da exequente sobre o prédio misto, sito em G., Rua …., descrito na CRP de M. sob o n.º 423 e inscrito na matriz urbano sob o artº 1786 e na matriz rústica sob o artº 30, foi constituída por A. F. e por J. S., ambos insolventes no âmbito do processo nº 1111.
Hipoteca essa que prestava, conforme expresso na AP. 76 de 2006/02/10 do imóvel identificado no ponto anterior, “garantia de todas e quaisquer responsabilidades assumidas por FRUTAS S. SA, decorrentes de todas e quaisquer operações bancárias, legalmente permitidas, designadamente, mútuos, aberturas de crédito, descobertos autorizados, desconto de letras e/ou livranças, empréstimos em moeda estrangeira, remessas de exportação, créditos documentários, financiamentos à importação e exportação, garantias bancárias, garantias e/ou avales, leasings mobiliários e/ou imobiliários.” – Cfr. Doc. 1.
A hipoteca foi registada sobre a propriedade plena do imóvel identificado no artigo 2º, inicialmente a favor do …banco, S.A. sob o AP. 76 de 2006/02/10 e, posteriormente, após 3 cessões, a favor da ora exequente E, S.A.: (1º) transmissão da hipoteca do …banco, S.A. a favor da Caixa… pela AP. 4193 de 2011/05/27; (2º) transmissão da hipoteca da Caixa …. a favor da H., SA através do registo da AP.3514 de 2017/12/04; e (3º) transmissão da hipoteca da H, S.A. a favor da E, S.A., pelo registo da AP.2252 de 2018/03/19. – Cfr. Doc. 1
(…) a ora exequente apresentou nos autos de insolvência nº 1111 proposta para adjudicação do imóvel aqui em causa, pelo valor de € 552.500,00, quanto à nua propriedade, propriedade dos insolventes desses autos.
Conforme exposto na escritura de compra e venda outorgada a 08 de Julho de 2019, junta como Doc. 2 dos Embargos, para onde se remete: “Que pela presente escritura, VENDE, por negociação particular, pelo preço global de QUINHENTOS E OITENTA E QUATRO MIL E QUINHENTOS EUROS, à sociedade representada da segunda outorgante, livre de ónus ou encargos (com excepção da servidão abaixo mencionada) os seguintes prédios: (...) DOIS: Pelo preço global de QUINHENTOS E CINQUENTA E DOIS MIL E QUINHENTOS EUROS, correspondendo dois mil oitenta e dois euros e vinte e um cêntimos à parte rústica e quinhentos e cinquenta mil quatrocentos e dezassete euros e setenta e nove cêntimos à parte urbana, a nua propriedade do prédio misto, situado em G., Rua ….., concelho de M., descrito na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o número quatrocentos e vinte e três, da referida freguesia, com a aquisição registada a favor dos insolventes, pela Apresentação doze, de cinco de janeiro de dois mil e seis, inscrito na matriz urbana sob o artigo 1786, com o valor patrimonial de 266.249,29 € e na matriz rústica sob o artigo 30 da secção 1 A, com o valor patrimonial 1.007,21 € e valor patrimonial tributário para efeitos de IMT no valor de 18.598,70 €, ambos da união das freguesias de Enxara do Bispo, Gradil e Vila Franca do Rosário.” (sublinhado nosso)
Nunca poderia a ora exequente ter adquirido a propriedade plena do imóvel melhor descrito no artigo anterior na insolvência que corre com o nº 1111, visto só ter sido apreendida a favor daqueles autos a nua propriedade desse imóvel, conforme alcançável através da consulta da CRPredial junta como Doc. 1 a esta Contestação: AP. 1721 de 2016/02/22 – Declaração de Insolvência – convertida em definitiva pela AP. 1872 de 2016/05/24 com a indicação “DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA SOBRE A NUA PROPRIEDADE”.
O direito de usufruto foi constituído a favor da executada nestes autos, Ana S., registado na CRPredial pela AP.2772 de 2013/05/27, cfr. Doc. 1.
Daí que a penhora registada a favor dos presentes autos tenha incidido, única e exclusivamente, sobre o direito de usufruto constituído a favor da aqui executada – AP. 3215 de 2019/06/19, cfr. Doc. 1.
Esse desdobramento da propriedade – propriedade plena em nua propriedade e direito de usufruto – não afecta os direitos decorrentes da hipoteca incidente sobre o imóvel, visto o registo desta ser anterior ao registo dos direitos (reais limitados de gozo) resultantes daquele desdobramento. Conforme nos ensina o Ac. Relação de Guimarães, proc. 4847/12.7TBGMRA.G1, disponível em www.dgsi.pt: “Com efeito, como explicitam Pedro Martinez e Pedro Fuzeta, a hipoteca repercute-se de modo diverso em função do direito real do autor da hipoteca. Assim, se o autor da hipoteca é usufrutuário da casa, ao constituir a hipoteca só onera o seu direito de usufruto, em nada afetando propriedade de raiz sobre o mesmo bem; do mesmo modo, sendo a hipoteca constituída pelo proprietário de raiz não se onera o direito de usufruto sobre a coisa. Diferente é a situação de uma hipoteca feita pelo proprietário pleno que, posteriormente, deu o mesmo bem de usufruto a terceiro, caso em que este direito real de gozo não prejudica a posição jurídica do credor hipotecário. (sublinhado nosso).
Dispõe o artigo 696º do Ccivil que: “ Salvo convenção em contrário, a hipoteca é indivisível, subsistindo por inteiro sobre cada uma das coisas oneradas e sobre cada uma das partes que as constituam, ainda que a coisa ou o crédito seja dividido ou este se encontre parcialmente satisfeito.» Como nos ensina o Ac. Relação de Coimbra, proc. 4713/16.7T8VIS-C.C1, disponível em www.dgsi.pt: «O artº 696º do C Civil veio consagrar em toda a sua extensão a regra de indivisibilidade da hipoteca em três planos diferentes: a) Determinou a subsistência da hipoteca sobre cada uma das coisas oneradas, quando, como é natural, ela se haja, ab initio, constituído sobre um objeto múltiplo: é a hipoteca solidária do direito alemão; b) Determinou a subsistência da hipoteca, por inteiro, sobre cada uma das novas coisas resultantes da divisão de um bem inicial hipotecado ou sobre cada uma das partes de coisas autonomizadas a partir de um prédio, também anteriormente hipotecado: é a indivisibilidade romanística…; c) determinou a subsistência da hipoteca, por inteiro, em prol de cada um dos credores investidos, mercê da divisão de um crédito anterior» - Ac. do STJ de 22.04.1997, BMJ, 466º- 463. (…)
Face ao exposto, a posição jurídica conferida à exequente pela garantia hipotecária continua a subsistir, quanto ao direito de usufruto, visto a adjudicação efectuada pela ora exequente nos autos de insolvência nº 1111 ter sido somente quanto à nua propriedade.
Pelo que as conclusões proferidas pela executada nos artigos 12º, 13º e 14º dos Embargos terão, necessariamente, de improceder.”
Com dispensa de audiência prévia foi proferido despacho saneador sentença que julgou procedente a oposição mediante embargos de executado.
A exequente recorre desta decisão, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
“A) A exequente/embargada, ora recorrente, vem interpor recurso da sentença que julgou a ilegitimidade passiva da executada/embargante Ana S., por impossibilidade superveniente, em ser demandada na presente instância nos termos do artigo 54º, nº 2, do CPCivil.
B) Concluiu o tribunal a quo que “(…) não sendo a executada (titular do direito de usufruto sobre o imóvel) pessoalmente sujeito da obrigação exequenda e tendo o exequente deixado de ter título material de constituição da garantia no património daquela, não pode o exequente demandar a executada nos termos do disposto no artigo 54.º, n.º2, do CPC, por impossibilidade superveniente”.
C) Concorda a ora recorrente com o tribunal a quo que a executada não é pessoalmente sujeito da obrigação exequenda, mas tão só titular de direito de usufruto sobre o imóvel em discussão.
D) Contudo, não pode a recorrente concordar que tenha deixado de ter título material de constituição da garantia no património da executada – hipoteca – pelos motivos que adiante exporá.
E) Foram julgados provados os seguintes factos – com relevância para a decisão do presente Recurso:
“(...) 3. Por Contrato de Cessão de Créditos, assinado em 02 de Novembro de 2017, a H., S.A. vendeu, entre outros, o crédito identificado com a referência 449360000672, que detinha sobre a referida mutuária e todas as garantias acessórias a ele inerente, à E, S.A.
4. A referida cessão incluiu a transmissão de todos os direitos, garantias e acessórios inerentes ao crédito cedido, designadamente a hipoteca constituída sobre o imóvel dado de garantia, no caso, o imóvel descrito na CRP de M. sob o nº 423.
(…)
15. Para garantia do capital em dívida, respectivos juros e despesas, foi constituída por A.F., com autorização expressa do seu marido J.S., escritura de hipoteca voluntária, registada pela Ap. 76 de 2006/02/10, sobre o prédio misto, sito em G., Rua …., descrito na CRP de M. sob o n.º 423 e inscrito na matriz urbana sob o art.º 1786 (antigo 686) e na matriz rústica sob o art.º 30, Secção nº1A.
16. A hipoteca unilateral constituída a favor do …banco, para garantia do bom e pontual pagamento de todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir pelas Frutas S., S.A., garantia os seguintes montantes:
a) Capital no valor de € 1.000.000,00;
b) Juro anual de 6%, acrescido de 4% em caso de mora, a título de cláusula penal; despesas de € 40.000,00;
c) Montante máximo assegurado no valor de € 1.340.000,00;
17. No âmbito da transmissão de créditos ocorrida houve uma transmissão da hipoteca constituída a favor do …banco para o nome da Caixa… - AP. 4193 de 2011/05/27.
18. Hipoteca essa que, posteriormente, foi transmitida da Caixa… para o nome da H., S.A. – AP. 3514 de 2017/12/04 (cfr. Doc. 2).
19. A H., S.A., viria a transmitir a hipoteca para o nome da E., S.A. – AP. 2252 de 2018/03/19 (cfr. Doc. 2)
20. Os proprietários do imóvel melhor descrito no ponto 15 foram declarados insolventes no dia 15 de Dezembro de 2015 – processo 1111, Juiz 2 do Juízo do Comércio de S.
21. Tendo sido apreendida, a favor da Massa Insolvente, a nua propriedade do imóvel aqui em causa – AP. 1872 de 2016/05/24.
22. A exequente adquiriu, no âmbito do processo de insolvência n.º 1111 – insolventes A.F. e J.S. – a nua propriedade do imóvel descrito em 15 (AP.314 de 2019/09/02).
23. Na sequência da aquisição da nua propriedade do imóvel descrito em 15, referida no ponto 22, foi cancelado o registo da hipoteca constituída a favor do exequente:
“AVERB. - AP. 314 de 2019/09/02 14:31:04 UTC – Cancelamento Registado no Sistema em: 2019/09/04 14:31:04 UTC DA APRESENT. 76 de 2006/02/10 - Hipoteca Voluntária”.
24. No dia 15 de Maio de 2013, os proprietários do imóvel – os insolventes A.F e J.S. – celebraram com Ana S. uma escritura de doação de usufruto vitalício do imóvel em causa – inscrita na CRP do imóvel sob a AP. 2772 de 2013/05/27.
25. O direito de usufruto foi penhorado na execução de que dependem estes autos (AP. 3215 de 2019/06/19).
F) O facto 23, dado como assente, indicado no artigo anterior, expõe que, mediante a AP. 314 de 2019/09/02, foi cancelado o registo da hipoteca constituída a favor do exequente, na sequência da aquisição da nua propriedade do imóvel descrito no facto nº 15 dado como assente.
G) Ora, tal ocorreu por manifesto lapso da Conservatória do Registo Predial de Paredes de Coura na forma como registou a aquisição da nua propriedade, e consequentes efeitos, na certidão permanente do imóvel descrito na CRP de M. sob o n.º 423.
H) Nunca foi vontade da recorrente, aquando da aquisição da nua propriedade, proceder ao cancelamento da hipoteca, no seu todo, que incidia sobre o imóvel descrito na CRP de M. sob o n.º 423, nem isso decorre da escritura de compra e venda outorgada a 08 de Julho de 2019 (junta como documento nº 2 dos Embargos de executado apresentados pela executada, para onde se remete).
I) Na verdade, e como o próprio tribunal a quo referiu – cujas passagens se transcrevem pela sua clareza e acerto: “Sendo o registo da hipoteca incidente sobre tal prédio anterior ao registo do usufruto, é manifesto que, por força da prioridade do registo, e atento o disposto no artigo 696º do C. Civil (nos termos do qual “salvo convenção em contrário a hipoteca é indivisível, subsistindo por inteiro sobre cada uma das coisas oneradas sobre cada uma das partes que as constituam…”), a hipoteca incide sobre a propriedade plena, propriedade essa que, atento o seu conteúdo, definido no art. 1305º do C. Civil (“o proprietário goza de modo pleno e exclusividade dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas…”), inclui os poderes de uso e fruição que, nos termos do disposto no art. 1439º do mesmo diploma são conferidos ao usufrutuário.”
J) Ou seja, dúvidas não restaram ao tribunal a quo que a hipoteca que a recorrente detinha sobre o imóvel em discussão nos autos incidia sobre o bem na sua plenitude, isto é, sobre a propriedade plena que engloba a nua propriedade e o seu usufruto.
K) Como muito bem continuou a explanar o tribunal a quo – o que ora recorrente confirma: “E foi certamente na consideração do valor desta plenitude – o qual, certamente, ou normalmente, é superior ao da nua propriedade –, que a exequente perspetivou e aceitou a constituição da hipoteca.”
L) A aquisição da nua propriedade, pela recorrente, no processo de insolvência 1111, por escritura de compra e venda outorgada a 08 de Julho de 2019, não podia ter como consequência, como teve, o cancelamento da hipoteca, na sua plenitude – AP. 76 de 2006/02/10.
M) Ao ser cancelado o registo de “toda” a hipoteca AP. 76 de 2006/02/10 – o que a recorrente desconhecia que ocorreria quando intentou a presente instância executiva a 18 de maio de 2019 – a exequente deixou de ter qualquer garantia eficaz sobre o imóvel, bem como sobre o direito de usufruto pertencente à executada, terceira relativamente à relação entre o credor (exequente) e os devedores (ex-proprietários do bem).
N) A recorrente, quando procedeu ao registo de aquisição da nua propriedade junto da Conservatória do Registo Predial – AP.314 de 2019/09/02 – cria que a consequência que daí adviria seria o cancelamento da hipoteca AP. 76 de 2006/02/10, mas tão somente quanto à nua propriedade adquirida, o que não ocorreu.
O) Assim, após ter sido proferida sentença que julgou procedente os embargos de que agora se recorrem, tendo a exequente tomado consciência do lapso que tinha ocorrido, pediu esclarecimentos à Conservatória do Registo Predial que havia procedido aos registos no dia 02 de setembro de 2019: tanto quanto à aquisição da nua propriedade como ao cancelamento das hipotecas, na sua plenitude, anteriormente registadas sobre o imóvel.
P) Sem grandes questões, nem surpresas, o lapso foi prontamente reconhecido e rectificado oficiosamente, conforme Documento nº 1 que se requer seja admitido às presentes Alegações, considerando a relevância e a superveniência do mesmo.
Q) Assim, na presente data, conforme se poderá ver através do seguinte código de acesso: PP-2061-44466-110907-000423, a situação registal, com relevo para a discussão aqui em causa, é a seguinte:
AP. 314 de 2019/09/02 10:01:59 UTC - Aquisição
Registado no Sistema em: 2019/09/02 10:01:59 UTC
CAUSA : Compra em Processo de Insolvência (da nua propriedade) – acrescento nosso; se tivesse sido da propriedade plena, a discussão aqui em causa deixaria de fazer sentido;
- AVERB. - AP. 314 de 2019/09/02 14:31:04 UTC – Cancelamento  Registado no Sistema em: 2019/09/04 14:31:04 UTC DA APRESENT. 76 de 2006/02/10 - Hipoteca Voluntária Cancelada.
- AVERB. - AP. 1192 de 2020/11/13 12:18:58 UTC - Rectificação
Registado no Sistema em: 2020/11/13 12:18:58 UTC
DA APRESENT. 314 de 2019/09/02 – Cancelamento
CANCELADO O AVERB. OFICIOSO - AP. 314 DE 2019/09/02 14:31:04 UTC – Cancelamento
- AVERB. - AP. 1192 de 2020/11/13 13:52:46 UTC - Cancelamento
Registado no Sistema em: 2020/11/13 13:52:46 UTC
DA APRESENT. 76 de 2006/02/10 - Hipoteca Voluntária
Cancelada quanto à nua propriedade.
R) Da análise da actual certidão permanente do imóvel, resulta que o erro cometido já se encontra rectificado:
- Cancelou-se a AP. 314 de 2019/09/02 – que havia procedido ao cancelamento da AP. 76 de 2006/02/10 – através da AP. 1192 de 2020/11/13 12:18:58;
- Voltou a cancelar-se a AP. 76 de 2006/02/10 – somente quanto à nua propriedade – através da AP. 1192 de 2020/11/13 13:52:46.
S) Corrigida a premissa – cancelamento da hipoteca, na sua plenitude, AP. 76 de 2006/02/10 – de que emanou a errada decisão do tribunal a quo de ilegitimidade passiva da executada, dúvidas não restam de que a embargante continua a ser parte legítima nesta acção, podendo ser demandada na execução instaurada pela recorrente.
T) Isso mesmo notou o tribunal a quo na sentença proferida: “Note-se que a existência de uma hipoteca não impede a alienação ou oneração do bem hipotecado (art. 695º do CC). Porém, o adquirente do direito de usufruto sobre o imóvel hipotecado, embora sendo terceiro em face da obrigação exequenda, pode ser também demandado na execução instaurada pelo credor hipotecário contra os mutuários ao abrigo do regime previsto no art. 56º, n.º 2 do anterior CPC.”
U) Conclui-se, pois, que não tivesse sido o lapso da Conservatória, e a decisão da 1ª instância seria certamente diferente, considerando o exposto no artigo anterior.
Por tudo o supra exposto deverá a sentença proferida pelo tribunal a quo ser revogada e substituída por sentença que julgue improcedentes os embargos deduzidos pela recorrida por não se encontrar demonstrada a ilegitimidade passiva da mesma, visto ser adquirente de direito de usufruto sobre imóvel hipotecado, pese embora seja terceira em face da obrigação exequenda.
A apelada apresentou contra-alegações, terminando com as seguintes conclusões:
“1. A exequente não dispunha de título aquando da entrada dos presentes autos, em virtude do cancelamento do registo da hipoteca que o onerava, não podendo restar dúvidas que a mesma não produzia quaisquer efeitos (artigo 687.º do Código Civil).
2. Ainda que apresente agora uma situação registal diversa, na medida em que o Cancelamento da hipoteca agora faz menção a “cancelada quanto à nua propriedade”, o certo é que não deixa de haver o cancelamento.
3. Não estamos perante o registo de duas hipotecas, como a recorrente faz crer, mas sim perante o registo de uma única hipoteca que incide sobre a totalidade do prédio (AP. 76 de 2006/02/10).
4. Havendo um único registo da hipoteca e, posteriormente o cancelamento desse mesmo registo, não se mantém qualquer garantia eficaz sobre o imóvel, independentemente da menção que agora foi aditada, pois o registo e AP. é exatamente o mesmo e foi cancelado, deixando de produzir quaisquer efeitos.
5. Nem se poderia aceitar a retificação ao título como pretende a recorrente, na medida em que consistiria numa clara violação ao princípio constitucional da segurança jurídica.
6. as razões para cancelar o registo de hipoteca sob a nua propriedade são exatamente os mesmos que levam à obrigatoriedade de cancelamento também quanto ao usufruto – a extinção da garantia.
7. Tendo o credor hipotecário (aqui exequente) reclamado no processo de insolvência o seu crédito, visando obter o pagamento com o tratamento preferencial que lhe assiste, e adquirido o referido bem, viu extinguir-se esta sua garantia com a venda do mesmo – artigo 824.º n.º 2 do Código Civil.
8. A sua preferência transferiu-se para a aquisição do produto da venda e extinguiu-se.
9. Não pode a recorrente arrogar-se da titularidade da garantia já extinta, para afetar um direito da recorrida, terceira em relação à obrigação exequenda.
10. Deve ser mantida na totalidade a decisão aqui recorrida, por não haver qualquer fundamento factual ou legal para que se decida o contrário.
Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado improcedente e por via dele, mantida a decisão recorrida. Assim se fazendo a costumada Justiça!”
*
A decisão recorrida considerou como provada a seguinte matéria de facto:
1. Por Contrato de Cessão de Créditos, assinado em 02 de Novembro de 2017, a CAIXA …. cedeu, entre outros, o crédito identificado com a referência 449360000672, que detinha sobre a mutuária Frutas S., S.A. (entretanto, insolvente), incluindo todas as garantias acessórias, à H., S.A..
2. A referida cessão incluiu a transmissão de todos os direitos, garantias e acessórios inerentes ao crédito cedido, designadamente a hipoteca constituída sobre o imóvel dado de garantia, no caso, o imóvel descrito na CRP de M. sob o nº 423.
3. Por Contrato de Cessão de Créditos, assinado em 02 de Novembro de 2017, a H. S.A. vendeu, entre outros, o crédito identificado com a referência 449360000672, que detinha sobre a referida mutuária e todas as garantias acessórias a ele inerente, à E., S.A.
4. A referida cessão incluiu a transmissão de todos os direitos, garantias e acessórios inerentes ao crédito cedido, designadamente a hipoteca constituída sobre o imóvel dado de garantia, no caso, o imóvel descrito na CRP de M. sob o nº 423.
5. No dia 02 de Novembro de 2009, a mutuária Frutas S., S.A., no âmbito da sua insolvência que correu com o nº 0000, requereu junto do IAPMEI um procedimento extra judicial de conciliação.
6. Nesse momento, foi proposto um plano genérico de pagamento em 8 anos, após período de carência de 18 meses.
7. Relativamente ao credor …banco S.A., foram reconhecidos como fazendo parte do plano de pagamentos, os seguintes valores em dívida: - € 10.082,95, peticionado no processo executivo nº…; - € 34.908,96, peticionado no processo executivo nº ….; - € 688.200,21, peticionado no processo executivo nº …; - € 92.047,69, peticionado no processo executivo nº ….;
8. O plano de pagamentos apresentado pela mutuária Frutas S., S.A. foi homologado, por sentença, conclusa a 14 de Julho de 2011.
9. Por escritura outorgada no Cartório Notarial de Lisboa, exarada de fls. 33 a 38 do Livro 130-B, o …banco, S.A. trespassou à Caixa… o “estabelecimento comercial que constitui a universalidade de activos (intangíveis e fixos tangíveis) e passivos, nomeadamente contratos de depósito, contratos de mútuo, e, de uma forma geral, a totalidade dos direitos e obrigações de que é titular o trespassante no âmbito da sua actividade bancária”.
10. De entre as obrigações transmitidas do …banco à Caixa…, e segundo a referida escritura, “estão incluídos neste contrato de trespasse, nomeadamente, (…) os créditos sobre mutuários, devedores e restante clientela a ele afecta, acompanhados de todas as respectivas garantias e acessórios…”.
11. A mutuária não cumpriu o acordo de pagamento celebrado, não liquidando qualquer montante ao …banco/Caixa….
12. Deste modo, a 26 de Agosto de 2016, foi publicado novo anúncio de insolvência da mutuária Frutas S., S.A., à qual foi atribuído o nº …..
13. A Caixa… reclamou os seus créditos, tendo sido reconhecido pelo Sr. Administrador de Insolvência o valor total de € 1.146.012,99.
14. A 20 de Janeiro de 2017 foi encerrado o processo de insolvência por insuficiência da massa.
15. Para garantia do capital em dívida, respectivos juros e despesas, foi constituída por A.F., com autorização expressa do seu marido J.S., escritura de hipoteca voluntária, registada pela Ap. 76 de 2006/02/10, sobre o prédio misto, sito em G., Rua…, descrito na CRP de M. sob o n.º 423 e inscrito na matriz urbana sob o art.º 1786 (antigo 686) e na matriz rústica sob o art.º 30, Secção nº1A.
16. A hipoteca unilateral constituída a favor do …banco, para garantia do bom e pontual pagamento de todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir pelas Frutas S., S.A., garantia os seguintes montantes:
a) Capital no valor de € 1.000.000,00;
b) Juro anual de 6%, acrescido de 4% em caso de mora, a título de cláusula penal; despesas de € 40.000,00;
c) Montante máximo assegurado no valor de € 1.340.000,00;
17. No âmbito da transmissão de créditos ocorrida houve uma transmissão da hipoteca constituída a favor do ….banco para o nome da Caixa …. - AP. 4193 de 2011/05/27.
18. Hipoteca essa que, posteriormente, foi transmitida da Caixa… para o nome da H., S.A. – AP. 3514 de 2017/12/04 (cfr. Doc. 2).
19. A H., S.A., viria a transmitir a hipoteca para o nome da E., S.A. – AP. 2252 de 2018/03/19 (cfr. Doc. 2)
20. Os proprietários do imóvel melhor descrito no ponto 15 foram declarados insolventes no dia 15 de Dezembro de 2015 – processo 1111, Juiz 2 do Juízo do Comércio de S.
21. Tendo sido apreendida, a favor da Massa Insolvente, a nua propriedade do imóvel aqui em causa – AP. 1872 de 2016/05/24.
22. A exequente adquiriu, no âmbito do processo de insolvência n.º 1111 – insolventes A.F. e J.S. – a nua propriedade do imóvel descrito em 15 (AP.314 de 2019/09/02).
23. Na sequência da aquisição da nua propriedade do imóvel descrito em 15, referida no ponto 22, foi cancelado o registo da hipoteca constituída a favor do exequente: “AVERB. - AP. 314 de 2019/09/02 14:31:04 UTC – Cancelamento Registado no Sistema em: 2019/09/04 14:31:04 UTC DA APRESENT. 76 de 2006/02/10 - Hipoteca Voluntária”.
24. No dia 15 de Maio de 2013, os proprietários do imóvel – os insolventes A.F. e J.S. – celebraram com Ana S. uma escritura de doação de usufruto vitalício do imóvel em causa – inscrita na CRP do imóvel sob a AP. 2772 de 2013/05/27.
25. O direito de usufruto foi penhorado na execução de que dependem estes autos (AP. 3215 de 2019/06/19).
*
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e das que forem de conhecimento oficioso (arts. 635º e 639º do NCPC), tendo sempre presente que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº3 do NCPC).
Importa, previamente, conhecer da junção de documento (certidão permanente do registo predial) pela apelante com as alegações de recurso.
Nos termos do artigo 651º, nº 1 do Código de Processo Civil: “as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido em 1ª instância”.
E o 425º do CPC estabelece que: “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento”.
Na alegação a apelante justifica a junção pela sua relevância e superveniência.
A certidão do registo predial foi emitida em 17/11/2020 e destina-se a provar averbamentos inscritos em 13/11/2020, decorrentes de retificação do cancelamento do registo de hipoteca – fundamento essencial da sentença sob recurso, proferida em 20/10/2020.
Verifica-se, assim, que o documento é relevante e objetivamente superveniente, pelo que, ao abrigo dos citados artºs 651º e 425º do C.P.C., admite-se a sua junção.
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Importa considerar a seguinte factualidade com relevo para o conhecimento do objeto do presente recurso, factualidade que decorre dos elementos constantes dos autos (artº 607º do C.P.C.):
a) a execução foi instaurada em 18/05/2019;
b) a petição de embargos foi apresentada em 09/10/2019;
c) a aquisição mencionada no ponto 22 supra foi formalizada mediante escritura de compra e venda outorgada em 08/07/2019;
d) o averbamento oficioso da Ap. 314, descrito no facto provado nº 23, foi retificado, nos seguintes termos:
AVERB. - AP. 1192 de 2020/11/13 12:18:58 UTC - Rectificação
Registado no Sistema em: 2020/11/13 12:18:58 UTC
DA APRESENT. 314 de 2019/09/02 - Cancelamento
CANCELADO O AVERB. OFICIOSO - AP. 314 DE 2019/09/02 14:31:04 UTC – Cancelamento
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OFICIOSO
AVERB. - AP. 1192 de 2020/11/13 13:50:23 UTC - Rectificação
Registado no Sistema em: 2020/11/13 13:50:23 UTC
DA APRESENT. 314 de 2019/09/02 - Cancelamento
CANCELADO O AVERB. OFICIOSO - AP. 314 DE 2019/09/02 14:31:46 UTC – Cancelamento
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OFICIOSO
AVERB. - AP. 1192 de 2020/11/13 13:52:46 UTC - Cancelamento
Registado no Sistema em: 2020/11/13 13:52:46 UTC
DA APRESENT. 76 de 2006/02/10 - Hipoteca Voluntária
Cancelada quanto à nua propriedade.”
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A única questão a decidir é verificar se a embargante tem legitimidade passiva para o prosseguimento da execução.
A apelante pugna pela revogação e substituição da sentença recorrida por decisão que julgue os embargos improcedentes por não se encontrar demonstrada a ilegitimidade passiva da executada.
A sentença recorrida concluiu pela impossibilidade superveniente de o exequente demandar a executada, em virtude de ter deixado de possuir título material de constituição da garantia no património daquela, por efeito do cancelamento do registo da hipoteca.
As partes não discutem a existência do direito de crédito na titularidade da exequente sobre a sociedade Frutas S. S.A., por força de sucessivas cessões, nem que esse crédito foi garantido por hipoteca sobre o prédio misto, sito em G., Rua …, descrito na CRP de M. sob o n.º 423 e inscrito na matriz urbana sob o art.º 1786 (antigo 686) e na matriz rústica sob o art.º 30, Secção nº 1A., constituída por A.F., com autorização expressa do seu marido J.S., registada em 10/02/2006.
A.F. e J.S. celebraram com Ana S. uma escritura de doação de usufruto vitalício do referido imóvel (escritura de 15/05/2013), registado em 27/05/2013.
A devedora Frutas S. S.A. veio a ser declarada insolvente, tendo sido encerrado o processo por insuficiência da massa. A.F. e J.S. foram declarados insolventes, por sentença de 15/12/2015 (proc. nº  1111). Nos referidos processos foi reconhecido o direito de crédito da ora exequente.
No processo de insolvência nº 1111 veio a ser apreendida, em 24/05/2016, a favor da massa insolvente, a nua propriedade do mencionado prédio.  
À data da instauração da execução – 18/05/2019 – mantinha-se a situação fática descrita, mormente o registo da hipoteca sobre o imóvel. 
A hipoteca é a garantia que confere ao credor o direito de se pagar do seu crédito, com preferência sobre os demais credores, que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo, pelo valor de certas coisas imóveis ou a elas equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiros (artº 686º do CC). A hipoteca carece de ser registada, sob pena de não produzir efeitos, mesmo em relação às partes (artº 687º CC).
”(…) encontrando-se os bens hipotecados na posse de terceiro (seja por ter sido ele quem constituiu a hipoteca, seja por ter sido ele quem adquiriu da mão de terceiros ou do devedor a coisa hipotecada), o possuidor tem legitimidade (passiva) para ser executado na execução hipotecária, apesar de não ser devedor do exequente.” [1]
É a exceção à regra da legitimidade consagrada no atual artº 54º, nº 2 do CPC, que dispõe que “a execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro segue diretamente contra este se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor.”
A hipoteca, enquanto direito real de garantia, goza do direito de sequela sobre a coisa.
O princípio da indivisibilidade da hipoteca consagrado no artº 696º do CC significa, nas palavras de Antunes Varela,[2] que “se a hipoteca recair sobre dois ou mais prédios homogéneos, a garantia recai por inteiro sobre cada um deles e não apenas parcelarmente, ou fragmentariamente, em proporção ao valor de cada um deles (…) E o mesmo regime se aplica à hipótese de o prédio onerado com a hipoteca vir a ser dividido em dois ou mais prédios distintos. Sobre cada uma das partes do imóvel dividido ou fraccionado recai, por inteiro, o encargo da dívida assegurada.” Com este princípio “estabelece-se, supletivamente, que a garantia conserva o seu objeto originário, ainda que se verifique divisão da coisa ou do crédito, ou este se encontre em parte extinto, assim como, sendo oneradas várias coisas, cada uma delas responde pela dívida inteira” [3]
À data da instauração da execução é inquestionável que se mostravam verificados os requisitos exigidos pelo artº 54º, nº 2 do CPC para que a executada fosse demandada com vista ao pagamento da quantia exequenda, pois apesar de ser terceira face à dívida exequenda, não tinha essa posição em relação ao processo executivo.
Posteriormente à instauração da execução ocorreu o seguinte:
- no âmbito do processo de insolvência nº 1111 foi adjudicado ao credor reclamante, ora exequente, a nua propriedade do imóvel, aquisição formalizada mediante escritura de compra e venda outorgada em 08/07/2019, e registada em 02/09/2019 (Ap. 314);
- a Conservatória do Registo Predial, oficiosamente, em 02/09/2019, lavrou averbamento à Ap. 314, de cancelamento do registo da hipoteca (Ap. 76 de 10/02/2006);
- a CRP lavrou averbamento de retificação à Ap. 314 – de cancelamento da Ap. 76 de 10/02/2006 – inscrevendo o cancelamento do averbamento oficioso anteriormente efetuado à Ap. 314 e inscrevendo quanto à Ap. 76 “cancelada quanto à nua propriedade”.
Verifica-se, assim, que decorrente da retificação efetuada se mantém o registo da hipoteca sobre o usufruto. E de outro modo não poderia ser, pois a aquisição da nua propriedade, no processo de insolvência, não podia ter como consequência, como, por lapso, teve, o cancelamento da hipoteca, na sua plenitude. Da constituição do usufruto e respetivo registo em data posterior ao registo da hipoteca não pode resultar perda de garantia para o credor hipotecário, que foi constituída sobre a propriedade plena, atentos os princípios da indivisibilidade da hipoteca (artº 686º do CC.) e da anterioridade do registo (artº 6º, nº 1 do CRP).
É que ao invés do defendido pela apelada na petição de embargos e nas contra-alegações, o que se extingue com a venda em execução, por força do disposto no artº 824º, nº 2 do CC, aplicável às insolvências por efeito do artº 165º do CIRE, é a hipoteca incidente sobre o bem adquirido. E dúvidas não existem de que, tendo sido apreendida na insolvência apenas a nua propriedade, apenas esta foi adquirida pelo ali credor reclamante e aqui exequente. Com a venda da nua propriedade no processo de insolvência ao credor reclamante extinguiu-se a hipoteca incidente sobre a parte do objeto da venda – a nua propriedade – isto é, subsiste a hipoteca sobre o usufruto. Não podia, pois, a hipoteca sobre o usufruto extinguir-se, uma vez que não foi objeto de apreensão e venda no processo de insolvência e, consequentemente, foi incorretamente lavrado o cancelamento (oficioso) da hipoteca registada sob a Ap. 76 de 10/02/2006 (sublinhe-se, sobre a propriedade plena).
Sob a epígrafe “venda em execução” estabelece o artº 824º do CC que “os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo (nº 2). Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respetivos bens” (nº 3).
“(…) há que distinguir duas espécies de direitos que incidam sobre os bens vendidos. Os de garantia caducam todos; os direitos de gozo só caducam se não tiverem um registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, ou seja, anterior à mais antiga destas garantias.” [4]
Assim, com a venda em processo de insolvência da nua propriedade do prédio a hipoteca sobre a nua propriedade caducou, mas a que incide sobre o direito de usufruto mantém-se.
Tal assim ocorre in casu uma vez que na insolvência apenas foi apreendida a nua propriedade do imóvel. Todavia, nada impedia que a apreensão e subsequente venda tivesse incidido sobre a propriedade plena, uma vez que esta constituía o objeto da hipoteca, registada em data anterior ao direito real de gozo, o usufruto, e como tal sendo este ineficaz em relação ao credor hipotecário, por força da natureza erga omnes e da sequela, características da hipoteca. Nesta situação caducaria o usufruto (artº 824º, nº 2 CC) e o direito da executada transferir-se-ia para o produto da venda (nº 3).[5]
“Em qualquer destas hipóteses, a lei determina que os bens se transmitem livres do direito real do terceiro, o que é o mesmo que dizer que se transmite a propriedade plena e não apenas o direito real menor de gozo do executado (no nosso exemplo: a propriedade de raiz, direito de propriedade limitado pelo usufruto).”[6]
“Tendo a hipoteca, a favor do credor reclamante, sido registada em data anterior à do registo de usufruto que foi objecto de penhora, tal garantia hipotecária também incide sobre o usufruto, razão pela qual, em face dessa garantia, tem esse credor reclamante o direito de ver reconhecido o seu crédito e de ser pago em primeiro lugar, à frente do exequente, pelo produto da venda do usufruto, que foi objecto de penhora;
Isto porque, por força da prioridade do registo, e em face do disposto no art. 696º do C. Civil, a hipoteca incide sobre a propriedade plena, propriedade essa que, atento o seu conteúdo, definido no art. 1305º do C. Civil, inclui os poderes de uso e fruição que, nos termos do disposto no art. 1439º do mesmo diploma, são conferidos ao usufrutuário.” [7] 
Não foi este o caminho percorrido no processo de insolvência, mas nem por isso o direito do credor hipotecário fica beliscado.
A vingar a tese da apelada – extinção da hipoteca, tal como constituída, sobre a propriedade plena, ou seja, abrangendo o usufruto, passando o ora exequente a gozar de preferência sobre o produto da venda – sairia este lesado no seu direito, uma vez que o produto daquela venda incidiu apenas sobre a nua propriedade, ficando assim impossibilitado de exercer o seu direito na sua plenitude. Esta tese atenta manifestamente contra o princípio da prioridade do registo consagrado no artº 6º, nº 1 do Código de Registo Predial e o princípio da indivisibilidade da hipoteca.
Só por lapso da Conservatória do Registo Predial foi efetuado averbamento oficioso de cancelamento da hipoteca (sem distinção) – lapso que foi determinante na prolação da decisão recorrida e que veio a ser corrigido. Retificação esta permitida pelo artº 121º do C.R.P., que se impunha pela transparência e verdade material, e que não contende com o princípio da segurança jurídica, ao invés do defendido pela apelada. Saliente-se que, diversamente do teor da conclusão 1ª das contra-alegações, à data da instauração da execução a exequente dispunha de título, como acima vimos.
Acresce que não está em causa a existência de duas hipotecas (uma sobre a nua propriedade e outra sobre o usufruto) ou a violação do princípio da indivisibilidade.
A hipoteca registada em 10/02/2006 abrangeu a propriedade plena do prédio. Por força da venda da nua propriedade em processo de insolvência a hipoteca registada sob a Ap. 76 ficou automaticamente limitada, no que se refere ao seu objeto, ao direito de usufruto, por força da compressão decorrente da caducidade do direito real de garantia sobre a nua propriedade.
Mantendo-se o registo de hipoteca sobre o usufruto (o cancelamento da hipoteca incide inequivocamente apenas sobre a nua propriedade), há que concluir que a executada/embargante continua a ter legitimidade (passiva) para ser demandada pelo exequente, no que respeita à hipoteca que tem por objeto o usufruto, nos termos do disposto no artº 54º, nº 2 do CPC.
Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida e, consequentemente, julgam-se improcedentes os embargos.
Custas do recurso a cargo da apelada.

Lisboa, 25 de fevereiro de 2021                                                      Teresa Sandiães
Ferreira de Almeida
António Valente   
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[1] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral,  vol. II, pág. 535
[2] Ob. citada, pág. 539-540
[3] Almeida Costa, Direito das Obrigações, pág. 802).
[4] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol II, pág. 87
[5] “Imaginemos que há um usufruto registado depois duma hipoteca ou do registo da penhora. O usufruto caduca, mas transferem-se para o remanescente, pagos os credores, os direitos do usufrutuário.”- Pires de Lima e Antunes Varela, ob. citada, pág. 87.
[6] Lebre de Freitas, A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013”, pág. 391
[7] Acórdão da Relação de Évora de 28/05/2015, disponível em www.dgsi.pt