Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
97/19.0YHLSB.L1-PICRS
Relator: CARLOS M. G. DE MELO MARINHO
Descritores: PROPRIEDADE INDUSTRIAL
MARCA
FUNÇÃO DISTINTIVA DA MARCA
REPRODUÇÃO DE MARCA
MARCA PRIORITÁRIA
REGISTO DE MARCA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. A pressa e ligeireza simplificadora associadas, tantas vezes, ao acto de consumo conduzem à eliminação dos elementos nominativos fracos e à atenção aos referentes fortes;
II. Daqui resulta que o consumidor procura em cada conjunto de palavras o elemento preponderante e não necessariamente o primeiro;
III. Quem realiza a ponderação da resgistabilidade da marca e da possibilidade de imitação da marca anterior deve buscar o elemento forte ou preponderante dos signos ou palavras, id est, aquilo que chama a atenção dos menos atentos, que apela pelo humor, originalidade, carácter surpreendente ou outro factor chamativo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção em matéria de Propriedade Intelectual e de Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I. RELATÓRIO                 
FUNDAÇÃO EUGÉNIO DE ALMEIDA, com os sinais identificativos constantes dos autos, interpôs recurso dos despachos da Senhora Directora da Direcção de Marcas e Patentes do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, de concessão dos registos de marca nacionais n.º 599429, “RODA MANCA”, e, n.º 599433, “RODA MANCA COLEÇÃO PRIVADA” contra SOCIEDADE AGRÍCOLA D. DINIZ, S.A., neles também melhor identificada.
O Tribunal «a quo» descreveu os contornos da acção e as suas principais ocorrências processuais até à sentença nos seguintes termos:
A Fundação Eugénio de Almeida, com sede no Páteo de S. Miguel em Évora, veio interpor recurso do despacho proferido pela Directora da Direcção de Marcas e Patentes do Instituto Nacional da Propriedade Industrial que concedeu o Registo das Marcas Nacionais nº 599429 “Roda Manca” e nº 599433 “Roda Manca Colecção Privada” à Sociedade Agrícola D. Dinis SA, com sede no Monte da Ravasqueira em Arraiolos, peticionando a respectiva revogação e ser negada protecção aquelas marcas.
Alega, em síntese, ser a Recorrente titular dos registos de marca “Pêra Manca”:
- marca EU nº 015978976, concedida em 21.4.2017, na classe 33 da classificação internacional de Nice;
- marca nacional nº 283684, concedida em 7.6.1994, na classe 33 da classificação internacional de Nice;
- marca nacional nº 308864, concedida em 1.4.1996, na classe 33 da classificação internacional de Nice;
- marca nacional nº 405797, concedida em 15.1.2010, na classe 33 da classificação internacional de Nice.
As suas marcas são prioritárias relativamente às marcas da Recorrida em apreço em juízo.
As marcas em confronto destinam-se a assinalar produtos idênticos: vinhos.
As marcas registandas constituem uma imitação das marcas da Recorrente e são passíveis de favorecer a prática de actos de concorrência desleal.
Cumprido o art 43 do CPI, o INPI remeteu cópia do processo administrativo.
Citada a Recorrida, esta contestou, pugnando pela inexistência de possível confusão entre “Roda Manca” e “Pêra Manca”.
Foram realizadas a instrução, a discussão e o julgamento da causa, tendo sido proferida sentença que decretou:
Por tudo o explanado e nos termos sobreditos, concedo provimento ao presente recurso, revogando os despachos recorridos do INPI, datados de 8 e 9.1.2019, que concederam o registo das marcas nacionais nº 599429 “Roda Manca” e nº 599433 “Roda Manca Colecção Privada” à Sociedade Agrícola D. Dinis SA.
É dessa sentença que vem o presente recurso interposto por SOCIEDADE AGRÍCOLA D. DINIZ, S.A., que alegou e apresentou as seguintes conclusões e pedido:
 1. O termo comum entre as marcas PÊRA MANCA e RODA MANCA é o adjectivo MANCA;
2. Ensina a Doutrina que entre sinais mistos, o elemento distintivo dominante é o primeiro elemento constitutivo da marca;
3. Ensina a Jurisprudência que o consumidor tende a fixar-se no primeiro elemento nominativo constitutivo da marca;
3. Assim, o elemento dominante, em que o consumidor tende a fixar-se, não é o comum, nas marcas em confronto.
4. E não havendo semelhança relativamente ao elemento prevalecente, as duas marcas podem e devem subsistir na ordem jurídica, sem risco de confusão ou associação entre uma e outra, sem necessidade de exame atento.
Donde, pela motivação e pelos fundamentos expostos, foram violados os artigos 232º, nº 1, al. b) e 232º do Código da Propriedade Industrial, por má aplicação dos mesmos.
Pelo que deve ser concedido provimento a esta Apelação e revogado o decidido, que julgou parcialmente procedente e provado o recurso interposto, com as legais consequências (…).
A FUNDAÇÃO EUGÉNIO DE ALMEIDA respondeu às alegações de recurso concluindo:
1. A Fundação Eugénio de Almeida é a legítima proprietária das marcas de vinhos - notoriamente conhecidas - “PÊRA-MANCA”.
2. A Recorrida tem devidamente protegidas pelo registo as marcas “PÊRAMANCA” identificadas nos pontos 3 a 6 da matéria de facto, incluindo a marca nominativa “PÊRA-MANCA”, identificada no ponto 3.
3. Essas marcas são prioritárias, em relação aos pedidos de registo das marcas nacionais n.º 599429, “RODA MANCA”, e, n.º 599433, “RODA MANCA COLECÇÃO PRIVADA”, da Recorrente, por terem sido concedidas em datas anteriores a esses pedidos.
4. As marcas em confronto destinam-se a assinalar produtos idênticos: vinhos.
5. As marcas registandas reproduzem a expressão “MANCA” das marcas da Recorrida.
6. Essa palavra tem elevado carácter distintivo, no âmbito de especialidade dos vinhos, por o seu significado (coxa, que pende para um lado) não ser de molde a estabelecer qualquer conexão valorativa com os produtos, sendo, por consequência, uma denominação de fantasia.
7. Ora, o art.º 245.º, n.º 3 do CPI dispõe que «Considera-se imitação ou usurpação parcial de marca o uso de certa denominação de fantasia que faça parte de marca alheia anteriormente registada».
8. É manifesto que as marcas registandas, ao reproduzirem a expressão “MANCA”, procuram tirar partido indevido da notoriedade das marcas “PÊRA-MANCA”, com as quais estabelecem facilmente a confusão, compreendendo um risco de associação com as mesmas.
9. Razões por que bem se concluiu que as marcas registandas constituem uma imitação das marcas da Recorrida, nos termos previstos no artigo 245.º, n.ºs 1 e 3 do C.P.I.
10. Por consequência, os despachos recorridos violaram o disposto no artigo 239.º, n.º 1, al. a) do C.P.I.
11. Acresce que, o uso das marcas “RODA MANCA” e “RODA MANCA COLEÇÃO PRIVADA” pode servir à Recorrente para fazer concorrência desleal à Recorrida, mesmo independentemente da sua intenção, pois aquelas marcas são aptas à prática de actos de confusão e associação com as marcas “PÊRA-MANCA”.
12. Por consequência, os despachos recorridos violaram, também, o disposto no artigo 239.º, n.º 1, al. e) do C.P.I.
Termos em que, nos melhores de Direito, e com o sempre douto suprimento de V. Ex.ªs, deve a apelação ser rejeitada e mantida a douta sentença recorrida, (…)!
Cumprido o disposto na 2.ª parte do n.º 2 do art. 657.º do Código de Processo Civil, cumpre apreciar e decidir.
É a seguinte a questão a avaliar:
Não havendo semelhança, no caso em apreço, relativamente ao elemento prevalecente, as duas marcas podem e devem subsistir na ordem jurídica sem risco de confusão ou associação entre uma e outra, sem necessidade de exame atento?
II. FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentação de facto
Vem provado que:
1. Em 8.1.2019, a Directora da Direcção de Marcas e Patentes do INPI concedeu à Recorrida o registo da marca nacional nº 599433 “Roda Manca Colecção Privada”, para assinalar “vinhos” na classe 33 da classificação internacional de Nice.
2. Em 9.1.2019, a Directora da Direcção de Marcas e Patentes do INPI concedeu à Recorrida o registo da marca nacional nº 599429 “Roda Manca”, para assinalar “vinhos” na classe 33 da classificação internacional de Nice.
3. A Recorrente é titular da marca EU nº 015978976 “Pêra Manca”, concedida em 21.4.2017, para assinalar “bebidas alcoólicas (excepto cervejas), incluindo vinhos” na classe 33 da classificação internacional de Nice.
4. A Recorrente é titular da marca nacional nº 283684 “Pêra Manca”, com o sinal,
(Imagem removida)
concedida em 7.6.1994, para assinalar “vinhos brancos ou tintos” na classe 33 da classificação internacional de Nice.
5. A Recorrente é titular da marca nacional nº 308864 “Pêra Manca” com o sinal misto,
(Imagem removida)
concedida em 1.4.1996, para assinalar “vinho branco” na classe 33 da classificação internacional de Nice.
(Imagem removida)
6. A Recorrente é titular da marca nacional nº 405797, com o sinal misto,
concedida em 15.1.2010, para assinalar “bebidas alcoólicas, com excepção de cervejas” na classe 33 da classificação internacional de Nice.
7. Os vinhos “Pêra Manca” receberam vários prémios nacionais e internacionais e foram incluídos na obra “Tributo a Marcas de Excelência em Portugal”.
Fundamentação de Direito
Não havendo semelhança, no caso em apreço, relativamente ao elemento prevalecente, as duas marcas podem e devem subsistir na ordem jurídica sem risco de confusão ou associação entre uma e outra, sem necessidade de exame atento?
Mostram-se plenamente adequadas as considerações de enquadramento jurídico da matéria carreada aos autos lançadas na decisão impugnada. Seria ociosa a sua repetição ou reconstrução, sendo linear o percurso até à questão realmente controvertida.
Estamos perante pedido de intervenção jurisdicional assente em normas que, em última instância, visam proteger o consumidor, a livre concorrência e o bom funcionamento da economia.
É correcto o recurso à definição de marca lançada no art. 208.º do Código da Propriedade Industrial, sendo também fiel a esse preceito a distinção de marcas construída na sentença, literalmente, sob o preceito interpretando.
É certo e insofismável o direito de exclusão de todas marcas colidentes conferido pelo art. 210.º, invocado.
É segura a adequação da referência feita na decisão criticada às exigências constitutivas e estruturais da marca que se extraem pela negativa dos arts. 231.º e 232.º do encadeado normativo sob indicação.
Tem acerto o dito relativo à função distintiva da marca e ao princípio da novidade «e/ou» da especialidade, com mira assente na exigência de não confundibilidade e no escopo de garantir a lealdade da concorrência e o afastamento do erro dos consumidores.
Chegado à norma decisiva para o juízo que empreendia, o Tribunal identificou, com adequação, os comandos emergentes do n.º 1 do art. 238.º do Código sempre sob menção e, com igual propriedade, atingiu a conclusão no sentido da existência de prioridade da marca alegadamente obstaculizante e da finalidade comum de assinalar produtos idênticos. Trata-se de termo de percurso indiscutido (e ora indiscutível face à escolha do objecto do recurso).
Subsiste o debate, exclusivamente, quanto ao preenchimento, in casu, da previsão normativa lançada na al. c) do n.º 1 do art. 238.º do Código da Propriedade Industrial, que estatui:
1 - A marca registada considera-se imitada ou usurpada por outra, no todo ou em parte, quando, cumulativamente:
c) Tenham tal semelhança gráfica, figurativa, fonética ou outra que induza facilmente o consumidor em erro ou confusão, ou que compreenda um risco de associação com marca anteriormente registada, de forma que o consumidor não as possa distinguir senão depois de exame atento ou confronto.
Comparamos, na situação em apreço, sinais mistos mas, sobretudo, atento o peso referenciador e distintivo das palavras, cotejamos a marca/expressão pré-existente «pêra-manca» e o recém-chegado conjunto verbal «Roda Manca».
Há insofismável diferença entre «roda» e «pêra» e perfeito decalque na palavra «manca».
A Recorrente sustenta que a semelhança é irrelevante já que o que importaria seria o primeiro elemento constitutivo da marca.
A este nível, milita, com o devido respeito, com base numa generalização destituída de fundamento. Teria razão, ao invés, se pudéssemos concluir que o consumidor médio, além de ligeiro na abordagem da marca, faz escolhas visuais mecânicas, quase autistas, elegendo sempre apenas o início das marcas e descurando as segundas e terceiras (…) partes bem como todos os elementos compostos. Tal não corresponde, porém, à realidade. Antes a pressa e ligeireza simplificadora associadas, tantas vezes, ao acto de consumo conduzem à eliminação dos elementos fracos e à atenção aos referentes fortes. Daqui resulta que o aludido consumidor procura em cada conjunto de palavras o elemento preponderante e não necessariamente o primeiro.
Ciente desta abordagem relativa à indagação e abordagem psicológica associadas ao momento da escolha para consumo, quem realiza a ponderação da resgistabilidade da marca e da possibilidade de imitação da marca anterior deve buscar o elemento forte ou preponderante dos signos ou palavras, id est, aquilo que chama a atenção dos menos atentos, que apela pelo humor, originalidade, carácter surpreendente ou outro factor chamativo.
O caso em apreço é, justamente, um bom exemplo do funcionamento deste mecanismo. Nem «pêra» nem «roda» são particularmente apelativos, por si só, atento o seu carácter comum e neutro enquanto referentes apontados a objectos do quotidiano.
O que marca indelevelmente e chama a atenção de forma insofismável é a associação à comum «pêra» ou a uma roda do vocábulo «manca». É original a associação; quase humorística se tivermos presente a semântica que liga «manca» a aleijada, claudicante, que se inclina para um dos lados. E isto funciona com qualquer consumidor, qualquer que tenha sido a verdadeira história por detrás da eleição do vocábulo. O que é distintivo é o facto de uma pêra claudicar ou estar aleijada, algo incomum, sem sentido, eventualmente despoletador do funcionamento do sentido de humor ainda que a um nível não particularmente apurado.
Neste inelutável contexto, estando no mercado o produto «pêra-manca», o dito consumidor médio e medianamente atento que encontre na prateleira de um supermercado uma garrafa de vinho «roda manca» tenderá a pensar que os produtores da «sua», mais ou menos conhecida, «pêra-manca» têm um novo produto no mercado.
Este fenómeno, além de concretizar a fattispecie legal relativa à imitação de marca, desenhada no n.º 1 do  art. 238.º do conjunto de normas sob invocação, permitiria, em termos estritamente económicos, que a Recorrente recebesse um forte mas ilegítimo impulso inicial de comercialização não assente nos seus próprios méritos mas na existência de um mercado dos vinhos «pêra-manca» povoado por consumidores habituados a escolher tais vinhos.
Estaríamos perante inadmissível afunilamento das regras da concorrência e indevido aproveitamento dos resultados de actividade alheia.
Teve, pois, plena razão o Tribunal «a quo» quando concluiu que o elemento prevalecente era o nominativo «manca» e quando admitiu, pelo menos, a dúvida concomitante do consumidor.
Não se tecem juízos sobre o elemento subjectivo, à míngua de factos, não se sabendo se a escolha da marca registanda correspondeu a acto de aproveitamento directo e intencional de notoriedade e prestígio alheios, a manifestação de mera inépcia no domínio do conhecimento das regras do Direito das Marcas ou a qualquer outro mecanismo volitivo.
O que importa, isso sim, e aqui chegados, é reconhecer que o Tribunal que proferiu a decisão impugnada decidiu com acerto no que tange à conclusão a que chegou no sentido da revogação dos despachos dos INPI aí apontados, já que toda a técnica impunha, de forma flagrante, a revogação destes e a rejeição dos actos pedidos ao referido Instituto.
É negativa a resposta à questão proposta.
III. DECISÃO
Pelo exposto, julgamos a apelação improcedente e, em consequência, confirmamos a decisão impugnada.
Custas pela Apelante.
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Lisboa, 04.02.2020
Carlos M. G. de Melo Marinho
Ana Isabel de Matos Mascarenhas Pessoa
Rui Miguel de Castro Ferreira Teixeira