Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3884/2003-4
Relator: FERREIRA MARQUES
Descritores: EXECUÇÃO
DÍVIDA
EMBARGOS DE EXECUTADO
TÍTULO EXECUTIVO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/18/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Sumário: I - Nos casos em que a execução não se baseie em sentença, os embargos de executado assumem natureza auxiliar ou instrumental da execução, sendo perante esta (execução) que deve ser equacionada a questão do ónus da prova.
II - Nesses casos incumbe ao exequente demonstrar que a aparência do seu direito substancial constante do título é uma certeza, ou seja, que tem mesmo o direito.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

A Companhia de Seguros (A) S.A., na execução que lhe foi movida pelo Hospital (B) para pagamento da quantia de esc. 2.439.065$00, deduziu embargos de executado, pedindo a sua absolvição da instância da referida execução.
Fundamentou a sua pretensão no facto de a entidade para a qual o assistido trabalhava não ter transferida para si a responsabilidade por acidentes de trabalho, dado que a apólice que essa entidade subscreveu destinava-se a dar cobertura não aos riscos emergentes de acidentes de trabalho, mas sim ao risco de responsabilidade civil perante terceiros por danos eventualmente ocorridos no âmbito do exercício da sua actividade.
O embargado contestou alegando, em síntese, que a embargante pretende eximir-se ao pagamento da quantia exequenda, pois da apólice junta aos autos não são excluídos os acidentes de trabalho. Além disso, na execução, fundada em certidão de dívida, não há lugar à invocação de factos atinentes ao acidente de trabalho ou quaisquer outros, sendo à executada que cabe, em sede de oposição, o ónus da prova dos factos que considere extintivos ou modificativos da obrigação que foi invocada na execução.
Findos os articulados foi proferida decisão que julgou procedentes os embargos deduzidos pela executada Companhia de Seguros (A) S.A. e, em consequência, absolveu esta da execução que lhe moveu o Hospital (B).

Inconformado, o exequente/embargado interpôs recurso de apelação da referida sentença, tendo sintetizado as suas alegações nas seguintes conclusões:
1ª) - A certidão de dívida que serviu de título executivo à presente acção tem força executiva em relação à executada/embargante, por obedecer aos requisitos para ela previstos no DL 194/92, de 8/9.
2ª) - A embargante é na presente acção, terceira contratualmente responsável, nos termos do n.º 1 do art. 2º do DL 194/92, de 8/9;
3ª) - Em sede de embargos, cabe à embargante o ónus da prova dos factos modificativos ou extintivos da obrigação que invoca;
4ª) - O apuramento do responsável pela produção do acidente de viação dos autos, far-se-á em sede de audiência de discussão e julgamento;
Terminou pedindo que se dê provimento ao recurso e que, em consequência, se revogue a sentença recorrida e se substitua por outra que determine o prosseguimento dos embargos.
A executada/embargante, na sua contra-alegação, pugnou pela manutenção da sentença recorrida e pela improcedência do recurso.

Admitido o recurso na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a esta Relação onde, depois de colhidos os legais vistos, cumpre apreciar e decidir.

No presente recurso suscitam-se, fundamentalmente, duas questões:
1. Natureza e caracterização do título executivo constituído por uma certidão de dívida emitida por um hospital integrado no Serviço Nacional de Saúde;
2. Sobre quem impende o ónus da prova dos factos constitutivos do direito do exequente, havendo oposição à execução baseada nesse título.

II. FUNDAMENTOS DE FACTO

A 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
1. Por documento subscrito pelo Presidente do Conselho de Administração do Hospital (B), intitulado “certidão de dívida”, é certificado que (C) recebeu assistência naquele hospital, em 1997, com submissão a tratamentos médicos e hospitalares, devido a acidentes de trabalho, ocorrido quando laborava por conta de (D), Lda., cuja responsabilidade se encontrava transferida para a Companhia de Seguros (A) S.A., pela apólice n.º 25940;
2. A dívida certificada nesse documento totaliza a importância de esc. 2.439.065$00;
3. A (D), Lda. transferiu a sua responsabilidade civil por danos materiais por si causados a terceiros no exercício da sua actividade profissional, quando resultante das situações descritas a fls. 12 e 13, para a Companhia de Seguros (A) S.A., através da apólice n.º 87/29.940, junta aos autos a fls. 9 a 14, que se dá aqui por reproduzida.

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO

Alega o recorrente que a certidão de dívida que serviu de base à execução tem força executiva em relação à executada/embargante, por obedecer aos requisitos para ela previstos no DL 194/92, de 8/9 e, sendo título executivo válido e eficaz, cabia a esta, para os embargos procederem, o ónus de alegar e provar factos modificativos ou extintivos da obrigação invocada, o que ela não fez.
Da certidão junta aos autos de execução consta como responsável pelas importâncias devidas pelos actos médicos nela discriminados a ora embargante.
Porém, o facto de a embargante figurar na certidão como devedora isso não significa que ela seja a verdadeira responsável pelo pagamento da dívida, ou que não se possa discutir na execução que lhe foi movida pelo exequente, ora apelante, se ela é, de facto, a responsável pelo cumprimento da obrigação titulada por aquele documento.
Embora o título executivo seja a demonstração do direito substancial do exequente, essa demonstração não tem a mesma força relativamente a todos os títulos executivos.
O título que serve de base à presente execução é constituído por uma certidão emitida pelo Presidente do Conselho de Administração do Hospital (B), na qual se certifica que (C) recebeu assistência naquela instituição, em 1997, a lesões sofridas num acidente de trabalho, ocorrido quando trabalhava por conta de (D), Lda., cuja responsabilidade se encontrava transferida para a Companhia de Seguros (A) S.A., pela apólice n.º 25940.
Trata-se de um documento a que, por disposição especial (arts. 2º e 4 do DL 194/92, de 8/9), foi atribuída força executiva (art. 46º, al. d) do CPC).
De acordo com os referidos normativos, as certidões de dívida às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde [SNS], por serviços ou tratamento prestados, são títulos executivos desde que a certidão obedeça aos requisitos consignados nas alíneas a) a e) do n.º 2 do referido art. 2º.
No caso de dívidas resultantes de assistência ou de tratamentos prestados a sinistrados em acidentes de viação e de trabalho a execução corre solidariamente contra a entidade transportadora ou entidade patronal e a respectiva seguradora, se houver seguro.
As razões que levaram o legislador a proceder assim estão patentes no preâmbulo do DL 194/92, onde se afirma que no cumprimento da lei de bases do Serviço Nacional de Saúde (Lei n.º 48/90, de 24/8), os serviços e estabelecimentos do SNS podem cobrar o pagamento de serviços e cuidados prestados e devem fazê-lo atempadamente de modo a evitar as prescrições das dívidas, nos termos dos arts. 317º al. a) e 498º do Cód. Civil. Diz-se ainda nesse preâmbulo que é moroso o recurso à acção declarativa como forma de obter a declaração de direitos quase sempre certos e indiscutíveis, havendo, por isso, que repristinar a solução já consagrada no art. 6º da Lei 1981, de 3/4/40, que atribuía força executiva às certidões de dívida pelo tratamento de doentes passadas pelos Hospitais Civis de Lisboa, assim se ultrapassando essa morosidade.
Esta solução, introduzida pelo DL 194/92, de 8/9, como se verificou mais tarde, acabou também por revelar-se inadequada aos objectivos enunciados. De facto, a atribuição de força executiva a essas certidões não veio, na realidade, conferir maior celeridade aos procedimentos judiciais de execução das dívidas hospitalares, porquanto, na generalidade dos casos, a existência do crédito reclamado judicialmente e a verdadeira identidade do devedor ou do responsável pelo pagamento do dívida exequenda passaram a ser discutidas, como sucedeu no caso em apreço, em sede de embargos à execução, que seguem a tramitação de uma acção declarativa, acabando, ao fim e ao cabo, por perder-se o mesmo tempo que se perdia antes quando as certidões de dívida não constituíam título executivo e era necessário instaurar acção declarativa para o obter.
Por outro lado, a existência de uma acção executiva sem que exista a necessária certeza quanto à identidade do devedor, como sucede no caso em apreço, gerou a necessidade de estabelecer um conjunto de regras complexas para determinar a legitimidade passiva na referida acção executiva e que na prática judiciária se revelaram de difícil aplicação. Acresce a tudo isto que foram suscitados problemas de constitucionalidade de algumas normas na interpretação que delas foi feita.
Neste contexto e na perspectiva de simplificar os procedimentos, mas sem afastar os princípios gerais de direito relativamente ao reconhecimento e execução dos direitos, o legislador acabou por alterar - com o DL 218/99, de 15/6 - as regras processuais do regime de cobrança das dívidas hospitalares e por revogar o DL 194/92, de 8/9 (cfr. arts. 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 14º do DL 218/99, de 15/6).
Assim, com o DL 218/99, de 15/6, é, de novo, e como regra geral, consagrada a acção declarativa, com algumas especialidades.
Mas voltando ao caso em apreço, que se rege ainda pelo DL 194/92, de 8/9, há que ter presente que nas certidões de dívida hospitalares o título executivo reside no documento e não no acto documentado, por ser na força probatória do escrito, atentas as formalidades para ele exigidas, que radica a eficácia executiva do título (quer o acto documentado subsista ou não). As exigências da lei quanto à formação do título destinam-se a estabelecer a garantia ou a dar a segurança de que onde está um título executivo está ao mesmo tempo um direito de crédito, nem que seja por mera aparência dele. É que não se pode esquecer a característica da abstracção do título executivo e a autonomia entre a acção executiva e o direito substancial do exequente (cfr. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed. 1985, pág. 79 e 92 e Alberto dos Reis, Processo de Execução, I, 1985, pág. 107).
Mas se o título é para além do mais, a demonstração do direito substancial do exequente, ela não tem a mesma força relativamente a todos os títulos executivos. Uma sentença condenatória, transformada em título executivo tem um grau de demonstração ou de aparência do direito substancial do exequente muito superior ao que se verifica em relação aos demais títulos executivos. Daí que os meios de oposição à execução baseada em sentença (previstos no art. 813º do CPC) sejam mais restritivos do que os previstos para a oposição à execução baseada noutros títulos (art. 815º do CPC).
Diz-se no n.º 1 deste último preceito que “se a execução não se basear em sentença, além dos fundamentos de oposição especificados no art. 813º, na parte em que sejam aplicáveis, podem alegar-se quaisquer outros que seria lícito deduzir como defesa em processo de declaração.” E compreende-se que assim seja, já que o executado não teve oportunidade de, em acção declarativa prévia, se defender amplamente da pretensão do exequente.
Os embargos de executado funcionam nestes casos como uma contra-acção que tem como escopo destruir os efeitos do título, o que se conseguirá se, através da sentença for decidido que o pretenso direito de crédito do exequente não existe. “A relação jurídica substancial que até aí era impotente para abafar a eficácia do título executivo, afirma agora o seu predomínio e afirma-o por intermédio da sentença proferida no processo de oposição que é um verdadeiro processo (...) declarativo” (cfr. Alberto dos Reis, Processo de Execução, I, 1985, pág. 111), instrumental e auxiliar da execução.
Sendo assim, espelhando o título executivo, nestes casos, não a certeza do direito do exequente mas tão só uma forte probabilidade ou aparência dele, quanto à sua substância, sempre que o executado – accionado na base de um título dessa espécie – questione, em sede de oposição, a existência desse direito, é ao exequente, que se arroga a existência do direito substancial espelhado no título que compete provar os elementos constitutivos desse direito – art. 342º, n.º 1 do Cód. Civil (cfr. Acs. da RP, de 10/10/95, CJ, 1995, 4º, pág. 215; da RE, de 10/7/97, CJ, 1997, 4º, pág. 268 e Anselmo de Castro, Acção Executiva, pág. 46, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 61).
No caso em apreço, o exequente, ora apelante, identifica no título como responsável pelo pagamento dos serviços prestados ao assistido (C) a Companhia de Seguros (A) S.A., ora apelada, e na contestação aos embargos deduzidos por esta, alega que prestou assistência hospitalar ao referido(C) na sequência de acidente de trabalho por este sofrido quando este laborava por conta, sob as ordens e direcção de (D), Lda., cuja responsabilidade por danos emergentes de acidentes de trabalho se encontrava transferida para aquela companhia de seguros, através de contrato de seguro, mas nunca conseguiu demonstrar, como lhe competia, esse facto.
É certo que referiu e juntou documentação onde se faz referência à apólice n.º 87/29.940, mas esta destina-se apenas a dar cobertura ao risco de responsabilidade civil por danos ocasionados a terceiros pela executada (D) no exercício da sua actividade, estando os acidentes de trabalho ocorridos com os seus trabalhadores expressamente excluídos da cobertura dessa apólice, como resulta claramente do art. 3º, n.º 1, al. f) das condições gerais da apólice.
Aliás, após a embargante ter expressamente alegado que a referida (D), entidade patronal do assistido, não tinha subscrito consigo qualquer seguro que se destinasse a cobrir o risco de acidentes de trabalho sofridos por quem se encontrasse ao seu serviço, o embargado, ora apelante, limitou-se a afirmar que é àquela que cabe o ónus da prova de tal facto negativo.
Ora, tendo os embargos de executado, nesta espécie de títulos executivos, a natureza instrumental ou auxiliar da execução, é perante a acção executiva que a questão do ónus da prova deve ser equacionada, sendo, portanto, ao exequente que incumbe demonstrar que a aparência do seu direito substancial constante do título que deu à execução é uma certeza, ou seja, que tem mesmo esse direito (cfr. Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 76; Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular Comum e Especial, 1970, pág. 236, Ac. da RP, de 10/10/95, CJ, 1995, 4º, 215 e Ac. da RE, de 10/7/97, CJ, 1997, 4º, 268).
Tendo a seguradora/executada deduzido oposição à execução, alegando que não tinha subscrito qualquer seguro que se destinasse a cobrir o risco de acidentes de trabalho sofridos por quem se encontrasse ao serviço da (D), cabia ao exequente provar em juízo que esta tinha efectivamente transferido para aquela a sua responsabilidade infortunística por acidentes de trabalho. Daí que não tendo conseguido fazer tal prova, se tenha de concluir pela não verificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar que, em face do teor do título executivo, a seguradora estaria constituída.
Alega o apelante que a execução foi instaurada com base numa certidão de dívida perfeitamente idónea, válida e eficaz, mas salvo o devido respeito, não é bem assim, pois o facto que nela consta de que a responsabilidade da (D) por acidentes de trabalho se encontra transferida para a Companhia de Seguros (A) S.A., através da apólice n.º 25940, não é verdadeiro, como, aliás, o próprio apelante expressamente reconhece. E não sendo verdadeiro tal facto, a referida certidão não é idónea, nem pode considerar-se válida nem eficaz.
Alega ainda o apelante que não estava obrigado a descrever na certidão de dívida ou na petição de dívida, os factos que originaram o acidente dos autos, cujo ónus impendia sobre a embargante. Mas, além de não ter razão no que afirma, não é isso que aqui está em causa; não são as circunstâncias do acidente que importa apurar, mas sim uma questão prévia a essa, que é a de saber se a apelada pode ser responsabilizada por esse acidente.
Finalmente a última conclusão do recurso também não tem o menor cabimento. Se nenhuma das partes se pronunciou sobre as circunstâncias do acidente nem sobre o “responsável pela produção do acidente de viação dos autos”, se nada a respeito dessa matéria foi posto em causa neste processo, e se a audiência de discussão e julgamento só pode incidir sobre matéria de facto alegada que se mostre controvertida e com interesse para a decisão da causa, não se compreende que o apelante conclua o seu recurso afirmando que não se podia por termo ao processo no despacho saneador, na medida em que ainda não se procedeu ao apuramento daquela matéria, apuramento esse que só pode ter lugar em sede de audiência de discussão e julgamento.
Improcedem, assim, todas as conclusões da apelação, devendo manter-se integralmente a sentença recorrida, pois soube aplicar, de forma correcta, o direito à matéria de facto provada.

IV. DECISÃO

Em conformidade com os fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a sentença recorrida.
Sem custas, por delas estar isento o recorrente.

Lisboa, 18 de Junho de 2003

(Fereira Marques)
(Maria João Romba)
(Paula Sá Fernandes)