Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5499/2006-6
Relator: FÁTIMA GALANTE
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
ALIMENTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/24/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I - A acção de divórcio não pode ser qualificada como acção real, ainda que nela se proceda à partilha do património do casal e deste façam parte bens imóveis situados em Portugal.
II - Também aqui, tal como no processo de inventário, se vai, de acordo com as regras jurídicas aplicáveis, operar a convolação de um direito unitário e global sobre uma parte de um universo de bens para direitos concretos e individualizados sobre bens que integram a comunhão conjugal.
III - O conceito de acções relativas a direitos reais sobre imóveis não deve ser interpretado no sentido se englobar toda e qualquer acção que se relacione como quer que seja indirectamente, ou se prenda a título secundário ou acessório com um direito real sobre imóvel, alheada do escopo garantístico de faculdades compreendidas na titularidade do direito, mas tão-somente aquelas que tendem a determinar a extensão, a consistência, a propriedade, a posse de um bem imóvel, ou a existência de outros direitos reais sobre estes bens, e a garantir aos respectivos titulares a protecção das prerrogativas emergentes dessa titularidade, tendo no direito real o seu objecto ou fundamento nuclear como causa petendi;
IV - A matéria sobre que a sentença versa não é, assim, da exclusiva competência dos tribunais portugueses (art. 65-A do Código de Processo Civil).

(F.G.)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I – RELATÓRIO

Maria, intentou acção declarativa, com processo especial, contra V, pedindo a revisão e confirmação da sentença estrangeira que lhes decretou o divórcio, alegando, em resumo, que o Supremo Tribunal da África do Sul – divisão local de Witwatersrand, decretou, por sentença proferida em 2 de Março de 2006, o divórcio entre ambos, sentença que transitou em julgado.

O requerido foi citado e contestou nos termos constantes do articulado a fls. 31 a 42 dos autos, pondo em causa a validade da sentença, na parte referente à prestação de alimentos devidos à filha do casal, S, bem como no tocante à partilha dos bens imóveis situados em Portugal.

Cumprido o disposto no artigo 1099º nº 1 do CPC, o Ministério Público afirmou nada ter a opor à homologação da decisão de divórcio, desde que não englobe a partilha dos bens imóveis situados em Portugal.

Não foram invocadas excepções dilatórias ou nulidades processuais, nem resultam do processo vícios dessa espécie que devam ser oficiosamente conhecidos.

II – FACTOS PROVADOS

1. A Requerente e o Requerido casaram um com o outro no dia 18 de Junho de 1975, em Joanesburgo.
2. Esse casamento acha-se transcrito na Conservatória dos Registos Centrais.
3. Foi decretado o divórcio da Requerente e Requerido, por mútuo consentimento, por sentença proferida Supremo Tribunal da África do Sul – divisão local de Witwatersrand, em 2 de Março de 2006, sentença que transitou em julgado.
4. Requerente e Requerido acordaram que seriam pagos 1.500,00 R, por mês com efeito a partir de 1/3/2006, pelo Requerido pai à filha S e que esta obrigação deveria decorrer até ao final de 2006 e sujeito à S passar todos os seus exames e continuar a mostrar aptidão para prosseguir educação superior com a devida diligência, continuam os 1.500,00 Rands a ser pagos até final de 2007.
5. Foi ainda determinado nessa sentença, de acordo com o acordado entre Requerente e Requerido, que o imóvel comum que possuem na Parede, Cascais, ficará registada em nome de ambos e em partes iguais.
6. Mais ficou determinado que os bens móveis situados na propriedade supra referida seriam atribuídos à Requerente.
7. Daquela sentença não foi interposto recurso.

III – O DIREITO
Nos termos do nº 1 do artigo 1100º do Código de Processo Civil, o pedido de revisão só pode ser impugnado com fundamento:
- na falta de algum dos pressupostos enunciados no artigo 1096º do citado compêndio adjectivo, que são de conhecimento oficioso à luz do disposto no artigo 1101º do mesmo código, ou
- na verificação de algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g) do artigo 771º do Código de Processo Civil.

No caso em apreço, concorrem todas as condições exigidas pela lei processual para a revisão e confirmação da sentença estrangeira.
Assim, não se suscitam dúvidas sobre a autenticidade dos documentos juntos pela requerente. Foram cumpridos os princípios do contraditório e da igualdade das partes.
Do processo não consta algum elemento donde se infira qualquer situação de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a um tribunal português, nem que a sentença revidenda não tenha transitado em julgado.
É, por isso, de presumir a inexistência de alguma das referidas excepções e que a sentença revidenda transitou em julgado (art. 1101º do Código de Processo Civil).

1. Quanto à inteligibilidade da sentença
Alega o Requerido que a sentença revidenda, na parte em que homologa o acordo relativo à prestação de alimentos à filha do casal, é ininteligível.
Pode ler-se no clausulado “the aforesaid obligation will run until the end of 2006, subject to S… passing her exams and continuing to display an aptitude for higher education and applying herself with due diligence, the R 1.500,00 (...) per month will continue until the end of 2007”, texto que ficou traduzido nos seguintes termos “Esta obrigação acima mencionada deverá decorrer até final de 2006, sujeito à S… passar todos os seus exames e continuar a mostrar aptidão para prosseguir educação superior com a devida dilgência, continuando os 1.500,00 a ser pagos até final de 2007”.

O artigo 236º do CC, consagra a teoria da impressão do destinatário - “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele” (nº1); mas “sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida” (nº2).
O Requerido limita-se a colocar duas hipóteses de interpretação do clausulado, com base na tradução feita. Porém e porque se trata de texto que subscreveu e nos termos do qual se obrigou, deveria, então, indicar qual o sentido que pretendeu ficasse clausulado. Nessa medida, não se pode aqui falar em ininteligibilidade da sentença que homologou o acordo celebrado entre Requerente e Requerido.
Ainda assim, sempre se dirá, atendendo ao texto original (que a tradução, salvo o devido respeito, talvez tenha desvirtuado), que o Requerido obrigou-se a prestar alimentos à filha até final de 2006, prestação essa que será de manter até final de 2007, caso a filha tenha bom aproveitamento escolar.
Destarte conclui-se que a sentença é inteligível.

2. Da exclusividade dos tribunais portugueses
2.1. Quanto à partilha de bem imóvel e bens móveis situados em Portugal
A enunciação dos factores de competência exclusiva dos tribunais portugueses mostra-se feita no artigo 65º-A do Código de Processo Civil e traduz-se, segundo M. Teixeira de Sousa, numa reserva de jurisdição e, portanto, de soberania, “que impede os tribunais de ordens jurídicas estrangeiras de conhecerem, com eficácia perante a jurisdição portuguesa, de acções que tenham por objecto as matérias consideradas de interesse público referidas nas diversas alíneas” (1).
Da al. a) deste normativo resulta que “sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais, os tribunais portugueses têm competência exclusiva para as acções relativas a direitos reais ou pessoais de gozo sobre bens imóveis sitos em território português”.
Por seu turno, o art. 1096.º, al. c) determina que para que a sentença seja confirmada é necessário que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses.
A redacção do art. 65.º-A, a) foi introduzida pela reforma de 95/96, visando-se, em sede de competência internacional, o objectivo essencial de alinhar o nosso sistema de direito comum com o consagrado nas Convenções de Bruxelas e de Lugano: A modificação em causa alinha o disposto na nossa lei com a redacção do art. 16.º da Convenção de Bruxelas (2).
Segundo Teixeira de Sousa/Moura Vicente (3), a aludida competência funda-se nos princípios da proximidade e da boa administração da justiça, assegurando a facilidade da recolha dos elementos de prova e a continuidade da competência jurisdicional para a acção declarativa e para a execução da decisão proferida sobre esses bens.
Atenta essa ratio, o Tribunal de Justiça das Comunidades tem vindo a entender que o art. 16.º deve “ser interpretado no sentido de que a competência dos tribunais do Estado contratante onde o imóvel está situado não abrange a totalidade das acções sobre direitos reais sobre imóveis” abrangendo apenas as acções que se destinam a “determinar o alcance, a consistência, a propriedade, a posse de um bem imóvel ou a existência de outros direitos reais sobre esses bens e a garantir aos titulares desses direitos a protecção das prerrogativas legadas ao seu título”.(4).
A questão que se coloca, pois, é a de saber se a acção de divórcio se integra na previsão da referida al. a) do artigo 65º-A com a consequente inadmissibilidade da revisão e confirmação da sentença revidenda por força do disposto no artigo 1096º al. c), segunda parte, do Código de Processo Civil.
Contudo, como afirma o acórdão do STJ de 13.01.2005 (5), não parece ser suficiente “para determinar a competência dos tribunais portugueses, conforme a alínea a) do artigo 65º-A do Código de Processo Civil, que a acção se prenda indirecta ou acessoriamente com um direito real sobre imóvel, sendo indispensável que este constitua o seu objecto ou fundamento a título de causa de pedir, com vista a assegurar a titularidade do sujeito respectivo”.
Efectivamente, a interpretação no sentido de que o conceito de acções relativas a direitos reais sobre bens imóveis sitos em território português não envolve toda e qualquer acção relativa a direitos sobre imóveis extrai-se do disposto no art. 73º nº 1 do CPC, o qual, referindo-se a “acções relativas a direitos reais sobre bens imóveis sitos em território português” em sede de atribuição de competência territorial, não abrange, para tal efeito, o processo de inventário que se rege, em matéria de competência territorial, pelo disposto no artigo 77º, mesmo que tenha por objecto bens imóveis.
Não sendo razoável supor que o legislador utilizou a expressão “acções relativas a direitos reais sobre imóveis” nos artigos 65º-A e 73º para traduzir conceitos diversos, parece poder concluir-se que tal expressão tem sentido idêntico e que se quis excluir a partilha, mesmo de imóveis, do âmbito de aplicação deste último normativo(6).
Não é, por isso, suficiente para determinar a competência exclusiva dos tribunais portugueses, conforme a alínea a) do artigo 65.º-A do Código de Processo Civil, que a acção se prenda indirecta ou acessoriamente com um direito real sobre imóvel, sendo indispensável que este constitua o seu objecto ou fundamento a título de causa de pedir, com vista a assegurar a titularidade do sujeito respectivo.
Como se escreve no Ac. STJ de 13 de Janeiro de 2005, já citado, se “é certo que a sentença emite comandos imperativos de composição do litígio sobre que incide, impondo-se em toda a amplitude da declaração judicial, ainda que o faça incidental ou acessoriamente”, nem por isso se mostra irrelevante, “para efeitos de qualificação da acção na perspectiva da competência do tribunal, a distinção entre pedidos e objecto da acção principais e acessórios, dependentes, em suma, ou incidentais”.
“Os dados de direito positivo concorrem significativamente neste sentido. Basta apontar os exemplos do artigo 96.º, n.º 1, do Código de Processo Civil («O tribunal competente para a acção é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem») e do artigo 87.º, n.º 3 («Quando se cumulem pedidos entre os quais haja uma relação de dependência ou subsidiariedade, deve a acção ser proposta no tribunal competente para a apreciação do pedido principal»)”.

Destarte, uma acção de divórcio, como a dos autos, por mútuo consentimento, não deve ser qualificada como acção real, na acepção do artigo 65.º-A, alínea a), conquanto nela sobressaiam elementos de realidade, como a partilha do imóvel e de bens móveis, em nível meramente acessório ou dependente do pedido de divórcio.
A partilha dos bens do casal no seio do processo de “divórcio consensual” tendo carácter facultativo, pressupõe o acordo dos cônjuges, e a falta deste acordo não prejudica o decretamento do divórcio.
Também na doutrina, Luís Lima Pinheiro vem afirmar que “perante o Direito vigente, as decisões estrangeiras que partilhem bens situados em Portugal são, em princípio, susceptíveis de reconhecimento na ordem jurídica portuguesa.”(7).
E nem se diga, como o Requerido, que no acordo homologado pela sentença, os bens comuns foram atribuídos na sua grande maioria à Requerente, desde logo porque no que concerne ao imóvel, fica o mesmo a pertencer, em partes iguais à Requerente e Requerido.
Afigura-se, assim, que a acção de divórcio não pode ser qualificada como acção real, ainda que nela se proceda à partilha do património do casal e deste façam parte bens imóveis situados em Portugal.
“Também aqui, tal como no processo de inventário, se vai, de acordo com as regras jurídicas aplicáveis, operar a convolação de um direito unitário e global sobre uma parte de um universo de bens para direitos concretos e individualizados sobre bens que integram a comunhão conjugal”(8).

Por último, cabe referir, na esteira do Ac. do STJ de 12/1/2005, a que vimos fazendo referência, que não se afigura que a partilha do casal homologada na sentença represente um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, pelo facto de o nosso direito não prever a mesma partilha na acção de divórcio por mútuo consentimento. Sabe-se, com efeito, que na reforma do direito de família, em 1977, chegou a encarar-se essa possibilidade. Mas a ideia foi abandonada «para não dificultar o exercício do direito ao divórcio nos casos, tão vulgares na prática, em que a partilha põe problemas complexos que os cônjuges não estão em condições de resolver na ocasião» e não assim por motivos relacionados com a ordem pública. (9)
A matéria sobre que a sentença versa não é, assim, da exclusiva competência dos tribunais portugueses (art. 65-A do Código de Processo Civil).

2.2. No que tange à fixação de alimentos à filha valem, também, as considerações supra referidas, sendo dispensável a reprodução dos argumentos. Tal como a partilha de bens, também o acordo relativo a alimentos reveste, no caso, carácter absolutamente acessório e dependente do objecto nuclear da dissolução do vínculo matrimonial.
Embora os autos não forneçam elementos que permitam concluir pela maioridade da filha dos Requerente e Requeridos, não nada impede que as partes, para além de chegarem a acordo quanto à partilha dos bens, estabeleçam igualmente o que tiverem por conveniente no que respeita a alimentos para a educação da filha supostamente maior, ao tempo em que foi decretado o divórcio, mas ainda a cargo dos pais, como decorre dos termos do acordo, sendo certo que os alimentos sempre poderiam ter sido fixados extrajudicialmente, como o próprio Requerido admite.
De todo o modo não se vê como a homologação relativa à prestação de alimentos, nos moldes que constam do acordo, pode representar um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Não transparece, por outras palavras, dos elementos que nos são presentes, qualquer das razões que podem teleologicamente justificar a competência exclusiva dos tribunais portugueses desenhada na alínea a) do artigo 65.º-A.
Não ocorre qualquer dos fundamentos de revisão a que aludem as alíneas a), c) e g) do artigo 771º do Código de Processo Civil.
Nada obsta, pois, a que se proceda à revisão de sentença estrangeira em causa, posto que se verificam os pressupostos legais para tanto.

Tendo o Requerido deduzido oposição, deve ser este a suportar o pagamento das respectivas custas.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, julga-se procedente a pretensão de revisão da mencionada sentença proferida, em 2 de Março de 2006, pelo Tribunal Supremo Tribunal de Justiça da África do Sul, revista e confirmada.
Custas pela requerente.
Lisboa, 24 de Maio de 2007.
(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)
(Manuel Gonçalves)
________________________________
1 M. Teixeira de Sousa, A Competência Declarativa dos Tribunais Comuns, Lisboa, Lex, 1995, pag. 115.
2 Rui Manuel Moura Ramos, A Reforma Processual Civil Internacional, RLJ, Ano 130, págs. 163 e 231. Vide também Ac. STJ de Lisboa, 13 de Janeiro de 2005 (Lucas Coelho), www.dgsi.pt/jstj.
3 Teixeira de Sousa/Moura Vicente, Comentário à Convenção de Bruxelas, LEX, Edições Jurídicas, Lisboa, 1994, pag. 114.
4 Teixeira de Sousa/Moura Vicente, ob. citada, pag. 114.
5 Ac. STJ de 13.01.2005, (Lucas Coelho), www.dgsi.pt/jstj.,
6 Ac. STJ de 13.01.2005, (Lucas Coelho), www.dgsi.pt/jstj, que aqui seguimos de perto; vide também Ac. RL, desta 6ª Secção de 8 de Março de 2007 (Fernanda Isabel Pereira), www.dgsi.pt/jtrl.
7 Direito Internacional Privado, vol. III, Competência Internacional e Reconhecimento de Decisões Estrangeiras, Almedina, pág. 194.
8 Ac. RL da 6ª Secção de 8/3/2007 (Fernanda Isabel Pereira), já citado.
9 Ac. STJ de 13.01.2005, (Lucas Coelho), já citado.