Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1030/08.0TJLSB.L1-1
Relator: PEDRO BRIGHTON
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
SEGURO DE ACIDENTES DE TRABALHO
ACIDENTE DE TRABALHO
DIREITO DE REGRESSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/20/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Não é da competência material dos Tribunais do Trabalho, mas sim dos Tribunais Comuns, o conhecimento de acção em que a seguradora, pretendendo exercer direito de regresso, pede a condenação do terceiro a pagar-lhe o que despendeu por lesões sofridas por um trabalhador em razão de acidente de trabalho causado por acto ilícito desse terceiro.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA :

I – Relatório

1- A Companhia de Seguros “A, S.A.” instaurou a presente acção declarativa de condenação, com a forma de processo sumário, contra “B”, “C, S.A.” e Companhia de Seguros “D, S.A.”, pedindo a condenação dos RR. a pagarem-lhe a quantia de 20.225,70 €, acrescida de juros de mora.
Para fundamentar a sua pretensão alega, em resumo, que nos termos do contrato de seguro do Ramo Acidentes de Trabalho celebrado com a sociedade “E, S.A.”, aceitou pagar as prestações devidas aos beneficiários de “F”, o qual faleceu em consequência das lesões sofridas num acidente de trabalho ocorrido em 16/5/2001.
Mais invoca que o acidente se ficou a dever a culpa exclusiva do R. “B”, empregado da R. “C, S.A.”, a qual, por sua vez, tinha a sua responsabilidade pelos danos causados a terceiros no exercício da sua actividade transferida para a R. Companhia de Seguros “D, S.A.”.
2- Todos os R.R. contestaram, invocando excepção de prescrição e pugnando pela improcedência da acção.
3- Foi de seguida proferido despacho que julgou verificada a existência de excepção de incompetência absoluta do Tribunal Cível e, em consequência, absolveu os R.R. da instância, entendendo que a competência para decidir a questão suscitada dos autos pertence aos tribunais do trabalho.
Tal despacho tem o seguinte teor :
“Companhia de Seguros “A, S.A.” intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra “B”, “C, S.A.” e Companhia de Seguros “D, S.A.”, pedindo a condenação dos Réus a pagar-lhe determinada quantia em dinheiro.
Alega, em síntese, que nos termos do contrato de seguro do Ramo Acidentes de Trabalho celebrado com a sociedade “E, S.A.” e da legislação sobre acidentes de trabalho aceitou pagar as prestações devidas aos beneficiários de “F”, o qual faleceu em consequência das lesões sofridas no acidente de trabalho ocorrido em 16/5/2001.
Mais invoca que o acidente se ficou a dever a culpa exclusiva do 1º Réu, empregado da 2ª Ré, a qual, por sua vez, tinha a sua responsabilidade pelos danos causados a terceiros no exercício da sua actividade transferida para a 3ª Ré.
Funda-se a sua pretensão no direito de regresso previsto no artigo 31º, nº 4, da Lei nº 100/97, de 13/9.
Conforme dispõe o artigo 85º, alínea c), da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, compete aos tribunais de trabalho conhecer, em matéria cível das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais.
Verifica-se, assim, que a questão suscitada nos presentes autos, porque referente à efectivação da responsabilidade civil emergente de acidente de trabalho, é do conhecimento do tribunal de trabalho, sendo o presente tribunal incompetente em razão da matéria, nos termos do artigo 67º do Código de Processo Civil.
A infracção das regras da competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta, deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal e implica a absolvição do réu da instância (artigos 101º, 102º nº 1 e 105º nº 1 do Código de Processo Civil).
Assim e pelo exposto, declaro este tribunal absolutamente incompetente em razão da matéria e, consequentemente, absolvo os Réus da instância.
Custas pela Autora.
Registe e notifique”.
4- De tal decisão interpôs a A. recurso e na sua alegação apresentou as seguintes conclusões:
“1ª – A Recorrente tem instaurado, anualmente e desde há muitos anos, acções iguais à dos autos, as quais sempre correram pelos Tribunais Cíveis e não pelo Tribunal do Trabalho.
2ª – Na presente acção não se discutem questões emergentes de acidente de trabalho, as quais já foram apreciadas e decididas no Tribunal do Trabalho, em acção em que foi Ré a ora Recorrente e A.A. os beneficiários do falecido e na qual não podiam intervir os Recorridos, pelo que não se aplica o disposto na alínea c) do artº 85º da Lei 3/99.
3ª – O que se discute é a responsabilidade civil e a obrigação de indemnizar pelos causadores do acidente que agiram com negligência grosseira, pelo que a competência em razão de matéria cabe ao Tribunal Cível.
4ª – Nos termos dos nºs. 4 e 5 da Lei 100/97, a seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente de trabalho tem direito de regresso contra os causadores do acidente, podendo intervir como parte principal no processo em que o sinistrado exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente.
5ª – Uma vez que o sinistrado já accionou a seguradora para receber desta as prestações devidas nos termos da legislação de acidentes de trabalho – acção que tem de correr pelo Tribunal do Trabalho, o disposto no nº 1 do citado artº 31º só pode significar que para receber os danos restantes tem de accionar o causador do acidente e a acção deve correr no Tribunal Cível ou Criminal, nos termos da lei geral, e é nesta acção e neste Tribunal que a seguradora pode intervir.
6ª – Também para exercer o direito de regresso, quer intervenha como parte principal quer instaure acção autónoma, sempre teria de submeter a questão ao Tribunal Cível.
7ª – O Tribunal Cível é o competente em razão da matéria para a presente acção.
8ª – Ao decidir o contrário, o Mmº. Juiz “a quo” fez uma errada interpretação do disposto na alínea c) do artº 85 da Lei 3/99 e artº 31º da Lei 100/97.
Nestes termos, deve ser dado provimento ao recurso e, em consequência, deve ser revogado o despacho e proferido acórdão em que se declare competente em razão da matéria o Tribunal Cível, com o que será feita a costumada
JUSTIÇA”.
5- Os recorridos não apresentaram contra-alegações.

* * *

II – Fundamentação
1- Como resulta do disposto nos artºs. 684º nº 3 e 685º-A nº 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões da alegação da recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.
2- Perante as conclusões da alegação da recorrente a única questão em recurso consiste em determinar se o Tribunal cível é ou não o competente para apreciar a questão trazida a juízo pela agora recorrente.
3- A competência dos tribunais, em geral, é a medida de jurisdição atribuída aos diversos tribunais, ou seja, o modo como, entre si, fraccionam e repartem o poder jurisdicional que, tomado, em bloco, pertence ao conjunto dos Tribunais (cf. Manuel de Andrade in “Noções elementares de Processo Civil”, 1979, pgs. 88 e 89).
A competência em razão da matéria (que é aquela que ora nos interessa) é a competência das diversas espécies de tribunais dispostos horizontalmente, ou seja, no mesmo plano, sem relação de sobreposição ou de subordinação entre eles.
Em sede de competência em razão da matéria, os tribunais judiciais possuem uma competência residual em relação às restantes ordens de tribunais.
É o que resulta, desde logo, do artº 211º da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.
Por seu turno, rezam o artº 66º do Código Processo Civil e o artº 18º nº 1 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (L.O.T.J. – Lei nº 3/99, de 13/1) que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
Aos tribunais da organização judiciária comum (os mencionados tribunais judiciais), atribui a lei competência genérica e competência especializada (para aqui não tem relevância a competência específica, determinável em razão da forma de processo – artºs. 72º a 77º da L.O.T.J. e 69º do Código de Processo Civil).
São as leis de organização judiciária que determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada (artº 67º do Código de Processo Civil).
A lei quer significar que as causas que, por ela, não forem atribuídas a alguma jurisdição especial, são da competência do tribunal comum.
Assim sendo, a competência dos tribunais especializados fixa-se e conhece-se directamente, mediante análise da lei que lhe defina a esfera de competência material do conhecimento judiciário, ao passo que a competência dos tribunais comuns só se determina por via indirecta ou por exclusão do que não cabe aos tribunais especializados.
“Quando a lei cria e organiza um tribunal com competência especializada, tem o cuidado de a delimitar, isto é, designar a massa de causas que ele pode conhecer; essas, e só essas, ficam dentro do seu poder jurisdicional.
Portanto, basta examinar com atenção a lei orgânica do tribunal para se verificar se uma certa causa está compreendida na zona da sua jurisdição. Percorrido o quadro dos tribunais especiais, se se apura que a acção a propor não é da competência de nenhum desses tribunais, não pode haver hesitação no corolário a retirar : a causa tem de ser proposta no tribunal comum” (cf. Acórdão do S.T.J. de 27/5/2003, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).
Segundo o disposto no artº 85º da L.O.T.J., compete aos tribunais do trabalho conhecer, em matéria cível, entre outras :
“c) Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais ;
d) Das questões de enfermagem ou hospitalares, de fornecimento de medicamentos emergentes da prestação de serviços clínicos, de aparelhos de prótese e ortopedia ou de quaisquer outros serviços ou prestações efectuados ou pagos em benefício de vítimas de acidentes de trabalho ou doenças profissionais ;
(…)
o) Das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal seja directamente competente ;
(...)”.
Ora, tendo o Tribunal “a quo” entendido que existia “in casu” uma situação de incompetência em razão da matéria (incompetência absoluta), decidiu-a oficiosamente no momento próprio (cf. artºs. 101º a 105º do Código de Processo Civil).
4- Passemos, então, à análise da questão suscitada nos autos.
É ou não o Tribunal cível o competente para apreciar a questão trazida a juízo pela recorrente ?
A determinação da competência do tribunal em razão da matéria tem de ser aferida pelo pedido e pela causa de pedir, ou seja, pela relação material controvertida tal como é configurada pelo autor (neste sentido cf. Acórdão da Relação de Lisboa de 2/12/2008, Acórdão da Relação de Coimbra de 17/6/2008 e Acórdão do S.T.J. de 22/6/2006, todos consultados na “Internet” em www.dgsi.pt)
No caso dos autos a causa de pedir é integrada :
a) Pelos factos relativos ao contrato de seguro de acidentes de trabalho descrito na petição inicial ;
b) Pela ocorrência de um acidente de trabalho que afectou um trabalhador da segurada da recorrente ;
c) Pela indemnização e outras despesas que a recorrente suportou em consequência do sinistro ;
d) Pela imputação da responsabilidade pela ocorrência do acidente aos 1º e 2º R.R..
O pedido formulado visa exercer o direito de regresso da recorrente na medida do que pagou por virtude do contrato de seguro.
Vejamos, então, se estamos perante um litígio relativo a questões emergentes de acidente de trabalho, susceptível de se subsumir à competência dos tribunais do trabalho por aplicação da alínea c) do artº 85º da L.O.T.J., ou se, pelo menos, se trata de situação que se integre nas já citadas alíneas d) ou o) do mesmo normativo.
No que respeita à alínea c) do artº 85º da L.O.T.J. importa determinar o que são questões emergentes de acidentes de trabalho.
Dispõe o artº 6º nº 1 da Lei 100/97 de 13/9 :
“É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte”.
Ora, com a presente acção não se visa efectivar responsabilidade emergente de acidente de trabalho pois, como resulta da análise da petição inicial, a recorrente alega que já satisfez as diversas prestações devidas ao sinistrado em consequência do acidente de trabalho.
Assim sendo, com a acção não se visa determinar a responsabilidade da entidade patronal ou da seguradora pelo acidente de trabalho e a sua condenação na satisfação das prestações ao trabalhador sinistrado.
Aquilo que efectivamente está em causa é o exercício do invocado direito de regresso da seguradora ora recorrente contra terceiros, os recorridos, a quem é imputada na petição inicial responsabilidade civil por acto ilícito, tudo ao abrigo do artº 31º nº 4 da Lei 100/97 de 13/9, segundo o qual “a entidade empregadora ou a seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente tem o direito de regresso contra os responsáveis referidos no nº 1, se o sinistrado não lhes houver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano a contar da data do acidente”.
Deste modo, a recorrente visa, com a acção ressarcir-se dos prejuízos que suportou com as prestações que satisfez ao sinistrado e que, nos termos em que é configurada a relação material controvertida na petição inicial, deveriam ter sido suportados pela responsável pelo facto ilícito, neste caso, os recorridos.
Embora o direito de regresso peticionado tenha como ponto de partida um acidente de trabalho, o que está em causa nestes autos é o acto ilícito cuja responsabilidade é imputada aos recorridos e o cumprimento pela recorrente da obrigação que sobre ela impendia.
A verificação sobre se ocorrem ou não os pressupostos de facto e de direito da procedência da acção de regresso respeita ao mérito da causa e não à questão da competência do tribunal para a sua apreciação.
Deste modo, a presente acção não se integra na alínea c) do artº 85º da L.O.T.J..
Acresce que não visa esta acção um litígio sobre as questões previstas na alínea d) do artº 85º da L.O.T.J. e às quais se reportam o artº 154º do Código de Processo do Trabalho e o artº 495º nº 2 do Código Civil.
Vejamos, por fim, se a situação dos autos se integra a previsão da alínea o) do artº 85º da L.O.T.J.. Esta norma pressupõe que a questão trazida ao tribunal seja entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros e que o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal do trabalho seja directamente competente.
Não é o caso dos autos, pois nem a recorrente nem a recorrida são sujeitos de uma relação jurídica de trabalho e também o pedido formulado pela recorrente não é cumulado com outro para o qual o tribunal do trabalho seja directamente competente.
Temos, assim, de concluir que os tribunais do trabalho não têm competência material para conhecer do objecto da presente acção (neste sentido cf. Acórdãos da Relação de Lisboa de 2/12/2008 e de 29/5/2007 e Acórdãos do STJ de 18/11/2004 e de 22/6/2006, consultados na “Internet” em www.dgsi.pt).
5) Assiste, assim, razão ao recorrente, pelo que há que alterar o despacho sob recurso, determinando-se o prosseguimento dos restantes termos processuais na jurisdição cível, com elaboração de despacho saneador.
6) Sumariando :
-Não é da competência material dos Tribunais do Trabalho, mas sim dos Tribunais Comuns, o conhecimento de acção em que a seguradora, pretendendo exercer direito de regresso, pede a condenação do terceiro a pagar-lhe o que despendeu por lesões sofridas por um trabalhador em razão de acidente de trabalho causado por acto ilícito desse terceiro.

* * *

III – Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso e nessa medida :
1º- Revoga-se a decisão recorrida.
2º- Declara-se o Tribunal Cível competente para julgar o litígio, quanto à matéria.
3º- Determina-se que o processo siga a respectiva tramitação, em conformidade.
Sem custas (artºs. 2º nº 1, al. g) do Código das Custas Judiciais e 4º nº 1, al. a) do Decreto-Lei 303/2007 de 24/8).

Processado em computador e revisto pelo relator

Lisboa, 20 de Abril de 2010

Pedro Brighton
Anabela Calafate
Antas de Barros