Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2068/16.9TDLSB-A.L1-3
Relator: MARIA DA GRAÇA DOS SANTOS SILVA
Descritores: VERDADE MATERIAL
PROVA INDISPENSÁVEL À DESCOBERTA DA VERDADE DA CAUSA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: Em processo penal, o Tribunal não tem por obrigação produzir toda a prova da verdade material, para que a decisão se ajuste, tanto quanto possível à realidade dos acontecimentos, só assim se procedendo à boa decisão da causa (artº 340º/1, do CPP).
Esse dever implica o recebimento de todos os meios de prova pertinentes, ainda que não constantes dos autos, desde que se afigure que são convenientes, necessários ou indispensáveis à descoberta da verdade e da boa decisão da causa.
 Não há lugar à aplicação de sanção relativamente às provas que, podendo ter sido arroladas com a contestação, sejam indispensáveis à decisão da causa, porque elas sempre teriam que ser necessariamente produzidas, ou pela via da sua aceitação ou pela via da sua requisição.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:
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I – Relatório:
No decurso de julgamento a que foi sujeita, a arguida NM… foi condenada na multa de uma uc pela apresentação tardia de documentos.
A arguida recorreu desse despacho, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem:
« O Tribunal a quo condenou a arguida/recorrente NM…, no pagamento de uma multa, no montante de 1 U.C, ao abrigo do disposto no artº. 423 n°2 do C.P.C., aplicável por força do arts 4 do C.P.P., e no art° 27 nº 1 do Regulamento das Custas Processuais, pela junção de documentos, tal como consta em Ata de Audiência de Discussão e Julgamento na Sessão, datada a 14-12-2018.
I-O Tribunal a quo admitiu a junção aos autos de documentos que considerou relevantes para a boa decisão da causa, mas sancionou com multa de 1 U.C a apresentação em audiência dos mesmos documentos, por intempestividade e a título de incidente.
II- O art° 340 do C.P.P, não prevê a condenação em multa no caso de formulação intempestiva de requerimento de prova,
III- Por outro lado, o art°27 do RCP, estipula os valores e regula critérios para a fixação da multa nas hipóteses em que a lei processual prevê a condenação em multa ou penalidade de algumas partes ou outros intervenientes, ou a condenação em litigância de má fé (nº 1,2,3 4 do preceito). Para além de proibir a condenação em multa e taxa sancionatória excecional e de regular o recurso da condenação em multa, penalidade e nessa sanção (nº5 e 6).
IV- Acontece que não existe na lei processual penal, norma que comine com multa a apresentação tardia de documentos, á semelhança do que sucede no âmbito da lei processual civil em que se prevê, no arº 423 nº2 do C.P.C, a. admissão de documentos posterior ao momento próprio, com a expressa menção de que a parte e condenada em multa, exceto se provar que os não pode oferecer com o articulado.
V- Porquanto, o artº 165 do CP.P., estabelece as condições a observar quarto à junção de documentos, e nenhuma referencia faz à possibilidade de penalizado pela apresentação tardia e não justificada dc documento. Para além disso tratando-se - como se trata.-de junção de documentos no decurso da audiência de Julgamento esta norma tem que ser vista em intima articulação com os princípios gerais reguladores da produção de prova em audiência, designadamente o princípio da verdade material consagrado pelo artº 340º do CP.P.
VI- E então das duas uma: se o documento é relevante para a descoberta da verdade deve ser junto aos autos a) pela parte sem penalização, ou b) por determinação do Tribunal nos termos do artº 340 do CP.P.
Se o documento não é relevante deve ser desatendido o pedido de junção feito pela parte.
VII- Neste âmbito a apresentação intempestiva de documentos por referência ao preceituado no artº 165 do CP.P. fica sujeito ao regime geral previsto para a formulação de qualquer requerimento de prova intempestivo, onde não tem assento a imposição de multa.
A única consequência para a apresentação tardia e injustificada de documentos, é o indeferimento, o que não foi o caso.
VIII- O Processo Penal deve assegurar todas as garantias de defesa, nos termos do artº 32 da C.R.P.
IX- Entende-se que o Tribunal à quo, incorre em erro na interpretação e aplicação das normas constantes dos art°s 165, 340, 511º do CP.P-, bem como art-423 nº:2 do C.P.C, assim como nos art°s  7 , 8º, 27º do RCP.
Violando todas estas normas, com a sua aplicação, neste caso concreta, de uma forma errada.
X- Com efeito, tendo em consideração a filosofia e axiologia subjacente ao processo penal, onde pontificam o valor da Liberdade e princípios da verdade material e da investigação com vista à boa decisão da causa, não se justifica qualquer condenação em multa no caso de aquisição de documento no decurso da audiência e respectiva admissão por o Tribunal o ter considerado necessário à descoberta da verdade. Neste sentido vide Ac. TRP de 03-11-2010, disponível em wwv dgsi.rct
XI- Por outro lado o despacho de que ora se recorre, quebra o princípio de igualdade de armas, pois o Ministério Público, em situação idêntica está isento do pagamento de multa – artº 522 n-1 do C.P.P,
XII- Assim sendo, deve ser revogado o despacho que condenou a arguida/recorrente no pagamento da multa em 1 U.C, e incidente suscitado [artº 27 nº 1 do RCP), porquanto os documentos por si apresentados no decurso da audiência de julgamento foram aceites em juízo, a coberto do disposto no artº 340 do C.P.P., Não devendo por isso, ser sancionado quem, afinal se bate pela consecução da verdade material.
Nestes termos, e nos demais de direito, deve o recurso merecer provimento por provado, e como consequência ser revogado o despacho recorrido de condenação da arguida em multa, por intempestiva apresentação de documentos.
Decidindo-se assim far-se-á a Costumada Justiça
Normas legais violadas:
- Artº 340º do C.P.P.
- Artº 32º do C.R.P.
- Artº 165º do C.P.P.
- Artº 515º do C.P.P.
- Artº 27º nº 1 RCP
- Artº 423º do C.P.C».
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Contra-alegou o Ministério Público, concluindo as respectivas alegações nos seguintes termos:
« - O despacho ora impugnado sancionou com a aplicação de multa a junção tardia e injustificada de documentos que a recorrente sempre teve na sua posse e disponibilidade;
- tal viola o espirito da lei devendo tal acto ser censurado através da aplicação subsidiária do disposto nos artigos 423.° do Código de Processo Civil e 27° n°1 do Código das Custas Judiciais, ex vi do artigo 4.° do CPP.
Pelo exposto entende-se que o despacho ora impugnado não viola qualquer dispositivo legal.».
Nesta instância, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto declarou a sua adesão à contra-motivação.
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II- Questões a decidir:
Do artº 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso ([1]), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso ([2]).
A questão colocada pela recorrente é a legalidade do despacho recorrido.
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III- Fundamentação de facto:
Há que considerar que:
1- No decurso da audiência a recorrente requereu a junção de documentos aos autos.
2- Tal junção não teve oposição do MP nem demais mandatários.
3- Consta da acta que «Seguidamente e, ao abrigo do disposto no art° 340.º n.º 4, al a), do C.P.P., admitindo-se eventual pertinência para a decisão a proferir, por DESPACHO, o Mm° Juiz Presidente admitiu a junção aos autos, dos documentos apresentados pela arguida NM…, constantes de fts. 765 verso a 777, juntos aos autos em 08 de Dezembro de 2018, e ainda dos documentos de fls. 780 verso e 781, apresentados cm 09 de Dezembro de 2018.
Estes documentos destinam-se a contrariar factos constantes da acusação, de que a arguida NM… há muito tem conhecimento e, por outro lado, a arguida limitou-se a alegar conclusivamente só ter sido possível proceder agora á junção dos referidos documentos. Nesta medida, e pela junção tardia destes meios de prova, por DESPACHO, o Mm° Juiz Presidente, condenou a arguida NM… ao pagamento de multa, no montante de 1 UC, ao abrigo do disposto no artº 423 º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável por força do art.º 4º. do Código do Processo Penal, e no artº 27.°, nº 1. do Regulamento das Custas Processuais».
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IV- Fundamentos de direito:                                          
A questão aqui em causa é saber se o disposto no artigo 423º/2, do CPC, é aplicável em processo penal.
Sobre a oportunidade da junção de prova documental regula o artigo 165º/1, do CPP, estipulando que «o documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência».
Em processo penal, o Tribunal não está limitado à prova trazida a juízo pelos intervenientes processuais mas, antes pelo contrário, tem por obrigação produzir toda a prova da verdade material, para que a decisão se ajuste, tanto quanto possível à realidade dos acontecimentos, só assim se procedendo à boa decisão da causa (artº 340º/1, do CPP). E esse dever implica o recebimento de todos os meios de prova pertinentes, ainda que não constantes dos autos, desde que desses se afigure que são convenientes, necessários ou indispensáveis à descoberta da verdade e da boa decisão da causa.
 O despacho recorrido não qualifica a prova cuja junção se requereu, no âmbito da tripartição de que acima se fala. Disse apenas que a prova se destinava a contrariar factos constantes da acusação.
A acusação é a peça fulcral de todo o processo, na medida em que define quais os factos que podem ser objecto de julgamento, na medida em que vigora, no nosso processo penal, o princípio da vinculação temática do acusatório.
Da acusação devem constar apenas factos com interesse para a decisão da causa sejam eles relativos à subsunção da conduta do agente a um determinado tipo criminal ou às circunstâncias em que aqueles ocorreram (artigo 283º/b) do CPP).
Assumindo o Tribunal que os documentos visavam contrariar factos essenciais para a imputação do crime tem que se assumir que esses documentos são meios de prova indispensáveis à descoberta da verdade (artigo 340º/4-a), do CPP).
Ora o arguido não tem o dever de colaborar com a acusação. À acusação cabe a prova da existência do crime e nada impede que o arguido se limite aos actos que, em determinada altura, considera satisfatórios à sua defesa. Não tem obrigação de esgotar a sua defesa nem em sede de inquérito nem de instrução. E tem o direito de se defender de modo adequado à contradição da prova produzida em julgamento.
O exercício de tal direito pode determinar a necessidade de jogar mão de provas que até ali tenha julgado dispensáveis a essa defesa. E, na conformidade, deverá apresentá-las e o Tribunal aceitá-las, na prossecução do objectivo da descoberta da verdade material. 
Aqui entra a distinção que o Tribunal terá que fazer, relativamente ao conteúdo das provas apresentadas nestes termos. E, claramente, o artigo 340º/4, do CPP impõe a admissão de provas indispensáveis à descoberta da verdade e boa decisão da causa, em cujo âmbito temos que entender que se situa a prova oferecida pela arguida.
Assim sendo, não há lugar a qualquer sanção relativamente às provas que, podendo ter sido arroladas com a contestação, sejam indispensáveis à decisão da causa, porque elas sempre teriam que ser necessariamente produzidas, ou pela via da sua aceitação ou pela via da sua requisição.
Em face do exposto, declara-se a procedência do recurso, revogando a multa de uma uc em que a arguida foi condenada.
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VI- Decisão:
Acorda-se, pois, concedendo provimento ao recurso, em revogar a decisão recorrida que condenou a arguida na multa de uma uc pela apresentação tardia de documentos.
Sem custas
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Lisboa, 24/ 04/2019

Texto processado e integralmente revisto pela relatora.
Maria da Graça M. P. dos Santos Silva
A.Augusto Lourenço

[1] Cf. Germano Marques da Silva, em «Curso de Processo Penal», III, 2ª edição, 2000, pág. 335, e Acs. do S.T.J. de 13/5/1998, em B.M.J. 477-º 263; de 25/6/1998,em  B.M.J. 478º-242 e de 3/2/1999, em  B.M.J. 477º-271.
[2] Cf. Artºs 402º, 403º/1, 410º e 412º, todos do CPP e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R., I – A Série, de 28/12/1995.