Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9735/2007-2
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: PRINCÍPIO DA ESTABILIDADE DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: Tendo a acção sido proposta contra uma determinada sociedade, a qual foi citada, não constando dos autos que esta se tenha extinguido, não pode outra sociedade contestar, como sendo a R., sem que por qualquer dos meios previstos na lei tenha sido chamada à acção ou nela tenha intervindo espontaneamente, bem como não tendo alegado que a demandada se fundira na contestante.
(M.J.M.)
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I - «T, SA» intentou a presente acção declarativa sob a forma sumária contra «P, SA».
            Após contestação apresentada por «U, SA» e resposta da A. foi proferido despacho julgando a contestante ilegítima para contestar e determinando o desentranhamento da contestação, sendo as custas pela contestante e fixando-se no máximo a taxa de justiça.
            Deste despacho agravou a contestante «U, SA», concluindo pela seguinte forma a respectiva alegação de recurso:
a) Determina o número 1 do art. 376º do CPC que "A habilitação do adquirente ou cessionário da coisa ou direito em litígio, para com ele seguir a causa, far-se-á nos termos seguintes (...).
b) No caso sub judice a recorrente adquiriu a posição contratual assumida pela P, Lda., em momento anterior ao da interposição da presente acção.
c) Pelo que, não havia que deduzir qualquer incidente de habilitação, pois, na pendência da acção não se transmitiu qualquer direito em litígio.
d) É este, de resto, o entendimento plasmado na nossa Jurisprudência, pacífica e constante.
e) Ao invés, foi a A., aqui recorrida, quem, erradamente, não procedeu à correcta identificação da aqui recorrente. Sendo certo que não lhe era alheio o conhecimento de tal facto, já que estabeleceu com aquela diversas negociações posteriores à referida transmissão.
f) Pelo exposto, deve a presente decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que considere a aqui recorrente parte legítima na acção.
g) Ainda que assim não se entendesse, e sem conceder, mesmo que o douto Tribunal recorrido viesse a entender que era imprescindível que a ora recorrente deveria deduzir incidente de habilitação, sempre a deveria ter notificado para proceder a tal.
h) Dispõe o art. 265º, nº 2 do CPC que "O juiz providenciará, mesmo oficiosamente, pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, quando estiver em causa alguma modificação subjectiva da instância, convidando as partes a praticá-lo."
i) Caso o Tribunal recorrido tivesse entendido que a ora recorrente deveria de deduzir incidente de habilitação para o efeito, deveria, em nome da descoberta da verdade material, ter convidado a parte para proceder a fazê-lo;
j) Por violação do poder-dever que lhe assiste nos termos do art. 265º, no 2 do CPC deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que notifique a ora recorrente para a proceder à dedução de incidente de habilitação.
1) A douta decisão recorrida determinou, a final, Custas pela contestante, fixando-se no máximo a taxa de justiça atenta a ilegitimidade do direito exercido.
m) A supra referida douta decisão de baseia-se, para a determinação do valor das custas — segundo o douto despacho junto aos autos a fls. — , no artigo 13º do Código das Custas Judiciais (CCJ).
n) Ou seja, não considerou que a intervenção da parte que considerou ilegítima fosse uma (...) ocorrência estranha ao normal desenvolvimento da lide situação prevista no artigo 16º do mesmo diploma.
o) Não se concorda, por isso, que não considerando a intervenção da recorrente como uma ocorrência estranha ao desenvolvimento da lide, nem que esta intervenção tenha revelado qualquer intuito meramente dilatório ou que constituísse um obstáculo ao normal desenvolvimento da lide — pelo contrário, foi talvez com uma certa ingenuidade que a recorrente se apresentou, de boa fé, aos autos — a recorrente tivesse sido condenada no máximo da taxa de justiça.
p) Como tal, deve esta decisão de condenar a recorrente no máximo da taxa de justiça ser revogada e substituída por outra em que se fixem as custas pelo mínimo.
            Não foram apresentadas contra alegações.
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            II - Com interesse para a decisão há que salientar as seguintes ocorrências no âmbito do processo:
            1 - «T S.A.» propôs a presente acção contra «P Lda.» pedindo a condenação desta no pagamento de uma determinada quantia (fls. 2-3).
           2 - Procedeu-se à citação da referida «P Lda.» por carta registada com aviso de recepção (fls. 152-153).
3 - A acção veio a ser contestada por «U, S.A.» que no cabeçalho da contestação apresentada mencionou ser «sucessora para os devidos efeitos legais da S, Lda.» (fls. 167-176).
4 - Notificada, a A. apresentou resposta em que, nomeadamente, alegou que não foi apresentada contestação pela R. mas sim por outra sociedade que supostamente a substituiu, não demonstrou a contestante que a suposta sucessão e correspondente alteração da firma foi registada na competente Conservatória de Registo Comercial, não tendo a contestante legitimidade processual para o efeito (fls. 181 e segs.).
5 – Após, a contestante, novamente invocando a qualidade de «sucessora para os devidos efeitos legais» da «P, Lda.» veio requerer que fosse desentranhada a resposta da A. à contestação (fls. 190 e segs.).
6 – Foi, então, proferido o despacho recorrido no qual, referindo-se o disposto no art. 376 do CPC, se decidiu nos seguintes termos:
«No caso em apreço não houve incidente de habilitação de herdeiros, nem pelo cedente, nem pelo transmissário.
Verificou-se, assim, nos termos do preceito citado a falta de um requisito essencial para a conteste ser considerada habilitada como R., e , lhe ser concedida a possibilidade de contestar na qualidade de adquirente do direito da cessionária, pelo que, não se lhe pode reconhecer a legitimidade para contestar.
Pelo exposto, julga-se a contestante ilegítima para contestar, e, consequentemente, determina-se o desentranhamento da contestação e devolução à sociedade autora do referido articulado.
Custas pela contestante, fixando-se no máximo a taxa de justiça, atenta a ilegitimidade do direito exercido».
7 – Subsequentemente, ancorando-se no disposto no art. 669, nº 1-a) do CPC, a contestante pediu esclarecimento da decisão no que respeita a custas, tendo então sido proferido despacho determinando que a condenação em custas deveria seguir o critério previsto no art. 13 do CCJ.
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            III – Tendo em conta que nos termos dos arts. 684, nº 3, 690, nº 1, e 660, nº 2, todos do CPC, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação as questões que fundamentalmente se colocam são as de se tem justificação o desentranhamento da contestação apresentada pela agravante como sucessora da R. demandada nos autos, designadamente sem qualquer prévia actividade do juiz para efeitos de suprimento de falta de pressupostos processuais, bem como, considerando-se que assim é, se a condenação em custas ocorreu de acordo com os preceitos legais aplicáveis.
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IV – 1 - Consoante dispõe o art. 268 do CPC, citado o R a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei. A previsão deste artigo é reforçada pelo preceituado na alínea b) do art. 481 do mesmo Código o qual refere que a citação produz, entre outros efeitos, o de tornar «estáveis os elementos essenciais da causa, nos termos do artigo 268º».
            Estamos perante o princípio da estabilidade da instância, o qual, todavia, não tem carácter absolutamente rígido ([1]). Efectivamente, a instância é configurada, inicialmente, pelo A. - designadamente quanto aos seus elementos subjectivos; até ao momento da citação o autor poderá, todavia, alterar a configuração por si efectuada, modificando livremente os elementos essenciais da acção, mas a citação do R. fixa os elementos definidores da instância, salvas aquelas possibilidades de modificação consignadas na lei.
Entre as modificações subjectivas, refere a lei as ocorridas em consequência da substituição de alguma das partes, quer por sucessão quer por acto entre vivos, na relação substantiva em litígio – alínea a) do art. 270 do CPC.
            Esta substituição a que se reporta a alínea a) do art. 270 faz-se pelo incidente de habilitação (art. 371 para a habilitação mortis causa e art. 376 para a habilitação inter vivos) ([2]).
A agravante apresentou-se nos autos como «sucessora para os devidos efeitos legais da Sociedade «P, SA», não definindo ou concretizando minimamente, porém, em que termos tal teria acontecido.
Sendo certo que as sociedades comerciais se podem dissolver e liquidar, fundir, transformar, a contestante não mencionou qualquer dessas situações relativamente à demandada ([3]). Por outro lado, no corpo da alegação de recurso por si apresentada e nas conclusões respectivas refere a agravante que «adquiriu a posição contratual assumida» pela demandada, mais não especificando, mas apontando, nestes termos, para uma transmissão «por acto entre vivos» ([4]) – será, pois, neste campo que nos deveremos situar.
Defende a agravante que tendo adquirido a posição contratual assumida pela «P, SA» em momento anterior ao da interposição da presente acção não haveria que deduzir qualquer incidente de habilitação, pois na pendência da acção não se transmitiu qualquer direito em litígio.
Não pondo em causa tal perspectiva ([5]), verifica-se, todavia, que o cerne da questão não é o de a situação ser ou não passível de ocorrência de incidente de habilitação. Saliente-se, aliás, que prescrevendo a segunda parte da alínea a) do art. 270 que a instância pode modificar-se quanto às pessoas em consequência da substituição de alguma das partes na relação substantiva em litígio por acto entre vivos se trata aqui: de uma substituição que pode ocorrer não só no caso de a transmissão respeitar a um direito de crédito do autor, como também à coisa objecto do litígio; é uma substituição facultativa, tanto mais que o transmitente por acto entre vivos do direito litigioso continua a ter legitimidade para a causa, não obstante a sentença respectiva produza, em regra, em relação ao adquirente, mesmo que este não intervenha, efeitos de caso julgado contra ele, salvo se a acção estiver sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes de operado o registo da acção ([6]).
Determinante para o caso que nos ocupa é se tendo a acção sido proposta contra uma determinada pessoa – a sociedade «P, SA» - a qual foi citada não constando dos autos que se tenha extinguido, pode outra pessoa – a sociedade «U, S.A.» - contestar, como sendo a R., sem que por qualquer dos meios previstos na lei à acção tenha sido chamada, seja por meio de incidente de habilitação, seja por incidente de intervenção de terceiros, ou tenha intervindo espontaneamente, também no âmbito dos referidos incidentes, bem como não tendo alegado (nem demonstrado) que a demandada, por exemplo, se fundira na contestante.
O que sucede, na realidade, é que a contestante não é parte na acção – e, não sendo parte na acção não lhe é permitido contestar, como R., a mesma acção.
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IV – 2 - Alude, depois, a agravante a ter sido a A. quem, erradamente, não procedeu à correcta identificação da agravante. Todavia, em parte alguma da contestação por si apresentada, ou mesmo, quando após a resposta da A. suscitando a questão de a contestante não ser a R., veio aquela requerer o desentranhamento da mencionada resposta, aludiu a agravante a qualquer deficiente identificação – por exemplo, por a R. «Polygram» ter agora uma diferente denominação, tendo deixado de existir com aquele nome. E não ter a A. procedido à “correcta identificação” da R. não é compatível com a anteriormente afirmada aquisição de posição contratual da demandada pela contestante.
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IV – 3 - Obviamente que não estamos aqui perante uma questão de legitimidade processual, tal como a define o art. 26 do CPC. A legitimidade como pressuposto processual geral exprime a relação entre a parte no processo e o objecto desse mesmo processo, logo a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o o contradizendo-o.
A montante deste aspecto encontra-se a questão que nos ocupa – é que a agravante não é parte no processo, não foi contra ela que a A. deduziu o pedido nem interveio no processo por qualquer dos meios acima aludidos. Por isso, não sendo parte, não tem qualquer razão de ser falar na sua legitimidade – como pressuposto processual – uma vez que tal subentende que se seja parte no processo.
Não estamos, pois, perante a previsão do nº 2 do art. 265 do CPC, a que a agravante se refere, não havendo qualquer pressuposto processual a suprir.
Admite-se a conveniência de, anteriormente a ter proferido o despacho recorrido, o juiz da causa convidar a contestante a melhor explicar, bem como a comprovar as razões da sua intervenção, melhor definida ficando então a situação em apreço – o que não foi feito.
Todavia, face à argumentação deduzida no recurso de agravo, não se encontram razões que permitam concluir pela injustificação do desentranhamento da contestação apresentada – essencialmente pela razão acima aludida de a contestante não ser parte na acção.
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IV – 5 - Como vimos, consta da decisão recorrida, no que concerne a custas: «Custas pela contestante, fixando-se no máximo a taxa de justiça, atenta a ilegitimidade do direito exercido»; baseou-se, para o efeito (como resulta de fls. 212) no disposto no art. 13 do CCJ.
Nesta parte afigura-se assistir razão á recorrente.
Efectivamente, entende-se estarmos perante uma ocorrência estranha ao desenvolvimento normal da lide, prevista pelo art. 16 do CCJ, não se justificando que a taxa de justiça seja determinada com base no valor da causa; saliente-se que a contestação apresentada foi-o por alguém que não é parte no processo e o art. 13 do CCJ reporta-se à base do cálculo da taxa de justiça para cada parte.
Nestas circunstâncias, atentos os critérios referidos naquele art. 16, fixa-se a taxa de justiça em 2 UC’s.
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V – Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em conceder parcial provimento ao agravo, alterando a decisão recorrida no que concerne à taxa de justiça em que a agravante foi condenada e que se fixa em 2 UC’s, no mais se mantendo, embora por razões não inteiramente coincidentes, a decisão recorrida de determinação do desentranhamento da contestação apresentada pela agravante.
Custas – do agravo – pela agravante na proporção de 2/3.
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Lisboa, 17 de Janeiro de 2008

Maria José Mouro
      Neto Neves
Isabel Canadas

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[1]              Ver, a propósito, Alberto dos Reis, «Comentário», III vol. pags. 66 e segs.
[2]              Lebre de Freitas e outros, «Código Civil Anotado», vol. I, pag. 480.
[3]              No âmbito da liquidação de sociedades, extinguindo-se a sociedade comercial as acções em que aquela era parte continuam, sem que a instância se suspenda e sem que seja necessária habilitação, no circunstancialismo previsto no art. 162 do Cod. das Sociedades Comerciais; no caso de transformação ou de fusão da sociedade a instância, igualmente, não se suspende, apenas se efectuando, se for necessário, a substituição dos representantes – nº 2 do art. 276 do CPC.
[4]              Aliás, a primeira parte da sua alegação de recurso gira sobre o tema da necessidade ou desnecessidade de dedução de incidente de habilitação, aludindo ao art. 376 do CPC, visto a «aquisição da posição contratual» ter ocorrido antes de intentada a acção, e sendo tal incidente necessário, se o tribunal deveria ter convidado a parte a deduzi-la.
[5]              Nesse sentido, designadamente, o acórdão da Relação do Porto de 20 de Maio de 2004, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XXIX, tomo 3, pag. 182.
[6]              Salvador da Costa, «Os Incidentes da Instância», 3ª edição, pag. 254.