Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
356/11.0TVLSB.L1-6
Relator: ANABELA CALAFATE
Descritores: SIGILO BANCÁRIO
DEVER DE COOPERAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: INCIDENTE
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: - O dever de sigilo bancário, que é um dever de segredo profissional, não constitui um limite absoluto ao dever de cooperação para a descoberta da verdade, já que pode ser quebrado sempre que tal se mostre justificado segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:



I – Relatório:



Na acção declarativa instaurada por L... contra Banco ... e Massa Insolvente do Banco ... e em que são intervenientes principais A... (como associada do autor) e Banco ..., C... e I ... Lda, (como associados dos RR), pede o A. na petição inicial que seja declarado que não possui qualquer contrato de penhor em vigor junto dos Réus Banco ... e Massa Insolvente do Banco ....

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Na contestação os RR Banco ... e Massa Insolvente do Banco ... alegaram, além do mais, que é do conhecimento do A. que os activos registados nas contas do cliente group nº 210928 foram dados em garantia ao B... ao abrigo de contratos de penhor celebrados entre o A. e o 1º R., que os activos empenhados ao abrigo destes contratos foram dados em garantia no âmbito de contratos de financiamento celebrados com terceiras entidades, algumas das quais representadas pelo próprio A. e que os montantes provenientes desses contratos de financiamento foram disponibilizados às entidades mutuárias e por estas utilizados, tendo sido movimentadas as respectivas contas bancárias, registando todas as operações relativas aos financiamentos em apreço.

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No saneador elaborado em 28/02/2013 seleccionou-se a matéria de facto considerada assente e a base instrutória.

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Os RR Banco ... e Massa Insolvente do Banco ... apresentaram requerimento de prova em 20/03/2013 (fls. 1056-1061), requerendo, além do mais:
«(…)

d) Para prova da factualidade alegada no quesito 6º da Base Instrutória, no que à sociedade I... respeita, requer-se a V. Exa que se digne a oficiar os serviços competentes do Banco de Portugal para vir aos autos identificar a instituição de crédito para a qual foi efectuada a transferência da quantia de € 1.970.000,00, em 18/06/2002, da conta nº 3390 detida pela I... no B..., SA, conforme consta do Doc. 11 da resposta à réplica (nos termos do disposto no artigo 531º do CPC).
(…)».

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Por despacho de 14/05/2013, foi ordenado, além do mais (cfr fls. 1074):

«Notifique as partes/entidades id. a fls. (…) 1058 a 1059 (als c), d) e) e f), para, em 10 dias, juntarem aos autos os documentos ou prestarem as informações requeridas, com as advertências previstas nos arts. 529º e 537º do CPC.»

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O Banco de Portugal respondeu por ofício de 21/06/2013 (cfr. fls. 1147) nestes termos:

«Em resposta ao ofício acima referenciado, no qual são pedidas ao Banco de Portugal informações cobertas pelo dever de segredo profissional estabelecido no artigo 80º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro, o Banco de Portugal solicita que lhe seja comunicado se o pedido em causa foi autorizado pela entidade a que os elementos informativos respeitam, ou se encontra abrangido por diploma legal em cujos termos o dever de segredo profissional se deva considerar levantado.

Se não for esse o caso, e com vista a facilitar os procedimentos de colaboração com as autoridades judiciais, sem prejuízo das responsabilidades que lhe incumbem, o Banco de Portugal deduz desde já motivo de escusa na prestação das informações, de modo a que possam ser promovidos, se assim se julgar conveniente, os mecanismos de levantamento judicial do segredo».

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A resposta do Banco de Portugal foi notificada às partes conforme ordenado por despacho de 17/09/2013 (de fls. 1166).

Não foi apresentada autorização para a prestação de informações.

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Em 18/10/2013 os RR Banco ... e Massa Insolvente do Banco ... vieram requerer (cfr fls. 1228-1234):

«1.(…) o Banco de Portugal veio, em cumprimento do ofício com a referência nº 18665196 expedido na sequência do Douto Despacho datado de 14/05/2013, com a referência nº 18598086, comunicar que a informação solicitada no requerimento probatório dos RR [“identificar a instituição de crédito para a qual foi efectuada a transferência da quantia de € 1.970.00,00, em 18/06/2002, da conta nº 3390 detida pela I... no B... SA (…)”] se encontram cobertas pelo dever de segredo profissional estabelecido no artigo 80º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras.

2. A informação solicitada ao Banco de Portugal pelos RR é de fundamental importância para a descoberta da verdade material em concreto para prova da factualidade alegada no artigo 6º da Base Instrutória, não tendo os RR outra forma de demonstrar cabalmente a realização da transferência do montante de € 1.970.000,00 da conta detida pela I... no B... para uma conta bancária detida em outra instituição de crédito.

3. Atento o exposto, nos termos do disposto no artigo 135º, nº 3, do CPP aplicável ex vi 417º, nº 4 do CPC, deverá ser ordenado o levantamento do segredo profissional invocado pelo Banco de Portugal e, em consequência determinada a prestação da informação solicitada a esta entidade de supervisão, atenta a preponderância do interesse dos RR no exercício dos seus direitos de defesa no presente processo.

Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, requer-se a V. Exa que se digne ordenar o levantamento do segredo profissional invocado pelo Banco de Portugal e, em consequência, a determinar a prestação da informação solicitada, nos termos do disposto no artigo 135º, nº 3, do CPP aplicável ex vi art. 417º nº 4 do CPC.

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Em 04/02/2014 foi proferido o seguinte despacho:
«Fls 1228 a 1234:

Em face do disposto no art. 417º, nº 4 do NCPC, remeta os autos ao Tribunal da Relação de Lisboa para apreciação do pedido de dispensa de sigilo».

Este despacho veio a ser cumprido em 09/09/2015 na sequência do despacho de 09/09/2015 (de fls. 1505).

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II – O Direito.

O art. 78º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras aprovado pelo DL 298/92 de 31/12 estabelece que estão sujeitos a segredo o nome dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.

O art. 79º desse diploma determina que os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição.

O art. 80º, sob a epígrafe «Dever de segredo do Banco de Portugal» estatui:

«1 - As pessoas que exerçam ou tenham exercido funções no Banco de Portugal, bem como as que lhe prestem ou tenham prestado serviços a título permanente ou ocasional, ficam sujeitas a dever de segredo sobre factos cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício dessas funções ou da prestação desses serviços e não poderão divulgar nem utilizar as informações obtidas.
2 - Os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal.
3 - Fica ressalvada a divulgação de informações confidenciais relativas a instituições de crédito no âmbito da aplicação de medidas de intervenção corretiva ou de resolução, da nomeação de uma administração provisória ou de processos de liquidação, exceto tratando-se de informações relativas a pessoas que tenham participado na recuperação ou reestruturação financeira da instituição.
4 - É lícita, designadamente para efeitos estatísticos, a divulgação de informação em forma sumária ou agregada e que não permita a identificação individualizada de pessoas ou instituições.
5 - Fica igualmente ressalvada do dever de segredo a comunicação a outras entidades pelo Banco de Portugal de dados centralizados, nos termos da legislação respetiva.».

Por seu lado, o art. 417º do CPC estatui que todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados. Mas também prevê este normativo, situações em que a recusa de colaboração é legítima, designadamente quando a obediência importe a violação do sigilo profissional, determinando então que no caso de ser deduzida escusa com esse fundamento é aplicável, com adaptações, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do sigilo invocado.

O art. 135º do Código de Processo Penal, na redacção dada pela Lei 48/2007 de 29/8 prevê, sob a epígrafe «Segredo profissional»:

«1– Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos e jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 – Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3– O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
(…).».

Resulta dos citados normativos legais que o dever de sigilo bancário, que é um dever de segredo profissional, não constitui um limite absoluto ao dever de cooperação para a descoberta da verdade, já que pode ser quebrado sempre que tal se mostre justificado segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante.

No caso concreto, está em causa a prestação de informações pelo Banco de Portugal para prova do artigo 6º da base instrutória, cujo teor é o seguinte:

«Os montantes referidos nos acordos a que aludem as als. O), W), AA) e GG) foram, efectivamente, disponibilizados pelos B... e B... Cayman às sociedades neles intervenientes, C..., e por estas utilizadas?»

Na alínea A) dos factos assentes consta:

«O A. é o cliente (cliente group) nº 210928 do Banco ... (B...)».
Na alínea W) consta:

«O B... subscreveu, como primeiro outorgante, o acordo escrito cuja cópia está junta a fls. 550 a 557, intitulado “contrato de abertura de crédito em conta corrente”, datado de 28.09.2004, cujo teor se dá por reproduzido, do qual consta, como segundo outorgante e Cliente, a ora Interveniente I... Lda, e nos termos do qual o primeiro declarou abrir em benefício da segunda, que declarou aceitar, um crédito no montante de € 1.800.068,00, a desembolsar a partir de 28.09.2004, por solicitação da segunda e por crédito na conta nº 3389 de que a segunda é titular, sendo o crédito acordado por um prazo de 12 meses, eventualmente renováveis».

No documento 11 de fls. 700-705 junto pelos RR e em que figura como destinatária I... Lda, consta como tendo sido efectuado um crédito no valor de 1.970.000 € em 18/06/2002 e nessa data uma transferência a débito dessa quantia, tudo com referência à conta 02.10051.0003389/001.000.978 titulada por aquela sociedade.

Ora, como também na alínea W) dos factos assentes é referida a conta nº 3389 e não a conta nº 3390, é evidente ter havido lapso de escrita por parte dos RR ao mencionarem a conta bancária nº 3390, lapso que se corrige ao abrigo do art. 249º do Código Civil.

A prestação das informações pelo Banco de Portugal mostra-se necessária para a prova do facto vertido no art. 6º da base instrutória, relativamente ao que é perguntado quanto à sociedade I..., sendo pois, relevante para a decisão da causa. Assim, se o Banco de Portugal não for dispensado do dever de sigilo ficará seriamente afectado o direito dos Réus à descoberta da verdade e à justa composição do litígio. Por isso, deve prevalecer o interesse dos Réus sobre o interesse da interveniente I... Lda no sigilo bancário.

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III – Decisão:

Pelo exposto, decide-se dispensar o Banco de Portugal do dever de segredo profissional e ordena-se que forneça a informação requerida pelos Réus no requerimento de 20/03/2013 (fls. 1056-1061), mas quanto à conta bancária nº 3389.
Custas pela parte vencida a final.



Lisboa, 08 de Outubro de 2015


Anabela Calafate                                  
Regina Almeida                                  
Maria Manuela Gomes
Decisão Texto Integral: