Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1739/11.0TBCLD.L1-6
Relator: TERESA PARDAL
Descritores: QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO
CONFLITO DE DIREITOS
PREVALÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: INCIDENTE DE SIGILO BANCÁRIO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. A identificação de uma conta onde foi creditado um cheque, bem como a identificação do seu titular constitui informação que está abrangida pelo dever de sigilo bancário.
2. Prevalece sobre o dever de sigilo bancário, que assim deverá ser levantado, o direito da parte que pretende provar que um cheque por si emitido foi creditado na conta de um terceiro que não era o seu legítimo portador e que teve prejuízos com o pagamento do seu valor ao legítimo beneficiário do mesmo.
(sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

RELATÓRIO.

Q…, Lda intentou acção declarativa com processo ordinário contra Banco …, SA e C…, CRL, alegando que emitiu um cheque, sacado sobre a sua conta bancária domiciliada na ré B…, à ordem de “P…”, no montante de 17 000,50 euros, o qual veio a ser pago pelas rés a terceiro que não o legítimo portador, em virtude de não ter sido verificada a regularidade do endosso, com o que foram causados danos à autora, que foi judicialmente demandada pela legítima portadora, a referida P…, sua fornecedora, a quem teve de pagar o valor correspondente ao do cheque, acrescido de juros, tendo ainda de pagar as custas judiciais desse processo.

Concluiu pedindo a condenação das rés a pagarem-lhe a quantia de 24 350,00 euros, juros vincendos e as custas judiciais do aludido processo.  

Ambas as demandadas contestaram, arguindo a excepção da prescrição e alegando que o cheque, sacado da conta da autora no B… e depositado na C…, numa conta de um cliente desta, tinha aposto no verso “P…, Lda a gerência”, o que era suficiente para garantir a regularidade do endosso, não estando o sacado obrigado a assinatura do endossante, nos termos do artigo 35º da LUCH. 

Concluíram ambas pedindo a procedência da excepção de prescrição e a improcedência da acção.

A autora replicou, opondo-se às excepções invocadas pelas rés.

Após os articulados foi proferido despacho saneador que julgou a excepção de prescrição procedente em relação à ré C…, absolvendo esta ré do pedido e julgou a excepção de prescrição improcedente em relação à ré B… e, em seguida, fixou o objecto do litígio e os temas de prova da seguinte forma:

Objecto do litígio: saber se assiste à autora o direito a haver da ré a quantia peticionada, por violação da obrigação decorrente da convenção de cheque celebrada.

Temas de prova:

a) da existência de endosso regular do cheque nº000, sacado sobre a conta nº000 do Banco B…, da titularidade da autora;

b) da verificação da regularidade do endosso;

c) dos prejuízos suportados pela autora perante a P…, Lda.

Apresentados os requerimentos probatórios pelas partes, veio a autora requerer que a C… CRL fosse notificada para juntar aos autos cópia da ficha bancária relativa à conta onde foi creditado o cheque dos autos e, ainda, identificar o cliente em causa, para ser arrolado como testemunha.

Notificada a C… nos termos requeridos, veio esta declarar que está impossibilitada de prestar a informação requerida, por força do dever de guarda de sigilo bancário, de acordo com o artigo 78º do DL 298/92 de 31/12.

A autora veio responder, alegando que a informação recusada é necessária para a descoberta da verdade e que não se verifica o dever de guarda de sigilo bancário, mas, caso assim não se entenda deverá a questão ser apreciada em sede de incidente de quebra do sigilo bancário.

Foi então proferido despacho que entendeu submeter a questão ao incidente de levantamento do sigilo bancário.          

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A questão a decidir é a de saber se deverá ou não ser levantado o dever de sigilo bancário invocado pela C….

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FACTOS.

Os factos a atender são os que constam no relatório deste acórdão.

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ENQUADRAMENTO JURÍDICO.

Estabelece o artigo 417º do CPC (redacção do DL 41/2013 de 26/6), no seu nº1, que todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, estão obrigadas a prestar colaboração para a descoberta da verdade e no seu nº3, que a recusa de colaboração será, porém, legítima se esta importar “ (…) c) violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo no nº4”, estatuindo o nº4 do mesmo artigo que, sendo recusada a colaboração com fundamento na alínea c) do nº3, “é aplicável com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da recusa e da dispensa do dever de sigilo invocado”.

Por seu lado, do artigo 135º do C.Proc.Penal, aplicável nos termos do referido nº4 do artigo 417º, decorre que, verificada a legitimidade da recusa, a decisão sobre a dispensa do dever de sigilo invocado tem de ser tomada tendo em conta a prevalência do interesse preponderante e a imprescindibilidade da colaboração solicitada para a descoberta da verdade.

No presente caso, foi solicitado a uma instituição bancária cópia da ficha bancária relativamente a uma conta onde foi creditado um cheque, bem como informação sobre a identificação do cliente titular dessa conta.

A satisfação desta solicitação importaria uma violação do sigilo bancário a que a instituição bancária está obrigada, de acordo com os artigos 78º e 79º do DL 298/92 de 31/12 (Regulamento Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras).

Com efeito, estabelece o artigo 78º do referido diploma, no nº1, que “Os membros dos órgãos da administração ou fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”e, no nº2, que “Estão, designadamente, sujeitos ao segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e os seus movimentos e outras movimentações bancárias”.

O artigo 79º do mesmo decreto-lei contém as excepções a este dever de sigilo, entre os quais o da alínea d) do nº2, ou seja, as obrigações e procedimentos previstos na lei penal e de processo penal.

Avaliando, então, os direitos que estão em causa e em colisão, temos, por um lado, os valores protegidos pelo sigilo bancário, que são o da confiança e segurança das relações entre os bancos e seus clientes e o direito à reserva da vida privada desses clientes (artigo 26º da CRP) e, por outro lado, o direito à parte a produzir prova num processo judicial (artigo 20º da CRP), sendo certo que, quanto a este último direito, haverá que avaliar também se é imprescindível para a sua tutela o levantamento do sigilo e consequente restrição do direito por este protegido.

Os temas da prova fixados pelo tribunal são: a) saber se o endosso foi regular; b) saber se foi verificada a regularidade do endosso; c) saber se a autora teve prejuízos perante a beneficiária do cheque. As normas a aplicar, após a produção de prova são os artigos 14º e seguintes, 35º, 37º e 38º da Lei Uniforme relativa ao Cheque (LUCH), as disposições constantes no Regulamento do Sistema de Comunicação Interbancária do Banco de Portugal e as normas da responsabilidade civil contratual previstas nos artigos 798º e seguintes do CC.

Ora, desde logo, para se saber se o endosso é ou não materialmente regular, ou seja, se efectivamente foi um terceiro que não era o legítimo portador do cheque quem o depositou e, consequentemente, se a autora teve prejuízos, ao pagar novamente o valor do cheque ao legítimo beneficiário do cheque (factos que são controvertidos, impugnados pela ré por desconhecimento), é essencial conhecer a identificação da conta onde veio a ser depositado o cheque e do respectivo titular e o direito a produzir tal prova prevalece sobre o dever de sigilo do banco a quem foi solicitada a informação.         

Deverá, assim, ser levantado o sigilo bancário e a C… prestar informação sobre a identificação da conta onde foi creditado o cheque em causa e do seu respectivo titular, informação que se mostra suficiente para a prova pretendida pela autora.    

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DECISÃO.

Pelo exposto se decide levantar o dever de sigilo bancário e determinar que a C... preste informe a identificação da conta onde foi depositado o cheque em causa e a identificação do respectivo titular.

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Custas pela parte vencida a final.

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  2014-06-19                                                              

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Maria Teresa Pardal

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Carlos Marinho  

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 Anabela Calafate