Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1948/12.5YXLSB.L1-2
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
OBRAS DE CONSERVAÇÃO
RESOLUÇÃO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: SUMÁRIO:

I - O incumprimento do dever de uso efectivo do locado constitui causa de resolução do contrato de arrendamento – a regra é a de aquela falta de uso integrar o fundamento de resolução; porém, muito embora o senhorio possa resolver o contrato com fundamento no incumprimento das respectivas obrigações por parte do arrendatário, não é todo e qualquer incumprimento que determina a resolução, exigindo-se que esse incumprimento pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento.
II – Tratando-se de dois contratos de arrendamento, o primeiro para que num prédio fosse exercida uma determinada indústria e o segundo para que no prédio contíguo fossem armazenados os produtos daquela indústria, existe fundamento para a resolução do primeiro contrato quando a R. deixara há mais de dois anos consecutivos de exercer no prédio a referida indústria; bem como, sendo o segundo contrato de arrendamento dependente funcionalmente do primeiro, tendo, aliás, deixado de existir produtos armazenados desde cerca de oito meses antes da proposição da acção, justifica-se a resolução do segundo contrato de arrendamento.
III – Entre as obrigações do senhorio está a de assegurar ao inquilino o gozo da coisa para os fins a que se destina, impondo-se a realização das obras indispensáveis a manter o locado no estado em que se encontrava à data do arrendamento; todavia, a R. não logrou demonstrar que o seu incumprimento se devia ao estado de conservação dos edifícios, ou seja, que a falta de uso dos mesmos ocorreu devido às condições de conservação em que eles se encontravam, o que afasta a hipótese de justificação do não uso por motivo de força maior.
IV – Não tendo ficado demonstrado que a situação de não uso tenha ocorrido devido ao estado de degradação do prédio em virtude da falta de obras de conservação, improcede a argumentação da apelante quanto a ocorrer abuso de direito, sendo, ainda, de ter em conta a natureza supletiva dos remédios proporcionados por este.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa:
                                                           *
       I – MV, LM, JM, JC, AJ, AC, JG, TM, VJ, MC, FR, CM, AL e AA intentaram a presente acção declarativa contra «A, S & S, Limitada».
Alegaram os AA., em resumo:
A 1ª e o 2º AA. são os únicos herdeiros da herança aberta por óbito de JAR, constando este e os demais autores como os proprietários inscritos do prédio sito na Travessa de X, nºs 5, 7 e 9, freguesia de ..., em Lisboa e de um outro prédio urbano, sito na mesma rua, com o nº 11.
O primeiro daqueles prédios destina-se a fábrica e armazém e o segundo é constituído por barracões e uma vila para habitação.
Por contratos de 28 de Junho de 1927 e 28 de Setembro de 1931, os então proprietários desses imóveis deram estes de arrendamento à R., sendo o primeiro com destino à torrefacção e moagem de cafés, cereais e especiarias e o segundo com a finalidade de servir de armazém dos produtos daquela indústria. As rendas actuais são, respectivamente, de 256,00 € e 172,00 €.
A R. está inactiva há mais de três anos, não existindo qualquer movimento nos imóveis locados, nem qualquer indício de moagem ou torrefacção de cafés e armazenamento deste produto; abandonou os dois imóveis em Novembro de 2011 e a sua contabilidade demonstra que não fez qualquer utilização dos locados em 2010.
A R. procedeu à remoção de toda a maquinaria destinada à referida indústria, o que provocou danos nos telhados e paredes.
Concluíram que está verificado o fundamento de resolução do contrato de arrendamento previsto na alínea d) do nº 2 do artº 1083 do CC.
Pediram que seja decretada a cessação do arrendamento daqueles dois imóveis, sitos nos nºs 5 a 9 e 11, da Travessa de X, em Lisboa, sendo a R. condenada a  despejar imediatamente esses locais e a deixá-los livres e devolutos de pessoas e bens.
A R. contestou. Impugnou alguns factos alegados pelos AA., alegou que por várias vezes lhes pediu a realização de obras nos imóveis e que é a falta dessas obras, com a inerente deterioração dos locados, a causa da redução da actividade a que se dedica no locado.
Afirmou que estando impossibilitada de atingir o nível de produção para o qual estava vocacionada, vem utilizando os dois imóveis para comercialização de produtos excedentes, recepção de clientes e de correspondência relacionada com a sua actividade.
Concluiu, que os autores não lhe asseguram o gozo da coisa para o fim dos arrendamentos, negando o encerramento do estabelecimento.
Formulou pedido reconvencional peticionando a condenação dos AA. na realização das obras necessárias a repor os imóveis no estado de conservação necessário ao uso para o qual foram arrendados e no pagamento de uma indemnização pelas despesas e perturbações sofridas, a liquidar em execução de sentença.
Os AA. replicaram e o processo prosseguiu vindo, a final, a ser proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:
Julgar os pedidos formulados pelos AA. totalmente procedentes, e em consequência:
«a) declarar cessados os contratos de arrendamento celebrados em 28 de Junho de 1927 e 28 de Setembro de 1931, relativos aos prédio urbanos sitos na Travessa de X, nºs 5 a 9 e Travessa de X nº 11, em Lisboa, respectivamente, descritos na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob os nºs 1711 e 3623 da freguesia de .....
b) condenar a ré A S & S, LDA a despejar esses imóveis, deixando-os livres e devolutos de pessoas e bens»
Julgar totalmente improcedente o pedido reconvencional formulado pela R. contra os AA., dele absolvendo estes.
Da sentença apelou a R., concluindo nos seguintes termos a respectiva alegação de recurso:
1. Entende a Apelante que não resulta provado o não uso do locado, mormente, a matéria constante do artigo 43.° da petição inicial e que serviu de fundamentação da sentença, não devia ser dada como provada, atenta a prova produzida em audiência de julgamento, em particular pelo depoimento da testemunha João ...: Depoimento 20140311100804_1662192 2175832 (a partir do minuto 15:38), (a partir do minuto 17:03), (a partir do minuto 38:13) e (a partir do minuto 39:57).
2. Entendeu o tribunal a quo que é facto provado que os anteriores proprietários foram acedendo aos pedidos de obras efetuados pela Apelante (n.° 10 dos factos provados).
3. Prova de que não foram feitas obras é exatamente o estado em que se encontra o imóvel, atestado como "mau" pelo relatório da Comissão Arbitral Municipal de Lisboa que se encontra junto aos autos, sendo elementar que um imóvel só alcança a classificação de "mau" se, efetivamente não forem realizadas obras de conservação há muito tempo!
4. O estado dos prédios como degradados foi na verdade também reconhecido pelo Autor JC no seu Depoimento 20140310104702 1662192 2175832 (a partir do minuto 05:30).
5. Pelo exposto, considera a Apelante, atenta a prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, que a factualidade constante do n.° 10 dos factos provados deverá passar a ter a seguinte redação, cuja alteração desde lá, muito respeitosamente, se sugere: 10. Há mais de seis anos antes da propositura da ação, em datas concretas não apuradas, foram dirigidos pela ré aos então proprietários dos prédios, antecessores dos autores, pedidos de realização de obras.
6. Entendeu o tribunal a quo que é facto não provado que as obras nunca tenham sido feitas (alínea g) dos factos não provados).
7. Também aqui, e exatamente com base em todo o supra exposto, considera a Apelante que a alínea g) dos factos não provados deverá passar a constar dos factos provados.
8. Entendeu o tribunal a quo que são factos não provados:
- que a ré tenha removido alguma maquinaria da fábrica com intenção de a preservar da deterioração do imóvel, de substituir algumas das máquinas e de reparar outras (alínea j) dos factos não provados),
- que essa remoção tenha tido também como objetivo facilitar a vistoria da CAM (alínea k) dos factos não provados).
9. Não pode a ora Apelante conformar-se com tal interpretação, pelo menos não na sua totalidade, nomeadamente pelo que resulta precisamente do depoimento da testemunha João ...: Depoimento 20140311100804_1662192 2175832 (a partir do minuto 13:40) e (a partir do minuto 14:50).
10. Ora, atenta a prova produzida em audiência de julgamento, considera a Apelante que:
- a alínea i) dos factos não provados deverá passar a integrar os factos provados com a seguinte redação, que desde já, muito respeitosamente, se sugere: Que a ré tenha removido alguma da maquinaria da fábrica com a intenção de substituir algumas das máquinas.
- a alínea k) dos factos não provados deverá passar a integrar os factos provados.
11. Entendeu o tribunal a quo que é facto não provado que em 2011 a ré tenha contratado um funcionário para o armazém e uma funcionária para a parte administrativa do escritório da fábrica (alínea m) dos factos não provados).
12. Entende a Apelante que da prova produzida em audiência de julgamento resulta exatamente que a Apelante em 2012 permanecia com dois funcionários, pelo que recorda o declarado pela testemunha João ...: Depoimento 20140311100804_1662192 2175832 (a partir do minuto 39:57).
13. Pelo exposto, considera a Apelante que a alínea m) dos factos não provados, deverá passar a consta da matéria de factos provados com a seguinte redação, o que desde já, muito respeitosamente, se supere: Que em 2012 a ré mantinha ao seu serviço um funcionário para o armazém e uma funcionária para a parte administrativa do escritório da fábrica.
14. Para além de impugnar a matéria de facto provada, entende a Apelante que esteve mal o tribunal a quo na aplicação do direito aos factos considerados como provados, razão porque deve ser revogada a decisão recorrida.
15. No que diz respeito ao alegado não uso do locado, o tribunal a quo entendeu que o mesmo resulta provado.
16. Todavia, não pode a Apelante conformar-se com tal entendimento, desde logo porque conforme explanado no capítulo 1 das presentes Alegações, e corroborado pelo depoimento da testemunha João ..., o qual auxilia informalmente a gerência da empresa, tendo, por esse motivo, conhecimento efetivo e direto do facto em causa, a Apelante continua ainda, hoje a utilizar o locado!
17. Por outro lado, e ainda que os Autores tenham tentado desvirtuar o teor das prestações de contas anuais que juntaram com a Petição inicial, a verdade é que resulta inequívoco dos referidos documentos legais que, ainda que tímidos, a Apelante continua a ter rendimentos do exercício da sua atividade que leva a cabo nos referidos imóveis.
18. Sendo certo que, ainda que se mantenha a decisão sobre a matéria de fato, o que não se aceita, mas se admite por dever de patrocínio, sempre resultaria apenas indiciada uma subutilização dos Locados e não o seu não uso, que há de ser efetivo nos termos da lei e da jurisprudência.
19. Sendo verdade que mesmo que exista uma subutilização dos locados, é também verdade que, tal como resulta da apreciação feita pelo Tribunal da Relação de Lisboa, num Acórdão de 09.06.2011, “subutilização” não é exatamente o mesmo que não uso. Subutilização ou subaproveitamento pressupõe que há alguma utilização, em termos que poderão até obstar à degradação ou à desvalorização do arrendado, o qual poderá até beneficiar com um menor desgaste decorrente de uma menor actividade.
20. Em conformidade, entendeu o mesmo Tribunal num Acórdão datado de 05.06.2007 que: "a circunstância de a empregada da sociedade continuar a comparecer no local praticando actos que importavam ao objecto da sociedade (receber clientes, manter o arquivo contabilístico organizado, providenciar pelo arranjo e manutenção dos expositores, assegurar a correspondência) obstam a que se considere que houve encerramento do prédio arrendado e, consequentemente, a que se decrete a resolução do contrato de arrendamento (artigo 64.°/1, alínea h) do R.A:U.), não afastando tal entendimento a circunstância de não ter sido efectuada qualquer compra ou encomenda, nem negociadas ou efectuadas vendas a clientes, nem movimentadas contas bancárias.".
21. Pelo que, tendo sido dado como não provado que "nos últimos três anos não exista qualquer movimento no armazém nem no escritório dos prédios referidos nos factos provados" (cfr. alínea a) dos factos não provados), terá naturalmente que se concluir, na esteira dos referidos arestos, que existe uso dos locados em moldes já considerados suficientes nela jurisprudência de forma a serem impeditivos  da  resolução dos contratos de arrendamento.
22. Acresce que a decisão recorrida não tem em consideração os contornos concretos do caso objeto dos autos, ao relevar que a atuação dos Autores com a propositura desta ação de despejo, mais não é do que uma tentativa de inversão do ónus da prova, esperando que seja a Ré Apelante a provar que não abandonou o locado por falta de obras de conservação que incumbiam sim aos Autores, pervertendo assim, desde logo, o efeito útil que a Apelante pretendeu quando, por efetivamente ser seu intuito continuar a exercer a sua atividade nos imóveis, desde que obviamente reunidas as condições necessárias, desencadeou o processo de determinação do nível de conservação dos mesmos à Comissão Arbitral Municipal de Lisboa, o qual veio a ser considerado como "mau" no relatório da referida entidade.
23. Ora, na verdade, conforme estipula a alínea b) do artigo 1031° do C.C., os Autores deveriam ter assegurado à ora Apelante o gozo dos imóveis para o fim a que se destinavam (fábrica e armazém) e não o fizeram!
24. O gozo da coisa locada não foi assegurado, desde logo porque os senhorios estavam obrigados a realizar todas as obras de conservação (ordinárias e/ou extraordinárias) nos imóveis e não o cumpriram (cfr. artigos 1074° n°1, 1111° n°2 do C.C. e art.2° do Decreto-lei n.°157/2006 de 08.08).
25. Não pode ser outro o entendimento, desde logo porque conforme indicado supra, um imóvel não alcança o estado de conservação "mau" se as devidas obras de conservação tivessem sido efetuadas!
26. Mesmo que se entendesse que a Apelante não usa o locado – o que apenas se concebe por mera cautela de patrocínio – sempre se diria que se tratou de um não uso lícito por se encontrar justificado por motivo de força maior, conforme decorre do artigo 1072.°, n.° 1, alínea a) do C.C.
27.Tem sido esse o entendimento da jurisprudência, nomeadamente no Acórdão do TRL de 20/10/2011: "Encontrando-se o locado em condições de grande degradação resultantes da omissão de realização de obras de conservação e que impossibilitem a sua utilização pelo locatário, verifica-se a licitude do não uso pelo locatário, por se tratar de caso de força maior a que se refere o artigo 1072° n°2 a) do CC, deixando de haver fundamento para a resolução do contrato pelo locador."
28. Veja-se também o Acórdão do TRC de 27/09/2011, em relação ao não uso para habitação: "a causa justificativa da não utilização do prédio está em o inquilino, compreensivelmente, justificadamente, razoavelmente, o não querer habitar, em consequência do facto de força maior registado [situação que se prolongará, por exemplo, se e enquanto as obras necessárias (de reparação. ou de restauro e consolidação) não forem efectuadas)]."
29. Ainda na mesma decisão, uma vez que a arrendatária "comunicou ao senhorio a ocorrência e reclamou a necessária reparação (cf., sobretudo, 11. 1. alíneas cc) e dd), supra, e art. 1038°, alínea h), do CC, e tratando-se de danos que objectivamente a impedem de usar o prédio arrendado para o fim contratado (habitação), não será possível afirmar o fundamento da resolução do contrato consistente na falta de uso do prédio em causa. Ademais, se a pretensão dos AA./recorrentes, principais responsáveis pela não realização das obras, não naufragasse por aquela via, dever-se-ia lançar mão do instituto do abuso do direito, por se tratar de situação de exercício abusivo do direito de resolução do contrato, por excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé.".
30. Com efeito, verifica-se que o comportamento já descrito dos Autores indicia em toda a linha estarmos perante uma situação de abuso de direito, ou seja, os Autores que tudo fazem para que a Ré não consiga usar o locado, vêm em seguida utilizar essa mesma factualidade como fundamento para a despejar.
31. É este também o entendimento vertido no já citado Acórdão do TRL de 20/10/2011, chegando a conclusão diversa no caso ali analisado, mas cuja explicação procede para o caso sub judice: "o abuso de direito ocorreria sim se fosse operada a resolução do contrato nesta situação, sancionando-se uma situação ilegal (a omissão de realização de obras da responsabilidade da senhoria) e permitindo-se que, em consequência, essa violação da lei obtivesse como resultado a saída dos locatários do locado".
32. E ainda, é esse também o entendimento vertido no Acórdão do STJ de 11.12.2012: 1. "Considerando que a autora encerrou o locado, onde funcionava um estabelecimento comercial, devido ao estado avançado de degradação do prédio, a colocar em perigo a sua segurança física e saúde, em virtude deste ter deixado de possuir as adequadas condições de utilização, verifica-se que não cumpriu o locador a sua obrigação primária e fundamental de assegurar ao locatário o gozo da coisa locada (art. 1031,°, al. b), do CC), o que retira a eficácia resolutiva do contrato de arrendamento, dado que tal resolução, a operar-se, representaria também ela uma situação imoral."
33. O mesmo aresto indica ainda: "Repugna aceitar que os locadores, a quem incumbiria a realização das obras que determinaram o encerramento do estabelecimento por parte da locatária, apesar de não lhes ser exigível que as façam, possam aproveitar-se desse encerramento para obter a resolução do contrato, o que integraria um caso de abuso do direito.".
34. Pelo que, a verdade é que, no entender da Apelante, foi incorretamente julgada a matéria de facto, devendo a Apelante ser absolvida do despejo e, consequentemente, condenados os Autores na realização de obras de conservação.
35. Assim sendo, deve ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra que absolva a Apelante da totalidade dos pedidos contra si formulados e, consequentemente condene os Autores a realizar as obras de conservação que lhes incumbe.
36. Ao não decidir desta forma estará o tribunal a violar o disposto no artigo 1031.°, alínea b) e 1074.0, n.° 1 do C.C.
A apelada contra alegou nos termos de fls. 509 e seguintes.
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II - O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. A 1ª e 2º autores são os únicos herdeiros da herança aberta por óbito de JARC, falecido em 19 de Janeiro de 2012.
2. Mostra-se registada a favor do falecido JARC e dos 3º a 13º réus a aquisição dos seguintes imóveis:
a) prédio urbano sito na Travessa de X, nºs 5 a 9, em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº 1711 da freguesia de ... e inscrito na matriz sob o artº 127 da freguesia de ....
b) prédio urbano sito na Travessa de X, nº 11, em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº 3623 da freguesia de ... e inscrito na matriz sob o artº 128 da freguesia de ....
3. O primeiro dos referidos prédios é composto por um pavimento com três vãos, destinando-se a fábrica e armazém.
4. O segundo deles é constituído por barracões e uma vila para habitação.
5. Por escrito datado de 28 de Junho de 1927, junto sob a forma de cópia a fls. 53 e 54 e que aqui se dá por reproduzido, JM declarou dar de arrendamento à ré, que declarou aceitar, com início em 1 de Agosto de 1927, pelo prazo de seis meses e contra o pagamento de trezentos escudos mensais, o prédio acima identificado sob a alínea a) do nº 2.
6. Foi acordado que esse arrendamento se destinava à torrefacção e moagem de cafés, cereais e especiarias.
7. Por escrito exarado por Notário em 28 de Setembro de 1931, junto sob a forma de cópia de fls. 56 a 69, que aqui se dá por reproduzido, AM declarou dar de arrendamento à ré, que declarou aceitar, com início em 1 de Outubro de 1931, pelo prazo de seis meses e contra o pagamento de trezentos e cinquenta escudos, o barracão com o número 2 que faz parte do segundo prédio acima identificado.
8. Esse barracão é contíguo ao prédio supra descrito na alínea a) do nº 2.
9. Foi acordado que o segundo dos referidos arrendamentos se destinava a armazém dos produtos da indústria que a ré exercia no prédio contíguo, nomeadamente torrefacção de café.
10. Há mais de seis anos antes da propositura da acção, em datas concretas não apuradas, foram dirigidos pela ré aos então proprietários dos prédios, antecessores dos autores, pedidos de realização de obras, a que eles foram acedendo, tendo essas obras sido executadas ( artº 10º dos temas da prova).
11. A ré não exerce nos prédios referidos no nº 2, desde Janeiro de 2008, a actividade de torrefacção e desde, pelo menos, Janeiro de 2010, não exerce no mesmo local, também, a actividade de moagem (artº 7º dos temas da prova).
12. Desde Junho de 2011 não existe nenhum produto armazenado nos prédios (artº 5º dos temas da prova).
13. As rendas actuais pela ocupação dos prédios são de Euros 256,00 e Euros 172,00 para o prédio sob a alínea a) e para o prédio sob a alínea b), respectivamente.
14. A ré tem como actividade registada o comércio de mercearia.
15. Os telhados da fábrica e armazém instalados nos prédios permitem a entrada de águas pluviais, as paredes dos mesmos têm manchas de humidade e oferecem risco de queda face a essas infiltrações e a instalação eléctrica apresenta risco de curto-circuito.
16. A ré dirigiu à 3ª autora, que a recebeu, a carta datada de 21 de Novembro de 2011, junta sob a forma de cópia a fls. 143 e 144, que aqui se dá por reproduzida, na qual, além do mais, afirmou:
“Na qualidade de representante da sociedade arrendatária do prédio urbano supra referido, de V.Exª e outros herdeiros são senhorios, venho pela presente solicitar a V.Exas que procedam a obras de conservação do locado, com a maior brevidade possível (…) ”.
17. Os autores não responderam a essa carta.
18. Em Novembro de 2011 a ré retirou dos supra referidos prédios toda a maquinaria destinada à moagem e torrefacção de café ( artº 4º dos temas da prova).
19. Permaneceu nos imóveis apenas maquinaria velha ( artº 6º dos temas da prova).
20. Ao retirar a maquinaria referida no nº 18 a ré causou danos nas paredes do imóvel (artº 25º dos temas da prova).
21. Em 28 de Novembro de 2011 a ré requereu à Comissão Arbitral Municipal de Lisboa (CAM) a determinação do coeficiente de conservação da fábrica.
22. Nos prédios referidos no nº 2 não existe qualquer sinal da moagem e torrefacção de cereais ou do respectivo armazenamento ( artº 3º dos temas da prova).
23. Os imóveis descritos no nº 2, em razão do seu estado, não são aptos a neles manter uma indústria de torrefacção de café ( artº 9º dos temas da prova).
24. As instalações sanitárias dos prédios estão degradadas (artº 20º dos temas da prova).
25. A aplicação dos prédios referidos no nº 2 à actividade de indústria alimentar exige a substituição integral do sistema de saneamento, a reestruturação do sistema eléctrico, bem como a instalação de sistemas de ventilação e de tratamento de poluentes atmosféricos e aquosos ( artº 26º dos temas da prova).
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II –2- O Tribunal de 1ª instância não julgou provados, nomeadamente, os seguintes factos:
a) Que nos últimos três anos não exista qualquer movimento no armazém nem no escritório dos prédios referidos nos factos provados ( artº 1º dos temas da prova).
b) Que desde a mesma altura, não se proceda, nesse local, a cargas ou descargas de mercadorias (artº 2º dos temas da prova).
c) Que a ré não tenha exercido qualquer actividade, nomeadamente de armazenagem de cereais, nos anos de 2008 a 2010 ( artº 7º dos temas da prova).
d) Que a mesma tenha deixado de exercer qualquer actividade em Dezembro de 2006 por tal lhe ter sido ordenado após uma inspecção do Ministério do Ambiente (artº 8º dos temas da prova).
e) Que os imóveis descritos no nº 2, em função da sua localização, não sejam aptos a neles manter uma indústria de torrefacção de café (artº 9º dos temas da prova).
f) Que às solicitações de obras, os proprietários dos prédios sempre tivessem respondido que elas seriam feitas, mas que teriam que falar entre todos eles para acordar os moldes em que tal sucederia ( artº 11º dos temas da prova).
g) Que essas obras nunca tenham sido feitas (artº 12º dos temas da prova).
h) Que a partir de 2008 a estrutura física do prédio referido sob a alínea a) do nº 2 dos factos provados e os seus componentes tenham deixado de suportar a actividade de torrefacção ao mesmo ritmo que ela se fazia antes (artº 13º dos temas da prova).
i) Que por esse motivo a ré tenha diminuído a laboração da fábrica, sem nunca a parar por completo (artº 14º dos temas da prova).
j) Que a ré tenha removido alguma da maquinaria da fábrica com a intenção de a preservar da deterioração do imóvel, de substituir algumas das máquinas e de reparar outras (artº 15º dos temas da prova).
k) Que essa remoção tenha tido também como objectivo facilitar a vistoria da CAM (artº 16º dos temas da prova).
l) Que devido à impossibilidade de tirar proveito dos prédios descritos no nº 2 dos factos provados a ré tivesse despedido a maioria dos seus trabalhadores ( artº 17º dos temas da prova).
m) Que em 2011 a mesma tenha contratado um funcionário para o armazém e uma funcionária para a parte administrativa do escritório da fábrica (artº 18º dos temas da prova).
n) Que a fábrica e o armazém estejam a ser utilizados para comercialização de produtos excedentes, recepção de clientes e de correspondência ( artº 19º dos temas da prova).
o) Que a rede de esgotos dos prédios nunca tenha sido substituída (artº 20º dos temas da prova).
p) Que a diminuição da laboração da fábrica tenha reduzido os lucros que a ré anteriormente obtinha (artº 22º dos temas da prova).
q) Que a mesma tenha feito com que a ré perdesse clientes (artº 23º dos temas da prova).
r) Que a ré tenha pago indemnizações aos trabalhadores que despediu ( artº 24º dos temas da prova).
s) Que ao retirar a maquinaria referida no nº 18 a ré tenha originado no telhado e nas paredes orifícios de contacto com o ar livre que são a causa das infiltrações referidas nos factos provados (artº 25º dos temas da prova).
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III - São as conclusões da apelação que delimitam o recurso.
Assim, tendo em conta as conclusões elencadas pela apelante, as questões que se nos colocam são as seguintes: se deverá ser alterada a matéria de facto provada (e não provada) nos termos propostos pela apelante; se a matéria de facto provada não permite concluir pela verificação do não uso dos locados em ordem ao direito à resolução dos contratos; se o não uso sempre se encontraria justificado por um motivo de força maior; se, de qualquer modo, sempre haveria de recorrer à figura do abuso de direito por parte dos senhorios.
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IV – 1 - Nos termos do nº 1 do art. 640 do novo CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, «os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados», os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Efectivamente, o recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões ([1]).
Discorda a apelante da decisão proferida sobre a matéria de facto, referindo desde logo, que não resulta provado o não uso do locado, mormente a matéria constante do artigo 43 da p.i.. Neste artigo da p.i. os AA. afirmavam: «Assim, por todo o exposto, pode-se afirmar que a Ré não usa efectivamente os locados há mais de um ano».
Sucede que tal matéria – conclusão que os AA. retiram do que antes haviam exposto – não integra os factos provados elencados na sentença.
Como vimos, a impugnação da apelante deveria dirigir-se aos concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados, o que neste segmento não sucede, não havendo que apreciá-la, nesta parte.
Todavia, no corpo da alegação recurso – que não nas conclusões – a apelante, invertendo a perspectiva enunciada, reconduz a impugnação em referência às alíneas l), m), n) e p) dos Factos Não Provados que em seu entender deveriam ter sido considerados provados, fundando-se no depoimento da testemunha João....
Nestas alíneas o Tribunal julgara não provado:
«l) Que devido à impossibilidade de tirar proveito dos prédios descritos no nº 2 dos factos provados a ré tivesse despedido a maioria dos seus trabalhadores ( artº 17º dos temas da prova).
m) Que em 2011 a mesma tenha contratado um funcionário para o armazém e uma funcionária para a parte administrativa do escritório da fábrica (artº 18º dos temas da prova).
n) Que a fábrica e o armazém estejam a ser utilizados para comercialização de produtos excedentes, recepção de clientes e de correspondência ( artº 19º dos temas da prova). (…)
p) Que a diminuição da laboração da fábrica tenha reduzido os lucros que a ré anteriormente obtinha (artº 22º dos temas da prova).»
O Tribunal de 1ª instância fundamentara a sua convicção nos seguintes termos:
«Alíneas j), k), m), o), r) e s) – Não foi produzido qualquer meio de prova que permitisse alcançar uma convicção segura sobre esses factos.
Alínea l) – Sabendo-se que a ré deixou de ter trabalhadores, ignora -se a razão que levou à cessação da actividade e, por consequência, à extinção dos correspondentes contratos.
Alínea n) – O facto é infirmado por toda a prova atrás analisada.
Alíneas p) e q) – Ao contrário da tese da ré, a prova não sustenta uma diminuição de laboração, mas a sua cessação».
A argumentação da apelante com base no depoimento da testemunha João..., tendo em conta esse mesmo depoimento, não permite o entendimento de que houve uma errada convicção por parte do Tribunal de 1ª instância. Crê-se que a prova referida não permite sustentar que os factos apontados nas líneas l), m), n) e p) sejam julgados provados.
Pelo que, é de manter o decidido pelo Tribunal de 1ª instância.
                                                   *
IV – 2 - O Tribunal de 1ª instância julgou provado o seguinte facto:
«10. Há mais de seis anos antes da propositura da acção, em datas concretas não apuradas, foram dirigidos pela ré aos então proprietários dos prédios, antecessores dos autores, pedidos de realização de obras, a que eles foram acedendo, tendo essas obras sido executadas».
Com a seguinte fundamentação:
«O facto resulta do depoimento de parte, de natureza confessória, da autora MC, quando a mesma afirmou que no tempo em que as suas tias eram vivas (referindo-se às anteriores proprietárias, Maria Irene, Maria Angélica e Leonilde) eram pedidas obras pela ré, que aquelas realizavam através do trabalho de um terceiro – o Sr. Reis. Tratando-se de uma confissão complexa para os efeitos do artº 360º do Código Civil, a mesma foi considerada na sua totalidade, ou seja, quanto ao pedido de obras, mas também quanto à realização destas, posto que a ré não fez prova de que este último facto não fosse verdadeiro. Não o fez, designadamente, através do único depoimento testemunhal produzido – de João... – posto que o depoente, além de ser familiar próximo dos sócios da ré ( é filho de um deles) e, como tal, estar sujeito a um especial juízo crítico quanto à sua isenção, não demonstrou ter outro conhecimento sobre as obras no locado além do que ouviu dizer em família, assim como contradisse o depoimento de parte da ré ( prestado pelo seu irmão – BA) ao afirmar que até há 2 anos houve moagem e comercialização de produtos no locado.
Na convicção sobre essa matéria fez-se também uso da certidão do registo predial relativa aos imóveis, da qual resulta que a aquisição por óbito das referidas tias da depoente foi registada em 1996, pelo que as obras referidas no depoimento são certamente anteriores aos seis anos referidos na resposta».
A apelante defende que o ponto 10) dos Factos Provados passe a ter a seguinte redacção:
«10. Há mais de seis anos antes da propositura da ação, em datas concretas não apuradas, foram dirigidos pela ré aos então proprietários dos prédios, antecessores dos autores, pedidos de realização de obras».
Logo, pretende que seja amputado o segmento final daquele ponto 10) da matéria de facto provada («a que eles foram acedendo, tendo essas obras sido executadas»).
A A. MC que prestou depoimento na sessão da audiência de 10 de Março de 2014 (acta de fls. 397 e seguintes) respondendo aos temas de prova nºs 10, 11 e 12 (conforme requerido pela R. a fls. 352) afirmou então que «sabe apenas que quando as suas tias (Maria Irene, Maria Angélica e Leonilde) eram vivas era pedida a realização de obras pela inquilina e deslocava-se ao local o Sr. Reis que efectuava esses trabalhos».
Os demais AA. que igualmente prestaram depoimento de parte com alguma relevância disseram, apenas:
 - A A. CJ que tendo assumido a administração dos bens da herança, entre os quais os dois imóveis, em Janeiro de 2012, nessas funções foi contactada pela R. em 2013, com o pedido de realização de obras ao qual responderam que não podiam fazer obras porque o edifício tinha mais de 100 anos e a única alternativa para a sua reabilitação era a demolição e construção de um outro. Bem como que tanto quanto tem conhecimento antigamente eram sempre feitas as obras pedidas que estavam a cargo de um indivíduo chamado Reis.
- o A. AAM declarou que tanto quanto é do seu conhecimento quando havia problemas com o telhado dos edifícios deslocava-se para fazer trabalhos de reparação um senhor chamado Reis.
O art. 360 do CC consagra o princípio da indivisibilidade da confissão, tanto para a confissão complexa como para a confissão qualificada([2]).Como explicava Manuel de Andrade([3])«se a declaração confessória for acompanhada da afirmação de qualquer facto favorável ao confitente (pro se pronuntiatio) o adversário só pode aceitar a declaração total, sendo embora admitido a fazer prova contra a parte que lhe é desfavorável… Se não aceitar a confissão na sua totalidade, ela não valerá também na parte que lhe é favorável, tendo ele, portanto, de provar o próprio facto confessado».
Nestes termos, atentas as declarações da A. MC compreende-se que para ser considerada a realidade do pedido de obras também haja sido considerada a realidade da realização destas. Tudo isto com respeito a datas não apuradas, anteriores, todavia, a seis anos antes da propositura da acção (ou seja, poderia ter sido há 7, 10, 20 ou 35 anos, por exemplo, antes da propositura da acção em 2012).
Conforme fls. 307 e seguintes a CAM, em vistoria de Maio de 2012, atribuiu ao imóvel o estado de conservação “Mau”, fixando o coeficiente de conservação de 0,7 por deliberação de 31-5-2012. Porém, tal não briga directamente com a circunstância de há mais de seis anos (relativamente à data da entrada desta acção data essa próxima daquela em que se realizou a vistoria) haverem sido executadas obras (que nem sabemos quais foram).
Mantém-se, pois, a matéria de facto em referência, não se vislumbrando razão, em consonância, para alterar a alínea g) dos factos não provados.
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IV – 3 - Entre os factos não provados figuram os seguintes:
j) Que a ré tenha removido alguma da maquinaria da fábrica com a intenção de a preservar da deterioração do imóvel, de substituir algumas das máquinas e de reparar outras (artº 15º dos temas da prova).
k) Que essa remoção tenha tido também como objectivo facilitar a vistoria da CAM (artº 16º dos temas da prova).
Entende a apelante que tais factos passem a integrar os factos provados, o primeiramente referido restritivamente, com a seguinte redacção: a R. removeu alguma maquinaria da fábrica com a intenção de substituir algumas das máquinas.
Baseou-se, para o efeito, no depoimento da testemunha João ....
Como já referimos, o Tribunal de 1ª instância fundamentara a sua convicção em não ter sido produzido qualquer meio de prova que permitisse alcançar uma convicção segura sobre esses factos.
Esta testemunha, familiar dos sócios da R. – filho de um e primo de outros e que auxilia o irmão na gerência – referiu que a actividade de torrefacção foi abandonada e que as máquinas de torrefacção que ali estavam já não iriam ser utilizadas no futuro e que estavam a degradar-se.
Do seu depoimento não resulta com a necessária solidez que efectivamente a maquinaria que foi removida tenha sido removida com intenção de a substituir. Por outro lado, tendo a testemunha referido que lhe fora pedido, quando do relatório da Câmara, que tentasse ter as coisas «o mais arrumadas possível» daí não resultará com o mínimo de certeza que as máquinas removidas o hajam sido para facilitar a vistoria.
Mantém-se, pois, também nesta parte o decidido pelo Tribunal de 1ª instância.
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IV – 4 - O Tribunal de 1ª instância não deu como provado que «em 2011 a mesma [a R.] tenha contratado um funcionário para o armazém e uma funcionária para a parte administrativa do escritório da fábrica» (alínea m) dos factos não provados). Também aqui considerou que não foi produzido qualquer meio de prova que permitisse alcançar uma convicção segura sobre esse facto.
A apelante, baseada no depoimento da testemunha João..., sustenta que deveria ser julgado provado que em 2012 a R. mantinha ao seu serviço um funcionário para o armazém e uma funcionária para a parte administrativa do escritório da fábrica.
Esta testemunha mencionou, no seu depoimento, que o tio pagou indemnizações a todos os empregados – os 15 ou 20 que tinham - para se irem embora, isto segundo pensa em 2009. Apesar disso, em 2012 pagavam 500 € ao sr. Augusto e 250 € à srª D. Isabel para lá estarem em part-time, só de manhã, aquele na parte de organização da fábrica e esta que fazia parte do escritório.
Ora, que os trabalhadores foram dispensados resultava, também, de fls. 353 e 357.
Neste contexto, afigura-se adequada a resposta que ao correspondente tema da prova foi dado pelo tribunal de 1ª instância, não tendo sido prova que permita formar uma convicção segura no sentido pretendido pela apelante.
Pelo que se mantém, nos seus precisos termos, a matéria de facto julgada provada e não provada.
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IV – 5 - Defende a apelante que dos factos provados apenas resulta uma subutilização dos locados e não o seu não uso, e que existindo algum uso o mesmo é suficiente para que não haja lugar à resolução dos contratos. 
Estamos perante um primeiro contrato de arrendamento, datado de 1 de Agosto de 1927 e referente ao prédio sito na Travessa de X, nºs 5 a 9, havendo sido então acordado que esse arrendamento se destinava à torrefacção e moagem de cafés, cereais e especiarias; bem como perante um segundo contrato de arrendamento, datado de 28 de Setembro de 1931, referente ao imóvel sito no nº 11 da mesma Travessa de X, correspondente a um barracão contíguo ao prédio nºs 5 a 9, relativamente ao qual foi acordado que o locado se destinava a armazém dos produtos da indústria que a ré exercia no prédio contíguo, nomeadamente torrefacção de café.
O tribunal de 1ª instância considerou que estaríamos perante uma união ou coligação de contratos, sendo o de 1931 dependente ou subordinado ao primeiro, de 1927, preponderante.
Afigura-se que, efectivamente, assim é.
Na união de contratos distintos negócios encontram-se associados em função de factores de diversa natureza mas sem perda da respectiva individualidade. Assim, na união interna dois (ou mesmo mais) contratos surgem conectados porque as partes concluem um deles subordinadamente à conclusão de um outro ou em função de um outro. Deste modo, a validade e vigência de um dos contratos (ou, em certos casos, de ambos) fica dependente da validade e vigência do outro.
Provou-se que a R. não exerce nos prédios arrendados, desde Janeiro de 2008, a actividade de torrefacção e desde, pelo menos, Janeiro de 2010, não exerce no mesmo local, também, a actividade de moagem; assim como desde Junho de 2011 não existe nenhum produto armazenado nos prédios.
Não é posto em causa que o regime legal aplicável à resolução em causa é o decorrente do NRAU, conforme o art. 27 da lei 6/2006 de 27-2, sendo no âmbito desse regime que nos movemos.
O art. 1072 do CC prescreve que o arrendatário deve usar efectivamente a coisa para o fim contratado, não deixando de a utilizar por mais de uma ano.
Diz-nos Gravato de Morais ([4]) ser de precisar que o dever de utilização do locado «se apura atendendo a determinados factores e em razão das circunstâncias específicas do caso. Deve, pois, levar-se em conta o grau de diminuição da actividade, a duração e o tipo de encerramento (esporádico, ocasional, intermitente, contínuo, permanente)».
O nº 1 do art. 1083 daquele Código dispõe que «qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base no incumprimento da outra parte». Acrescentando o nº 2 do mesmo artigo que «é fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio…» sendo, depois, elencadas exemplificativamente várias situações, entre as quais, especificamente, o «não uso do locado por mais de um ano, salvo nos casos previstos no nº 2 do artigo 1072º».
Refere, a propósito, Pinto Furtado ([5]) que «o encerramento, como de resto a cessação da actividade, eram meros índices ostensivos ou factos reveladores do que no fundo se traduzia no não uso do espaço arrendado e é este não uso que, na sua essência, torna inexigível a manutenção do arrendamento por parte do senhorio, e justifica a ruptura contratual, pois a não utilização sujeita o prédio a desgaste e deterioração que causa dano digno de tutela».
Assim, o incumprimento do dever de uso efectivo do locado constitui causa de resolução do contrato de arrendamento – a regra é a de aquela falta de uso integrar o fundamento de resolução.
Porém, muito embora o senhorio possa resolver o contrato com fundamento no incumprimento das respectivas obrigações por parte do arrendatário, não é todo e qualquer incumprimento que determina a resolução, exigindo-se que esse incumprimento pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento ([6]).
Ponderemos as circunstâncias específicas do caso em análise, mostrando-se necessário apreciar se a gravidade ou as consequências do incumprimento tornam inexigível ao senhorio a manutenção do contrato de arrendamento, tendo interesse considerar, designadamente, a duração do “não uso” e se se trata de uma situação contínua ou ocasional/intermitente.
Como vimos no contrato celebrado em 1927 e referente ao prédio sito na Travessa de X, nºs 5 a 9, foi acordado que o arrendamento se destinava à torrefacção e moagem de cafés, cereais e especiarias, sendo esse o fim contratado.
Ora, sabemos que desde Janeiro de 2008 a R. não exerce nos locais arrendados a actividade de torrefacção e pelo menos desde Janeiro de 2010, não exerce ali a actividade de moagem. A acção foi proposta em Fevereiro de 2012 pelo que, atenta a data da sua proposição, já se encontravam cumpridos dois anos consecutivos de incumprimento pela R, daquele dever de uso efectivo do locado para o fim contratado (sempre no que concerne ao prédio sito na Travessa de X, nºs 5 a 9).
Quanto ao arrendamento celebrado em 1931 o seu fim específico era o de armazém dos produtos da indústria que a ré exercia no prédio contíguo. A R., como vimos, deixou de exercer essa indústria – de torrefacção e moagem – no prédio contíguo e, desde Junho de 2011, não existe ali nenhum produto armazenado. Todavia, concorda-se com a sentença recorrida quando nela se diz que sendo o segundo arrendamento acessório do primeiro, a inactividade no que àquele concerne se lhe comunica, de nada importando, tendo em conta o nexo funcional entre ambas as locações, que se tivessem mantido no imóvel, até Junho de 2011, mercadorias em armazém, uma vez que sem a laboração da torrefacção e da moagem a manutenção de bens em armazém é despicienda como efectiva utilização do locado.
Aliás, provou-se, também, que nos prédios em causa não existe qualquer sinal da moagem e torrefacção de cereais ou do respectivo armazenamento.
Entende-se, pois, existir fundamento para a resolução tornando-se inexigível para os AA. a manutenção dos contratos de arrendamento.
No encadeamento exposto, provando-se os factos acima referidos e face à articulação que deles se fez com as disposições da lei, é irrelevante que não se haja provado que nos últimos três anos não exista qualquer movimento no armazém nem no escritório dos prédios referidos nos factos provados e que desde a mesma altura, não se proceda, nesse local, a cargas ou descargas de mercadorias ([7]).
Por outro lado, saliente-se que, ao invés do que a apelante pressupõe, não carecia de constar entre os factos provados o alegado no artigo 43 da p. i. em que os AA. concluíam: «Assim, por todo o exposto, pode-se afirmar que a Ré não usa efectivamente os locados há mais de um ano». Necessário é que houvessem sido alegados e resultassem provados factos que conduzissem àquela conclusão.
Refira-se que não temos factos que nos permitam concluir que ocorreu, apenas, uma subutilização dos locados. Poder-se-á perspectivar aquela subutilização quanto aos armazéns – que apesar da cessação da actividade industrial da R. de torrefacção e moagem se mantiveram com produtos armazenados até Junho de 2011 – mas não quanto às outras instalações, sendo de salientar o que acima mencionámos quanto às consequências da união interna de contratos. A R. não logrou provar que a fábrica e o armazém estivessem a ser utilizados para comercialização de produtos excedentes, recepção de clientes e de correspondência, como alegara.
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IV – 6 - Provou-se que a R. dirigiu à 3ª A. uma carta, datada de 21-11-2011, solicitando aos AA. que procedessem a obras de conservação do locado, com a maior brevidade possível e que os AA. não responderam a essa carta. Bem como que nesse mesmo mês a R. retirou dos locados toda a maquinaria destinada à moagem e torrefacção de café (apenas permanecendo maquinaria velha) e que quando o fez causou danos nas paredes do imóvel.
Provou-se, também, que os telhados da fábrica e armazém instalados nos prédios permitem a entrada de águas pluviais, as paredes dos mesmos têm manchas de humidade e oferecem risco de queda face a essas infiltrações e a instalação eléctrica apresenta risco de curto-circuito e que em 28-11-2011, a R. requereu à Comissão Arbitral Municipal de Lisboa (CAM) a determinação do coeficiente de conservação da fábrica.
Resultou, ainda, provado que os imóveis, em razão do seu estado, não são aptos a neles manter uma indústria de torrefacção de café, que as instalações sanitárias estão degradadas e que a aplicação dos prédios à actividade de indústria alimentar exige a substituição integral do sistema de saneamento, a reestruturação do sistema eléctrico, bem como a instalação de sistemas de ventilação e de tratamento de poluentes atmosféricos e aquosos.
Não se põe em causa que caberia ao senhorio executar obras de conservação dos prédios – o que no âmbito da legislação a que nos reportamos decorreria do art. 1111 e do nº 1 do art. 1074 do CC, bem como do art. 2 do dl 157/2006, de 8-8.
Através da carta de 21-11-2011, a que não responderam, os AA. foram interpelados pela R. para realizarem obras de conservação dos edifícios.
Afirma a apelante que os AA. não lhe asseguraram o gozo dos imóveis para o fim a que se destinavam.
Sem dúvida que do que acima se transcreveu resulta que os edifícios estão degradados e necessitados de obras ([8]) e que entre as obrigações do senhorio está a de assegurar ao inquilino o gozo da coisa para os fins a que se destina (art. 1031-b) do CC) impondo-se ao senhorio a realização das obras indispensáveis a manter o locado no estado em que se encontrava  à data do arrendamento.
Todavia, verificando-se o aludido incumprimento por parte da R., não logrou esta demonstrar que o mesmo se devia ao estado de conservação dos edifícios, ou seja, que a falta de uso dos mesmos ocorreu devido às condições de conservação em que eles se encontravam. Não temos, efectivamente, elementos que permitam concluir que a R. deixou de exercer a actividade de torrefacção (em Janeiro de 2008) bem como a de moagem (pelo menos desde Janeiro de 2010) e que, neste contexto, deixou de haver produtos armazenados (desde Junho de 2011) porque os senhorios não realizaram as obras de conservação a que estavam obrigados e para as quais haviam sido alertados pela inquilina ([9]).
Tivesse a R. logrado aquela demonstração e arredaria a qualificação do não uso do locado como configurando um incumprimento culposo para os efeitos dos nºs 1 e 2 do art. 1083 do CC – a “sua” culpa ([10]) resultaria afastada.
A apelante reconduz este aspecto da questão à justificação do não uso por motivo de força maior.
Consoante a previsão do nº 2-a) do art. 1072 do CC o não uso do locado pelo arrendatário é lícito em caso de “força maior”. Diz-nos Pinto Furtado ([11]) que «o não uso pelo arrendatário, por mais de um ano, do espaço arrendado, não será fundamento de resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio se foi determinado por factos naturais, da autoridade ou de terceiros, constitutivos de impossibilidade objectiva de utilização, não imputável ao arrendatário», rejeitando a ideia de encarar essa impossibilidade no âmbito de um juízo de valor acerca da razoabilidade do comportamento omissivo do arrendatário. Entendendo que a necessidade de obras só, porventura, em hipóteses muito especiais poderá ser tida como força maior e que a vencibilidade do estado de conservação do edifício estará ao alcance de qualquer das partes, não podendo qualificar-se como força maior.
Nesta perspectiva, não nos encontraríamos perante uma caso de “força maior”. Todavia, mesmo que em modo de enquadramento jurídico assim não entendêssemos, a verdade é que, como salientámos, não se apurou que o não uso do locado nos termos referidos houvesse sido determinado pelas condições de degradação do imóvel - daí a insubsistência da defesa da apelante, no sentido da justificação do não uso por motivo de força maior.
                                                      *
IV – 7 - Prossegue a apelante com o entendimento de que o comportamento dos AA. indicia uma situação de abuso de direito, uma vez que tudo fazendo para que a R. não consiga usar o locado, vêm em seguida utilizar essa mesma factualidade para a despejar.
Vejamos.
Dispõe o art. 334 do CC que é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Trata-se de uma figura correspondente a uma válvula de segurança para obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico imperante em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito conferido pela lei; é genericamente entendido que existirá tal abuso quando, admitido um certo direito como válido, isto é, não só legal mas também legítimo e razoável, em tese geral, aparece todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito.
A nota típica do abuso de direito reside «na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido» ([12]).          
A alegação da apelante encontra-se próxima da fórmula tu quoque. Esta exprime a regra geral pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não pode depois, sem abuso, prevalecer-se da situação daí decorrente, ou exercer a posição violada pelo próprio, ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada ([13]).
Especifica Menezes Cordeiro([14])no«tu quoquecontratual o titular- exercente excede-se por recorrer às potencialidades regulativas de um contrato que ele próprio já violara», defendendo que no tu quoque não está em jogo uma manifestação de tutela da confiança, antes a de um outro princípio, concretizador da boa fé, o princípio da primazia da materialidade subjacente.
É de ter em conta a natureza supletiva dos remédios proporcionados pelo abuso de direito – na falta de outros remédios o tu quoque intervirá.
Duvida-se que seja esse o caso dos autos, uma vez que, afigura-se, a situação de resolveria através da regulamentação legal do direito à resolução.
Sucede, reafirma-se não ter ficado demonstrado com a necessária clareza que a situação de não uso a que nos reportamos tenha ocorrido devido ao estado de degradação do prédio em virtude da falta de obras de conservação.
Assim, a carta da R. datada de 21 de Novembro de 2011 e em que solicita ao senhorio a realização de obras tem lugar depois de cessada toda a actividade a que esta se dedicava nos locados, bem como igualmente tem lugar após aquela cessação o requerimento à CAM da determinação do coeficiente de conservação da fábrica.
Pelo que, também nesta perspectiva, sempre a argumentação da apelante improcederia.
                                                       *
V – Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
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 Lisboa, 5 de Março de 2015


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Maria José Mouro

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Teresa Albuquerque

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Sousa Pinto


[1]  Ver Abrantes Geraldes, «Recursos no Novo Código de Processo Civil», pag. 126.

[2] Nesta o confitente aceita o facto confessado, mas com particularidades ou determinações que lhe alteram a fisionomia ou qualificação jurídica; naquela o confitente aceita o facto mas adita-lhe outros susceptíveis de servirem de base a uma excepção ou a reconvenção em seu benefício.
[3]    Em «Noções Elementares de Processo Civil», Coimbra Editora, 1979, pags. 250 e seguintes.
[4]   Em «Novo Regime do Arrendamento Comercial», Almedina, 2ª edição, pag. 237.
[5]  No «Manual de Arrendamento Urbano», vol. II, Almedina, 4ª edição, pag. 1094.
[6]   Ver, a propósito, Menezes Leitão em «Arrendamento Urbano», 3ª edição, pags. 95-96.
[7]   Não esqueçamos que  a actividade de torrefacção e moagem se encontrava interrompida há mais de dois anos atenta a data de proposição da acção e que desde Junho de 2011, não existia ali nenhum produto armazenado – pese embora não se provasse que, anteriormente,  ou seja, nos últimos três anos atenta aquela proposição não existisse qualquer movimento no armazém nem no escritório nem ali houvesse cargas e descargas de mercadorias.
[8] Obras de conservação, eventualmente não apenas ordinária, mas sim extraordinária ou, mesmo, de reconstrução. 
[9] A carta solicitando a realização de obras e que ficou sem resposta é datada de 21-11-2011.
[10]  Que, nos termos do nº 1 do art. 799 do CC, se presume.
[11]  Obra citada, pags. 1072-1073 e 1074-1075.
[12] Pires de Lima e Antunes Varela, «Código Civil Anotado», Coimbra Editora vol. I, pag. 297.
[13] Menezes Cordeiro, «Tratado de Direito Civil Português», I Parte Geral, tomo IV, pag. 327.
[14] Obra citada, pags. 335 e 337.